TRABALHO E EMANCIPAÇÃO HUMANA EM KARL MARX



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Transcrição:

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO HUMANA EM KARL MARX LEONARDO GOMES DE DEUS matrícula nº: 102060706 ORIENTADOR: Prof. René de Carvalho SETEMBRO 2005

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO TRABALHO E EMANCIPAÇÃO HUMANA EM KARL MARX LEONARDO GOMES DE DEUS matrícula nº: 102060706 ORIENTADOR: Prof. René de Carvalho SETEMBRO 2005

As opiniões expressas neste trabalho são de exclusiva responsabilidade do autor.

Dedico este trabalho a Neide Gomes de Deus, Carlos Alberto de Deus, Ester Vaisman, Heitor Mascarenhas, Zaira Vieira, companheiros nessa travessia. Ofereço meu esforço aos povos do Rio de Janeiro, na luta por dias melhores, por todas as lições sobre o Brasil que me ensinaram.

AGRADECIMENTOS Ao Prof. René de Carvalho pela orientação sempre fecunda, por todas as lições e, sobretudo, por sua própria estória de vida, sinônimo da história brasileira recente, pela qual todo reconhecimento será sempre limitado. Aos professores e colegas do Instituto de Economia da UFRJ pelo diálogo sempre enriquecedor. Aos funcionários do Instituto de Economia da UFRJ, pela ajuda inestimável e pela atenção dispendida.

RESUMO O trabalho focaliza o desenvolvimento da obra de Karl Marx desde suas origens, na crítica a Hegel de 1843, até a elaboração da obra madura. A partir dos próprios textos do autor, busca-se dar a gênese de sua reflexão sobre a emancipação humana e suas condições de possibilidade, baseadas no desenvolvimento e emancipação do trabalho.

ÍNDICE INTRODUÇÃO... 8 CAPÍTULO I DA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA À EMANCIPAÇÃO HUMANA... 11 I.1 A CRÍTICA A HEGEL E À ALIENAÇÃO POLÍTICA... 11 I.2 EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA... 18 I.3 A POLÍTICA COMO IMPOTÊNCIA... 26 CAPÍTULO II TRABALHO ALIENADO E POTÊNCIA SOCIAL EMANCIPADA... 29 II.1 TRABALHO E ALIENAÇÃO... 29 II.2 FORÇAS PRODUTIVAS E INTERCÂMBIO: POTÊNCIA SOCIAL E EMANCIPAÇÃO... 36 CAPÍTULO III A SOCIEDADE EMANCIPADA: PARA ALÉM DO CAPITAL... 41 III.1 TRABALHO E SOCIABILIDADE ESTRANHADA... 42 III.2 EMANCIPAÇÃO HUMANA: SUPERAÇÃO DO TRABALHO ALIENADO... 47 CONCLUSÃO... 52 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 56

INTRODUÇÃO A obra de Karl Marx é reconhecida como das mais importantes da ciência econômica, da filosofia e das ciências humanas, realização humana tão importante quanto as Pirâmides do Egito, a Capela Cistina, o reator nucelar, o Cálculo Integral, a revolução copernicana, a teoria da relatividade, a Divina Comédia, a chegada à Lua, os sermões do Padre Vieira, o Cravo Bem-Temperado, os madrigais de Monteverdi, a psicanálise de Freud. Enfim, uma realização tão importante que, mesmo no momento em que é objeto de maior detração ou, pior, de maior denegação, ainda é objeto de reconhecimento. Dados seus objetivos não só intelectuais, mas também práticos, a obra de Marx enfrenta uma grande incompreensão, o que Ester Vaisman caracterizou como o destino trágico do pensamento marxiano ao longo do já esquecido século passado: quanto mais evocado foi o pensamento marxiano, menos foi conhecido. Com efeito, quando se pensa que Lênin jamais conheceu grande parte dos textos que viriam a ser publicados nas últimas décadas; quando se constata que a publicação das obras completas de Marx só se concluirá por volta de 2030, ou seja, quase 150 anos depois de sua morte, pode-se pensar que essa incompreensão possui, além da má-fé científica, além da má-vontade permanente, grande dose de limitações práticas. Durante várias décadas, por exemplo, a obra marxiana esteve ligada às experiências do Leste Europeu, teve que dialogar com a vulgata stalinista e enfrentou a revolução cultural chinesa, tudo levado a termo, de certa forma, em nome de Marx. Diante da superação de tais limitações práticas, novas possibilidades de estudo se abrem, novas determinações emergem, a retomada da obra marxiana se impõe. Retomada não apenas de caráter intelectual, não com objetivos teóricos isolados, mas com a permanente perspectiva prática, diante da ordem do capital que prorroga sua utilidade social. É o que afirma o filósofo José Chasin (1999: 54): Para a perspectivação de uma nova esquerda e sua refundação teórica e prática é preciso a sustentação categórica, até mesmo com um grânulo de petulância, da necessidade da revolução social, sem o que é impossível o soerguimento de uma analítica capaz de levar ao entendimento efetivo e crítico da realidade, bem como de levar a efeito uma prática à altura de seu significado. Para tanto é absolutamente essencial a redescoberta do pensamento marxiano e a crítica à sua destituição.

O presente trabalho insere-se nesse contexto social, tão promissor quanto mais miserável, já que o objetivo de superação da ordem capitalista não está no horizonte, o que equivale a dizer que o único horizonte humano vai-se impondo como a própria sociabilidade do capital. Com a redação deste trabalho, busca-se redescobrir a obra marxiana sob a perspectiva daquilo que ela encerra de prospectiva, ou seja, de aferição e afirmação de virtualidades humanas, sumarizadas como a emancipação humana, objeto de grande importância tanto no pensamento marxiano quanto em sua prática. Emancipação humana, para Marx, só pode se dar sob a perspectiva do trabalho, levando em consideração a atividade humana, que não constitui mero acidente da existência humana, mas traço essencial de sua realização e sua condição de possibilidade. Para levar essa análise a efeito, buscou-se analisar um conjunto de textos de Marx nem sempre devidamente valorizados, sempre rejeitados sob vários argumentos, sobretudo aqueles formulados por Althusser. Ao contrário dessa interpretação, busca-se aqui, por meio da exposição dos próprios textos marxianos, mostrar um desenvolvimento que parte de 1843 e atinge seu ponto culminante com sua obra madura, chamada econômica, sem haver uma ruptura a partir da própria ruptura com Hegel, mas antes uma evolução crescente de uma reflexão que ganha em determinações e rigor, mas nunca se afasta de seu objeto, o próprio homem, donde a radicalidade da obra marxiana, buscar compreender o homem sob seus próprios pressupostos, em sua autoconstrução contraditória. Tal compreensão, marxianamente, só foi possível pelo próprio desenvolvimento do objeto, a produção social, estágio que teve em Marx sua condigna produção ideal. A monografia se divide em três capítulos. No primeiro, são estudados os textos redigidos entre 1843 e 1844, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Sobre a Questão Judaica, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução e Glosas Críticas ao Artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. Por um Prussiano. No segundo capítulo, são analisadas as obras Manuscritos Econômico-Filosóficos e A Ideologia Alemã, esse último texto apenas em sua primeira parte, sobre Feuerbach, integralmente redigida por Marx, ainda que se atribua a obra inteira a Marx e Engels. Finalmente, no terceiro capítulo são expostas as formulações marxianas contidas nos Grundrisse, conjunto de textos preparatórios para a redação de O Capital. Conforme se verá, muitos dos temas de 1867 já estavam devidamente desenvolvidos em 1857, outros mereceram tratamento mais amplo que quando de sua formulação definitiva, especialmente aqueles temas que nos interessam mais diretamente.

Essa a razão da escolha dos textos. Ao final da monografia, conclui-se com um breve diálogo com um dogma formulado por Lênin e tantas vezes repetido, além de se apontarem futuras e necessárias aproximações sobre os temas que aqui se exploram. Esse resultado, assim como o próprio trabalho como um todo, parte das formulações seminais contidas em Chasin (1995), obra de que esta monografia pretende ser uma explicitação e desenvolvimento, com suas evidentes limitações. A principal dessas limitações é, naturalmente, a ausência de uma análise da obra máxima de Marx, O Capital. Tal ausência será sentida, sobretudo, ao se perceberem os traços que, ao longo de mais de duas décadas, foram gerados e formulados nas outras obras aqui expostas, especialmente nos Grundrisse. Ocorre que, em O Capital, o tema que aqui nos interessa aparece principalmente de forma negativa, ou seja, Marx, nessa obra, está preocupado com a análise científica do funcionamento da sociabilidade gerada pelo capital e somente como crítica dessa sociedade aparece a tematização da emancipação humana, ou seja, como desdobramento teórico. Isso fica evidente na análise das contradições capitalistas, especialmente aquelas contidas nos capítulos relativos à lei geral da acumulação e na tendência à queda da taxa de lucros, rigorosa depuração dos Grundrisse. A tarefa que se impõe, neste caso, é dar um passo analítico que a mera exposição de textos não permite, objetivo aqui proposto. Admitida essa imperfeição do trabalho, admite-se que seu desfecho será a sua própria dissolução em uma nova e mais ampla empreitada de descoberta e desvelamento da obra de Marx, tarefa sempre importante, difícil, feita em qualquer tempo com prazer. Como arremate desta introdução e motivação para o tema que se passará a expor, cabe citar uma entrevista concedida por Karl Marx em 1879 ao jornal Chicago Tribune. Perguntado pelo jornalista se o objetivo do movimento do trabalho seria a supremacia do trabalho ou seja, a tomada do poder político pelos trabalhadores Marx respondeu: A emancipação do trabalho. Emancipação humana, para Marx, situa-se para além da emancipação política, forma pobre e restrita, e só se coloca como emancipação do trabalho.

CAPÍTULO I DA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA À EMANCIPAÇÃO HUMANA I.1 A crítica a Hegel e à alienação política As origens da reflexão marxiana sobre a emancipação humana podem ser encontradas já na Crítica de 43. Do exame crítico da Filosofia do Direito de Hegel emerge uma série de questões cuja solução ultrapassará o próprio escopo do trabalho feito em Kreuznach. O significado desse texto para a formação do pensamento de Marx foi devidamente exposto pelo próprio autor, em 1859, no prefácio à obra Para a Crítica da Economia Política, onde ele afirma: Minha especialização foi em Jurisprudência, que eu exercia, porém, apenas como disciplina secundária ao lado da Filosofia e da História. No ano 1842/43, como redator da Gazeta Renana, encontrei-me pela primeira vez em apuros ao ter que participar dos debates sobre os assim chamados interesses materiais. (1859: 501, 502). Marx, então, aproveitou-se da extinção do jornal para se retirar do cenário público para o gabinete de estudos (p. 502). Ele diz: O primeiro trabalho empreendido para a solução da dúvida que me assediava foi uma revisão crítica da filosofia do direito hegeliana, um trabalho cuja introdução apareceu nos Anais Franco-Alemães, publicados em 1844, em Paris. Minha pesquisa desembocou no resultado de que as relações jurídicas, como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem por si mesmas, nem a partir do chamado desenvolvimento universal do espírito humano, mas, antes, elas se enraízam nas relações materiais de vida cuja totalidade Hegel resumiu sob o nome sociedade civil, após o precedente dos ingleses e franceses do século XVIII mas que a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na Economia Política. (Idem). Nesse depoimento, Marx determina a importância da Crítica de 43 para a sua formação, o que nem sempre foi considerado por historiadores e intérpretes. Dados os objetivos do presente trabalho, os detalhes da obra não serão analisados, embora seja necessário referir o que encerra de crítica à especulação hegeliana. Embora se trate de um texto inacabado, que não teve preparação para a publicação, pode-se detectar um início com objetivo claro, a crítica da especulação, cujos resultados, a crítica da alienação política, talvez tenham surpreendido o próprio autor. Com efeito, Marx, no início do texto, parece ter um programa claro em sua crítica a Hegel, toda ela formulada sob a influência da leitura de Feuerbach que realizava no momento de redação da Crítica.

12 Marx critica Hegel por promover uma inversão entre sujeito e predicado, entre ser e Idéia, há uma inversão entre ser e pensar. Em Hegel a Idéia é elevada à categoria de ser e o próprio ser se torna seu predicado. Com isso, a compreensão da lógica específica do objeto específico adquire um caráter secundário, uma vez que o ser se torna mera manifestação da Idéia, adquirindo uma lógica que lhe é extrínseca. Numa passagem bastante conhecida do texto, Marx afirma: Precisamente porque Hegel parte dos predicados, das determinações universais, em vez de partir do ente real (υποκειμενον, sujeito), e como é preciso haver um suporte para essa determinação, a Idéia mística se torna esse suporte. Este é o dualismo: Hegel não considera o universal como a essência efetiva do realmente finito, isto é, do existente, do determinado, ou, ainda, não considera o ente real como o verdadeiro sujeito do infinito. (1843a: 44) Diante disso, o pensamento de Hegel é criticado por Marx por não compreender a differentia specifica do seu objeto, subsumido que é a uma lógica universal abstrata. Marx afirma: [Em Hegel LGD] O verdadeiro interesse não é a filosofia do direito, mas a lógica. O trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica. (p. 38). Eis o princípio que orienta a crítica marxiana: a afirmação da lógica da coisa. A reflexão hegeliana centra o seu desenvolvimento no Conceito, nas categorias lógicas e, com isso, mostra-se incapaz de captar a lógica da coisa, acaba por apresentar seu objeto não conforme suas categorias imanentes, mas apenas segundo categorias que lhe são transcendentes. Do exame da Crítica de 43 emerge a constatação de uma ruptura de Marx com Hegel, já em 1843, algo que nem sempre se leva em consideração ao se adotar de forma imediata a fórmula de Lênin sobre as três fontes do pensamento marxiano. Isso seria admitido pelo próprio Marx em 1867, no prefácio de O Capital. O desdobramento imediato da ruptura foi a constatação feita por Marx da inversão que Hegel promove entre os pólos determinantes da vida política. Para Hegel, o Estado seria a esfera determinante em relação à sociedade civil e à família, o Estado seria o pólo ativo, enquanto família e sociedade civil seriam esferas determinadas, passivas. Criticando o misticismo lógico-panteísta de Hegel, Marx afirma:

13 Família e sociedade civil são apreendidas como esferas conceituais do Estado e, com efeito, como as esferas de sua finitude, como sua finitude. É o Estado que nelas se divide, o que as pressupõe e ele o faz, em verdade, para ser, de sua idealidade, Espírito efetivo e para si infinito. Ele se divide, para. Ele divide, por conseguinte, em esferas, a matéria de sua efetividade, de maneira que essa divisão etc. apareça mediada. A assim denominada Idéia efetiva (o Espírito como infinito, real) é, portanto, apresentada como se ela agisse segundo um princípio determinado, mediante um desígnio determinado. Ela se divide em esferas finitas e o faz para a si retornar, para ser para si ; ela o faz, na verdade, na medida do que é efetivo. (p. 29) E, mais adiante, arremata: Família e sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, na especulação, isso se inverte. No entanto, se a Idéia é subjetivada, os sujeitos reais, família e sociedade civil, circunstâncias, arbítrio etc. convertem-se em momentos objetivos da Idéia, irreais e com um outro significado. (1843: 30). A inversão promovida pela especulação hegeliana faz com que o verdadeiro sujeito da política, a sociedade civil, apareça como predicado do Estado e, sobretudo, de um Estado monárquico, como sustentou Hegel. Para Marx, ao hipostasiar a Idéia mística como sujeito, Hegel acaba por identificar o Estado com ela e, conseqüentemente, transforma a sociedade civil em predicado. Para que essa Idéia mística se manifeste, Hegel defende a necessidade de um monarca. Para Marx, a defesa hegeliana da monarquia é um corolário da especulação e acaba, no limite, por negar soberania ao verdadeiro soberano, a sociedade civil. Marx diz: O Estado é um abstractum. Somente o povo é o concretum. E é notável que Hegel atribua sem hesitação uma qualidade viva ao abstractum, tal como a soberania e só o faça com hesitação e reservas em relação ao concretum. (...) Mas: 1) a questão é, precisamente, a seguinte: não é uma ilusão a soberania absorvida no monarca? Soberania do monarca ou do povo, eis a question. 2) (...) Do mesmo modo em que se pergunta: é Deus o soberano, ou é o homem o soberano? Uma das duas soberanias é uma falsidade, ainda que uma falsidade existente. (p. 48) A resposta de Marx a essas questões é categórica, somente o povo é soberano, a monarquia é uma falsidade: A democracia é a verdade da monarquia, a monarquia não é a verdade da democracia. (p. 49). Para Marx, na Crítica de 43, a democracia seria forma política de realização da soberania da sociedade civil. A verdadeira democracia, conforme se verá, é a solução apresentada por Marx, nesse texto, para a questão que emerge do exame da obra hegeliana, ou seja, a alienação política. Esse tema aparece em diversos momentos do texto e

vai ganhando mais detalhes e maior precisão. As aquisições desse percurso terão repercussão na redação dos textos dos Anais Franco-Alemães. 14 A alienação política, segundo Marx, seria uma característica da modernidade, quando o Estado político adquire uma conformação específica, em separado da vida material da sociedade civil. Ao contrário da Idade Média, o Estado político moderno se realiza em abstração à vida material, seu conteúdo é um mero formalismo jurídico. A esfera política seria mera forma contraposta à vida do povo, verdadeiro conteúdo material do Estado e do direito. Marx afirma que a constituição política foi reduzida à esfera religiosa, à religião da vida do povo, o céu de sua universalidade em contraposição a existência terrena de sua realidade. (p. 51). A constituição moderna seria precisamente uma forma situada além das outras esferas da vida material do povo. Com isso, a lei e a constituição dominam as demais esferas da vida social sem as penetrar verdadeiramente. Mais adiante, ao tratar da burocracia, o tema ressurge e Marx discorre sobre o funcionamento do aparelho estatal-burocrático, tematização que permanece bastante atual. A última vez em que o tema aparece será na discussão sobre a formulação hegeliana do poder legislativo. Para Marx, Hegel teria compreendido a situação do Estado moderno, de abstração política, e sua Filosofia do Direito seria uma tentativa de superação desse dualismo, a busca de um sistema de mediações que pudesse superar a alienação política. Hegel formula um poder legislativo híbrido, baseado nos estamentos medievais e no bicameralismo de alguns parlamentos ocidentais, em especial o britânico e o francês. Da contraposição a Hegel emerge a própria reflexão marxiana. Marx afirma, então, que o Estado moderno realizou o estranho achado de apropriar-se do assunto universal como mera forma. (p. 83). E conclui em seguida: O Estado constitucional é o Estado em que o interesse estatal, enquanto interesse real do povo, existe apenas formalmente, e existe como uma forma determinada ao lado do Estado real; o interesse do Estado readquiriu aqui, formalmente, realidade como interesse do povo, mas ele deve, também, ter apenas essa realidade formal. (p. 83) Sempre com base na análise do texto hegeliano, Marx conclui que o cidadão, para atuar politicamente, acaba por ter que fazer abstração de sua vida material. Em seu significado político, o membro da sociedade civil abandona seu estamento, sua real posição privada; é somente aqui que ele chega, como homem, a ter significado, ou que sua determinação como membro do Estado, como ser social, manifesta-se como sua determinação humana. (p. 98).

Justamente as determinações mais essenciais do indivíduo, mais necessárias à sua existência aparecem como inessenciais frente ao Estado. 15 Marx chega aqui à caracterização mais precisa da tematização sobre a política moderna, detecta sua lógica específica: a realização da política se dá por abstração e negação da existência real da sociedade civil. A sociedade civil só atua politicamente ao negar o seu próprio ser, adquirindo uma natureza que lhe é estranha. Essa lei geral aparece no indivíduo em toda a sua plenitude. Na modernidade, o cidadão se encontra separado do membro da sociedade civil, como afirma Marx nesta passagem: O cidadão deve, pois, realizar uma ruptura essencial consigo mesmo. Como cidadão real, ele se encontra em uma organização dupla, a burocrática que é uma determinação externa, formal do Estado transcendente, do poder governamental, que não tangencia o cidadão e a sua realidade independente e a social, a organização da sociedade civil. Nesta última, porém, o cidadão se encontra como homem privado, fora do Estado; ela não tangencia o Estado político como tal. (p. 94) A vida que o indivíduo leva na sociedade civil, em última instância, sua essência, é negada pela política, tornada inessencial. A cidadania supõe a negação da individualidade material. A vida social se torna mera vida privada, relegada à esfera da individualidade, desprovida de interesse público. Marx afirma, por isso, que a atual sociedade civil é o princípio realizado do individualismo; a existência individual é o fim último; atividade, trabalho conteúdo etc. são apenas meio. (p. 98). A era moderna teria cometido o erro de separar do homem seu ser objetivo, como mera exterioridade, sem tomá-lo como sua verdadeira realidade. Essa a súmula breve da tematização marxiana sobre a alienação política, tal qual aparece na Crítica de Kreuznach. Ainda nesse texto, Marx apresenta uma solução para a questão, sempre dentro dos quadrantes da política. A solução para a alienação política seria a verdadeira democracia, cuja implicação prática imediata consistiria na adoção do sufrágio universal. A verdadeira democracia é desenvolvida por Marx como conseqüência do desvelamento da lógica específica da política. Ela seria a objetivação do verdadeiro sujeito da política, do verdadeiro e único soberano, o povo. Conforme se referiu, a democracia é a verdade da monarquia justamente porque a democracia pode ser explicada por si mesma. Enquanto na monarquia uma parte determina o todo, Na democracia nenhum momento recebe uma significação diferente daquela que lhe cabe. Cada momento é, realmente, apenas

16 momento do dêmos inteiro. (p. 49).A democracia é ao mesmo tempo conteúdo e forma. Como faz de seu próprio soberano, o povo, o seu próprio princípio, a democracia assume o caráter de constituição por excelência, que reorganiza todos os demais momentos da vida social. As determinações essenciais da vida social são subsumidas à existência do povo e, por isso, recebem o significado que lhes é próprio. A democracia traz em si a lógica específica das constituições. Marx afirma: Na monarquia o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de existência, a constituição política; na democracia, a constituição mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da constituição; na democracia, a constituição do povo. A democracia é o enigma resolvido de todas as constituições. Aqui, a constituição não é somente em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e posta como a obra própria deste último. A constituição aparece como o que ela é, o produto livre do homem; poder-se-ia dizer que, em um certo sentido, isso vale também para a monarquia constitucional, mas a diferença específica da democracia é que, aqui, a constituição em geral é apenas um momento da existência do povo e que a constituição política não forma por si mesma o Estado. (p. 50) Na democracia, o Estado não constitui a sociedade, mas o povo cria a constituição. Marx, nesse texto, situa-se para além do constitucionalismo e do formalismo jurídico, já que enfatiza a vantagem da verdadeira democracia sobre os Estados políticos que, embora sejam formalmente democráticos, subordinam o povo à lei, submetem a vida social à sua forma política abstrata. Na democracia, o princípio formal, a autodeterminação da sociedade civil, adquire existência material. A sociedade civil põe sua forma política imediatamente. Com isso, a vida política se torna apenas um momento da vida social. A diferença específica da democracia seria ultrapassar a cisão entre vida jurídica abstrata e vida social, vida material. Na democracia, o indivíduo é tomado em todas as suas determinações, em todos os momentos de sua existência. Levada ao limite, a verdadeira democracia será o momento de desaparecimento do Estado, como Marx enuncia na passagem a seguir: Na democracia, o Estado, como particular, é apenas particular, como universal é o universal real, ou seja, não é uma determinidade em contraste com os outros conteúdos. Os franceses modernos concluíram, daí, que na verdadeira democracia o Estado político desaparece. O que está correto, considerando-se que o Estado político, como constituição, não vale mais pelo todo. (p. 51). Para que o Estado seja materialmente universal e não apenas formalmente, ele tem que se tornar particular, ao lado das demais esferas da vida do dêmos inteiro. A forma abstrata do

17 Estado político cede lugar à autodeterminação da sociedade civil, ou seja, o Estado político desaparece. Esse o arremate da tematização marxiana da Crítica de 43, que estabelece o princípio a nortear a ação política. Quase no final do manuscrito, Marx faz a defesa do sufrágio universal como forma de realização da democracia e superação da alienação política. Com efeito, a questão da participação da sociedade civil no Estado só é formulada em razão de essas duas instâncias estarem separadas. Diante desse fato, a representação política enfrenta um dilema, a saber, como a participação política se dá em separado, por abstração, os indivíduos não podem participar, todos, do corpo político. Se participassem todos, o corpo político deixaria de existir, não teria sentido haver um corpo político em separado da sociedade civil se ela se pusesse toda, em todas as suas determinações, como instância política. O poder legislativo, nessa situação, seria representante do gênero humano como um todo, como assevera Marx: O poder legislativo é, aqui, representativo no sentido em que toda função é representativa: o sapateiro, por exemplo, é meu representante na medida em que satisfaz uma necessidade social, assim como toda atividade social determinada, enquanto atividade genérica, representa simplesmente o gênero, isto é, uma determinação de minha própria essência, assim como todo homem é representante de outro homem. Ele é, aqui, representante não por meio de uma outra coisa, que ele representa, mas por aquilo que ele é e faz. (p. 133) Esse seria o momento em que a sociedade civil se tornaria sociedade política real. Para que esse estágio seja atingido, Marx defende a atuação no interior do próprio Estado político, ou seja, dentro da própria alienação política. Ele sustenta a extensão e máxima generalização do sufrágio universal como forma de superação da alienação. Ele conclui: Não se considera a eleição filosoficamente, quer dizer, em sua essência peculiar, quando ela é compreendida imediatamente em relação ao poder soberano ou ao poder governamental. A eleição é a relação real da sociedade civil real com a sociedade civil do poder legislativo, com o elemento representativo. Ou seja, a eleição é a relação imediata, direta, não meramente representativa, mas real, da sociedade civil com o Estado político. É evidente, por isso, que a eleição constitui o interesse político da sociedade civil real. É somente na eleição ilimitada, tanto ativa quanto passiva, que a sociedade civil se eleva realmente à abstração de si mesma, à existência política como sua verdadeira existência universal, essencial. Mas o acabamento dessa abstração é imediatamente a superação da abstração. Quando a sociedade civil pôs sua existência política realmente como sua verdadeira existência, pôs concomitantemente como inessencial sua existência social, em sua diferença com sua existência política; e com uma das partes separadas cai a outra, o seu contrário. A reforma eleitoral é, portanto, no interior do Estado político abstrato, a exigência de sua dissolução, mas igualmente da dissolução da sociedade civil. (p. 135)

18 A máxima extensão e universalização do sufrágio constituem um programa prático político que levaria à realização da verdadeira democracia. Com isso, seria superado o dualismo entre Estado e sociedade civil. Por meio da eleição, a sociedade civil atinge a abstração máxima e se põe, no entanto, como existência política. Segundo Marx, isso levaria à dissolução de sua existência não-política e, ao mesmo tempo, da existência abstrata do Estado. Pode-se constatar que o exame realizado por Marx da Filosofia do Direito de Hegel marcou uma profunda inversão dos pólos determinantes da política, promovendo uma verdadeira instauração de uma nova perspectiva prática. O exame da correspondência do período, que viria a ser publicada em parte nos Anais Franco-Alemães, evidencia essa mudança de perspectiva. Tal perspectiva, no entanto, padece do fato de ainda se situar no âmbito estrito da política, ou seja, a alienação política e sua superação ainda são tematizadas por Marx como um fato de ordem política. Somente nos textos seguintes essa posição será superada, quando a alienação política será detectada na determinação mais geral da alienação da sociedade civil e da propriedade privada. Nos textos que se seguiram, a esfera de resolução se desloca da política para a própria sociedade, conforme se verá a seguir. I.2 Emancipação política e emancipação humana A gênese da própria alienação no interior da sociedade civil, ou seja, a análise da própria sociedade civil e de seu metabolismo foi o passo analítico seguinte. O primeiro texto escrito após a Crítica de 43 foi Sobre a Questão Judaica, a partir de dois textos de Bruno Bauer. O texto teria sido escrito ainda em 1843 e foi publicado nos Anais Franco-Alemães, em 1844. Como fez em várias de suas obras, Sobre a Questão Judaica foi escrita como uma polêmica contra as teses expressas por Bruno Bauer em seus textos. Marx critica Bruno Bauer por formular a questão judaica de uma forma unilateral, já que se contenta com o simples questionamento sobre quem deve emancipar ou ser emancipado. A crítica deve questionar antes: De qual tipo de emancipação se trata? Quais condições estão fundadas na essência da emancipação exigida? A própria crítica da emancipação política era a crítica final da questão judaica e sua verdadeira resolução na questão geral do tempo. (1843b: 144). Ao formular a questão judaica, Bauer critica apenas o Estado cristão, mas não o Estado em si, não examina a relação entre emancipação política e emancipação humana. Segundo Marx, Bauer confunde as duas formas de emancipação. Bauer teria formulado a questão num nível quase teológico, ou seja, a questão da emancipação dos judeus no interior de Estados ainda não totalmente

19 laicos assumiria um viés teológico, como ocorria na Alemanha e, em certa medida, na França. No Estados Unidos, a questão teria assumido uma forma puramente laica, o Estado passa a se relacionar com a religião e com a questão judaica de uma forma laica, política. Nesse caso, a tarefa da crítica é a crítica da política, e não da teologia. É justamente nesse ponto, quando a crítica deixa de ser teológica, que a crítica de Bauer deixa de ser crítica (p. 146). Bauer exige que, para haver emancipação política, é preciso haver abolição da religião, ou seja, o judeu, para se emancipar, deveria ser livre do judaísmo. Marx demonstra exatamente o ponto de vista contrário, que os Estados que atingiram a emancipação política são exatamente aqueles que deixaram intocada a religião, caso dos Estados Unidos e também da França. A emancipação política da religião, o Estado laico, não significa que a humanidade se emancipou da religião, como afirma Marx: A emancipação política da religião não é a emancipação realizada, sem contradições da religião, porque a emancipação política não é a maneira realizada, sem contradições da emancipação humana. (p. 147). Para Marx a emancipação política constitui uma espécie mais restrita face à emancipação humana, o que fica evidente no fato de o Estado poder ser livre de uma dada restrição, no caso a religião, enquanto o homem não é realmente livre. As origens dessa formulação marxiana são encontradas, como se expôs acima, na Crítica de 43. A tematização, aqui, ganha mais rigor e precisão. A superação da religião pelo Estado, a emancipação política, é possível porque o Estado político se realiza por abstração da vida social do homem. O Estado se torna um intermediário entre o homem e sua liberdade, sua liberdade só existe por meio do Estado e da política, enquanto o homem permanece submetido aos mesmos laços em sua vida social. Essa situação ocorre igualmente no que se refere à propriedade privada, pois a superação, a elevação do homem em relação à religião possui as mesmas características da emancipação política em geral. De fato, nos Estados mais avançados, a política está livre da propriedade privada, já que ela não constitui condição para sufrágio ativo ou passivo, com a abolição do voto censitário. No entanto, Marx afirma, a propriedade privada não é suprimida com a anulação política da propriedade privada, mas antes a pressupõe. (p. 148). O Estado político moderno abole as distinções de nascimento, ocupação, instrução, concede a cada indivíduo a mesma parcela da soberania política, todos são iguais perante a lei. Em contrapartida, o Estado não impede tampouco que propriedade privada, instrução, ocupação atuem e façam valer sua essência particular, isto é, como propriedade privada, instrução, ocupação. (p. 148). O Estado político

antes supõe essas instâncias particulares e só existe por oposição a elas, como universalidade abstrata. É o que Marx afirma na passagem a seguir: 20 O Estado político acabado, segundo sua essência, é a vida genérica do homem em contradição com sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta permanecem fora da esfera do Estado, existem na sociedade civil, mas como qualidades da sociedade civil. Onde o Estado político atingiu sua verdadeira configuração, o homem leva, não apenas no pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma vida dupla, uma celestial e uma terrena, a vida na comunidade política, onde ele vale como ser da comunidade [Gemeinwesen], e a vida na sociedade civil, onde ele age como homem privado, toma os outros homens como meio, rebaixa-se também como meio e se torna joguete de potências estranhas. O Estado político se relaciona com a sociedade civil tão espiritualmente quanto o céu com a terra. (p. 148) No Estado moderno, o indivíduo se encontra em contradição consigo mesmo, situação que vale tanto para o judeu quanto para o comerciante, a diferença entre judeu e cidadão é a mesma do burguês para o cidadão, enfim, do indivíduo vivo para o cidadão. O Estado político acabado, portanto, supõe e se realiza em oposição aos interesses privados, sejam de natureza material, como a propriedade privada, sejam de natureza espiritual, cultural, como a questão judaica. Eis o Estado político acabado, a emancipação política realizada, que Marx considera um grande progresso (p. 150). Não se trata, porém, da última forma da emancipação humana em geral, mas da última forma da emancipação humana no interior da ordem do mundo até agora. Emancipação entendida como emancipação real, prática, Marx arremata (p. 150), numa caracterização sucinta e enfática da expressão. A emancipação política, para Marx, conquanto seja um avanço, constitui forma limitada, já que não pode ir além de suas condições práticas, dos limites da sociedade civil. Embora, em alguns momentos históricos, como o jacobinismo, tenha buscado ser efetivamente a vida genérica do povo, acabou por converter a revolução em estado permanente e, no final, as condições que tentou negar, propriedade privada, religião, enfim, a sociedade burguesa, acabaram por ser restauradas. A emancipação política, para Marx, é limitada por definição. Ela não pode ir além de suas condições sociais limitadas, não pode ultrapassar as barreiras da sociedade burguesa. Marx critica Bruno Bauer por não captar essa oposição, por simplesmente tratá-la como oposição religiosa entre Estado cristão e Estado político. Com isso, ele capta a oposição num nível abstrato, em verdade, não a compreende. O Estado cristão, ao contrário do que Bauer pensa, é justamente aquele que negou o cristianismo, transformando a religião em um aspecto da vida burguesa, ao lado de outros. Somente por meio dessa negação a política pode-se afirmar como esfera etérea da vida social, como universalidade abstrata face às esferas da vida material do homem. O Estado cristão verdadeiro, para Marx, será o Estado político moderno,

que corresponde à emancipação política acabada. Essa emancipação, porém, não implica emancipação do homem real face à religião (p. 155). 21 Para demonstrar a estreiteza da emancipação política, Marx analisa e contrapõe os direitos do homem (droits de l homme) aos direitos do cidadão (droits du citoyen), como foram consagrados pela Déclaration de 1791 e igualmente reproduzidos em diversas constituições estaduais dos Estados Unidos. Em todas essas normas, consagra-se um conjunto de direitos do homem como membro da sociedade civil, homem egoísta, separado da comunidade e dos outros homens (p. 157). A liberdade é definida como neminem laedere, ou seja, um direito do indivíduo tomado como mônada isolada, que tem no outro um limite e não uma condição de possibilidade, a vida em sociedade consiste na guerra de todos contra todos. Corolário desse direito, a propriedade privada é determinada, na Constituição Francesa de 1793, como ius utendi et abutendi. Do mesmo modo, a igualdade é definida meramente como igualdade formal, perante a lei, e a segurança, direito supremo, é identificada como proteção ao indivíduo e à sua propriedade, ou seja, com a proteção policial. Todos esses direitos, Marx conclui, são antes a afirmação do homem egoísta, separado do gênero e entregue ao seu interesse privado. Essa constatação permite a Marx afirmar que a emancipação política, em lugar de ser a superação das condições burguesas, é um meio de consecução de objetivos do interesse privado. Ele constata que é estranho que a cidadania, a comunidade política seja antes rebaixada pela emancipação política em mero meio para a manutenção dos assim chamados direitos do homem, portanto, que o cidadão seja declarado servidor do homem egoísta, que a esfera em que o homem se comporta como ser da comunidade seja degradada na esfera em que ele se comporta como ser parcial [Theilwesen], enfim, não o homem como cidadão, mas que o homem como burguês seja tomado como o verdadeiro e real homem (p. 159). Essa afirmação se comprova com o artigo 1º da Déclaration de 1791, que diz que O governo é instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis. Ou seja, no momento de maior entusiasmo revolucionário, a Revolução Francesa acabou por consumar a política como meio de existência e manutenção da vida da sociedade burguesa. Essa aparente contradição decorre do fato de que as revoluções burguesas marcaram a superação do feudalismo, a superação do caráter político da sociedade civil, como ocorria com as corporações, estamentos e estados gerais. A revolução política, ao mesmo tempo em que representou a libertação da política dos elementos sociais, representou, sobretudo, a libertação da sociedade civil de qualquer elemento político. Como afirma Marx, o acabamento do

22 idealismo do Estado era igualmente o acabamento do materialismo da sociedade civil. (p. 161). A abolição do jugo político correspondeu à libertação dos entraves do espírito egoísta da sociedade civil. Marx diz: O homem não foi, portanto, libertado da religião, ele recebeu a liberdade religiosa. Ele não foi libertado da propriedade. Ele recebeu a liberdade da propriedade. Ele não foi libertado do egoísmo da indústria, ele recebeu a liberdade de indústria. (p. 161). Essa libertação de mão dupla, da política em relação a suas limitações sociais, da sociedade de qualquer amarra política, os privilégios feudais, foi identificada pelos revolucionários do século XVIII como uma afirmação de direitos naturais do homem, ou seja, a sociedade civil é identificada como a verdadeira natureza humana. Diante dessa emancipação limitada, que constitui mera afirmação da alienação presente na sociedade burguesa, Marx indica, no fim da análise do primeiro texto de Bauer, em que consiste a emancipação humana universal. Ele afirma: Toda emancipação é a recondução do mundo humano, das relações, ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, ao indivíduo egoísta, independente, por outro, ao cidadão, à pessoa moral. Somente quando o homem individual, real se reapropriar em si mesmo do cidadão abstrato, quando tiver se tornado ser social como homem individual em sua vida empírica, em seu trabalho individual, em suas relações individuais, somente quando o homem tiver reconhecido e organizado suas forces propres como forças sociais e, com isso, não mais tiver separado de si a força social na forma da força política, somente então a emancipação humana está realizada. (p. 163). A conquista da emancipação humana não se dá no terreno da política, limitado ainda quando em sua forma mais perfeita. Somente no terreno das forças sociais é que se dá a emancipação humana, no terreno das forças sociais reconhecidas e organizadas pelo próprio homem como suas próprias forças. A revolução social, por isso, terá que ir além de uma revolução política, necessariamente limitada, vez que dissolve a vida burguesa em seus elementos, sem revolucionar esses mesmos elementos e submetê-los à crítica. Ela se relaciona com a sociedade civil, com o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do direito privado como com a base de sua existência, como com um pressuposto que não precisa ser mais bem justificado, portanto, como com sua base natural. (p. 162). Dá-se, aqui, um passo analítico além daquele conquistado na Crítica de 43, quando a emancipação humana era identificada com a emancipação política. Nessa obra, a alienação política seria superada pela transformação da sociedade civil em sociedade política real. Já em Sobre a Questão Judaica, a superação da alienação se dá com a superação da alienação da sociedade civil. A alienação política é antes elemento constitutivo da sociedade civil, elemento

23 necessário para o seu pleno funcionamento. As condições de efetivação da revolução social e da emancipação humana são abordadas com mais detalhe no texto redigido em seguida, a Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, igualmente publicada nos Anais Franco-Alemães e redigida possivelmente no fim de 1843 e início de 1844. O texto começa com a muito citada e pouco compreendida discussão sobre a religião, em que se lê a passagem do ópio do povo, comumente identificada com ilusão, ideologia. Em verdade, o que Marx afirma nessa passagem é que A miséria religiosa é a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. (1844a: 171). A alienação religiosa, portanto, não pode ser buscada na cabeça dos crentes desesperados, mas no real desespero de sua vida material. Essa a razão de Marx afirmar que a crítica da religião está acabada na Alemanha, já que a tarefa, a partir de então, consistiria em criticar as condições materiais que tornam possível a alienação religiosa, e não a alienação religiosa em si mesma, a tarefa da crítica é criticar o vale de lágrimas que em que nasce a religião. Naturalmente, a crítica da religião foi o primeiro passo, na Alemanha, à crítica das próprias idéias. O passo seguinte, segundo Marx, seria converter a crítica da religião em crítica de suas formas profanas, a crítica do céu se converteria em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política. (p. 171). No caso da Alemanha, essa tarefa deve ser empreendida no nível da crítica da filosofia, já que a situação histórica da Alemanha é de puro anacronismo. Em 1843, segundo Marx, a Alemanha ainda vivia sob as regras do ancien régime, havia promovido a restauração sem ter feito a revolução. A crítica de sua situação prática, portanto, seria a crítica do atraso alemão. Para se ocupar da moderna realidade social e política, ou seja, dos verdadeiros problemas humanos, a crítica teria que sair do status quo alemão (p. 174). A Alemanha é contemporânea de seu tempo, no entanto, no que se refere à produção ideal: para Marx, a filosofia alemã do Estado e do direito é a única história alemã que se encontra al pari com o presente moderno oficial (p. 175). Nessa passagem do texto, vê-se como, para Marx, a relação entre produção real e produção ideal é muito mais complexa e articulada, ou seja, não se dá de forma imediata, mas por meio de matizes que tornam possíveis a um país atrasado em relação a seu tempo produzir idéias que compreendem a realidade. Marx, aqui, situa-se num gradiente bem diverso do unilateralismo que freqüentemente se lhe imputa. Em relação à Alemanha, a tarefa prática imediata seria justamente promover uma crítica teórica, pressuposto de qualquer transformação da realidade. Marx afirma, por isso, que não se pode suprimir a filosofia sem realizá-la, como pretendia a facção prática alemã, nem realizar a filosofia sem suprimi-la,

24 como pretendia a facção que pretendia combater o mundo alemão apenas com idéias (p. 176). Ao investigar a filosofia do direito e do Estado, a crítica acaba necessariamente transitando da teoria para a prática, já que aquela filosofia, que teve em Hegel sua expressão mais acabada, é a expressão ideal do Estado moderno. Criticá-la, portanto, é insurgir-se contra as condições que o tornam possível. Para Marx, os alemães realizaram, teoricamente o que os outros povos realizaram praticamente. Por isso, como adversário decidido da forma precedente da consciência política alemã, a crítica da filosofia do direito especulativa não se dá apenas em si mesma, mas em tarefas para cuja solução existe apenas um meio: a práxis (p. 177). A tarefa prática que se coloca para a Alemanha não é uma revolução que a coloque no nível oficial de então, mas no nível futuro, no nível humano dos povos. Essa evolução, naturalmente, não poderá ocorrer por obra da mera crítica, já que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas. As revoluções precisam de um elemento passivo, de uma base material. A Alemanha não poderia realizar um salto mortale, que lhe possibilitasse superar não só suas próprias barreiras, mas aquelas dos povos mais avançados, já que necessidades teóricas não podem se tornar imediatamente necessidades práticas (p. 178). Não havia, por exemplo, na Alemanha o conflito entre sociedade civil e Estado e da sociedade civil consigo mesma. Enfim, não poderia haver uma revolução radical na Alemanha, pois ela tem que ser a revolução de necessidades reais, inexistentes na Alemanha. A solução, portanto, não seria a revolução radical, não a emancipação humana universal, mas antes a revolução parcial, apenas política, a revolução que deixa de pé os pilares da casa (p.179). A condição para que a revolução política, parcial ocorra é que uma parte da sociedade civil se emancipe e alcance o domínio universal, então, que uma classe determinada empreenda a emancipação universal da sociedade a partir de sua situação particular (p. 179). Essa classe particular emancipa a sociedade como um todo ao conseguir identificar seus interesses particulares com os interesses universais da sociedade. Para tanto, segundo Marx, é necessário que essa classe desperte um tal entusiasmo na massa, momento em que toda a sociedade se confraterniza com aquela classe e a sente e reconhece como representante universal. Em nome dos interesses gerais da sociedade, a classe particular pode reivindicar a supremacia geral. Além disso, Marx afirma que não são suficientes consciência e energia revolucionárias. É preciso também que todos os males da sociedade se concentrem em uma outra classe, um estamento determinado tem que ser o estamento do escândalo geral, a incorporação da limitação universal, uma esfera social particular deve valer como o crime notório de toda a

25 sociedade, para que a emancipação dessa esfera apareça como a autolibertação geral (p. 180). Para que um estamento seja o estamento libertador por excelência, é preciso que outro seja o estamento da opressão. Marx explica que o significado negativo-universal da nobreza francesa e do clero francês produziram o significado positivo-universal da classe da burguesia, que se encontrava primeiramente em sua fronteira e se lhes opunha (p. 180). Na Alemanha de seu tempo, Marx não identifica uma situação que possa fazer com que uma classe se torne o representante negativo da sociedade e outra que possua a grandeza de alma que a identificasse com os interesses de toda a sociedade. O raciocínio de Marx, diante disso, parece se encaminhar para a impossibilidade da emancipação política. Sua única via seria a da emancipação radical, conditio sine qua non para que ocorra uma emancipação parcial. Para que isso ocorra, deve haver a formação de uma classe submetida à necessidade material imediata de se emancipar, ou seja, a classe que tenha correntes radicais, uma classe da sociedade civil que seja a dissolução de todos os estamentos, uma esfera, cujo caráter universal consista em seus padecimentos universais (p. 181). Trata-se de uma classe que não exigirá reparação particular, mas reparação em relação a toda a situação existente, ou seja, humana. Uma esfera da sociedade, enfim, que só pode emancipar-se a si por meio da emancipação da sociedade. Segundo Marx, Essa dissolução da sociedade como estamento particular é o proletariado (p. 182). Somente o proletariado alemão anuncia a dissolução da ordem do mundo existente porque simplesmente expressa o segredo de sua própria existência, pois ele é a dissolução fática dessa ordem (p. 182). Para o proletariado, erigir em princípio da sociedade a negação da propriedade é fazer o que essa sociedade já lhe tinha imposto como princípio. Para realizar a revolução, o proletariado deve buscar na filosofia suas armas intelectuais, assim como a filosofia deve encontrar no proletariado suas armas materiais. Marx arremata: A emancipação do alemão é a emancipação do homem. A cabeça dessa emancipação é a filosofia, seu coração é o proletariado. (p. 182). Pela primeira vez na obra marxiana, surge a emancipação humana é identificada com a emancipação da perspectiva do trabalho. Por meio do proletariado, da classe do trabalho pode a humanidade emancipar-se, apropriar-se de sua potência social. Muitos intérpretes viram nesse texto uma analogia de Marx em relação ao estamento médio da Filosofia do Direito de Hegel, a burocracia. A tematização marxiana parte da gênese específica de seu tempo e não constitui a aplicação de uma formulação hegeliana, bem ao contrário.