Gabriel Girnos Elias de Souza*



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O design da mídia livro na construção de um discurso projetual: o caso da Villa Dall Ava de Rem Koolhaas em S.M.L.XL. The design of the book in the making of a project discourse: the case of Rem Koolhaa s Villa Dall Ava in S,M,L,XL Gabriel Girnos Elias de Souza* *Arquiteto e mestre em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pela Universidade de São Paulo (EESC-USP), foi professor do Curso de Design da Universidade Estadual de Maringá (UEM), e desde 2009 é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DAU- -UFRRJ), lecionando nas áreas da expressão gráfica e da plástica e estudo da forma. Fez pesquisas nas áreas de arte urbana, design e comunicação visual na arquitetura e urbanismo, e publicou em 2011 o livro Territórios Estéticos: a experiência do Projeto Arte/Cidade em São Paulo (1994-2002). No momento, é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), desenvolvendo a pesquisa Ficções projetuais: projeto gráfico e discurso profissional em livros contemporâneos de escritórios internacionais de arquitetura e urbanismo, a ser concluída em 2015. Resumo O tema do artigo é o papel cognitivo e retórico do design de livros nas apresentações gráficas de projetos de arquitetura. Mais especificamente, interessa ao estudo um tipo de publicação que proliferou a partir dos anos noventa: livros de auto-apresentação produzidos por escritórios de arquitetura internacionais, que misturam elementos de portfolio ou compêndio com os de um manifesto profissional, e que exploram a linguagem visual e a configuração do objeto livro de forma a estabelecer uma identidade discursiva do escritório, superando a condição de simples compilações de textos e representações gráficas. O texto adota como estudo de caso o livro S,M,L,XL, o compêndio-manifesto pioneiro do Office for Metropolitan Architecture, escrito pelo arquiteto Rem Koolhaas e projetado pelo designer Bruce Mau. Após uma caracterização sucinta da organização geral de forma e conteúdo do livro, o estudo se deterá nas operações visuais e narrativas desenvolvidas na apresentação do projeto da Villa Dall Ava, como exemplo da variedade e riqueza de efeitos e significados adicionáveis à experiência das informações arquitetônicas por meio dos recursos de representação e encadeamento disponíveis na mídia livro. Palavras-chave: larquitetura; expressão gráfica; design de livros. Abstract This paper s subject is the cognitive and rhetorical play of book design in the graphical presentations of architecture projects. More precisely, its focuses a kind of publication that proliferated since the nineties: self-presentation books by international architecture offices, which merge features of portfolios or compendiums with those of a professional manifesto, and which explore the language and configuration of the book-object as a way of establishing a discursive identity for the office, overcoming the simple accumulation of texts and graphic representations. This paper takes as a case study S,M,L,XL, the pioneer manifest-compendium of Office for Metropolitan Architecture, written by architect Rem Koolhaas and designed by designer Bruce Mau. After a short characterization of the book s general organization of form and content, the study will focus on the visual and narrative operations developed in the presentation of the Villa Dall Ava project, as an example of the richness of effects and significations that can be achieved in the experience of architectural information through the representative and sequential resources of the book medium. Keywords: architecture; graphic expression; book design. 7

Introdução Publicações são, por excelência, a mídia do discurso da arquitetura e do urbanismo, constituindo o principal meio de promoção, reprodução e reflexão sobre suas práticas e valores e, portanto, de sua constituição como profissão e como corpo disciplinar. As publicações fundamentam o que é reconhecido como boa arquitetura, principalmente tendo-se em vista que grande parte das obras que servem de referência a estudantes e profissionais só é visitada em primeira mão muito tardiamente ou nunca. Essa imbricação entre a arquitetura e seus meios de representação e difusão é profundamente arraigada em nossa cultura. Autores como Kester Rattenbury (2002), Michael Hays (2001) e Gannon e Hayles (2009), estão entre os que destacam que a própria atividade da arquitetura se distinguiria da pura construção civil justamente por seu aspecto discursivo, conceitual; nessa concepção, a intervenção material e semiótica que a atividade da arquitetura traz ao mundo empírico se estenderia por uma variedade de mídias, das quais a edificação construída seria mais uma: a principal, via de regra, mas nunca a única. Autores como Beatriz Colomina (2002, p. 213), por outro lado, ressaltam que a própria emergência da arquitetura moderna do século XX é inseparável da exploração das mídias de massa por parte de arquitetos como outro contexto de produção paralelo à prancheta de projeto e ao sítio de construção. A progressiva midiatização da sociedade contemporânea, por sua vez, aparentemente só tem tornado essas relações mais complexas e profundas. A crescente globalização de mercados e culturas do fim do século XX trouxe a proliferação de escritórios atuantes em escala internacional; mais ainda, assistiu à ascensão de starchitects, profissionais mundialmente conhecidos e com certo status de celebridade mediática. Tais fenômenos, por sua vez, parecem coincidir com 8

um crescente investimento em mídia e publica- lisadas a fundo. Nesse contexto, cabe colocar a ções por parte de escritórios internacionais. Nes- questão de como, em certos compêndios-ma- se contexto, ocorreu a proliferação de um tipo nifesto, o design do livro ou seja, tanto sua particular de publicação, que chamarei aqui de forma física quanto a estruturação da experiência compêndio-manifesto : livros extensos escritos de informação projetual proporcionada por ele e produzidos pelos próprios estúdios de arquite- foi e pode ser trabalhado como signo de uma tura e dedicados à exibição de obras e projetos prática e uma concepção de arquitetura. desses grupos à maneira dos portfolios mas que procuravam afirmar-se como obras de Dentro desta questão maior, o presente texto se densidade própria, mesclando ensaios, manifes- volta especificamente para como o design gráfi- tos, narrativas e pesquisas; condensando, enfim, co de uma apresentação de projeto contida num elementos de uma identidade intelectual e profis- livro pode construir retoricamente leituras e per- sional. Tais livros, por outro lado, com frequência cepções diferenciadas dos projetos retratados. apresentaram uma exploração distintiva dos re- Como estudo de caso para este texto, optou-se cursos e potenciais expressivos do design grá- pelo compêndio-manifesto mais vendido, conhe- fico, principalmente nas apresentações de pro- cido e discutido da história editorial de arquite- jetos; não por acaso, por vezes são compostos tura das últimas décadas 1 : S,M,L,XL (Small, Me- e pensados em parceria com designers. Pode-se dium, Large, Extra-Large); dentro deste, o artigo citar entre esse grupo de publicações S,M,L,XL irá se dedicar à análise de uma apresentação 1. Como disse Rattenbury (2004), S,M,L,XL é provavelmente o único best-seller da área da arquitetura até hoje, esgotando cada edição já feita. Um pequeno indicador dessa popularidade pode ser visto nos dados da exposição Publishing Practices, organizada em 2009 por Michael Kubo (então doutorando em arquitetura e urbanismo no Massachussets Institute of Technology e diretor da filial nova-iorquina da editora Actar). Exibindo resultados de uma pesquisa sobre os 10 livros mais importantes (que recebeu respostas de 150 profissionais e acadêmicos dos E.U.A.), S,M,L,XL teria se destacado como o livro mais citado de todos, com enorme vantagem de número sobre quaisquer outros citados. (WES- SELER, 10 Out 2009). 2. Esse apelido veio da exposição OMA Book Machine: The Books of OMA organizada pela Architectural Association, e apresentada entre 8 de maio e 4 de junho de 2010 na AA School Gallery, Londres. (1995) e Content (2003), de Rem Koolhaas e OMA (Office for Metropolitan Architecture); FARMAX (1999) e KM3 (2003), do grupo MVRDV; Move (1999), de UNStudio; Agenda (2010), do JDS Architects; e Yes is More, do grupo BIG (2010). A emergência desses livros já foi apontada por autores norte-americanos interessados nas novas relações entre a prática e o discurso da arquitetura e suas mídias de difusão pública, como Charles Jencks (2002), Christine Boyer (2006) e K. Rattenbury (2004); no entanto, as estratégias de representação e retórica dessas publicações de auto-apresentação ainda não têm sido ana- de projeto em particular: a renomada residência apelidada Villa Dall Ava. S,M,L,XL: Características gerais OMA (Office for Metropolitan Architecture), dirigido por Rem Koolhaas, é considerado um grupo pioneiro da relação entremeada entre produção a de livros e prática arquitetônica que se desenvolveu a partir dos anos noventa, sendo que o sucesso de S,M,L,XL é reconhecido como a ponta de lança que abriu espaço tanto à máquina de livros 2 de OMA quanto à moda dos big books de arquitetura no mercado editorial e entre os escritórios internacionais. 9

De modo geral, pode-se afirmar que S,M,L,XL foi concebido não só como veículo de divulgação da obra de Koolhaas e OMA, mas com a ambição de ser em si mesmo uma obra com sua própria proposta estética e intelectual. Lançado em 1995, o livro já se tornaria digno de atenção simplesmente pela avassaladora torrente de imagens, informações, especulações e declarações que reúne bem como pelo consequente tamanho colossal de 1380 páginas, atingindo 2,7 kg de massa impressa (figura 1). Além disso, porém, S,M,L,XL também apresentava vários elementos de conteúdo e retórica relativamente incomuns aos compêndios de arquitetura. Há nele uma invulgar mistura de reflexão, análise, confissão e humor expondo, por exemplo, aspectos triviais, falhos, surpreendentes ou cômicos da atividade profissional da arquitetura construído num trânsito tranquilo entre cultura erudita e a cultura comercial, entre referências internas ao campo profissional da arquitetura e outras do mundo midiático de domínio geral. Tudo isso urdido com a sagacidade retórica e ensaística particular de Koolhaas, que dotou o livro de um viés ambiguamente literário provocativamente definido na contracapa como um romance sobre arquitetura que investe na ideia pós- -moderna de hibridação cultural na variedade de gêneros de linguagem empregados: texto puro, texto ilustrado, texto de estilo dicionário, diário, poesia, sequência de fotos, história em quadrinhos, e outras variedades. Figura 1. Exterior de S,M,L,XL, 1ª Edição. Fonte: montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOO- LHAAS e MAU, 1995. Do ponto de vista gráfico, saltava aos olhos a riqueza visual com que as reflexões, narrativas, propostas e ironias eram transformadas, nuançadas e expandidas pelas escolhas em diagramação, tipografia e, principalmente, imagens; e chamava a atenção o reconhecimento do designer gráfico Bruce Mau como coautor na capa do livro. A predominância de imagens de arquitetura perspectivas, plantas, croquis e, principalmente, fotos é intercalada por imagens variadas e não relacionadas à área: anúncios publicitários, reportagens jornalísticas, fotos científicas, fotos etnográficas, pornografia, obras de arte, catástrofes e muito mais (figura 2). Um exame rápido do livro revela a recorrência não de fotos que ocupam todo o campo visual, e de sequências contínuas destas e às vezes longas, com muitas páginas. O termo cinemático, por sua vez, já foi repetidamente usado por críticos variados e pelos próprios autores para descrever esses efeitos; a declarada inspiração de Bruce Mau nos efeitos de intensidade e temporalidade do cine- 10

ma declaradamente moldou muito da concepção do livro (MAU, 2000, p.338). utópica, uma análise, um ensaio, um manifesto ou uma sequência de impressões (e, por vezes, misturas desses itens); e cada um é visualmente tratado como um acontecimento narrativo particular e independente, possuindo uma caracterização particular no estilo do texto, na diagramação e tipografia, no estilo e tamanho das imagens, no emprego de cores, na quantidade de páginas ou de informações dedicadas aos projetos, e mesmo no ritmo e duração impostos à leitura. Toda essa heterogeneidade, contudo, é firmemente estruturada por critério de organização praticamente inédito e discursivamente simbólico para o livro: a escala. Projetos e textos dividem-se em seis seções ou famílias principais: Foreplay (textos e projetos provocativos, anteriores à profissionalização do grupo), Small (projetos pequenos, sobretudo residências), Medium (edifícios coletivos ou multifuncionais), Large (edificações de grande porte, como centros de convenções), Extra Large (projetos urbanísticos) e P.S. (um último projeto não-realizado). O nome-sigla do livro, assim, reproduz a organização de seu conteúdo. Figura 2: Páginas-duplas variadas de S,M,L,XL, respectivamente: p. 474-475, 482-483, 588-589, 768-769, 880-881 e 1316-1319. Fonte: montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOOLHAAS e MAU, 1995. A variedade visual se deve, em grande parte, ao fato do livro ser composto em uma série de episódios autônomos, bem diferenciados tanto em termos de encadeamento quanto de caracterização visual. Cada episódio pode apresentar uma edificação já construída, um projeto irrealizado, um projeto em vias de realização, uma proposta Mas S,M,L,XL tem mais um diferencial marcante: um sistema de conteúdo independente dos episódios, que atravessa o livro descontinuamente. Trata-se de um conjunto independente de citações textuais e visuais que, ao invés de ocupar uma seção própria, invade as páginas dos capítulos e outras seções, de forma esporádica e predominan- 11

Figura 3: Exemplos de páginas duplas com os três tipos de citações invasivas : 1) os verbetes (páginas 70-71, 252-253); 2) as obras de arte (respectivamente, páginas 900-901 estatuária romana e 1098-1099 fotomontagem de Man Ray); e 3) as imagens de mídia e cotidiano (respectivamente, páginas 796-797 a reprodução de um tabloide sensacionalista e 1258-1259 um amontoado de anúncios de prostituição), as quais também incluem verbetes. Fonte: montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOOLHAAS e MAU, 1995. temente aleatória. Isso acarreta à leitura dos episódios particulares efeitos variados ora simples ruído, ora interrupção, ora reverberação de sentidos, ora inusitadas combinações de significado. A análise dessa estrutura transversal de informações, por sua vez, mostra três tipos de citação: 1. Verbetes: a mais abundante e identificável forma do Dicionário é a referida série de verbetes que, de Abolish (p.xviii) a Zoom ratio (p.1302), são citações de dezenas de autores diferentes, indo de considerações teóricas complexas até inside jokes. Como as referências estão discretamente locadas perto do fim do livro, a multiautoria não é evidente: o leitor encontra inicialmente apenas um fluxo textual esquizofrênico em sua variedade de tons e temas. Em contraste a essa diversidade, a ordenação alfabética, a tipografia e a largura do bloco de texto do dicionário são rigorosamente mantidas, e suas invasões se dão quase sempre como uma única coluna no canto da página esquerda (há alguns pontos de exceção). 2. Obras de arte: a segunda forma de citação invasiva adotada pelo livro é a de imagens de obras de arte que invadem, esporadicamente, as páginas dos capítulos. Apresentam vários tipos de arte (escultura, pintura, fotografia, instalação), de épocas, autores, nacionalidades e temas distintos. Estas são imagens relativamente pequenas (as maiores não ocupam nem um quarto da área da página), na maioria verticais, que sangram o canto inferior e a margem externa das páginas (quase sempre as esquerdas), nunca aparecendo mais que uma por página. 3. Mídia e cotidiano: a terceira, maior e mais escassa manifestação do Dicionário é composta de reproduções variadas de imagens mundanas de fotojornalismo, de páginas e reportagens de jornais, de ciência, de publicidade e etc. Quando tais imagens aparecem, há uma ocupação completa da página-dupla: com grandes dimensões, elas são posicionadas de forma a sangrar as bordas superiores e a borda externa da página direita, deixando espaço branco na borda inferior e na borda externa esquerda que, nesse caso, é sempre ocupada com os verbetes escritos. 12

Figura 4: Esboços para o design preliminar de S,M,L,XL, presente em From OMA by OMA, livreto não publicado, 1989, veiculado na exposição OMA Book Machine: The Books of OMA organizada pela Architectural Association. Autor: OMA. Fonte: http://lessadjectivesmoreverbs.tumblr.com/post/125968 13955/preliminary-concept-sketches-for-s-m-l-xl-by-rem Tais características básicas, por sua vez, teriam sido concebidas em diálogo entre Koolhaas e Mau desde o início do projeto, em 1989. O diagrama da figura 4, creditado ao OMA, resume vários pontos principais do livro: o volume; o agrupamento e divisão em famílias por escala; a constituição de episódios autônomos; a inspiração cinemática de encarar cada página-dupla como um momento ou quadro paralisado de cinema; e a presença do dicionário como outra estrutura de conteúdo. Análise de apresentação no livro: Obstacles (Villa Dall Ava) Nas 62 páginas entre a numeração de 132 e 193, está a apresentação da Villa Dall Ava, residência unifamiliar de dois quartos num bairro afastado de Paris; um projeto já razoavelmente bem conhecido antes do lançamento de S,M,L,XL, e muito relevante para a o reconhecimento do OMA dentro da cultura arquitetônica internacional. Intitulada Obstacles, esta apresentação se inicia com uma página-dupla dividida: no lado esquerdo, uma única imagem ocupa toda a página, enquanto no direito só há palavras escritas em branco sobre um fundo preto (figura 5). De fato, essa página-dupla dividida exibe o padrão do restante do capítulo: texto e fotos do edifício se apresentam completamente separados, duas modalidades autônomas de discurso sem sobreposição visual e sem nenhuma relação direta de ilustração das palavras pelas figuras, ou de comentário das figuras pelas palavras. Do ponto de vista das interações entre imagem, palavra e sequenciamento, este capítulo em particular não é nem de longe um dos mais experimentais do livro; de forma geral, ela parece a princípio reproduzir um tipo de encadeamento relativamente comum em apresentações projetos construídos: a separação estanque entre texto de apresentação inicial, fotografias da edificação e projeções ortogonais técnicas. Porém, nenhum dos três aspectos é trabalhado de maneira pro- 13

priamente convencional, como se verá a seguir. Primeira parte: narrativa A foto da primeira página (figura 5) mostra o sítio da casa de um ponto de vista superior, com a silhueta da edificação recortada em branco, de forma a sugeri-la sem mostrá-la. Após esse pequeno momento de mistério imagético, o texto do capítulo é apresentado quase por inteiro, sem interrupções. Com a fonte sem-serifa padrão do livro, as palavras correm sem o acompanhamento de imagem alguma, num espaço preto puramente tipográfico; o texto se desenvolve em pequenos trechos de poucas linhas, cada um com um título centralizado de tipografia idêntica ao corpo do texto. Essas breves frases, por sua vez, não se destinam a descrever a residência e seu projeto, mas a narrar acontecimentos e situações ligados a sua elaboração: a paixão dos clientes por arquitetura e suas exigências, a situação de entorno, os principais problemas técnicos e projetuais como a conciliação de uma piscina suspensa com uma casa envidraçada, por exemplo, os problemas legais e de mão de obra, os muitos atrasos e revisões e as transformações que o tempo trouxe ao projeto e à vida pessoal dos envolvidos (o crescimento dos filhos dos clientes, a amizade entre estes e os arquitetos). Trata-se, enfim, de esboçar os principais obstáculos do que Koolhaas descreveu em sua peculiar ironia como empreitada mitológica (p.133). Tudo sem entrar em detalhes sobre o projeto: de maneira análoga à foto da primeira página, que só mostra o que está em volta da edificação, o texto delineia a casa em negativo, falando dos acontecimentos que a envolvem e não do objeto em si. Figura 5: Abertura do capítulo Obstacles e páginas da narrativa verbal, p.132-133 e 134-135. Fonte: Montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOOLHAAS e MAU, 1995. 14

Segunda parte: percurso Após o término dessa narrativa aforística de três páginas, o objeto em si é mostrado silenciosamente : inicia-se uma longa sequência de fotografias da residência construída, de autoria do fotógrafo Hans Werleman, em 38 páginas contínuas. Com a maioria delas ocupando individualmente páginas- -duplas 3, quase como a capturar instantâneos de um percurso exploratório pela casa, quase numa promenade architecturale corbusiana. Contudo, apesar da evidente conexão dos momentos selecionados nessa sucessão, não há preocupação em simular perfeitamente um percurso literalmente realizado: há fotografias noturnas e diurnas, coloridas e em preto e branco; nesse sentido, como na arte do cinema, a sequência de imagens é revelada em sua condição de montagem: não são fragmentos extraídos de um percurso factual, e sim a construção de um percurso ficcional e da arquitetura que ele desvela a partir de fragmentos diferentes; a continuidade do caminho mental pelo espaço se constrói assim em meio à evidente descontinuidade temporal e visual das imagens. ou refletida nas superfícies de vidro, e/ou colocada perifericamente na composição pessoas, afinal, não são protagonistas nessa apresentação, mas figurantes destinados a contextualizar a situação/objeto casa, como se pode ver nos detalhes da figura 7. Mas os elementos de ocupação, por vezes, são manipulados deliberadamente para produzir estranhamento: o principal caso, visível no canto da figura 7, é o da girafa sendo levada por uma correia pela rota de estacionamento do terreno, na página 150 (aparentemente, estacionar um carro seria prosaico demais). 3.Da sequência, 12 páginas- -duplas (ou seja, 24 páginas individuais) têm uma única imagem; 6 páginas individuais têm uma imagem cada; e 7 páginas individuais estão divididas em duas imagens. As primeiras sete páginas-duplas são do exterior da casa; depois se percorre seu interior, subindo-se de um andar a outro. As fotos enfatizam sutilmente ora vistas, ora o efeito da luz, ora os materiais, ora o espaço externo. São cuidadosamente feitas para capturar a casa habitada; há sempre sinais e vestígios de uso humano, quando não a própria presença humana, geralmente pequena, e/ou borrada, e/ou como vulto, e/ Figura 6: Excertos do trajeto cinemático pela Villa Dall Ava (páginas-duplas 136-137; 138-139; 140-141; 142-143; 162-163; e 166-1667). Fonte: montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOOLHAAS e MAU, 1995. 15

Figura 7: Elementos indicadores da ocupação humana da casa nas fotografias de Hans Werleman. Respectivamente, detalhes das páginas 174, 167, 164,141 e 150. Fonte: montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOO- LHAAS e MAU, 1995. Figura 8: A imagem-síntese ao final do percurso (p.174) e a retomada e fechamento da narrativa escrita (p. 175). À direita, ampliação de detalhe da foto (a Torre Eiffel) e do texto. Fonte: montagem com fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOOLHAAS e MAU, 1995. A foto final desse passeio (figura 8) é como aquela que abre o capítulo, uma vista externa de uma altura superior; só que, enquanto a primeira mostra a frente e enfatiza a casa em seu terreno, a última revela a visão dos fundos da casa, e sintetiza sua locação podendo-se ver, na paisagem ao fundo, o skyline noturno de Paris, com destaque para a Torre Eiffel alinhada com o eixo longitudinal da casa. Não é um fim gratuito: juntamente com a piscina suspensa e as faces envidraçadas, a possibilidade de avistar a torre a partir da cobertura foi anunciada na narrativa inicial como uma das exigências expressas do cliente; ao condensar a piscina, a transparência da casa e a vista parta a torre, a imagem tem uma clara conotação de missão cumprida. Não por acaso, página-dupla em que ela se encontra dialoga com a página de abertura do episódio (ver figura 5), dividindo o espaço entre essa imagem- -síntese à esquerda e uma página preta à direita em que a voz do narrador (Koolhaas) é brevemente retomada com um irônico eles viveram felizes para sempre. Terceira parte: registro processual Depois do comentário aparentemente final, inicia-se uma nova sequência de imagens, agora desenhos técnicos sequenciados na tradicional ordem de plantas por pavimento, depois cortes, depois fachadas (figura 9). Um leitor que seguisse a apresentação até esse ponto provavelmente teria a expectativa inicial de haver chegado finalmente às informações propriamente arquitetônicas, técnicas, através das quais poderia ler a configuração da casa. Contudo, logo perceberia que as peças gráficas apresentadas nesse trecho não foram feitas especialmente para o livro, e nem mesmo têm o desenho final da edificação: os autores optaram por reproduzir plantas, cortes e fachadas de fases intermediárias do projeto, com certos elementos diferentes dos vistos na casa final. Os desenhos estão comentados, rasurados e corrigidos à mão com tinta vermelha, no que seriam (supostamente) marcas do diálogo projetual entre os arquitetos e destes com os clientes. 16

Interações e interferências da configuração do livro Figura 9: Desenhos técnicos comentados, rasurados e complementados à mão. Respectivamente, plantas (páginas 178-179) e cortes (184-185). Fonte: montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOOLHAAS e MAU, 1998. 4.O termo está sendo usado aqui no sentido específico dado por LWEEN e KRESS (2006, p.93): de um determinado regime de representação que invoca uma determinada sensação de realidade e é dotado de verossimilhança interna particular, estabelecendo uma determinada interação com o observador. Por exemplo: perspectivas fotorrealistas, desenhos técnicos geometrizados e cartuns cômicos compartilham mídias e técnicas de produção semelhantes, mas possuem índices de modalidade distintos, criando diferentes efeitos de realidade e imersão. Após texto puro primeiro e imagem silenciosa em segundo, essa terceira sequência é um conjunto mais híbrido na relação entre verbal e visual. Por um lado, desenhos técnicos normalmente costumam combinar elementos pictóricos e verbais (números, indicação de materiais, etc.) numa modalidade 4 semelhante; por outro, os comentários e desenhos feitos à mão em tinta vermelha sobre as plantas também parecem formar um conjunto coerente em sua gestualidade, e emprestam certa vida e voz a essas imagens normalmente tão estáticas. Peças originalmente feitas para a compreensão geométrica da edificação tornam-se, então, testemunho documental do longo e laborioso processo de projeto sugerido pelo texto. Após a sequência de desenhos, o capítulo termina com uma única imagem ocupando uma página-dupla: uma foto da construção da casa, outro testemunho de seu processo de realização. No decorrer das páginas de Obstacles, há cinco interferências do dicionário. A primeira, do dicionário verbal, se dá na segunda página preta de texto (p.134): aqui se faz, então, a convivência entre duas ordens de texto distintas (ver primeiro detalhe da figura 10). Embora estejam espacialmente muito perto uma da outra, a diferença tipográfica ajuda a caracterizar a separação entre essas camadas de informação (o dicionário usa uma fonte serifada e pequena, e seus títulos, outra fonte sem-serifa e em caixa-alta). Os verbetes presentes são classic, cleft, cliches¹, cliches², climates, clímax, clothes¹ e clothes². Enquanto os respectivos textos destes não se relacionam à narrativa, seus títulos produzem por vezes efeitos curiosos: classic está alinhado à frase da narrativa que menciona a existência de casas projetadas por Le Corbusier nas vizinhanças do local do projeto; cleft (rompido) está alinhado com o texto que informa a vontade contraditória do casal de clientes de quererem ao mesmo tempo uma casa de vidro (marido) e uma piscina na cobertura (esposa) e ruptura é facilmente relacionável tanto os desencontros entre os desejos de cônjuges quanto a uma piscina sustentada por vidro. Pode-se traçar ainda outras relações entre os dois grupos de texto, mas não se quer sugerir aqui que sejam necessariamente 17

planejadas pelos autores: pelo contrário, acredita-se aqui que tais sobreposições sejam predominantemente aleatórias em S,M,L,XL. O que se quer destacar com essa interpretação pontual é que essa convivência naturalmente produz significados e conotações, o que seria uma intenção expressa dos autores do livro. Em contraste, a segunda invasão (p.142) se dá puramente entre imagens: no canto inferior esquerdo de uma página-dupla que mostra uma lateral da casa e o volume suspenso por pilotis irregulares na parte frontal é alocada a reprodução de uma célebre pintura de Johannes Vermeer Senhora diante do Virginal (1670-1675). Nesse caso específico, a tonalidade e as linhas verticais da pintura se harmonizam e fundem à área da foto da casa que a margeia diretamente uma massa que ocupa boa parte da metade esquerda da página-dupla, e cuja luminosidade amarelada contrasta, por um lado, com a escuridão azulada do extremo direito da foto (ver figuras 6 e 10). O clima doméstico e a ênfase na luz lateral da pintura do pintor holandês combinam tanto com a luminosidade particular da foto que ocupa a página-dupla quanto com a natureza do edifício apresentado. A terceira invasão (p.160-161) interrompe a sequência silenciosa de fotos da residência com uma página-dupla em que se vê uma foto jornalística de duas mulheres ao telefone, uma das duas vociferando, e uma legenda (parte da própria imagem) explicando tratar-se de uma imagem da Bolsa de Valores de Paris em 1993. Como em todas as ocorrências invasivas do que chamamos aqui de imagens mundanas, o extremo esquerdo do conjunto possui verbetes do dicionário. Dessa vez fica mais difícil traçar relações entre o construído do texto e a imagem, ou mesmo entre qualquer um dos dois e o passeio arquitetônico das páginas anteriores e posteriores exceto pelo fato de se mostrar algo que também se passaria em Paris, a cidade da residência em questão. A quarta e quinta invasões (respectivamente, páginas 182 e 188) são novamente apenas textuais, agora se sobrepondo às pranchas técnicas. No entanto um novo efeito tem lugar aqui: pela primeira vez no capítulo, as citações estão por cima das informações do projeto, comprometendo parcialmente a legibilidade de ambas. A confusão visual com os verbetes é acentuada pelo fato dos desenhos técnicos serem apenas linhas pretas sobre fundo branco e também possuírem palavras (ainda que em outra fonte tipográfica). De fato, algumas anotações em vermelho sobre as pranchas técnicas dão a impressão momentânea de comentar e destacar as palavras do dicionário, e não os desenhos do projeto (figura 10). 18

Figura 10: detalhes das invasões do dicionário na apresentação da Villa Dall Ava. Respectivamente: páginas 134, 142, 160-161 e 182. Fonte: Montagem de fotos do autor do artigo, feitas a partir do livro de KOOLHA- AS e MAU, 1995. Considerações Finais O caso da apresentação da Villa Dall Ava é particularmente interessante para ilustrar o efeito de aspectos básicos da concepção de S,M,L,XL, em especial por ser uma das mais longas e por condensar uma boa variedade de efeitos possíveis do dicionário sobre os outros conteúdos do livro. A sequência fotográfica também manifesta de maneira muito explícita a inspiração cinemática referida pelo designer Bruce Mau e, nesse sentido, também se mostra a adequação do formato do livro à fruição desejada: seu tamanho permite imagens grandes o suficiente para envolver o olhar, mas ao mesmo tempo é contido o suficiente para que o leitor não tenha que se afastar do livro 19

para ver o todo, e nem tenha que ver cada página- -dupla em movimentos muito longos do olhar (o que repartiria sua fruição em várias tomadas ). Antes de S,M,L,XL, provavelmente nem o compêndio mais ufanista do mais consagrado arquiteto mundial dispensou sessenta páginas para mostrar uma única residência de dois quartos, como Koolhaas e Mau fazem com a Villa Dall Ava; a massiva Oeuvre Complète de Le Corbusier, por exemplo, não gasta mais que nove páginas com a clássica Villa Savoye. De uma perspectiva estritamente econômica, não é exagero dizer que com metade das 1380 páginas o conteúdo essencial de S,M,L,XL já poderia ser comunicado de maneira eficiente, detalhada e ainda assim graficamente instigante. Além das inserções constantes de imagens, textos e elementos (aparentemente) sem relação direta com os conteúdos das apresentações de projeto, a grande quantidade de imagens ocupando sozinhas páginas-duplas inteiras como no caso do capítulo aqui analisado é completamente desnecessária do ponto de vista da eficiência elementar de comunicação das informações pictóricas. Esse tamanho, ainda por cima, tampouco se deve à busca pela descrição e discussão exaustiva e inteligível de projetos: S,M,L,XL raramente esmiúça os projetos nele incluídos. Paradoxalmente, há ao mesmo tempo excesso e falta de informações. Essa abundância, porém, não é simples prodigalidade: relaciona-se à possibilidade de exploração de efeitos, pausas, gradações, continuidades e choques. O exame geral do interior de S,M,L,XL dá indícios da preocupação em constituir múltiplas experiências sensoriais que possibilitem imersão pela adição de temporalidade e espacialidade ao livro. Essa configuração, por sua vez, parece se preocupar menos com construir uma intelecção clara dos conteúdos projetuais do que com estabelecer certa intensidade de fruição dessa informação e com agregar significados através dessa fruição. Na apresentação da Villa Dall Ava, é marcante a disjunção do conjunto de representações: a edificação exibida nas fotos não é exatamente aquela representada em desenhos; o texto, por sua vez, não fornece descrições propriamente ditas. Toda leitura de projeto demanda naturalmente um esforço de montagem mental a partir de várias peças gráficas; mas aqui o leitor interessado em compreender a configuração precisa do objeto-casa necessitará de um esforço excepcional para deduzi-la, a partir dos desenhos, correções e anotações feitas nestes (e elas não são de fácil legibilidade), em cruzamento com o que viu na longa sequência de fotos. Tal processo é factível, mas a opção por ele indica que os autores do livro estão menos interessados na intelecção completa do projeto em questão do que em fornecer, entremeada aos meios de representação, uma amostra da prática intelectual envolvida em sua elaboração. 20

Mas aqui é importante notar que esse esforço tampouco se trata de uma tentativa de explicar e sistematizar um determinado processo projetual: o próprio caso dessa residência, afinal, é narrado menos como a resolução engenhosa de um problema (um padrão comum em explicações projetuais) do que como um longo desenvolvimento em contato contínuo com contingências múltiplas. Assim como o tour cinemático das fotos oferece mais impressões do que explicações da casa, os desenhos técnicos colocados ao final parecem destinar-se a provocar uma impressão a respeito da prática dialógica que gerou aquele produto. Uma comparação pode ser traçada: assim como croquis de arquitetos são tradicionalmente utilizados em publicações como tentativas de conjurar a presença da mão do autor capturar algo do gesto, concepção pessoal ou personalidade os comentários rasurados dos desenhos técnicos e o tom do texto escrito parecem querer capturar e oferecer a presença da prática arquitetônica envolvida. Por diferentes que sejam, em ambas as situações a mão do arquiteto é menos algo a ser decifrado que uma presença a ser manifestada. O exemplo de apresentação destacado aqui, enfim, parece dedicado a expandir significados e impressões do projeto e edificação. Volta-se menos a fazer uma tradução dos caracteres do edifício do que a criar outras experiências da arquitetura através da mídia livro. Apresentações de arquitetura costumam ter funções intrinsecamente persuasivas a respeito de seus objetos; no exemplo estudado, porém, a apresentação parece tão interessada na qualidade particular do projeto quanto em sua própria qualidade como experiência de leitura pela qual o leitor dificilmente passa inconscientemente, já que interrupções e interações (com o dicionário verbal e visual) e mesmo detalhes inesperados (como fotos mais feias e sem foco e os desenhos técnicos rasurados) redirecionam a atenção ao próprio ato de enunciação e representação empreendido pelos autores do livro. Não por acaso, essa experiência pode ser igualmente persuasiva a respeito da engenhosidade de seu produtor: o uso criativo da linguagem, afinal, é componente decisivo da construção do ethos do discurso, da imagem daquele que enuncia. S,M,L,XL não é, afinal, uma análise sobre OMA feito por outros (como este texto é), mas um produto do escritório, como seus projetos; assim, tudo nele é não apenas representação, mas em si mesmo uma amostra das atividades, atitudes e, principalmente, da inteligência de OMA, de Koolhaas e de Bruce Mau (que se tornou talvez o designer gráfico mais conhecido entre arquitetos). Não é uma apresentação destinada a convencer um público acerca da qualidade de uma obra em particular, como uma prancha de concurso o é; como todo portfolio, S,M,L,XL tem intenção de convencer o público da criatividade do projetista. Esse, afinal, seria o objetivo central do papel da configuração desses livros contemporâneos 21

de auto-apresentação: usar a engenhosidade da linguagem consubstanciada no design e no texto para atestar e manifestar a habilidade criativa e intelectual de seus autores. JENCKS, C. Post-Modernism and the revenge of the book. In RATTENBURY, K (org.). This is Not Architecture: Media Constructions. London: Routledge, 2002, pp. 174-197. Referências Bibliográficas BOYER, C. and HAUPTMANN, D. The big books and sundry cyber-matters: an Interview with M. Christine Boyer. In BEKKERING, H. and HAUPT- MANN, D. (Eds.). The architecture annual 2004-2005, Delft University of Technology. Rotterdam: 010 Publishers, 2006, pp. 108-111. COLOMINA, B. Architectureproduction. In RAT- TENBURY, K (org.). This is Not Architecture: Media Constructions. London: Routledge, 2002, pp. 205-221. HAYLES, K. e GANNON, T. Virtual Architecture, Actual Media. Disponível em: Página do Institute for the Arts and Humanities da UNC College for Arts & Sciences da The University of North Carolina, Chapel Hill. Url: <http://iah.unc.edu/calendar/ hayles. article>. Acesso em 15/03/2009. KOOLHAAS, R., MAU, B. S,M,L,XL (Small, Medium, Large, Extra-Large). New York: Monacceli Press, 1998 (3ª Ed.). KRESS, G. e VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London: Routledge, 2. Ed., 2006. MAU, Bruce. Life Style. London: Phaidon Press Limited. 2000. RATTENBURY, K. Architecture Books. Icon Magazine, nº 015, September 2004. URL: http://www.iconeye.com/read-previous-issues/ icon-015-%7c-september-2004/architecture- -books-%7c-icon-015-%7c-september-2004. Acesso em 12/09/2011. RATTENBURY, K (org.). This is Not Architecture: Media Constructions. London: Routledge, 2002. HAYS, K. Michael. Architecture s Desire: reading the avant-garde. Cambridge: The MIT Press, 2010. p. 1 WESSELER, Sarah. AD Interviews: Michael Kubo on Architectural Publishing 10 Oct 2009. ArchDaily. Acesso em 19 agosto de 2012. <http:// www.archdaily.com/37260> 22