NERES, Geraldo Magella. Gramsci e o moderno príncipe : a teoria do partido nos cadernos do cárcere. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Gramsci e a teoria do partido nos Cadernos do Cárcere Silvana Aparecida de Souza 1 Justamente quando os movimentos de rua de junho de 2013 no Brasil demonstraram que há uma forte disposição anti-partidária da população em geral, é publicado pela Editora Cultura Acadêmica, um dos selos da Editora da Unesp, o livro que tenho a alegria de apresentar ao leitor, de Geraldo Magella Neres, acerca da teoria de partido presente nos cadernos escritos pelo comunista italiano Antonio Gramsci nos cárceres do regime fascista de Benito Mussolini. Professor do Programa de Pós-graduação em Ciencias Sociais da Unioestecampus de Toledo, o estudo de Geraldo Neres é o resultado de seu Doutorado, sob orientação do Prof. Marcos Del Roio, sabidamente um profundo conhecedor do pensamento gramsciano. Para chegar a uma análise profunda e conseqüente da teoria de partido em Gramsci, Geraldo empreende em primeiro lugar uma digressão pela história dos partidos políticos, que começaram a se desenvolver no século XIX, demonstrando que há duas tradições de partido, a liberal e a marxista, o que demonstra o componente de classe dos partidos políticos, desde o início de seu desenvolvimento. Neres sustenta que a forma moderna de partido é dada pela unificação entre uma estrutura organizacional difusa e um programa político, o que faz com que somente os partidos socialistas europeus constituídos na virada do século XIX para o XX possam ser considerados como partidos modernos, já que os partidos de comitês (de origem liberal), 1 Professora do Programa de Pós-graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras da Unioeste-campus de Foz do Iguaçu.
não possuíam as características acima apontadas, podendo ser considerados, no máximo, protopartidos dos partidos modernos. Após explicitar mais detalhadamente as características das perspectivas liberal e marxista de partido, passando pela contribuição fundamental de Lenin para a teoria do partido revolucionário, o papel a ser desempenhado por este e o respectivo debate sobre o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado, Neres trata do papel a ser assumido pela vanguarda revolucionária, das características do partido de quadros e do partido de massa, chegando à relação do partido com os movimentos espontâneos das massas. A partir de então, o autor tem os elementos necessários para adentrar especificamente no pensamento gramsciano sobre o partido revolucionário. Mesmo defendendo que a teoria de partido revolucionário em Gramsci esteja mais completa e desenvolvida nos Cadernos escritos no cárcere (mesmo que não sistematizada), Neres inicia sua análise nos textos pré carcerários, indicando detalhadamente cada passagem na qual o pensador italiano fez alguma referencia que permitisse detectar e delimitar sua concepção de partido. Para isso, divide a formação do pensamento do filósofo sardo sobre partido em quatro períodos. O primeiro período ocorre de 1913 a 1921, com seu ingresso e conturbada militância decorrente das polêmicas enfrentadas por Gramsci no interior do Partido Socialista Italiano (PSI), e se estende até a fundação do Partido Comunista da Itália (PCI), em 1921, na qual teve participação, apesar de sua posição inicial subordinada, devido a uma série de fatores conjunturais. Neres caracteriza de 1922 a 1924 como o segundo período da formação de Antonio Gramsci, quando ocorre seu encontro com a refundação comunista leniniana: A segunda etapa da formação política de Antonio Gramsci abarca o período inicial de construção do PCI, ainda sob a direção bordiguiana, até a consolidação do novo grupo dirigente, que assume a tarefa de modificar a linha política do partido, adequando-a de modo crítico às novas determinações estratégicas indicadas pela executiva da IC [refere-se à Internacional Comunista] (NERES, 2012, p. 78) Nesse período, que termina quando Gramsci assume a tarefa de Secretário Geral do PCI, o italiano aprofunda sua compreensão e convicção acerca dos princípios
partidários bolcheviques, tais como o centralismo democrático, a necessidade da clara definição da estratégia e da tática em cada momento histórico, o papel da direção partidária e a disciplina organizativa do partido. O terceiro período de formação da teoria de partido no pensamento de Antonio Gramsci se dá, segundo Neres, de 1925 a 1926, naqueles que foram os dois últimos anos de luta do italiano contra o fascismo, quando ele escreve as primeiras formulações sistemáticas sobre o partido revolucionário, e, mais do que nunca, sua reflexão está vinculada à intervenção política em prol da revolução socialista. O quarto e último período da formulação da teoria de partido no pensamento de Antonio Gramsci é o período carcerário, que vai de 1926 a 1937, ano de sua morte, poucos dias depois de readquirir a liberdade plena, com apenas 46 anos de idade. Nessa etapa o dirigente comunista italiano aperfeiçoa e define mais especificamente a sua teoria de partido e por isso Neres se ocupa dela em um capítulo próprio no livro. Ao se propor a realizar um estudo aprofundado sobre as causas da derrota da revolução socialista no ocidente, da identificação dos erros táticos e estratégicos responsáveis pelo refluxo de tal revolução e sobre o papel dos intelectuais na produção do consenso popular em torno da defesa do Estado burguês, Gramsci viu-se obrigado a realizar um denso estudo sobre a formação do Estado nacional italiano, suas características distintivas, a constituição de suas classes fundamentais, o papel da igreja na política interna da península, a permanência da questão meridional, até chegar aos acontecimentos contemporâneos envolvidos na ascensão e consolidação da ditadura fascista. Gramsci considerou ainda em suas reflexões fatores tais como o isolamento da revolução socialista na Rússia e a retomada do desenvolvimento econômico no mundo capitalista. A profunda e conseqüente reflexão teórica acerca desse conjunto de fatores estruturais e conjunturais permitiu a Antonio Gramsci perceber o papel que a sociedade civil passou a desempenhar nas sociedades ocidentais, como uma nova esfera superestrutural de produção de consenso típica do Estado capitalista do século XX, o que lhe possibilitou cunhar o conceito de Estado integral, no qual um conjunto dos organismos aparentemente privados de hegemonia que, conjuntamente com a sociedade política, constitui o Estado ampliado ou Estado em sentido amplo. (NERES, 2012, p. 133)
Sendo assim, foi possível a Gramsci dar um passo à frente na interpretação da função e abrangência do Estado nas sociedades ocidentais, quando o comunista sardo percebe que, mais do que a tradicional função de coerção exercida e imposta pela sociedade política (máquina estatal repressiva), agora, existe a difusão do consenso no plano da sociedade civil (organismos privados de hegemonia). (NERES, 2012, p. 139) Daí a clássica definição de Estado de Gramsci como sendo sociedade política + sociedade civil ou hegemonia encouraçada de coerção. Por consequência direta dessa compreensão ampliada do Estado, Gramsci argumenta que não é mais possível tomar simplesmente o Estado de assalto por meio unicamente do ataque frontal (que Gramsci denomina de guerra de movimentos), mas é preciso também conquistar a hegemonia no plano da sociedade civil (identificada por Gramsci como guerra de posição ). (NERES, 2012, p. 189) Outra influência direta do diagnóstico gramsciano da vigência do Estado ampliado no ocidente reflete-se na redefinição da função do partido revolucionário, denominado nos Cadernos do Cárcere como moderno Príncipe (numa alusão direta ao livro de Nicolau Maquiavel), que teria a função de fundar um novo Estado. Nesse sentido, o príncipe está para o moderno Príncipe assim como a fundação do principado inteiramente novo em Maquiavel está para a fundação do novo Estado em Gramsci. (NERES, 2012, p. 153) Gramsci tinha de fato afinidade de diversas origens com a figura histórica de Maquiavel, e isso Geraldo Magella Neres conhece bem, tendo tratado em sua dissertação de mestrado precisamente desta relação. (Cf. NERES, 2009) Além do significado que a denominação do partido revolucionário adquire com a metáfora presente na expressão moderno Príncipe, não custa relembrar que a expressão partido comunista não consta e não poderia mesmo constar nos cadernos escritos por Gramsci na prisão, obviamente devido à censura política do regime fascista. Tratando-o como moderno Príncipe, Gramsci procura destacar que o partido revolucionário deve atuar no âmbito da grande política, que compreende as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais e não na pequena política, ou política parlamentar cotidiana. (GRAMSCI, 2001, p. 1563-4; Cf. NERES, 2012, p. 153) Assim, ao partido cabe conciliar direção política e cultural. Portanto, faz-se necessário que o partido revolucionário provoque o desenvolvimento de um consenso
tácito partilhado pela maior parte possível da população acerca da necessidade de transformação da ordem social e política estabelecida. Isso significa que as ações do partido devem construir uma vontade coletiva que é resultado da articulação dialética entre condições objetivas e subjetivas, sendo as primeiras ditadas pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas da sociedade e as segundas são dadas pelo grau de coesão e homogeneidade alcançado pelas forças políticas organizadas que disputam a direção política e cultural na sociedade, fazendo que algumas ideologias, ainda que vinculadas originalmente a grupos sociais específicos, sejam difundidas como representativas do interesse geral da sociedade. (NERES, 2012, p. 157) Outra tarefa fundamental do partido revolucionário deve ser a promoção de uma reforma intelectual e moral, que consiste na elevação cultural das massas que permite a intervenção consciente dos seres humanos sobre a estrutura, transformando as massas populares no sujeito efetivo da transição socialista. (NERES, 2012, p. 160) A tarefa de dar a direção política e cultural ao movimento da classe ou, dito em outros termos, de construir a vontade coletiva e a reforma intelectual e moral com vistas à superação da sociedade capitalista, só é possível por meio de uma organização centralizada e da disciplina partidária. Para isso Gramsci reafirma a validade e a necessidade do centralismo democrático como princípio fundamental que orienta a organização do partido, entendido este como um centralismo em movimento, uma contínua adequação da organização ao movimento do real, combinando os impulsos oriundos de baixo com o comando pelo alto, permitindo assim, uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo da massa na sólida moldura do aparelho de direção e assegurando a acumulação regular das experiências. (Cf. GRAMSCI, 2001, p. 1634 e NERES, 2012, p. 171) No entanto, para executar sua tarefa o partido revolucionário necessita contar com uma composição adequada tanto qualitativa quanto quantitativa, entre três conjuntos fundamentais de militantes, quais sejam: um primeiro conjunto que constitui a imensa maioria do partido, a massa de partido, embora não esgote o conjunto da classe que constitui a referencia social do partido, que só se transforma em força política se estiver organizada, disciplinada e dirigida pelo vértice partidário; um segundo conjunto de militantes, que seria seu elemento de coesão principal, formado por dirigentes reconhecidos e legitimados pela massa partidária, que encarna em suas personalidades o
mito aglutinador da concepção de mundo defendida pelo partido, que necessita se transformar em vontade coletiva. É esse segundo estrato que organiza o partido no plano nacional, que unifica e centraliza suas organizações locais e regionais, que atua, segundo Gramsci, como os capitães no exército; o terceiro estrato constitutivo do partido deve articular o primeiro com o segundo, fundindo organicamente a massa de aderentes com a direção partidária, transformando o partido em uma estrutura homogênea e monolítica. A existência desse estrato intermediário entre os dirigentes do partido revolucionário e as massas funciona como antídoto ao processo de degeneração burocrática do partido, degeneração esta que nos soa muito familiar na realidade brasileira recente e atual, e que se encaixa perfeitamente no que Gramsci denomina de centralismo burocrático. Sendo assim, para cumprir sua função revolucionária, o moderno Príncipe necessita ser um partido de quadros e de massa ao mesmo tempo, ou seja, deve ser um partido de vanguarda, com forte inserção nas massas. Sem isso, a tarefa da revolução socialista é inalcançável. Para encerrar, considerando que segundo o próprio Marx a revolução socialista será uma revolução consciente, considero obrigatória a leitura do livro de Geraldo Magella Neres para aqueles que se colocam a favor de uma sociedade cujo valor fundamental seja o homem e não a acumulação e que têm clareza que a mudança necessária na realidade só se dará se houver organização da classe trabalhadora e, para isso, o moderno príncipe é imprescindível. Referências: GRAMSCI, Antonio. Quaderni del cárcere. Edizione critica dell Instituto Gramsci. A cura de Valentino Gerratana. 4v. Turim: Einaudi Tascabili, 2001. NERES, Geraldo Magella. Gramsci e o moderno príncipe : a teoria do partido nos cadernos do cárcere. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.. Política e hegemonia: a interpretação gramsciana de Maquiavel. Curitiba: Ibpex, 2008.