FCOJB 30 ANOS: AMOR À CULTURA RONALDO WERNECK Poeta de plantão e editor de textos da FCOJB Eu tive uma sensação como nunca havia tido antes me confessou Cleonice Berardinelli. Era agosto de 1992, eu estava colhendo depoimentos para um vídeo que realizava sobre o CCBB, o Centro Cultural Banco do Brasil e a hoje centenária Dona Cleo, a professora universitária agora pertencente à Academia Brasileira de Letras, acabara de proferir palestra sobre Fernando Pessoa. Dou aulas há 47 anos, estou acostumada a dar conferências no Brasil e no exterior, mas o que eu nunca vi foi essa insistência em estar, em ficar. Ninguém saiu, ninguém se levantou. Esta atitude cultural que este Centro está criando é uma coisa que eu nunca vi no Brasil. Isso me causa uma satisfação quase enternecedora. Lembrei ainda agora desse episódio, ao iniciar este texto sobre os trinta anos da Fundação Ormeo Junqueira Botelho, que me foi solicitado por sua presidente, Mônica Botelho. Melhor, ao iniciar essas anotações sobre minha participação, minha memória dos anos em que trabalhamos juntos na FOJB. As palavras de Dona Cleo sobre o CCBB cabem como luva no universo, nas atividades culturais a que tive oportunidade de presenciar nas várias dependências formadoras do complexo da Fundação e que sempre me causaram uma satisfação quase enternecedora. Literatura, cinema, arquitetura: a cidade é modernista por vocação, pro/vocações de Cataguases. Oitenta anos após a vanguarda da Revista Verde e o pioneirismo do cinema de Humberto Mauro nos anos 1920, sessenta anos depois da chegada do modernismo às suas ruas nos anos 1940, a vocação cultural de Cataguases continuou impávida, retomada pela Fundação Ormeo Junqueira Botelho em finais do século XX e principalmente no virar do século XXI. Aprazível província antenada no futuro, com irresistível vocação moderna, em Cataguases aquilo que o século XX chamou de vanguarda convive ainda hoje com a perenidade do poema de Ascânio Lopes: Há em ti a delícia da vida que passa porque vale a pena passar,/ que passa sem dar por isso, sem supor que se vai transformando.// Vale a
pena viver em ti./ Nem inquietude./ Nem peso inútil de recordações,/ mas a confiança das coisas que não mudam bruscas,/ nem ficam eternas. Arquitetos, escultores, pintores, paisagistas: nos anos 1940, trazida pelo escritor e industrial Francisco Inácio Peixoto, a nova estética moderna surgia em cada esquina de Cataguases, como se a cidade fosse aos poucos moldada por mãos vanguardistas. Este é o diferencial, os muitos diferenciais desta cidade já em si bem diferente de outras cidades do interior. Uma cidade do exterior mineiro no dizer de um dos muitos poetas cataguasenses, por acaso este (presti)digitador. Seis décadas depois, já no raiar do século XXI, impulsionada pelo empenho visionário de Mônica Botelho, Cataguases retoma sua vocação cultural e volta a se vestir moderna, a novamente se conectar com o futuro por meio de construções, esculturas, monumentos a arte torna a reluzir a céu aberto. No dizer abalizado do atual secretário de Estado da Cultura, Angelo Oswaldo, Cataguases é a cidade-síntese do século XX em Minas Gerais por sua persistência na construção da modernidade. Marco do modernismo no interior do Brasil, não há dúvida. Mas a cidade conserva o encanto, o frescor, a simplicidade da província que nunca quis ser mais do que isso. Daí o seu irresistível fascínio. Após mais de 30 anos de Rio de Janeiro, eu retornei a Cataguases em 1998, trazendo na bagagem um histórico de inúmeros textos jornalísticos voltados em sua maioria para a literatura, o cinema, o teatro, a música, as artes plásticas. Muitos deles produzidos para o CCBB, onde eu atuara como Assessor de Comunicação e Editor de Textos entre os anos 1991 e 1995. Com o devido perdão pelo esnobismo da palavra, foi essa expertise que me levou, ainda em finais dos novecentos, a ser convocado por minha amiga Mônica Botelho que também retornara do Rio e acabara de assumir a presidência da FOJB-Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho para ocupar nessa entidade funções semelhantes àquelas que eu fazia no CCBB. Semelhantes em termos, pois ao contrário do CCCB, que concentra todos os segmentos num só local, a Fundação Ormeo abarca um largo espectro de atividades que se espraiam por vários espaços, não só em sua sede de Cataguases, como nas Usinas Culturais que
seriam logo a seguir criadas. Enquanto o CCBB conquista seu público por contiguidade, ao oferecer arte-cultura num só e atraente espaço, a FOJB já ensaiava outra dinâmica desde seu início, já começava a se expandir por vários locais em Cataguases e localidades outras. Foi a percepção desse espraiamento geográfico que me atraiu, pois a FOJB se multiplicava como se fosse vários CCBBs um desafio que eu tinha pela frente. Meu primeiro texto para a Fundação acabou não acontecendo. No dia 07 de novembro de 1998, a FOJB inaugurou em Cataguases o Café do Museu, ao lado do casarão onde hoje se encontra o Museu Energisa. E no dia seguinte o Anfiteatro Ivan Müller Botelho, um marco na história da Fundação, que iria atrair grande público para as memoráveis apresentações musicais nele realizadas. Na ocasião, foi lançado o livro Papagaio Gaio, de Celina Ferreira. A pedido da Mônica, eu preparei um texto onde analisava alguns dos poemas de Celina, minha amiga de longa data. Uma fala que não houve, atropelada pelas muitas manifestações daquela noite. Difícil listar o extenso rol dos textos institucionais que escrevi a partir de então, em sua maioria estampados no jornal Usina Cultural, publicação graficamente luxuosa, em policromia, que eu editava tendo a Mônica como designer gráfica. Focalizando o calendário de atividades das várias usinas culturais da Fundação, o jornal amparavase em farto material fotográfico, selecionado e diagramado por Henrique Frade. Está ali a história, a trajetória dos muitos feitos dos vários segmentos da FOJB ao longo dos 30 anos de sua existência. De certa forma, está ali também a minha história nessas três últimas décadas. Entre os acontecimentos mais marcantes que presenciei, os projetos de maior destaque sobre os quais escrevi, encontram-se a restauração da Chácara Dona Catarina que funcionou como museu e vitrine de grandes exposições até pouco tempo e a abertura da praça em seu entorno. E também a criação do CTM, o Centro das Tradições Mineiras, hoje denominado Pina, onde se desenvolveu o Projeto Café com Pão Arte ConFusão, um dos mais bem sucedidos planos educacionais da Fundação, com suas oficinas de artes plásticas, dança contemporânea, dança de rua e dança folclórica, aulas de percussão e capoeira, artesanato e teatro. Logo a seguir, o Centro Cultural Humberto Mauro, com suas marcantes mostras
fotográficas, palco de apresentações teatrais, de música e dança contemporânea. E, em seu segundo pavimento, o belo espaço multimídia que abriga o Memorial Humberto Mauro. Os longos anos de pesquisa sobre a vida e obra do cineasta para o Memorial levaram à realização de meu livro sobre Mauro, Kiriyrí Rendáua Toribóca Opé, lançado em 2009. Mas, antes, há que se registrar um dos mais importantes projetos da FOJB. A luz, a língua, o cinema escrevia eu em artigo publicado pela revista de bordo da TAP em 2006: motores do Cineport, o Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa que movimentou as ruas de Cataguases e da Zona da Mata em sua primeira edição ocorrida em junho de 2005. O Festival repercutiu em vários pontos do Estado de Minas, e também em todas as oito nações que formam a CPLP-Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A equipe da Fundação voava para Lisboa e dali para a cidade de Lagos, no Algarve, onde se realizaria com grande êxito a segunda edição do Cineport (sigla óbvia, criada por mim, mas que acabou colando). Nos anos seguintes, as quatro outras edições do Festival foram realizadas em João Pessoa, na Paraíba, área de concessão da Energisa. A partir de 2008, surge o Festival Ver e Fazer Filmes, já em sua 5ª edição, que busca promover uma vivência prática inovadora na criação e produção audiovisual. No ano seguinte, com sede em Cataguases, é criado o Polo Audiovisual da Zona da Mata, iniciativa da FOJB junto com o Instituto Cidade de Cataguases. O Polo encontrou na Energisa uma parceira estratégica interessada no desenvolvimento econômico e cultural da região, disposta a realizar investimentos de longo prazo para concretizar seus objetivos. Na sequência. sequência, várias produções foram e vêm sendo trazidas e desenvolvidas em Cataguases, como se a cidade assumisse de vez sua vocação, seu destino de Catawood, cidadelocação, preconizado por Adhemar Gonzaga em carta a Humberto Mauro nos anos 1920. atividades e é onde funciona também o Espaço Energia, um complexo didático e interativo sobre o uso da energia, voltado principalmente para a comunidade escolar. De novo agosto de 1992. Irmão de Nelson Rodrigues, o artista pernambucano Augusto Rodrigues, criador da Escolinha de Arte do Brasil, falava pausadamente enquanto eu o filmava em close, um ano antes de sua morte: O CCBB abre perspectivas infinitas para a cultura. São portas abertas para manter a imagem viva do Brasil através de eventos
da maior qualidade. Uma equipe fantástica no sentido de mobilizar e trazer aqui para o Centro do Rio tudo quanto há de significativo na cultura brasileira. Uma qualidade excepcional, o que mostra o que o povo pode realizar se se conscientizar da importância da cultura. Augusto Rodrigues para, dá longa tragada e olha fixo para a câmera. Eu o vejo pelo visor, em plano fechado, o semblante sério: Eu perguntei a alguém do Centro porque trabalhava tanto fora de horário e com um esforço enorme. É cachaça mesmo, me falou. Eu diria que não, é amor mesmo. Amor ao trabalho, amor a criar uma atmosfera propícia para que a criatividade seja uma coisa significativa dentro do contexto cultural. Foi esse mesmo esforço coletivo para levar cultura a um grande público que eu voltei a encontrar anos depois na equipe formadora da Fundação Ormeo Junqueira Botelho. Amor ao trabalho, amor à cultura. Amor mesmo. E que sempre me proporcionou uma satisfação quase enternecedora.