DIFERENÇAS DE GÊNERO E PARTICIPAÇÃO FEMININA NA CIÊNCIA BRASILEIRA: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

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DIFERENÇAS DE GÊNERO E PARTICIPAÇÃO FEMININA NA CIÊNCIA BRASILEIRA: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA GENDER DIFFERENCES AND FEMALE PARTICIPATION IN BRAZILIAN SCIENCE: A BIBLIOGRAPHIC REVIEW NETO, Cláudio Luiz de França Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco; claudiolfneto@gmail.com Resumo A participação feminina na ciência brasileira cresceu consideravelmente nas últimas décadas, mas o progresso da mulher na carreira científica ainda é limitado. O presente estudo tem por objetivo analisar as diferenças de gênero existentes no meio científico e compreender o verdadeiro espaço da mulher, bem como suas dificuldades e perspectivas, na ciência brasileira. Para isso, realizou-se um uma revisão bibliográfica a partir da base de dados SciELO e do site de pesquisas Google Acadêmico, além de consultas ao Portal de Periódicos da CAPES. Após a revisão, concluiu-se que, devido à existência de estereótipos de gênero e mecanismos de segregação social, a participação feminina ainda é menor em áreas tradicionalmente ocupadas por homens, assim como em posições hierarquicamente elevadas. Palavras-chave: Mulher na ciência. Estudos de gênero. Ciência brasileira. Participação feminina. Abstract Women s participation in Brazilian science has grown considerably in recent decades, but the progress of women in scientific career is still limited. This study aims to analyze existing gender differences in scientific circles and understand the real space of women, as well as their problems and prospects, in Brazilian science. For such purpose, a bibliographic review from the SciELO database, Google Scholar research site, and CAPES Portal was carried out. After the review, it was concluded that, because of the existence of gender stereotypes and mechanisms of social segregation, female participation is still low in areas traditionally occupied by men as well as in hierarchically high positions. Keywords: Women in science. Gender studies. Brazilian science. Female participation. 1 Introdução O acesso ao conhecimento e à produção científica no Brasil, à semelhança de outros países, é um privilégio histórico dos homens. A participação feminina no ambiente 7

acadêmico brasileiro iniciou-se tardiamente, quando, no final do século XIX, foi permitido às mulheres o ingresso no ensino superior, e permaneceu tímida e inexpressiva até as décadas de 1970 e 1980. A partir desse período, que coincide com o fortalecimento da segunda onda do movimento feminista no país, observou-se um crescimento considerável do número de mulheres, tanto estudantes como docentes, nas universidades brasileiras. Esse aumento da presença feminina no ensino superior, confirmado nas décadas seguintes, é atualmente refletido em números. Segundo dados do Censo da Educação Superior 2013, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), as mulheres representam 54, 7% dos ingressantes, 55,5% dos estudantes matriculados e 59,2% dos concluintes do ensino superior brasileiro. Como consequência do aumento do número de mulheres nas universidades, é possível observar, também, o crescimento percentual das mulheres entre os cientistas brasileiros. Segundo levantamentos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), as mulheres, que em 1995 representavam apenas 39% dos pesquisadores cadastrados, correspondiam a 50% dos cientistas em 2010. Contudo, o crescimento da participação feminina na produção científica brasileira não é homogêneo. Os dados do CNPq indicam que ainda existe uma forte segmentação por gênero nas diferentes áreas do conhecimento. Nas áreas de engenharia e computação, por exemplo, as mulheres representavam, em 2011, apenas 34% dos bolsistas do CNPq. Outro parâmetro que indica as diferenças de gênero no âmbito científico brasileiro é o número de líderes de grupos de pesquisa: os homens constituem 55% dos pesquisadores em condição de liderança. O objetivo deste estudo é apresentar uma revisão bibliográfica das produções nacionais acerca da participação feminina nos ambientes acadêmico, científico e tecnológico na atualidade, abordando as diferenças de gênero e analisando as perspectivas e desafios enfrentados pelas mulheres nessas áreas. 2 Fundamentação Teórica A produção científica foi, por muitos anos, predominantemente masculina (HAYASHI et al, 2007). Recentemente, devido aos esforços realizados, as mulheres passaram a ocupar maior espaço no ambiente de pesquisa cientifica e tecnológica, constituindo larga 8

maioria dos estudantes universitários no Brasil há mais de uma década (HAYASHI et al, 2007; OLINTO, 2011). No entanto, apesar de participarem ativamente e de dominarem numericamente vários campos da ciência, as chances de sucesso e reconhecimento para as mulheres na carreira científica ainda são reduzidas (HAYASHI et al, 2007; LETA, 2007). As conquistas recentes, apesar de importantes, são muito limitadas, e as mulheres ainda enfrentam dificuldades para ocupar postos acadêmicos de maior expressão (HAYASHI et al, 2007; OLINTO, 2011). Uma hipótese comumente difundida atribui essas dificuldades a diferenças biológicas, cognitivas e de socialização entre homens e mulheres. Segundo essa perspectiva, as mulheres não possuem controle emocional, capacidade de tomar decisões objetivas ou agressividade suficientes para obter sucesso na carreira científica (SOARES, 2001). Soares (2001) refuta essa hipótese, afirmando que as diferenças biológicas existem, apesar de resultados a respeito de sua influência sobre a capacidade de aprendizado serem inconclusivos, mas que os aspectos socioculturais são fatores determinantes para o desempenho da mulher no meio científico. 3 Metodologia Trata-se de um estudo de revisão bibliográfica, baseado em exame da literatura científica existente sobre o tema. Para isso, foram utilizados a base de dados bibliográficos SciELO e o site de buscas Google Acadêmico, além de uma leitura não sistemática de artigos disponíveis no Portal de Periódicos da CAPES. Os termos de pesquisa utilizados foram gênero, mulher, ciência e Brasil. Ao todo, foram encontradas 39 publicações sobre o tema. Após leitura flutuante, foram selecionadas 15 publicações, das quais 7 foram utilizadas na elaboração do estudo, através de uma leitura crítica e sistemática. Todo o material selecionado foi publicado em língua portuguesa, entre 2001 e 2012. Também foram consultados, como fontes complementares, sites, jornais e revistas. Após a escolha do material, seguiram-se as atividades de identificação, compilação, fichamento, análise e interpretação dos resultados. 9

4 Análise dos Dados e Resultados De acordo com Olinto (2001), dois mecanismos são geralmente identificados para descrever as barreiras sociais enfrentadas pelas mulheres na carreira científica: a segregação horizontal e a segregação vertical. Por meio da segregação horizontal, as mulheres são levadas a fazer escolhas marcadamente diferentes das dos homens, tendendo a se avaliarem como mais aptas em determinadas áreas. Influenciadas principalmente pela família e pela escola, as mulheres, desde jovens, escolhem carreiras consideradas mais adequadas para elas, e que, em geral, são menos valorizadas no mercado de trabalho. Associado a esse fenômeno está um mecanismo ainda mais sutil, a segregação vertical, que faz com que as mulheres se mantenham em postos de subordinação e que não progridam em suas carreiras, facilitando a ascensão profissional dos homens. Evidências desses mecanismos de segregação podem ser observadas a partir dos indicadores do relatório Education at Glance 2012, da Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD), que compara resultados educacionais de meninas e meninos do Brasil e de outros países. Os resultados desse relatório reforçam pesquisas recentes que indicam que meninos e meninas, em geral, apresentam desempenho escolar equivalente, embora as meninas sejam um pouco melhores em testes de leitura e os meninos, em testes de matemática. O mesmo relatório da OECD aponta que, entre os estudantes de 15 anos de vários países, incluindo o Brasil, as meninas mostram-se mais ambiciosas e almejam para si profissões de maior prestígio, além de indicarem interesse na carreira científica em maior proporção. Esses resultados demonstram que o desempenho na carreira acadêmica não está relacionado a habilidades inerentes a homens ou mulheres, mas aos mecanismos de segregação que atuam em fases posteriores da vida dessas mulheres. A segregação vertical se manifesta de muitas outras formas no ambiente científico. A equivalência numérica ou até mesmo a predominância feminina observada no campo da ciência brasileira, por exemplo, tende a diminuir conforme se avança nos postos acadêmicos. Uma dinâmica sugerida em algumas pesquisas para explicar a dificuldade das mulheres para alcançar cargos de destaque aponta o fato de que mulheres precisam apresentar mais credenciais para obter o mesmo benefício, como promoção, bolsa de pesquisa ou outra vantagem acadêmica, em situações em que são submetidas a avaliações por seus pares (OLINTO, 2011). 10

Essa dificuldade é evidenciada na distribuição por gênero dos níveis de bolsas de pesquisa concedidas pelo CNPq. A proporção de mulheres bolsistas cresce nas diferentes áreas, mas diminui na medida em que cresce o nível hierárquico da bolsa (LETA, 2003; YANNOULAS, 2007). Em 2011, as mulheres constituíam 56% dos bolsistas de iniciação científica, de menor importância hierárquica, valor muito próximo do percentual de mulheres em cursos de graduação. Conforme o nível das bolsas aumenta, porém, a quantidade percentual de mulheres diminui. No mesmo ano, apenas 35% das bolsas de produtividade em pesquisa, de maior nível hierárquico, eram concedidas a mulheres (OLINTO, 2011). Em suma, as mulheres passam pelas primeiras etapas da formação científica, mas se perdem ao longo desse caminho, ou simplesmente não recebem reconhecimento de seus pares através da concessão de bolsas (LETA, 2003). O baixo número de mulheres recebendo bolsas de produtividade em pesquisa sugere, de acordo com Olinto (2001), a atuação de mecanismos de segregação e hábitos culturais enraizados que atrapalham o crescimento das mulheres pesquisadoras, uma vez que os homens não são, necessariamente, mais produtivos. Embora apresentem maior produtividade que as mulheres na fase inicial da carreira, a produtividade das mulheres toma fôlego maior nas fases posteriores. Um estudo realizado por Batista e Leta (2009 apud OLINTO, 2011) mostra que, entre os pesquisadores com mais de 50 trabalhos publicados, as mulheres apresentam produção acadêmica com maior impacto, medido pelo número de citações, do que a dos homens, apesar do número médio de publicações ser inferior. O sinal mais claro de discriminação vertical, porém, é evidenciado através da análise da distribuição por gênero entre os próprios bolsistas de produtividade em pesquisa. Quanto maior a hierarquia das bolsas de produtividade, menor a participação feminina: as mulheres recebiam, em 2011, pouco mais de 20% das bolsas de produtividade 1A, mais alto nível de bolsas concedidas aos cientistas do país (OLINTO, 2011). Também é possível observar que as diferenças salariais entre homens e mulheres tendem a aumentar justamente em postos hierárquicos mais altos. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2007, pouco mais de 20% das mulheres na carreira científica recebem mais que 10 salários mínimos, enquanto mais de 40% dos homens estão nessa faixa de rendimentos (OLINTO, 2011) Além desses mecanismos de segregação, muitos outros fatores constituem dificuldades para a mulher na ciência. Um deles é a dupla jornada de trabalho, uma vez que os trabalhos domésticos e a criação de filhos na sociedade brasileira ainda são funções 11

associadas à mulher. A pouca disponibilidade para viagens, decorrente da responsabilidade com as funções domésticas e a visão da gravidez como um fator prejudicial para as pesquisadoras, bem como estereótipos sexuais, discriminação e o pouco reconhecimento recebido pelo trabalho, também são desafios que a cientista brasileira enfrenta no meio acadêmico (SOARES, 2001; HAYASHI et al, 2007). Os mecanismos de segregação horizontal e vertical também limitam homens e mulheres a nichos acadêmicos (OLINTO, 2011). O aumento do número de mulheres no ensino superior, vivenciado nas últimas décadas, não modificou de forma considerável suas áreas de escolha. Isso significa que mulheres e homens passaram a ocupar o mesmo espaço universitário, mas realizam trajetórias educativas diferenciadas, com saídas profissionais diversificadas e percursos ocupacionais heterogêneos (YANNOULAS, 2007). Homens e mulheres, portanto, apresentam participação diferenciada entre as áreas do conhecimento. A maior taxa de participação masculina ocorre nas áreas de ciências exatas, agrárias, engenharia e computação, enquanto as mulheres participam mais das ciências sociais, humanas, biológicas e saúde (MELO et al, 2004). De acordo com os dados do PNAD 2007, as mulheres representavam 59,4% dos professores e 74,7% dos técnicos das ciências da saúde, mas apenas 18,5% dos profissionais e 11,5% dos técnicos das áreas de física, matemática e engenharias, as chamadas ciências duras (OLINTO, 2011). Dados do levantamento da CNPq, em 2011, também confirmam a forte segregação de gênero existentes nas áreas cientificas: as mulheres representavam, nesse ano, 61% dos bolsistas das ciências biológicas e 68% dos bolsistas das ciências da saúde, enquanto os homens representavam 64% dos bolsistas das ciências exatas e da terra e 66% dos bolsistas de engenharia e computação (OLINTO, 2011). A principal causa dessa segregação é o pensamento matemático ainda ser profundamente associado ao homem (CRUZ, 2007). De acordo com Leslie et al (1998 apud SOARES, 2001), isso resulta em desinteresse feminino em ciências e matemática durante a adolescência, quando as bases do conhecimento dessas áreas são fundamentadas. Nessa fase, meninas, em geral, subestimam suas habilidades, enquanto os meninos a superestimam. No entanto, essa situação tem sido gradualmente revertida, através de medidas que incentivam a formação de jovens pesquisadoras e o ensino de matemática e áreas correlatas a meninas em idade precoce (SOARES, 2001). Tendo em vista os dados levantados, é possível perceber que a realidade das mulheres na ciência brasileira é, hoje, muito diferente da de décadas atrás. Nos últimos 12

anos, as mulheres conquistaram maior espaço na carreira científica e já representam a maioria da força produtora de conhecimento do país. No entanto, apesar das mudanças vivenciadas, as mulheres ainda enfrentam muitas dificuldades no exercício da ciência e convivem diariamente com os desafios de se consolidarem no meio acadêmico, um ambiente que, por séculos, foi exclusivamente masculino. A ideia, tão antiga quanto infundada, de que as mulheres são naturalmente menos preparadas do que os homens para a carreira científica é uma das principais barreiras que impedem o crescimento da participação feminina na ciência. Dessa forma, as mulheres são levadas a acreditar, desde muito jovens, que não possuem as aptidões necessárias para obter êxito na carreira científica ou para seguir determinadas áreas, como as ciências exatas e a engenharia. Dessa forma, embora as mulheres tenham ampliado sua participação nos mais diversos campos do conhecimento científico nas últimas décadas, a ciência continua extremamente segmentada por gênero. As áreas mais associadas ao pensamento matemático ainda são predominantemente masculinas, enquanto as mulheres dominam numericamente as áreas mais associadas à subjetividade característica supostamente feminina, como as ciências humanas e da saúde. Outro aspecto interessante é o fato de que a participação feminina em postos de liderança no meio acadêmico é muito inferior à masculina. Apesar de as mulheres, em geral, apresentarem indicadores de produtividade equivalentes aos dos homens, sua participação percentual diminui na medida em que se aumenta o nível hierárquico das bolsas de pesquisa. A discrepância entre o grande percentual de mulheres no meio acadêmico e o baixo percentual de mulheres em altos níveis hierárquicos nesse meio evidencia a existência de mecanismos de segregação que prejudicam a carreira das mulheres Além disso, as mulheres sofrem com diferenças salariais e falta de reconhecimento por parte de seus pares, além de enfrentarem discriminação, estereótipos de gênero e as dificuldades de uma dupla jornada de trabalho. 5 Considerações Finais A ciência brasileira vivenciou, nas últimas décadas, um grande aumento da participação feminina, mas muitas diferenças de gênero ainda precisam ser superadas, tais como as grandes dificuldades enfrentadas pelas mulheres para adentrarem as áreas da 13

ciência associadas ao pensamento masculino, como as ciências exatas e a engenharia, e para alcançarem posições hierarquicamente superiores, através do reconhecimento de seu trabalho. Apesar da importância e da atualidade desse tema na sociedade brasileira, poucos estudos atualmente enfocam a discussão das relações de gênero na ciência, fato que reforça a existência de estereótipos de gênero nos ambientes escolar e familiar e a segregação da mulher no próprio ambiente científico, o que representa um grande desperdício de recursos humanos qualificados que poderiam contribuir de forma mais significativa para o crescimento da ciência e o desenvolvimento do país. No entanto, algumas iniciativas, como o Prêmio Para Mulheres na Ciência, concedido pela L Oréal Brasil em parceria com a Associação Brasileira de Ciências (ABC) e com a UNESCO, e o Programa Mulher na Ciência, do governo federal, têm incentivado o desenvolvimento feminino na produção científica brasileira. A partir de iniciativas como essas, além de uma profunda mudança no sistema educacional brasileiro, espera-se que nas próximas décadas a participação das mulheres na ciência continue crescendo, e que o meio acadêmico se torne um local favorável à colaboração entre homens e mulheres e ao exercício da paridade de gênero. Agradecimentos Ao amigo Víctor de Moraes Chagas, pela valiosa colaboração, e à professora Verônica Maria Rodrigues da Silva, pela gentil orientação. Referências BRASIL. Ministério da Educação. Censo da Educação Superior 2013. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/apresentacao/2014/coleti va_censo_superior_2013.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2015. CNPq. Número de mulheres cientistas já iguala o de homens. Disponível em: <http://www.cnpq.br/web/guest/noticiasviews/- /journal_content/56_instance_a6mo/10157/905361>. Acesso em: 7 nov. 2015. CRUZ, J. O. Mulher na ciência: representação ou ficção. 2007. 242 f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação)-Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. HAYASHI, M. C. P. I.; CABRERO, R. C.; COSTA, M. P. R.; HAYASHI, C. R. M. Indicadores da participação feminina em ciência e tecnologia. TransInformação, 14

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