CATHIANI MARA BELLÉ EM KANT, É POSSÍVEL O HOMEM RACIONAL SER FELIZ?



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Transcrição:

CATHIANI MARA BELLÉ EM KANT, É POSSÍVEL O HOMEM RACIONAL SER FELIZ? CURITIBA 2011

CATHIANI MARA BELLÉ EM KANT, É POSSÍVEL O HOMEM RACIONAL SER FELIZ? Projeto de pesquisa apresentado à Universidade Federal do Paraná UFPR para fins de elaboração de dissertação de mestrado em Filosofia. CURITIBA 2011

Tema: Em Kant, é possível o homem racional ser feliz? Apresentação do tema: a presente pesquisa tem por objetivo investigar em que medida o homem, condicionado à legislação moral, pode se considerar livre na busca pela felicidade. Como a aspiração à felicidade, na filosofia kantiana, pode indicar um contra-senso se pensada em relação à liberdade e a moralidade no mundo sensível. A razão humana, para Kant, tem um papel fundamental na determinação dos nossos conhecimentos. É a partir dela que podemos pensar a liberdade e o agir moral. Com base na razão, é possível averiguar a conformidade do mundo moral com as suas próprias prescrições, pois, a moralidade nos serve de lei somente enquanto somos seres racionais, tem ela que valer também para todos os seres racionais 1. É, também, possível pensar a liberdade justamente pelo fato de sermos seres racionais e, por isso, livres para refletir sobre o agir, tem que ser demonstrada a liberdade como propriedade da vontade de todos os seres racionais 2. É importante considerar que no O Cânone da Razão Pura, Kant coloca a liberdade da vontade como um dos propósitos finais da razão especulativa no uso transcendental, e argumenta que, mesmo não possuindo relevância para o saber, é recomendada pela razão e, por isso, deve possuir valor na ordem prática. Ora, se prático é tudo aquilo que é possível pela liberdade 3, a liberdade é um pressuposto da razão, por outro lado, a aplicação do livre arbítrio nos é conhecida empiricamente. A razão possui, com relação a ele, apenas um uso regulador e serve somente para realizar a unidade das leis empíricas. Guido Antônio de Almeida mostra, no texto Liberdade e Moralidade segundo Kant, um dos caminhos que se pretende investigar para a compreensão da razão na determinação da liberdade, a saber: o arbítrio, na medida em que o atribuímos tanto aos homens quanto aos animais, pode ser definido como o poder de escolher o que é bom e evitar o que é mau. O homem, porém, possui a razão e, por isso, a capacidade de julgar e, portanto, de representar proposicionalmente o que lhe parece bom. No entanto, visto que o homem não faz necessária e infalivelmente o que julga que é bom fazer, o que é bom para ele aparece sob a forma do dever, ou seja, como algo que ele deve fazer 4. Ora, o que diferencia o homem dos animais é a razão, essa capacidade de 1 KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA99/100 2 Idem 1 3 KANT. Crítica da Razão Pura, A800 B828 4 ALMEIDA. Liberdade e Moralidade segundo Kant, p.183 3

conhecer e analisar a sua própria ação e, com isso, não estar simplesmente sujeito ao instinto natural. Sendo assim, a razão permite indagar a própria inclinação do homem perante o mundo sensível. Contudo, os seres humanos são seres distintos entre si, no que diz respeito às inclinações, cada um almeja satisfazer as suas pretensões de formas diferentes. Mas, a existência da lei moral, uma lei universal que prescreve as ações de maneira incontestável, ou seja, que determina o agir moral exclusivamente pelo dever, remete a questão do homem racional, livre no agir, que observa na lei moral a sua obrigatoriedade, contudo, no mundo sensível, a sua inclinação natural. Em Kant, existe uma distinção na formulação do conceito de liberdade, uma vez que ele pode ser determinado em sentido transcendental e prático. O primeiro como não sendo um princípio válido na explicação dos fenômenos, pois se abstrai de qualquer pressuposto dado na experiência. Distintamente, o segundo conceito permite uma demonstração na experiência, ainda que não necessariamente. Consideremos, pois, por experiência, a liberdade prática como uma das causas naturais, a saber, como uma causalidade da razão na determinação da vontade, enquanto a liberdade transcendental exige uma independência dessa mesma razão relativamente a todas as causas determinantes do mundo sensível 5. Ora, considerando a possibilidade da liberdade prática de ser demonstrada por experiência 6, é necessário apresentar em que medida a relação entre vontade e liberdade pode ser determinada pela razão, pois, não é apenas aquilo que estimula, isto é, afecta imediatamente os sentidos, que determina a vontade humana; também possuímos um poder de ultrapassar as impressões exercidas sobre a nossa faculdade de desejar, mediante representações do que é, mesmo longinquamente, útil ou nocivo 7. Justamente pelo fato de sermos seres racionais e enquanto tais providos dessa disposição da razão que a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente 8. Dessa forma, para atribuirmos liberdade à vontade, é necessário que essa liberdade seja universalizada, ou seja, válida para todos os seres racionais. Parece, porém, que a conjectura da idéia de liberdade e de moralidade, como princípios da autonomia da vontade, remete a um contexto nebuloso, já que a liberdade 5 KANT. Crítica da Razão Pura, A803 B831 6 Idem, A802 B830 7 Idem 6 8 KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA97 4

da vontade, mesmo não sendo exclusivamente compreendida na experiência, pode ser afetada por ela. Por outro lado, a moral é uma lei universal válida para a ação humana, e alheia a qualquer inclinação empírica. A partir disso, como é possível pensar uma conformidade na liberdade da vontade que seja satisfatória à lei moral, uma vez que, temos que atribuir a todo o ser dotado de razão e vontade esta propriedade de se determinar a agir sob a idéia da sua liberdade 9. Nesse momento, é possível abordar a idéia de felicidade que, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1784), sugere um caráter mais leve como motivo de determinação da vontade à inclinação moral, pois, achamos que o simples fato de ser digno da felicidade, mesmo sem o motivo de participar dessa felicidade, pode por si só interessar 10. Seria possível aceitar que a liberdade, em parte movida e em parte restringida pelas leis morais, seria ela mesma a causa da felicidade em geral 11. Mas, dessa forma, é necessário averiguar qual valor Kant atribui à liberdade da vontade na busca da felicidade e, em que parte, essa relação está vinculada à credibilidade moral. Uma vez que, na filosofia kantiana, a moral é um preceito inteiramente racional e estruturado na forma do dever incondicionado, admito que há, realmente, leis morais puras que determinam completamente a priori o fazer e o não fazer, ou seja, o uso da liberdade de um ser racional em geral e que estas leis comandam de uma maneira absoluta 12. Considerando a relação de moral e felicidade em Kant, se observa no O Cânone da Razão Pura que a disposição moral é a condição que, antes de mais, torna possível a participação na felicidade 13. Contudo, não é a perspectiva da felicidade que torna possível a disposição moral 14, uma vez que isso aniquilaria todo valor moral, que condiciona as regras para sermos dignos da felicidade. Na Crítica da Razão Prática (1784), Kant retoma esse vínculo em um contexto distinto, e aponta com mais convicção,que a lei moral tem que ser algo diverso do principio da felicidade própria 15, pois a felicidade é um princípio prático material. Sendo assim, mesmo considerando que, em Kant, a relação entre felicidade e moral diz respeito ao mérito de ser feliz, a felicidade pode ser investigada por caminhos diferente a saber: existe um caráter de participação na felicidade, ou seja, o fato de me comportar conforme as leis 9 KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA102 10 Idem, BA104 11 KANT. Crítica da Razão Pura, A809 B837 12 Idem, A807 B835 13 Idem, A813 B841 14 Idem 13 15 KANT. Crítica da Razão Prática, A65 5

morais, permitem ao homem ser digno de esperar encontrar a felicidade; por outro lado, a felicidade é um princípio prático material, ela pertence à concepção do agrado da vida, que o homem possui perante as representações daquilo que lhe apetece diante da sensibilidade. Sendo assim, como a felicidade está vinculada ao aspecto empírico, parece perder todo seu vínculo com o aspecto moral. Dessa forma, é importante prescrever e apresentar as medidas a tomar na relação que se pretende esboçar entre moral e liberdade na pressuposição de uma felicidade e, como é indispensável à concepção desses três conceitos na filosofia kantiana, é importante observar em que medida eles se equiparam ou se divergem. Justificativa: Primeiramente, é importante ponderar o papel que a razão assume perante a moral e a liberdade na filosofia kantiana, pois considerando que esses dois princípios estão fundados na capacidade racional humana de fazer uso da sua vontade e agir no mundo, devido ao fato de podermos pensar a nossa própria liberdade e ação, é necessário que a razão mantenha a sua natureza arquitectónica. No Prefácio da Segunda Edição da Crítica da Razão Pura (1787), parece existir uma tentativa de resolver a problemática da razão descrita no texto da Terceira Antinomia. Kant considera na crítica que se a razão restringisse a nossa capacidade de formular conceitos somente à experiência, como aborda a concepção empirista, então toda a pretensão de um uso da razão prático puro se tornaria problemática, uma vez que, se a nossa vontade não é livre e a alma é tão divisível e corruptível como a matéria, então as ideias morais e seus princípios perdem todo o valor 16. Ora, mesmo que a crítica sugira apenas a idéia de que a nossa razão nunca seria capaz de transpor as barreiras da experiência, a capacidade da razão pensada, nos princípios da razão especulativa, se estrutura para ir além dos seus limites. Isso não visa estabelecer uma idéia de extensão, mas de restrição do uso da nossa razão. Sendo assim, uma crítica que limita a razão especulativa é, como tal, negativa, mas na medida em que anula um obstáculo que restringe ou mesmo ameaça aniquilar o uso prático da razão, é de fato de uma utilidade positiva e altamente importante, logo que nos persuadirmos de que há um uso prático absolutamente necessário da razão pura (o uso moral) 17. 16 KANT. Crítica da Razão Pura, A468 B496 17 Idem, BXXV 6

Kant revela que se desconhecêssemos os diferentes interesses da razão, o homem acabaria em um completo estado de oscilação, uma vez que, hoje, estaria convencido de que a vontade humana é livre; amanhã, se considerasse a cadeia indissolúvel da natureza, persuadir-se-ia que a liberdade é apenas uma auto-ilusão e que tudo é simplesmente natureza 18. Em decorrência disto, se tornaria questionável o próprio propósito deste trabalho, pois, se ignorarmos o papel da razão na determinação do conceito de liberdade, acabaria na pressuposição de uma liberdade dada somente empiricamente ou na idéia de uma liberdade especulativa que, para Kant, não pode nos oferecer conhecimento algum. Em Kant, existe uma distinção no contexto da formulação do conceito de liberdade, uma vez que ele pode ser tomado em sentido transcendental e prático. O primeiro, como não sendo um princípio válido na explicação dos fenômenos, se abstrai de qualquer pressuposto dado na experiência. Distintamente, o segundo conceito permite uma demonstração na experiência, mesmo que não necessariamente. Consideremos, pois, por experiência, a liberdade prática como uma das causas naturais, a saber, como uma causalidade da razão na determinação da vontade, enquanto a liberdade transcendental exige uma independência dessa mesma razão relativamente a todas as causas determinantes do mundo sensível 19. Kant utiliza a doutrina da prudência para esclarecer sua argumentação com relação às leis práticas, uma vez que, ambas fazem uso da razão na determinação da moral relacionada à felicidade, de formas distintas. A doutrina da prudência tem o papel de unir as nossas inclinações na busca de um fim último e assegurar a conformidade dos meios necessários para se alcançar esse fim, mesmo que este fim pressuponha uma noção de felicidade, não é propriamente para a razão seu objeto último. Sendo assim, nessa doutrina, a razão é a apenas responsável por fornecer leis pragmáticas a nossa conduta, leis estas que pretendem satisfazer os fins dados pelos nossos sentidos, mas não leis consideradas pela razão puras a priori. É uma concepção mais profunda da razão e da liberdade que leva Kant a assumir as leis práticas, nas quais o fim pode ser dado inteiramente a priori pela razão e que, dessa forma, comandam, não segundo leis empíricas, mas de forma incondicional, como produtos da razão pura prática e, portanto, podem compreendem a idéia das regras morais. 18 KANT. Crítica da Razão Pura, A475 B503 19 Idem, A803 B831 7

Kant aceita a necessidade dos princípios da moralidade e, a partir dele, a possibilidade de esperar a felicidade, pois, ao que tudo indica, todos têm motivo para almejar a felicidade se conduzirem a sua conduta de forma digna. Sendo assim, parece existir uma ligação entre o sistema moral e a felicidade, pois, toda a esperança tende para a felicidade e está para a ordem prática e para a lei moral 20. A conduta humana, em conformidade com a moralidade, deve permitir que aquele que não se tornou indigno da felicidade seja esperançoso de um dia alcançá-la. E ainda que no mundo moral, no qual conceitualmente excluímos os obstáculos à moralidade, deve existir uma atribuição necessária à idéia de felicidade, pois, a liberdade, influenciada ou limitada pelas leis morais, seria a causa da felicidade 21. Entretanto, ao afirmar no O Cânone da Razão Pura que a felicidade é a satisfação de todas as nossas inclinações 22 a pesquisa não pretende atribuir à felicidade a necessidade de satisfação das nossas inclinações sensíveis e acabar entrando no mesmo caminho criticado por Kant, posteriormente, na Crítica da Razão Prática (1788), ao questionar a filosofia estóica e epicurista, que atribuíam ao prazer todo o motivo da felicidade. Ora, mesmo que ser feliz seja necessariamente a aspiração de todo ente racional 23 é necessário esclarecer as interpretações inconsistentes dos estóicos e dos epicuristas com relação à prudência e à moralidade, pois, para o primeiro, a prudência teria a mesma formulação que a moral, dessa forma, o fato do homem ser consciente das prescrições morais o levariam a felicidade. Por outro lado, para o estóico, somente a moralidade é conhecimento, sendo assim, o fato de ter consciência dessa moral levaria à felicidade. Por isso, é importante levar em consideração a diferença entre a lei pragmática e moral em Kant, pois, para ele, aquela, possui por motivo a felicidade e, esta é uma lei que visa indicar como é possível tornar-se digno da felicidade. Portanto, a lei pragmática busca dizer o que nos seria possível fazer se pretendemos participar da felicidade, enquanto que a lei moral ordena de forma absoluta como é possível se tornar digno da felicidade. Sendo assim, parece que Kant considera a idéia de felicidade possível, mas não no mundo sensível, pois, se a relacionarmos com as leis morais, se observa que a moralidade em si constitui um sistema, mas não a felicidade, a não ser enquanto 20 KANT. Crítica da Razão Pura, A805 B833 21 Idem, A809 B837 22 Idem, A806 B834 23 KANT. Crítica da Razão Prática, A45 8

distribuída em medida exatamente proporcional à moralidade 24. No entanto, a moralidade faz abstração a qualquer inclinação sensível para considerar somente a liberdade do homem enquanto ser racional, e a partir dessa condição refletir o mérito de esperar ser digno da felicidade. Problematização: Considerando a tensão da razão apresentada no texto da Terceira Antinomia na Crítica da Razão Pura (1781), no qual Kant releva a pretensão da razão de fugir do campo da experiência e estender seu domínio para além de qualquer aspecto empírico, é possível remeter a uma conturbada citação com relação à idéia de liberdade, a saber, sou livre nos meus atos (?) 25 ou, por outro lado, como outros seres, sou conduzido pelo fio da natureza e do destino (?) 26. Portanto, o fato do homem ser um ser racional, permitiria a ele se considerar livre, ou esta condição não pode transcender aos móbiles empíricos, já que, ao mesmo tempo em que o homem é um ser racional é, também, um ser sensível e, como tal, sujeito às inclinações da experiência. Na concepção de liberdade da vontade, surge o problema de pensar como a vontade pode ser prescrita no mundo moral, pois ela não pressupõe em si mesma a conformidade com as regras morais. Para esclarecer o contexto dessa concordância entre liberdade da vontade e moralidade, Kant utiliza a noção de uma vontade absolutamente boa, a qual, a máxima pode sempre conter-se a si mesma em si, considerada como lei universal 27. Mas, ao que ele nos indica, essa boa vontade serve para confrontar a própria condição humana, pois, ao reconhecer que ela é, restritamente, conforme a moralidade e que não pode ser afetada de forma alguma por nenhuma inclinação sensível, ela só seria possível de ser admitida em um ser desprovido de sensibilidade, o que só é passível de se pensar em um mundo distinto do empírico. Portanto, existe uma tensão ao pensar o homem racional como livre, uma vez que não é plausível conhecer intimamente a intenção humana em relação à conformidade moral e, também, a própria condição do homem pensar-se como um ser racional livre, não determina em que medida ele se desvincula do instinto natural. 24 KANT. Crítica da Razão Pura, A811 B839 25 Idem, A463 B491 26 Idem 25 27 KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA98/99 9

A lei moral é o único fundamento determinante da vontade pura 28, ora, como a legislação moral está vinculada somente à forma da máxima, como um princípio determinante, não pode encontrar em nenhum objeto do nosso querer a sua definição, sendo assim, não é pressuposta a partir de nenhum dado material. Então, como é possível pensar um ser racional, ou seja, condicionado às prescrições morais, que visa à felicidade, mas que, a não ser pela razão pode determinar-se como livre. E ainda, como é possível determinar que a conformidade da relação entre moral e felicidade seja conhecida, já que a primeira é uma lei do dever a priori e, a segunda, é um princípio prático material. Por outro lado, como investigar um conceito de liberdade da vontade, na filosofia kantiana, que possa ser proveitoso para explicar a conformidade da ação com as prescrições do dever moral. É importante considerar a distinção kantiana entre o conceito de liberdade transcendental e o conceito de liberdade prática, exposta no O Cânone da Razão Pura, para discorrer sobre a idéia de lei moral. Considerando o primeiro conceito, como ele não pode ser conhecido na experiência, deve ser um conhecimento puro a priori e, como tal, não pode ser de forma alguma afetado por inclinações sensíveis; logo, só pode ser assumido em um mundo distinto do empiricamente conhecido. Por outro lado, o conceito prático pode ser conhecido na experiência, mas não necessariamente determinado por ela, pois, se assim fosse, toda a nossa vontade acabaria na sujeição ao empiricamente dado. Sendo assim, é possível pensar uma independência da vontade perante as inclinações sensíveis através da representação do que nos proporciona prazer ou desprazer e essa capacidade repousa na razão. Entretanto, não nos parece possível excluir a inclinação empírica, isto é, considerar-nos livre no agir e, ao mesmo tempo, nos considerar seres morais. Ora, mas Kant escreve na Crítica da Razão Pura (1781) que é justamente através da liberdade que podemos pensar a moral, ou seja, que a liberdade efetivamente existe; pois esta idéia manifesta-se pela lei moral 29. Contudo, há uma problemática entre a felicidade e o contexto da moralidade, pois, considerando que a moral é um princípio do dever válido incondicionadamente, não pode existir nela uma esperança que recompensa a si própria, orientando o comportamento de cada indivíduo perante o que se deve fazer. Sendo assim, a moralidade não poderia possuir uma base sólida, pois estaria sujeita às inclinações sensíveis que visam a um fim empírico, a felicidade. Aristóteles revela, na 28 KANT. Crítica da Razão Prática, A196 29 Idem, A5 10

obra Ética a Nicômaco, que toda ação é movida em busca de um bem e esse bem revela-se como um fim desejado em si mesmo, por conseguinte, como o bem supremo, ou seja, a felicidade. A questão é a escolha da atividade que dará ao ser humano o bem supremo? Uma vez que, é possível falar em virtude relacionada ao meio termo, na filosofia aristotélica. Ora, que motivos, então, nos permitem excitar a esperança de chegar à felicidade, se me comportar de modo a não ser indigno da felicidade, devo também esperar poder alcançá-la? 30. Portanto, parece incognoscível aceitar a existência de uma liberdade da vontade que não busque a satisfação da felicidade e que atribui ao homem racional a conformidade com a lei moral. Objetivo Geral: Abordar em que medida é possível estabelecer, na filosofia kantiana, com base nos textos da Crítica da Razão Pura (1781), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1784) e Crítica da Razão Prática (1788), a busca pela felicidade no homem racional. Com o intuito de apreender se o homem, enquanto ser racional, é realmente livre na sua determinação de felicidade, ou simplesmente, é determinado por inclinações sensíveis. Objetivos Específicos: Apresentar em que medida a razão permite ao homem se conceber como um ser livre, com base na discussão do problema da definição do conceito de liberdade apresentado, por Kant, na Crítica da Razão Pura (1781). Considerar a importância do conceito de vontade perante formulação da liberdade e de moralidade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1784). Caracterizar a relação entre liberdade e moralidade na pretensão de chegar à felicidade, na medida em que se encontram diferentes articulações na ligação dessas idéias na Crítica da Razão Pura (1781) e na Crítica da Razão Prática (1788). Demonstrar qual a problemática da felicidade se associada, simultaneamente, ao princípio da moralidade e da liberdade. 30 KANT. Crítica da Razão Prática, A809 B837 11

Bibliografia: ALLISON, Henry. Kant s theory of freedom. Cambridge University Press. New York, 1990. ALMEIDA, Guido Antônio de. Liberdade e Moralidade Segundo Kant. Analytica, v. 2 n.1. Rio de Janeiro, 1997. FREITAG, Bárbara. Itinerários de Antígona a questão da moralidade. Papirus, 4 ed. Campinas, 2005. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Trad. Valério Rohden. Martins Fontes. São Paulo, 2003. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Edições 70. Lisboa, 2005. PASCAL, Georges. O Pensamento de Kant. Vozes, 3 ed. Petrópolis 1990. PIMENTA, Pedro P. G. Reflexão e Moral em Kant. Azougue Editorial. Rio de Janeiro, 2004. 12