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Transcrição:

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AS INDÚSTRIAS PALEOLÍTICAS DA GRUTA DA FIGUEIRA BRAVA (SETÚBAL) CARDOSO, João Luís Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. RAPOSO, Luís Museu Nacional de Arqueologia. 1 - Localização, geologia A gruta da Figueira Brava situa-se na encosta meridional da serra da Arrábida, cerca de 5 m acima do nível da preia-mar. Trata-se de uma diaclase alargada pela acção erosiva das ondas, acção facilitada pela natureza carbonatada da rocha - calcarenilos de idade miocénica - evidenciando marcada erosão cársica, sobreposta a uma intensa acção de abrasão marinha. As suas coordenadas são as seguintes: 38 28' 23" lal. N; 8 59' 04" long. W de Greenwich. Administrativamente, pertence ao concelho de Setúbal, inlegrando-se na área do Parque Natural da Arrábida. Originalmente, antes da consolidação dos depósitos plistocénicos mais perto da entrada, a gruta teria topografia diferente; tratava-se, provavelmente, de uma vasta sala, amplamente aberta sobre o mar, em relação com plataforma de abrasão marinha de 5-8 m. processo erosivo que originou o alargamento da cavidade pode ser actualmente observado no local: o mar escava, 3 a 5 m abaixo da cavidade fóssil, gruta semelhante. 2 - Trabalhos realizados, resultados obtidos A primeira referência à existência de outras grutas com interesse arqueológico nas imediaçõcs da lapa de Santa Margarida, bem conhecida pela romaria anualmente ali efectu ada, deve-se a BREUIL & ZBYSZEWSKI (1945: 326). Porém, a presente jazida manter-se-ia por explorar até à realização de uma intervenção restrita, efectuada por elementos do Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal e do Centro de Arqueologia de Almada, de que resultou a identificação de um conjunto faunístico plistocénico, com hiena das cavernas, associado a uma indústria lfiica, repre- sentada por artefactos então ainda "pouco característicos e numerosos, pelo que a sua atribuição ao Paleolflico médio é muito provisória" (SILVA & SOA RES, 1986: 30,3 1). Um corredor largo e de paredes irregulares comunica com um a grande sala; do lado nascente desta, parte uma galeria, estreita e muito baixa, que comunica com outra sala, ainda não explorada. Foi nesta galeria, nalguns locais originalmente prccncltida até ao tecto por depósitos plistocénicos, que se efectuaram a maior parte dos trabalhos ulteriores, por iniciativa do Centro de Estratigrafia e Paleobiologia da Universidade Nova de Lisboa (CEPUNL), entre 1987 e 1990. A estratigrafia observada em corte longitudinal' (cl ANTUNES & CARDOSO, in ANTUNES, 1990/91, Fig. 1), ao longo do eixo da galeria, com cerca de 5 m de comprimento, é a seguinte, de cima para baixo (CARDOSO, 1993): C I - camada estalagmítica, constituída por leitos sobrepostos, englobando materiais romanos e restos de fauna doméstica, designadamente oveula (0,15 m); C 2 - areias pouco consolidadas, avermelhadas, localmente mais endurecidas pela precipitação do carbonato de cálcio; um exame mais pormenorizado permite diferenciar, de cima para baixo: - areias sollas, correspondendo a remeximentos com materiais modernos, sobretudo ossos de aves marinhas; - depósito pouco remexido, com abundante fauna plistocénica, indústrias líticas e raros fragmentos de ânforas romanas. A sua formação corresponde à deposição de finos leitos, essencialmente arenosos, sub horizontais. Em boa parte, trata-se de areias eóli- 451

JOÃO LUIS CARDOSO, LUIS RAPOSO cas, acumuladas pelo vento contra a parede do fundo da gruta, então exposta (0,80 m); C 3 - camada mais endurecida, amarelo-acinzentada, com fauna escassa, materiais lfticos e restos carbonosos (0,25 m); C 4 - leito escuro, carbonoso, de alguns cenlfmetros de espessura, correspondente à acumulação de restos provenientes de lareiras, existentes dentro da cavidade, mas não identificadas; C 5 - conglomerado de grandes seixos de calcários e de dolomitos jurássicos, por vezes muito alterados e corrofdos, ultrapassando com frequência 0,20 m de diâmetro máximo, assente no substrato miocénico (0,20 m); C 6 - substrato miocénico, constitufdo por calcarenitos de grão mmio a grosseiro. No conjunto, a sucessão descrita não ultrapassa, em qualquer local observado, 1 m de espessura. Uma datação pelo radiocarbono, feita sobre conchas da C 2, deu o seguinte resultado: ICEN 387-30 930, mais ou menos 700 anos BP (ANTUNES et ai., 1989). Além de uma abundante indústria Htica - que será objecto de análise preliminar neste trabalho - foi recolhido importante conjunto faunfstico; deste, apenas os grandes mamfferos foram objecto de estudo completo (CARDOSO, 1993). As espécies mais abundantes, cm 344 restos estudados são: - Cervus elaphus - 34 % - Capra pyrellaica - 22 % - 80S primigellius - 22 % Este espectro faunfstico indica condições climáticas globalmente temperadas (dominância do veado) e a existência de manchas Oorestais dispersas pela planfcie, que então se desenvolveria ao iongo do litoral actual e na área correspondente à embocadura do rio Sado cerca de 60 m abaixo do nfvel do mar actual (ANTUNES, 1990/91: 529) e onde aquela espécie coexistiria com o auroque, ocupando esta os espaços mais abertos. A presença da cabra montês - uma das mais importantes em todas as jazidas wurmianas portuguesas - indica biótopo de altitude, substracto rochoso acidentado e clima mais frio, condições perfeitamente compatíveis com as prevalecentes, na época na serra da Arrábida. Evidencia-se, desta forma, a exploração pelo homem que se abrigou na Figueira Brava, de bi6topos bem diferenciados, como é reforçado por recentes achados de materiais Hticos em plena serra, entre as praias de Galapos e dos Coelhos. Não obstante constituirem um conjunto escasso, são evidentes as analogias com os recolhidos na Figueira Brava, tanto pela tipologia como pelas matérias-primas utili71ldas (ANTUNES et ai., 1992). Enfim, o litoral de então seria também intensamente explorado, co mo indica a abundante fauna malacol6gica recolhida. A presença de alguns restos de grandes predadores, como Pmithera (Ieo) speiaea, Pallthera pardus e, sobretudo, CroCi/ta crocuta spelaea, mostra que a ocupação da gruta pelo homem era descontfnua, alternada com a destes animais. Neste contexto, o achado de três restos atribuídos a neandertalianos na C 2 - um P'vI, um primeiro metacárpico esquerdo e uma primeira falange, compatíveis com um único indivfduo subadulto - poderá ter outra explicação que o canibalismo (A NTUNES, t990/91: 488; ANTUNES & CUNHA, 1992: 681). Por outro lado, tendo a C 2 sido formada por materiais carreados, embora de curta distância, é ainda de admitir que tais restos provenham de sepultura destrufda, situada mais no interior da cavidade. Seja como for, a presença humana é nftida, como demonstra a abundante indústria Htica, de cerca de 2500 artefactos, que passaremos a caracterizar. 2 - A indústria lítica 2,1 - As matérias-primas: sua distribuição pelas grandes categorias de artefactos. Aspectos tecnológicos No Quadro 1 apresenta-se a distribuição das matérias-primas pelos três grupos principais de artefactos reconhecidos: produtos de debitagem, núcleos e utensílios. Verifica-se que o quartzo domina largamente em qualquer daqueles grupos. Duas conclusões ressaltam: - a presença máxima do quartzo verifica-se ao nfvel das esqufrolas, seguindo-se as lascas iniciais e de descorticamento, comprovando o talhe do quartzo no local da jazida; 452

AS INDÚSTRIAS paleolíncas DA GRUTA DA figueira BRAVA (SETÚBAl) - por outro lado, onde a menor percentagem do quartzo se observa é nas lascas de preparação e nas lascas levallois; tal facto indica a predominãncia de matérias-primas de melhor qualidade em artefactos mais elaborados. A menor representação de núcleos e utensoios de rochas não quartzos as. indicará que a sua transformação final e ullerior preparação de utensflios seria efectuada fora da gruta. As matérias-primas indicam aprovisionamento em diversos locais: o quartzo, sob a forma de seixos mal rolados, abunda nas rochas detríticas do Jurássico superior, que ocupam parte da serra da Arrábida; ulteriores acções de remobilização, explicam a sua ocorrência em depósitos terciários da mesma região. Os afloramentos miocénicos do local da jazida não integram elementos detrflicos de tão grandes dimensões, pelo que a sua presença no arqueossítio só se poderá explicar através de procura pelo homem. Por maioria de razão, o mesmo sucederá com outras rochas, mais raras: quartzitos e rochas jaspóides ou porfiróides terão a mesma origem dos seixos quartzosos. enquanto que as rochas siliciosas finas poderão também provir de teito intercalado nas bancadas de calcários jurássicos, observadas tanto na Serra de São Lufs como mais a Oeste, perto de Santana. G. Manupella, geólogo dos Serviços Geológicos de Portugal, confirma a semelhança das rochas siliciosas finas presentes na Figueira Grava, com as caracterfsticas petrográficas deste leito silicioso. Os calcários ou calcários dolomflicos teriam sido recolhidos sob a forma de seixos rolados ao longo da antiga orla litoral. a menos que provenham. também. dos depósitos detríticos que forneceram as rochas antes referidas. Em resumo. a análise das matérias-primas indica um aprov isionamento de âmbito regional. dominado por seixos de quartzo preferencialmente talhados na gruta; o quarlzilo. as rochas siliciosas finas e as rochas jaspóides e porfiróides. são compatíveis com a mesma origem; a sua escassez reflecte a composição dos conglomerados originais. mas a raridade rclativa de esqufrolas e de lascas iniciais e de descorticamento face à de lascas mais elaboradas sugere que estas chegavam à gruta já acabadas ou seja. eram objecto de um tratamento prévio. como é. sobretudo. notório. nas rochas siliciosas finas e nas rochas jaspóides e porfiróides e menos nos quartzitos. Por último. os calcários e calcários dolomíticos. também não disponfveis no local. foram usados. muito raramente. através de lascas e utensflios acabados. obtidos de blocos mal rolados. talilados na gruta. A grande quantidade de esquírolas de quartzo. sobre-representadas relativamente às restantes se. por um lado. invoca o talhe local do quartzo. deverá ser. ao menos em parte. consequência das caracterfsticas intrínsecas deste material. que é muito quebradiço. A sua má qualidade. inviabilizando o prosseguimento da cadeia operatória no talhe dos núcleos. terá condicionado a obtenção de peças mais elaboradas. conduzindo à obtenção de tecnologias mais expeditivaso Trata-se, enfim, de um bom exemplo de condicionalismo imposto pela natureza e propriedades intrfnsecas da matéria-prima às próprias características da utensilagem produzida. Assim se poderia também explicar a relativa abundância de lascas mais elaboradas de outras rochas de melhor qualidade - sem necessidade de recorrer à explicação de talhe noutro local - se um estudo dos talões e dos núcleos (ver 2.2.1) não tivesse sido também efectuado (ver Quadro I). Com efeito, comparando a tipologia dos talões com as matérias-primas. verifica-se que as rochas siliciosas finas e as rochas jaspóides e porfiróides estão melhor representadas em lascas de talões mais elaborados (não-corticais), reforçando, assim, a hipótese de um talhe alóctone. Por úllimo. um comentário sobre as lascas levallois. que correspondem ao máximo no conjunto dos artefactos não quarlzosos (mais de 20 %). A explicação é id ~ ntica à anteriomlente apresentada, considerando as limitações do talhe do quartzo, de onde era difícil obter este tipo de.lascas, ao contrário das restantes matérias-primas. Dentre estas, sobressai o quartzito, não por ser mais propfcio ao talhe que as rochas siliciosas finas, os jaspes ou os pórfiros, mas tão-somente por ocorrer em seixos mais volumosos. adequados à preparação deste tipo de lascas. 2.2 - Aspectos tipológicos 2.2.1 - Os núcleos No estudo dos núcleos, utilizámos a tipologia de BORDES (1%1), como consta do Quadro l. Nele, os 453

JOÃO luis CARDOSO, luis RAPOSO Quadro I - Gruta da Figueira Brava distribuição dos artefactos Quartzo Quartzito Siliciosas JliSpÓides Calcárias DEBITAGEH Esquirolas 1377 15 7 8 3 Lascas simples iniciais 89 (2) 4 (O) 1 (O) 1 (O) 4 (O) de descorticamento talão cortical 888 (87) 26 (1) 10 (1) 1 (O) 8 (}) talão liso 40 (16) 4 (1) O (2) O (1) 3 (O) talão diedro 4 (2) O (O) 1 (O) O (O) O (O) talfl:o facetado 27 (12) O (O) O (O) 1 (O) O (O) talão punctiforme 32 (11) 3 (1) O (O) O (O) O (O) talfl:o irreconhec. 55 (42) O (3) O (2) O (O) O (O) de preparac. taltio liso 66 (24) 12 (2) 16 (6) 13 (O) 6 (O) taltio diedro 27 (3) O (1) 10 (1) 4 (O) 1 (O) talfl:o facetado 55 (35) 11 (O) 21 (4) O (O) O (O) talão punctiforme 47 (18) 2 (O) 12 (2) 2 (O) 3 (O) taltio irreconhec. 408 (51) 6 (2) 48 (3) 13 (O) 21 (O) Lascas levai lois centripetas 13 (16) 3 (1) 2 (O) 1 (O) 1 (O) apontedas 2 (1) 1 (O) 1 (O) 1 (O) O (O) lamelares 1 (O) O (O) O (O) 1 (O) O (O) NOCl.OOS Levallois 6 2 3 O O Discóides 1 66 1 O O 1 Disc6ides 2 34 O O O O Globulosos 28 1 1 O 2 Piramidais 3 O O O O Diversos 15 O O 1 O Informes 42 2 O O O FrBgllentos 1 101 O 4 4 O Fragmentos 2 23 2 O O O UTENSíLIOS Raspadores simples rectos 1 16 3 4 O 2 simples convexos 2 61 1 2 O O simples côncavos 3 10 O 1 O O duplos 4 16 1 1 O O convergentes 5 20 O O O O transversais 6 9 O 2 O O sobre face plana 7 17 2 O 1 O de ret. abrupto 6 10 O O O O de ret. alterno 9 11 O O O O de gume dentic. 10 13 O O O O Buris e oot. 11 3 O O O O Furedores e out. 12 34 O O O O Facas de dorso 13 3 O O O O Entalhes 14 17 3 O O O Oenticulados 15 52 O 8 O 1 Lascas retocadas 16 27 1 3 O O Seixos talhados 17 O 1 O O 1 Nota - Na categoria de DEBITAGEM, os números entre parêntesis referem-se aos suportes utilizados no fabrico de utensoios 454

AS INDÚSTRIAS PALEOlÍTICAS DA GRUTA DA FIGUEIRA BRAVA (SETÚBAL) núcleos discóides I reportam-se aos exemplares com reverso de preparação total ou parcial; os núcleos discóides 2 são aqueles cujo reverso é totalmente ocupado pelo córtex (calotes de seixo). Os fragmentos 1 e 2 referem-se à qu antidade da massa inicial do nú cleo conservada: respectivamente, mais ou menos de 50%. No conjunto, os núcleos levallois ocupam um lugar secundário, tal como os piramidais ou bipiramidais. O maior conjunto corresponde aos núcleos discóides e, dentro destes, aos com preparação total ou parcial, denotando a clara integração desta indústria no Paleolítico mmio. A distribuição por matérias-primas denuncia o predomínio do quartzo, de que são feitos mais de 90% dos núclcos. Das restantes, que jamais atingem 3%, a mais abundante é o quartzilo, donde seriam obtidas a maioria das lascas levallois, como já referimos. Co nsiderando o es pectro tipológico de cada uma das matérias-primas, é interessante assinalar que os núcleos ocorrem em qu antidades id ~ nti c a s no quartzo e no quartzito (8%), o mesmo acontecendo quanto às rochas siliciosas finas e às rochas jaspóides e poiiiróides. embora em menor percentagem (4%). Tal faclo reforça a conclusão de tais matérias-primas serem objecto de talhe fora da gruta. Quanto aos calcários, a elevada percentagem obtida (II %), está relacionada com a ex i s t ~ n c i a desta matéria-prima no litoral adjacente à gruta, onde seria talhada, sob a forma de seixos. 2.2.2 - Os utensilios Tal como as categorias de artefactos já analisadas (esquírolas, lascas e núcleos), os utensílios revelam uma predominância notória do quartzo (90%, correspondendo a 319 exemplares). A distribuição por outras matérias-primas indica maioria das rochas siliciosas fi nas (21 exemplares), seguidas de longe dos quartzitos (12 exemplares); os calcários são muito escassos (4 exemplares) e as rochas jaspóides ou porfiróides apenas vestigiais (I exemplar). A distribuição dos utensílios dentro de cada conjunto petrográfico, mostra que ocorrem em percentagens análogas no quartzo e no quartzito (8 e 9%), sendo idenlicas às dos núcleos. Já o mesmo não sucede nas rochas siliciosas fin as, em que se nota uma desproporção entre a percentagem de utensflios (1 2%) e a dos respecti vos núclcos. Tais factos confi rmam que, ao contrário das duas primeiras categorias, os instrumentos de rochas silieiosas fin as seriam essencialmente alóctones. Quanto às rochas jaspóides e porfiróides e aos calcários, a pouca representatividade destes conjuntos toma-os inconclusivos. Relativamente à tecnologia de obtenção de lascas para utensílio s, é interessa nte de notar que, enquanto no quartzo e no quartzito, predominam as lascas de descorticamento sobre as de preparação, nas rochas siliciosas finas é notória a predominância das segundas (16 exemplares contra 5). No conjunto dos não quartzosos, o facto dos utensflios estarem representados em menor percentagem que as lascas de preparação e levallois, de onde seriam obtidos, sugere que a sua utilização se fazia, essencialmente, fora da gruta, o que parece lógico, atendendo à franca exploração dos recursos naturais da área envolvente, pelos ocupantes da gruta. O estudo dos utensfli os baseou-se na lista de BORDES (1 96 1), com algumas adaptaçõcs e simplificações (Quadro I). Assim, os números 1 a 10 evidenciam a importância dos raspadores, que constitu em 57% da utensilagem, os números II e 12 representam os buris e bicos perfu rantes (13%), os números 14 e J5 denliculados e ent alhes, qu e ascendem a 23 %, o número 16 as lascas retocadas ou com indícios de utilização e, por último, o número 17, os seixos talhados, que não atingem 1%. No conjunto, o grupo dos raspadores, denliculados e entalhes, atingem 4/5 da totalidade dos utensnios, constituindo indicador seguro da inclusão desta indústria no Paleolftico médio. 3 - Conclusões O estudo preliminar da indústria lftica recolhida na gruta da Figueira Brava permitiu as seguintes concl usões, a desenvolver ulteriormente: I - Trata-se de uma indú stria de ocasião, expedita, sem artefactos de grande recorte tipológico e pouco elaborados, sobretudo devido à má qualidade das matérias-primas disponíveis. 2 - É predominante o uso do quartzo, sob a forma de pequenos seixos, recolhidos em conglomerados do Jurássico superior da Serra da Arrábida, Ou terciários. A raridade de outros tipos petrogáficos, como as rochas siliciosas finas, os jaspcs e os póiiiros, ocorrentes lambém nos mesmos anoramentos, renectem, essencialmente, a sua escassez nos próprios depós itos 455

JOÃO luis CARDOSO, luis RAPOSO onde foram procurados. Algumas rochas siliciosas finas poderiam ser recolhidas em finos leitos interestralificados em calcários jurássicos da Serra de São Luís. Por úllimo. os calcários seriam. sobretudo. recolhidos. em cascalheiras do litoral adjacente. como ainda actualmente se observa. 3 - Comprovou-se o talhe local do quartzo bem como do calcário; as matérias-primas de melhor qualidade. designadamente as rochas siliciosas finas. seriam. ao contrário. preparadas essencialmente fora do habitat; aqui eram. apenas. transformadas em diversos utensoios. A sua relativa escassez sugere ulilização em actividades exteriores à gruta (caça e recolecção). tão bem documentadas pelos materiais exumados. 4 - O talhe levallois está presente. tanto em núcleos como em produtos de debitagem e utensflios (com especial incidência nestes. a demonstrar a importância atribuída a tais suportes). A sua fraca expressão compreende-se no quartzo. em consequência das próprias limitações do material e nos outros tipos petrogáficos em resu liado da pequenez das massas iniciais. pouco propícias à aplicação desta técnica. com excepção do quarlzito. que se encontra disponível em seixos mais volumosos. 5 - Nos utensoios. predominam os raspadores - e. nestes. os simples convexos - seguidos dos denticulados e entalhes. A distribuição dos utensflios no universo de cada tipo petrográfico. comprovou a presença de utensílios al6ctones de rochas siliciosas finas. facto que foi reforçado pela desproporção da relação núcleos/utensílios observada entre o quartzo e as referidas rochas. 6 - No conjunto. a indústria Iflica revela características homogéneas. integrando-se claramente nos conjuntos do PaleoHtico médio portugueses. especialmente de grutas. infelizmente ainda muito deficientemente conhecidos. A menor diversificação que se evidencia. face ao conjunto da Gruta Nova da Columbeira - o mais importante dos reconhecidos até ao presente no nosso território - poderá explicar-se por condicionantes impostas pela qualidade das matérias-primas disponíveis em cada uma das jazidas. ANTUNES. M. T. & CUNHA. A. S. (1992) - "Neanderthalian remains from Figueira Brava cave. Portugal". Geobios. 25 (5). pp. 681-692. ANTUNES. M. T.; CABRAL. J. M. P.; CARDOSO. J. L.; PAIS. J. & SOARES. A. M. M. (1989) -"PaleolÍlÍco médio e superior em Portugal: datas 14 C. estado actual dos conhecimentos. síntese e discussão". Ciências da Terra (UNL). 10. pp. 127-138. ANTUNES. M. T.; CARDOSO. J. L.; KULLBERG. 1. C. & LEGOlNHA. P. (1992) - "PaleoHtico médio em Galapos (Arrábida)". Ciências da Terra (UNL). II. pp. 7-16. BORDES. F. (1961) - Typologie dll PaléolillJiqlle ancien el moyen. 2 vol. Publ. Insl. Préhisl. Univ. Bordeaux. Delmas. Bordeaux. CARDOSO. J. L. (1993) - COlllribllição para o conhecimelllo dos grandes mamlferos do Plislocénico sllperior de Porlllgal (dissertação de doutoramento apresentada à Universidade Nova de Lisboa). Câmara Municipal de Oeiras. SILVA. C.T. & SOARES. J. (1986) - "Arqueologia da Arrábida". Coi. Parqlles Na/llrais. 15. Serviço Nacional de Parques. Reservas e Conservação da Natureza, Lisboa. Bibliografia ANTUNES. M. T. (1990/91) - "O homem da gruta da Figueira Brava (ca. 30 000 BP). Contexto ecológico. alimentação. canibalismo". Mem. Acad. Ciênc. Lisboa (Classe de Ciências). 31. pp. 487-536. 456