Caracterização dos Efeitos Eletrofisiológicos Cardíacos in vivo de Altas Doses de Cocaína em Cães Anestesiados com Tórax Fechado e Coração Normal



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Transcrição:

Arq Bras Cardiol Artigo Original Fenelon e cols Caracterização dos Efeitos Eletrofisiológicos Cardíacos in vivo de Altas Doses de Cocaína em Cães Anestesiados com Tórax Fechado e Coração Normal Guilherme Fenelon, Júlio Uchoa, José Roberto Otobone, Marcos Reis, José Luiz Gomes do Amaral, Angelo A. V. de Paola São Paulo, SP Objetivo - A intoxicação por cocaína pode provocar arritmias cardíacas, contudo seus efeitos eletrofisiológicos não estão elucidados. Métodos - Oito cães (9-13Kg) foram submetidos a estudo eletrofisiológico convencional no estado basal e após infusão de cocaína (12 mg/kg bolus V seguido de 0,22 mg/kg/min por 25 min). Resultados - O nível plasmático da cocaína (n=5) alcançou 6,73±0,56 µg/ml. A cocaína não alterou a freqüência sinusal e a pressão arterial e prolongou a duração da onda P (54±6 vs 73±4ms, p<0,001), o intervalo PR (115±17 vs 164±15ms, p<0,001), a duração do QRS (62±10 vs 88± 14ms, p<0.001) e o intervalo QTc (344±28 vs 403± 62ms, p=0,03) mas não do intervalo JT (193±35 vs 226± 53ms, NS). Prolongou, também, os intervalos PA (9±6 vs 23± 8ms, p<0,001), AH (73±16 vs 92±15ms, p=0,03) e HV (35± 5 vs 45±3ms, p<0,001) assim como o ponto de Wenckebach (247±26 vs 280±28ms, p=0,04). Houve aumento da refratariedade atrial (138±8 vs 184±20ms, p<0,001) e ventricular (160±15 vs 187±25ms, p=0,03) a um ciclo de 300ms. Arritmias atriais não foram induzidas em nenhum cão. Fibrilação ventricular foi induzida em 2/8 cães no estado basal e 4/8 cães após cocaína. Conclusão - A cocaína em altas doses exerce significantes efeitos classe e parece aumentar a inducibilidade de fibrilação ventricular, mas não de arritmias atriais. Palavras-chave: cocaína; eletrofisiologia; fibrilação ventricular Disciplinas de Cardiologia e Anestesiologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP. Correspondência: Guilherme Fenelon - Laboratório de Eletrofisiologia Cardíaca Experimental EPM-UNFESP - Rua Pedro de Toledo 781, 10 andar - São Paulo, SP - 04039-032 - E-mail:guilhermefenelon@uol.com.br Recebido para publicação em 10/5/02 Aceito em 14/1/03 O consumo de cocaína aumentou substancialmente ao longo da última década, tendo atingido níveis epidêmicos nos países ocidentais 1-4. A intoxicação por cocaína está associada a morbidade e mortalidade significativas, sendo uma causa freqüente de morte súbita relacionada ao consumo de drogas ilícitas 2, 3. Várias evidências indicam que a morte súbita ocasionada pela cocaína decorre de seus efeitos cardiovasculares, particularmente o desencadeamento de arritmias ventriculares 1. Contudo, os mecanismos envolvidos na gênese dessas arritmias ainda não foram inteiramente elucidados. Embora as arritmias desencadeadas pela cocaína possam estar associadas à isquemia miocárdica ou infarto 3, 5, a cocaína pode ser arritmogênica mesmo na ausência de um evento isquêmico 1. Além de suas potentes ações simpaticomiméticas indiretas 1-4 (promovidas pelo bloqueio da recaptação presináptica de norepinefrina e dopamina), a cocaína em doses elevadas possui efeitos anestésicos locais significativos, podendo ocasionar distúrbios de condução e arritmias por reentrada 1,3,6,7. Não obstante, os estudos experimentais que avaliaram os efeitos da cocaína na inducibilidade de arritmias, através da estimulação elétrica programada, revelaram resultados conflitantes, com a inducibilidade de arritmias ventriculares tanto aumentada como inalterada pela cocaína 6,8-11. Além disso, embora taquiarritmias supraventriculares, incluindo taquicardia atrial, flutter atrial e fibrilação atrial, também sejam descritas durante a intoxicação por cocaína 1,3,12-14, o impacto dessa droga na inducibilidade de arritmias atriais foi pouco explorado. Procuramos, portanto, caracterizar as ações da cocaína, em níveis plasmáticos elevados, na eletrofisiologia atrial e ventricular, e na inducibilidade de arritmias, em um modelo canino com coração estruturalmente normal. Métodos Cães machos, adultos, da raça Beagle (n=12; peso, 9-13kg), foram divididos em 2 grupos: grupo cocaína (n=8) e Arq Bras Cardiol, volume 81 (nº 1), 23-8, 2003 23

Fenelon e cols Arq Bras Cardiol grupo controle (n=4). O protocolo do estudo foi aprovado pela comissão de ética e pesquisa da Universidade Federal de São Paulo e conduzido de acordo com as normas da Sociedade Americana de Fisiologia. Os animais foram pré-medicados com morfina (2mg/Kg M). Após 15min, foi feita a indução anestésica com propofol (6-8mg/kg V), administrado por veia superficial. Os cães foram intubados e colocados sob ventilação mecânica (Takaoka.670 ). A anestesia intravenosa contínua foi mantida com propofol (100µg/Kg/min), administrado com bomba de infusão, e a temperatura mantida constante em 37 com cobertor térmico. Os animais eram monitorizados através do registro contínuo do eletrocardiograma e da oximetria de pulso, e foram realizadas dissecções e canulações da artéria femoral direita para monitorização da pressão arterial invasiva e de gases arteriais, das veias femorais direita, esquerda e jugular interna direita para administração de fluidos e da cocaína e passagem de três cateteres diagnósticos quadripolares (6F) guiados por fluoroscopia, posicionados em apêndice atrial direito, ápex de ventrículo direito e feixe de His para registro dos eletrogramas intracavitários e estimulação elétrica programada das regiões de apêndice atrial direito e ventrículo direito. Os gases arteriais e o ph eram monitorizados e mantidos dentro de limites fisiológicos. O registro contínuo e gravação em disco óptico do eletrocardiograma de superfície, dos eletrogramas intracavitários bipolares (filtro: 30-500Hz) e a estimulação elétrica programada do coração foram realizados pelo sistema polígrafo TEB (Tecnologia Eletrônica Brasileira, São Paulo, Brasil). A freqüência sinusal, as medidas do eletrocardiograma de superfície (P, PR, QRS, QT, QT corrigido, JT) e os intervalos de condução intracardíaca (PA, AH, HV) foram avaliados em ritmo sinusal. O ponto de Wenckebach anterógrado foi determinado com técnicas previamente descritas 15. O período refratário efetivo atrial e do ventrículo direito foram determinados durante estimulação elétrica contínua com ciclo de freqüência de 300ms, a 4 vezes o limiar diastólico e largura de pulso de 2,0ms utilizando a técnica de extra-estímulo convencional, iniciada somente após 2min de estimulação contínua para que houvesse acomodação da refratariedade tecidual. O extra-estímulo era liberado após seqüência de 8 batimentos, com intervalo de acoplamento (S1-S2) progressivamente reduzido em 10ms até o período refratário efetivo ser alcançado (ausência de despolarização local). O período refratário efetivo foi definido como o menor intervalo S1-S2 que não despolariza por 3 vezes consecutivas o tecido atrial ou ventricular. A inducibilidade de arritmias atriais e ventriculares foi determinada com a aplicação de até 3 extra-estímulos a um ciclo básico de 300ms. Trens de pulso rápidos (200ms) e de curta duração (15s) foram realizados apenas no átrio. Foram consideradas arritmias sustentadas qualquer arritmia atrial ou ventricular com duração maior que 30s ou que ocasionassem instabilidade hemodinâmica. As medidas eletrofisiológicas atriais foram feitas previamente à estimulação ventricular. A pressão arterial invasiva foi determinada em ritmo sinusal, ao menos 5m após qualquer manobra de estimulação elétrica programada. O cloridrato de cocaína (da Universidade Federal de São Paulo) foi dissolvido em solução salina isotônica imediatamente antes do início de sua infusão através do acesso venoso femoral, sendo que 8 cães foram submetidos a injeção intravenosa de cocaína em bolus (12mg/kg durante 5min) seguida de infusão contínua (0,22mg/kg/min) com bomba de infusão durante 25min. Os parâmetros eletrocardiográficos, eletrofisiológicos, hemodinâmicos e a inducibilidade de arritmias atriais e ventriculares foram estabelecidos no estado basal e 30min após o início da infusão de cocaína. O grupo controle (n=4) foi submetido ao mesmo protocolo do grupo cocaína, porém, esses animais receberam infusão de salina (0,9%) ao invés de cocaína. As amostras de sangue arterial foram coletadas imediatamente antes das medidas eletrofisiológicas, colocadas em tubos heparinizados contendo fluoreto de sódio e colocadas no gelo até serem centrifugados a 4 C. Após a centrifugação, o plasma separado das amostras era congelado a -20 C e estocado até a sua análise. As concentrações plasmáticas da cocaína foram determinadas por spectrocromatografia de gás como previamente descrito 16. Os resultados são expressos em média ±1DP. O teste t de Student e o teste exato de Fisher foram utilizados quando apropriado. Valores de p <0,05 foram considerados estatisticamente significantes. Resultados Os efeitos eletrofisiológicos da cocaína foram avaliados no grupo de 8 cães. A concentração plásmatica média de cocaína, realizada em 5 cães, foi de 6,73±0,56 µg/ml.(5,90-7,20 µg/ml), similares àquelas encontradas em pacientes severamente intoxicados (overdose) por cocaína 1, 6. A infusão de cocaína não alterou significantemente a pressão arterial sistólica (116±39mmHg vs 141±33 mmhg, NS) e a diastólica (63±19 mmhg vs 85±26mmHg, p=0,07), tampouco a freqüência sinusal (539±83 vs 626±126ms, NS) (tab.). Por outro lado, a cocaína prolongou significantemente a duração da onda P (54±6 vs 73±4ms, p<0,001) e do complexo QRS (62±10ms vs 88±14ms, p<0,001) (fig.1). Digno de nota, o aumento percentual da duração da onda P foi similar ao aumento da duração do QRS (respectivamente, 37%, 19±5ms vs 51%, 30±22ms; NS). Houve prolongamento dos intervalos PR (115±17 vs 164±15ms, p<0,001), QT (252±34ms vs 317±73ms, p=0,04) e QTc (344±28 vs 403±62ms, p=0,03), porém o intervalo JT (193±35ms vs 226±53ms, NS) permaneceu inalterado. A cocaína também prolongou sensivelmente os intervalos PA (9±6 vs 23±8ms, p<0,001), AH (73±16ms vs 92±15ms, p=0,03) e HV (35±05ms vs 45±03ms, p<0,001), assim como o ponto de Wenckebach (247±26ms vs 280± 30ms, p=0,04). O aumento na duração dos intervalos do eletrocardiograma de superfície e dos registros intracavitários pareceu ser freqüência dependente, ou seja, o prolongamento desses intervalos se acentuou progressivamente à medida que aumentava a freqüência de estimulação (fig.2). Entretanto, devido ao aumento da refratariedade do nó atrioventricular causado pela droga, esse efeito pôde ser 24

Arq Bras Cardiol Fenelon e cols Tabela - Efeitos hemodinâmicos, eletrocardiográficos e eletrofisiológicos da cocaína em 8 cães Basal Cocaína Valor de P PAS (mm Hg) 116±39 (75-198) 141±33 (87-180) NS PAD (mm Hg) 63±19 (45-100) 85±26 (49-117) 0,07 FC (ms) 539±83 (375-638) 626±126 (400-767) NS Duração onda P (ms) 54±6 (40-60) 73±4 (70-80) <0,001 ntervalo PR (ms) 115±17 (86-140) 164±15 (134-185) <0,001 Duração do QRS (ms) 62±10 (50-70) 88±14 (70-150) <0,001 ntervalo QTc (ms) 344±28 (311-400) 403±62 (350-540) 0,03 ntervalo JT (ms) 193±35 (144-250) 226±53 (150-320) NS Ponto de Wenckebach (ms) 247±26 (200-285) 280±28 (250-340) 0,04 ntervalo PA (ms) 9±6 (0-20) 23±8 (10-35) <0,001 ntervalo AH (ms) 73±16 (40-90) 92±15 (60-110) 0,03 ntervalo HV (ms) 35±5 (30-40) 45±3 (40-65) <0,001 PRE atrial (ms) 138±8 (130-150) 184±20 (150-210) <0,001 PRE ventricular (ms) 160±15 (130-180) 187±25 (150-220) 0,03 Resultados em média ± desvio-padrão e variação; FC-freqüência cardíaca; NS-não-significante; PAD-pressão arterial diastólica; PAS-pressão arterial sistólica; PREperíodo refratário efetivo; QTc, QT corrigido. AVF ADA Basal Cocaína Em nenhum animal ocorreram arritmias atriais ou ventriculares espontâneas após a administração de cocaína. É importante ressaltar que, apesar da utilização de um protocolo de estimulação agressivo, não foram induzidas arritmias atriais em nenhum cão. Fibrilação ventricular foi induzida em 2/8 (25%) cães no estado basal e em 4/8 (50%) após a cocaína, contudo, esta diferença não foi estatisticamente significante. Nos 2 cães em que foi induzida fibrilação ventricular no estado basal, a mesma arritmia foi induzida após a infusão de cocaína. Um único cão, sob efeito da cocaína, apresentou indução de taquicardia ventricular monomórfica sustentada, interrompida com estimulação ventricular rápida. O mesmo cão também apresentou fibrilação ventricular à estimulação programada (fig.3). Em todos os animais, a indução de arritmias ventriculares sustentadas requereu a aplicação de 3 extra-estímulos. Arritmias espontâneas ou induzidas não ocorreram em qualquer cão do grupo controle. His Discussão Fig. 1 - São mostrados as derivações eletrocardiográficas, e AVF, e os eletrogramas bipolares registrados no ápex do ventrículo direito (), átrio direito alto (ADA) e feixe de His (His) e indicados os eletrogramas atriais (A), ventriculares (V) e do feixe de His (H). Traçados em ritmo sinusal antes (basal) e após a administração de cocaína (cocaína). Notar o prolongamento acentuado dos intervalos eletrocardiográficos e intracardíacos induzido pela droga. Velocidade dos traçados: 100 mm/s. demonstrado somente em 3 cães. Os períodos refratário efetivo atrial (138±8ms vs 184±22ms, p<0,001) e ventricular (160±15ms vs 187±22ms, p=0,03) aferidos a um ciclo de freqüência de 300ms, apresentaram aumento expressivo. O prolongamento percentual do período refratário atrial foi mais acentuado que o do período refratário ventricular (respectivamente, 32%, 45±20ms vs 18%, 27±20ms; p=0,08). Já no grupo controle, não foram observadas quaisquer alterações nos parâmetros eletrofisiológicos e hemodinâmicos avaliados (tab.). O presente estudo demonstrou em cães com coração normal e sistema nervoso autônomo intacto, que a administração intravenosa de cocaína, em doses resultando em níveis plasmáticos elevados, comparáveis àqueles relatados no quadro de intoxicação severa por cocaína 1,6, tem efeitos eletrofisiológicos atriais e ventriculares marcantes. A cocaína causou um significante alentecimento na condução dos átrios, nó atrioventricular, sistema His-Purkinje e ventrículos. Adicionalmente, a cocaína induziu um aumento substancial na refratariedade atrial e ventricular. Entretanto, a cocaína não produziu arritmias espontâneas e não teve efeito sobre a inducibilidade de arritmias atriais, mas pareceu aumentar modestamente a inducibilidade de arritmias ventriculares. Por outro lado, o grupo controle não apresentou nenhuma alteração nos parâmetros avaliados, indicando que os resultados obtidos no grupo cocaína não podem ser atribuídos à manipulação dos animais. Um achado consistente em todos os cães foi que altas doses de cocaína produziram significante efeito de alenteci- 25

Fenelon e cols Arq Bras Cardiol Fig. 2 São exibidos a derivação eletrocardiográfica e os eletrogramas bipolares registrados no feixe de His (His) durante estimulação atrial contínua com encurtamento progressivo da freqüência de estimulação (S1S1) e são indicados os eletrogramas atriais (A), ventriculares (V) e do feixe de His (H). No estado basal (painel A), o encurtamento do S1S1 de 400 para 300ms resulta no prolongamento fisiológico do intervalo AH sem alterar a duração do QRS e do intervalo HV. Após a administração de cocaína (painel B), ocorre prolongamento acentuado dos intervalos eletrocardiográficos e intracardíacos. Esses achados já são evidentes a ciclos de estimulação de 600ms, tornando-se progressivamente mais intensos com o encurtamento do S1S1 para 360ms. Velocidade dos traçados: 100mm/s. mento na condução sobre o tecido cardíaco (fig.1). A cocaína diminuiu a condução nos átrios, refletida pelo aumento da duração da onda P e intervalo PA, no nó atrioventricular (intervalo AH), no sistema His-Purkinje (intervalo HV) e nos ventrículos (duração QRS). Essas ações nos pareceram ser uso e freqüência dependentes, ou seja, os intervalos tornaram-se progressivamente maiores à medida que havia incremento na freqüência cardíaca (fig.2). Nossos resultados estão de acordo com estudos prévios 1,3,6, que demonstraram em modelos caninos que a cocaína alentece a condução tecidual com características similares às dos agentes antiarrítmicos classe B lidocaína e mexiletine. Esses efeitos são modulados pelo sistema nervoso autônomo e são exacerbados pelo bloqueio combinado dos receptores muscarínicos e β1 adrenérgicos 6. Consistente com esses achados, tem sido demonstrado em miócitos ventriculares isolados que a cocaína deprime as correntes de sódio de forma uso e freqüência-dependente, com cinética de interação com os canais de sódio semelhante àquela relatada para a lidocaína 17. Em consonância com investigações prévias 6,18, o presente estudo demonstrou claramente que altas doses de cocaína aumentam de maneira intensa a refratariedade atrial e ventricular. Como relatado por Clarkson e cols. 6, esse efeito parece ser mais pronunciado nos átrios do que nos ventrículos. Esse achado também foi observado na nossa casuística, sem, contudo, alcançar significância (p=0,081) estatística. Embora estudos in vitro tenham demonstrado que a cocaína é capaz de deprimir as correntes de cálcio e potássio 18,19, a maior parte do prolongamento do período refratário efetivo induzido pela cocaína pode ser atribuída ao seu potente efeito classe 18. Além do alentecimento da velocidade de despolarização do potencial de ação, drogas bloqueadoras dos canais de sódio retardam a recuperação tempo-dependente da excitabilidade. Nessa situação, a membrana continua incapaz de se despolarizar, mesmo após a completa repolarização do potencial de ação. Por conseguinte, há um prolongamento da refratariedade da membrana que se estende além da repolarização, um fenômeno chamado refratariedade pós-repolarização 20. A favor dessa hipótese, o presente estudo e outro 6 demonstraram que a cocaína aumenta o intervalo QT sem afetar o intervalo JT. Essa evidência indica que o aumento do intervalo QT induzido pela cocaína é secundário ao prolongamento do QRS e sugere que a droga não afeta primariamente a repolarização. Destacamos que, os efeitos classe da cocaína parecem ser dependentes da dose administrada, pois em baixas doses (2,1 mg/kg), a cocaína diminuiu o período refratário efetivo ventricular e não afetou significativamente a condução intra-atrial, QRS ou QTc 9. Em nossa investigação, os efeitos eletrofisiológicos da cocaína não foram acompanhados por mudanças significantes na pressão arterial sistêmica e freqüência sinusal. Entretanto, Clarkson e cols. 6 mostraram que a cocaína, em doses resultando em níveis plasmáticos similares aos obtidos no presente estudo, também não afeta a pressão arterial, mas aumenta a freqüência cardíaca. Por outro lado, nos cães que foram submetidos ao bloqueio autonômico combinado (muscarínico e β1 adrenérgico), a cocaína diminuiu tanto a pressão arterial como a freqüência cardíaca, sugerindo que os efeitos depressores da cocaína sobre a pressão arterial e o automatismo do nó sinusal são contra-balançados pelo sistema nervoso autônomo. Além disso, tem sido relatado que a resposta hemodinâmica à cocaína se correlaciona fortemente com os níveis plasmáticos de adrenalina, mas não com os de cocaína 8. Por fim, estudos in vitro têm indicado que a cocaína tem efeitos depressores diretos sobre o nó sinusal 18, 21. Dessa forma, a discrepância entre os dois estudos com relação à resposta da freqüência cardíaca à cocaína pode ser atribuída a variações do tônus autonômico secundárias às diferentes preparações animais. Em nosso estudo, a despeito da utilização de um protocolo de estimulação agressivo, a cocaína não aumentou a inducibilidade de arritimias atriais, mas pareceu aumentar modestamente a indução elétrica de arritmias ventriculares sustentadas (50% vs 25% nos controles). Clarkson e cols. 6 obtiveram quadro similar, relatando que na presença de cocaína, em doses comparáveis ao presente estudo, taquicar- 26

Arq Bras Cardiol Fenelon e cols Tabela - Efeitos hemodinâmicos, eletrocardiográficos e eletrofisiológicos em 4 cães controle Basal Salina Valor de P PAS (mm Hg) 143±38 (105-194) 146±26 (114-180) NS PAD (mm Hg) 94±15 (78-112) 93±13 (75-105) NS FC (ms) 476±109 (343-571) 511±64 (472-571) NS Duração onda P (ms) 55±6 (50-60) 56±5 (50-60) NS ntervalo PR (ms) 107±28 (70-133) 105±26 (70-133) NS Duração do QRS (ms) 66±5 (60-70) 67±5 (60-70) NS ntervalo QTc (ms) 390±54 (353-470) 378±61 (333-470) NS ntervalo JT (ms) 170±21 (150-200) 170±20 (153-200) NS Ponto de Wenckebach (ms) 220±28 (200-260) 217±12 (200-230) NS ntervalo PA (ms) 5±5 (0-10) 3±5 (0-10) NS ntervalo AH (ms) 66±20 (40-85) 65±19 (40-80) NS ntervalo HV (ms) 36±5 (30-40) 34±4 (30-40) NS PRE atrial (ms) 147±17 (130-170) 145±17 (130-170) NS PRE ventricular (ms) 157±5 (150-160) 155±5 (150-160) NS Resultados em média ± desvio-padrão e variação; FC-freqüência cardíaca; NS-não-significante; PAD-pressão arterial diastólica; PAS-pressão arterial sistólica; PREperíodo refratário efetivo; QTc, QT corrigido. ADA Fig. 3 São mostrados as derivações eletrocardiográficas e, e os eletrogramas bipolares registrados no ápex do ventrículo direito () e átrio direito alto (ADA) e indicados os eletrogramas atriais (A) e ventriculares (V). O painel A exemplifica taquicardia ventricular monomórfica com ciclo de freqüência de 240ms e o painel B a fibrilação ventricular. Velocidade dos traçados: 25mm/s. dia ventricular/fibrilação ventricular sustentada foi induzida em 2/10 (20%) cães e em 0/13 (0%) dos controles e sob bloqueio autonômico, em 2/6 (33%) cães que receberam cocaína e em 0/12 (0%) controles. Entretanto, esses números não alcançaram significância estatística. A incidência de arritmias ventriculares sustentadas indutíveis pôde ser aumentada (33% sem bloqueio autonômico) com a obtenção de níveis plásmaticos de cocaína ainda maiores. Em contraste, Tisdale e cols. 10 relataram que a cocaína não diminuiu significantemente o limiar para indução de fibrilação ventricular. Além disso, Schwartz e cols. 8 mostraram em cães conscientes que baixas doses de cocaína (2,8mg/Kg V) não promoveram a indução de arritmias ventriculares, mas aumentaram a suscetibilidade a fibrilação atrial, induzida em 3/14 cães. Exceto por esse último, a inducibilidade de arritmias atriais não foi avaliada nesses estudos. Em contraste com os achados de Schwartz e cols. 8, arritmias atriais não foram induzidas no presente estudo. A razão para isso não é clara, mas poderia estar ligada às doses mais elevadas usadas em nossa investigação. Há muito se sabe que o comprimento de onda do estímulo cardíaco (i.e., produto do período refratário e a velocidade de condução) é um determinante fundamental da inducibilidade de arritmias reentrantes 22. Comprimentos de onda mais curtos têm maior probabilidade de estabelecer circuitos reentrantes do que comprimentos de onda mais longos. Em consonância com os nossos achados, estudos in vitro têm mostrado que, em cada nível de concentração de cocaína avaliado, as células do átrio direito apresentam um aumento mais acentuado da duração do potencial de ação e do período refratário efetivo do que as células do ventrículo direito 18. Contudo, a cocaína parece não afetar diferencialmente a condução cardíaca, já que no estudo de Clarkson e cols. 6 a cocaína diminuiu de maneira uniforme a velocidade de condução atrial e ventricular. Teoricamente, em um circuito reentrante com trajeto (comprimento) constante, essa situação resultaria em um comprimento de onda relativamente maior no átrio do que no ventrículo. Portanto, embora o comprimento de onda não tenha sido medido neste estudo, é interessante especular que os efeitos diferenciais da cocaína sobre a inducibilidade atrial e ventricular podem estar relacionados em parte a modificações díspares induzidas pela droga no comprimento de onda, mediadas por alterações na duração do potencial de ação e na velocidade de condução. Entretanto, é importante frisar, que em nosso estudo foram utilizados cães de pequeno (9-13Kg) porte, o que ganha relevância à medida que a ocorrência de arritmias reentrantes é menos provável em átrios de pequenas dimensões 22. Assim, são necessários estudos adicionais para confirmar nossa observação de que níveis plasmáticos elevados de cocaína não tornam o átrio suscetível à indução de arritmias. Os efeitos discretos da cocaína sobre a inducibilidade de arritmias atriais e ventriculares e também sobre a produção de arritmias espontâneas, são consistentes com a hipótese de que o desenvolvimento de arritmias malignas no quadro de intoxicação por cocaína pode requerer condições patológicas adicionais, tais como distúrbios metabólicos ou isquemia miocárdica 1,3. Em apoio a essas observa- 27

Fenelon e cols Arq Bras Cardiol ções, tem sido demonstrado que a cocaína aumenta a freqüência de arritimias ventriculares espontâneas e indutíveis na presença de infarto do miocárdio ou em um estado hiperadrenérgico 8,11,23. Chamamos atenção que 23, arritmias supraventriculares espontâneas e fibrilação atrial sustentada foram observadas em cães recebendo doses baixas de cocaína (0,5 mg/kg, V) em conjunto com norepinefrina, enquanto animais que receberam apenas cocaína não apresentaram arritmias. Não obstante essas observações, é importante frisar que a cocaína pode primariamente promover ou exacerbar arritmias cardíacas. As ações simpaticomiméticas promovidas pela cocaína poderiam desencadear arritmias automáticas ou por atividade deflagrada 19. Por outro lado, devido ao seu proeminente efeito alentecedor da condução (efeitos classe ), a cocaína pode diminuir o comprimento de onda ou criar áreas de bloqueio unidirecional, propiciando condições para a ocorrência de reentrada 1,3,6,7. Salientamos que esses efeitos classe são modulados de maneira marcante pelo sistema nervoso autônomo e freqüência cardíaca 6. Como evidenciado por este e outro estudo 6, taquicardia ventricular monomórfica sustentada e fibrilação ventricular podem ser induzidas no quadro de intoxicação por cocaína (fig.3). Adicionalmente, muitos relatos clínicos têm documentado que a cocaína pode levar a distúrbios de condução, arritmias cardíacas supraventriculares e ventriculares e morte súbita, mesmo na ausência de isquemia miocárdica ou doença cardíaca 1-4,12-14,24. Corroborando essa assertiva, os efeitos pró-arrítmicos das drogas bloqueadoras dos canais de sódio são bem conhecidos, particularmente na presença de doença cardíaca estrutural 25. O presente estudo avaliou os efeitos eletrofisiológicos agudos da cocaína em um modelo canino com coração normal. Além disso, tanto a ingestão do etanol como o tabagismo exacerbam os efeitos cardíacos deletérios da cocaína 3,26. Portanto, nossos achados podem não ser diretamente aplicáveis a humanos com cardiopatia estrutural, usuários crônicos de cocaína ou àqueles que fazem uso concomitante de outras drogas. Os efeitos da cocaína sobre a circulação coronariana não foram avaliados. Todavia, em nenhum animal foram observadas manifestações eletrocardiográficas de isquemia miocárdica aguda ou infarto. Concluindo, neste modelo canino, doses elevadas de cocaína exercem significantes efeitos classe sobre o átrio, nó atrioventricular, sistema His-Purkinje e ventrículos. Além disso, parecem aumentar modestamente a inducibilidade de fibrilação ventricular, mas não de arritmias supraventriculares. Achados que sugerem que a cocaína possui ações diretas no miocárdio, que podem favorecer a criação de substrato para o desenvolvimento de pró-arritmias. Agradecimentos À Fundação de Auxílio à Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq pelos auxílios financeiros recebidos. Referências 1. Kloner RA, Hale S, Alker K, Rezkalla S. The effects of acute and chronic cocaine use on the heart. Circulation 1992;85:407-19. 2. Cregler LL, Mark H. Medical complications of cocaine abuse. N Engl J Med 1986;315:1495-500. 3. Lange RA, Hillis LD. Cardiovascular complications of cocaine use. N Engl J Med 2001; 345:351-8. 4. Chakko S, Myerburg RJ. Cardiac complications of cocaine abuse. Clin Cardiol 1995;18: 67-72. 5. Hale SL, Alker KJ, Rezkalla S, Figures G, Kloner RA. Adverse effects of cocaine in cardiovascular dynamics, myocardial blood flow, and coronary artery diameter in a experimental model. Am Heart J 1989;118:927-33. 6. Clarkson CW, Chang C, Stolfi A, George WJ, Yamasaki S, Pickoff AS. 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