DA LETRA MANUAL PARA A LETRA VETOR: UMA ANÁLISE TIPOGRÁFICA NAS OBRAS DOS QUADRINISTAS ADÃO ITURRUSGARAI E MAURICIO DE SOUSA



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ISSN 2358-2138 DA LETRA MANUAL PARA A LETRA VETOR: UMA ANÁLISE TIPOGRÁFICA NAS OBRAS DOS QUADRINISTAS ADÃO ITURRUSGARAI E MAURICIO DE SOUSA Estela Mendes Ribeiro 1 ESPM-SP Prof.Dr. Marcos Corrêa de Mello Felisette 2 ESPM-SP Resumo O objetivo desta pesquisa é investigar como se deu a adaptação do desenho de letras de dois quadrinistas brasileiros para o computador e o impacto disto na consistência gráfica de suas obras. A metodologia envolveu levantamento bibliográfico, o método comparativo de análise e entrevistas. A tipografia nos quadrinhos analisados é elemento de identidade visual e não foi desmerecida durante o processo de adaptação tecnológica. A utilização de fonte e o letreiramento 3 manual não se anulam, mas possuem suas especificidades. Por fim, a confecção de uma fonte implica na retomada da história da tipografia, enquanto o letreiramento manual reforça a continuidade da integração analógica entre texto e imagem. Palavras-chave: desenho de letras; tipografia; traço; quadrinhos; consistência gráfica. Introdução Este artigo é um recorte da pesquisa Da letra manual para a letra vetor: uma análise tipográfica nas obras dos quadrinistas Adão Iturrusgarai e Mauricio de Sousa. Nela, estudamos como se deu a evolução do desenho de letras inserido na história do design gráfico. Isto porque uma história em quadrinhos, como define Will Eisner (2005, p.163), é essencialmente visual. Portanto, todos os elementos reforçam a primeira impressão visual do impresso, posteriormente de sua identidade gráfica (SPIEKERMANN, 2011). 1 Estudante do curso de graduação em Design da ESPM-SP. E-mail: estela.ribeiro@acad.espm.br 2 Professor do curso de graduação em Design da ESPM-SP. E-mail: marcos.mello@espm.br 3 Colocação de palavras nos quadrinhos, podendo ser feito no computador ou a mão. Para maiores detalhes, consultar a obra de GIMENEZ (2008).

2 Os quadrinhos seguiram no desenvolvimento da história gráfica, concomitante ao desenvolvimento tecnológico. Com a Revolução Industrial e posteriormente a mecanização da produção, houve uma expansão na classe dos impressos (jornais e revistas) e logo dos quadrinhos, já que inicialmente não eram produções independentes dos outros meios (GIMENEZ, 2008). Em 1995, o estúdio Comicraft Studio, por exemplo, já elaborava fontes específicas para quadrinhos. A produção passava a ser computadorizada. Com o tempo outros estúdios específicos como Comicraft foram surgindo, como o Blamboot. Porém, o que se nota é que, em pleno século XXI, alguns quadrinistas brasileiros continuam a desenhar suas letras em detrimento do uso de uma fonte. Simultaneamente, temos quadrinistas que fazem o letreiramento manual, mas possuem fontes concebidas para seu uso exclusivo. Portanto, no recorte apresentado neste artigo, buscamos entender como se deu o processo de adaptação do desenho de letras desses artistas gráficos para o computador. Por fim, ressaltamos que os quadrinistas perpetuam uma tradição histórica de se integrar texto e imagem, que poderíamos relacionar com o trabalho dos primeiros capistas brasileiros, com o Art Déco, Art Nouveau, etc. Assim, o trabalho visa contribuir para o fortalecimento da memória gráfica brasileira ao documentar uma produção nacional contemporânea alinhada a uma cultura visual e de identidade gráfica que bebe, ainda que indiretamente, no passado. Metodologia Para que o estudo se realizasse, foram utilizados o levantamento bibliográfico, método comparativo de análise e entrevistas. As fontes bibliográficas abrangeram livros sobre a história do design, da revista, do livro e da tipografia. Aqui, o objetivo foi apresentar o desenvolvimento do desenho de letras inserido no design gráfico, questões acerca da tipografia, um breve histórico da relação texto e imagem em alguns períodos do design e o desenvolvimento dos quadrinhos. Isso para contextualizar o universo em que o desenho de letras se insere. O método comparativo foi aplicado com base em alguns quadrinhos de Adão Iturrusgarai e Mauricio de Sousa, objetivando entender como se deu o uso de

3 suas letras nos quadrinhos e a relação delas na construção da identidade gráfica de suas obras. Por fim, as entrevistas nos forneceram informações importantes para as análises comparativas. Reunimos opiniões de profissionais das áreas que aqui confluimos: quadrinhos, teoria e mercado. Adão Iturrusgarai contribuiu com visões acerca dos quadrinhos e de sua própria obra; Anselmo Gimenez, com uma discussão mais teórica acerca da importância do desenho de letras e seu funcionamento como elemento de identidade visual; Diego Maldonado é sócio de uma type foundry que foi a responsável pela confecção das fontes Adão e Mauricio, abordando a criação de fontes baseadas na escrita do quadrinista e os desafios da adaptação. Dois quadrinistas brasileiros Adão Iturrusgarai (1965) carrega em seu traço influências do underground. Atualmente vive na Argentina e publica na Folha de S. Paulo, revista Fierro e Le Monde Diplomatique (http://adaoiturrusgarai.wordpress.com/oautor/). Com obras publicadas na França, EUA, Alemanha e Argentina, ele não teria condições de prosseguir com o letreiramento manual. Assim, encomendou a Tony de Marco, sócio da Just in Type 4, uma fonte baseada em sua caligrafia. Iturrusgarai sempre desenhou e fez o letreiramento de forma manual. Assim, a opção por uma fonte projetada com base em sua caligrafia é um modo de manter a consistência gráfica de sua obra. No entanto, a fonte foi projetada quando o quadrinista tinha um traço mais regular no desenho, com pintura digital e cores chapadas, e uma caligrafia condizente. Assim, a variedade de letras que empregava era menor do que atualmente. A figura 1 mostra um quadrinho com as características citadas acima: o primeiro com letreiramento manual e o segundo com a fonte. Portanto, a fonte Adão mantinha a essência gráfica do quadrinista no computador. 4 Type foundry brasileira: empresa especializada na elaboração de fontes

4 Figura 1 Caligrafia x Fonte em 2007 Fonte:http://adao.blog.uol.com.br/tiradasemana/arch2007-08-01_2007-08-31.html e http://adao.blog.uol.com.br/arch2007-08-01_2007-08-31.html A figura 2 ilustra as caractetísticas gerais da escrita de Adão: irregularidade nas formas, escrita rápida e inclinações diversas. Além disso, o quadro apresenta dois tipos de peso utilizados pelo quadrinista: regular e bold. Assim, a fonte atende a este requisito, oferecendo as duas versões. Normalmente, o bold resulta de variações e ajustes entre compensação e contraste da versão regular. Porém, quando escrevemos, as letras geradas diferem entre si (NOORDJIZ, 2013) e Adão não tinha a intenção de possuir uma caligrafia padronizada. Assim, nota-se que na fonte o A regular é diferente do A bold. Esta simples variação de forma mantinha a variedade de letras que o quadrinista elaborava manualmente.

5 Figura 2 Comparativo de letras A Fonte: Quadrinhos publicados na internet entre 2007 e 2015 Para estabeler as divergências e semelhanças entre sua escrita e sua fonte, analisaremos como se deu a adaptação da escrita manual para o vetor segundo os seguintes critérios: ductus 5, velocidade e ritmo do traço 6 e coerência formal 7. Estes são conceitos, segundo Meseguer (2014), inerentes a caligrafia e portanto ao design de tipos, já que, no caso, este deriva daquela. Principiando pelo ductus. Para que a adaptação ocorra de modo adequado é necessário que simule a escrita. Um dos meios para tal consiste em manter a sequência de movimentos e caminhos que o quadrinista executa no desenho de suas letras. Assim, parte da coerência formal é mantida: dois movimentos formam a letra (construção 2) e não três (construção 1), visto que não indícios de interrupação no ápice do A. Figura 3 Ductus Em relação ao ritmo, ele é dado pela velocidade da escrita. No caso em análise, a escrita é rápida (figura 4) visto as alternâncias nas formas das letras obtidas. Assim, a fonte mantém um pouco dessa heterogeneidade e espontaneidade geradas pela escrita rápida (MESEGUER, 2014). 5 Trata-se da sequência de movimentos e do percurso que o instrumento faz ao escrever [...] (MESEGUER, 2014, p.36) 6 Conceito relacionado à mudança na espessura do traço em relação à velocidade com a qual o instrumento é utilizado. (MESEGUER, 2014, p.36) 7 [...] estamos nos referindo à relação harmoniosa entre todos os caracteres de uma fonte. Essa harmonia é obtida pela repetição de elementos ou partes comuns como terminais e serifas, bem como pelo tipo de contraste. (MESEGUER, 2014, p.38)

6 Figura 4 Velocidade do traço Em relação a coerência formal, identificamos um gap para a manutenção da consistência gráfica. Embora a fonte tenha coerência interna, ela não se assemelha visualmente a escrita do quadrinista. Isto Adão mesmo diz (entrevista concedida ao projeto): [...]. O Tony já me contatou dizendo que existe um upgrade [...] Acho que se fizesse novamente minha fonte, ela teria diferenças marcantes. Afinal meu desenho mudou. E quando o desenho muda, a fonte também muda. Assim, apresentamos duas decupagens do mesmo quadrinho. Uma com a escrita do quadrinista e outro com a fonte. Utilizando os mesmo critérios de análise, elucidamos por que temos a impressão que a sua atual escrita destoa da fonte. Figura 5 Coerência formal na caligrafia de Adão

7 Figura 6 Coerência formal na fonte Adão Assim, há uma dissonância que não contribui para a consistência gráfica da obra de Iturrusgarai, dissipando uma outra linguagem, ainda que baseada na lógica do seu traço manual. A fonte não se adequa ao que Eisner considera como sendo essencial ao letreiramento: [...] a execução da linha e o estilo da aplicação tentam combinar um senso de personalidade com ingredientes emocionais adequados. (EISNER, 2001, p. 24). O segundo quadrinista escolhido é Mauricio de Sousa que iniciou suas publicações com Bidu em 1959. Em 2009, aniversário de 50 anos de sua personagem, lançou o livro Bidu 50 anos, em que é possível notar a evolução do traço do quadrinista ao longo dos anos. Ao contrário de Adão, Mauricio sempre buscou um letreiramento uniforme, utilizando linha de base, mesma altura para as letras e mínima variação entre elas, adotando os pesos regular e bold. Essa escolha facilita o trabalho do type designer que economiza tempo, ao adaptar algo que, como uma fonte, já buscava ser sistêmico. Fizemos uma decupagem cronológica (através do livro), apresentando algumas características da escrita de Mauricio. Na primeira história publicada do cão Bidu, o espaçamento não é equilibrado e não há coerência formal entre as letras, como na palavra estou,

8 em que o S possui espinha quase horizontal e um eixo que inexiste em letras como o O. Figura 7 Bidu Fonte: SOUSA (2010, p.5) Com o passar do tempo, as letras foram ganhando formas mais arredondadas, e o trabalho com o preto e branco da palavra, assim como o espaçamento, ganhando importância. A inclinação foi sendo eliminada, ainda presente em algumas letras como o M (figura 8). Figura 8 Bidu Fonte: SOUSA (2010, p.12) Mauricio buscou eliminar traços estilísticos de algumas letras, adotou uma linha de base, altura padrão para os caracteres, espaçamento equilibrado, assim como expansão e o trabalho com o positivo e negativo das letras. Na figura 9 nota-se que letras como R e U possuem terminais estilizados, o que é suprimido com o tempo (figura 10), em que o R possui uma perna simples, reta, e o U perde sua serifa insinuada.

9 Figura 9 Decupagem: Bidu anos 80 Fonte: SOUSA (2010, p.31) Figura 10 Decupagem: Bidu anos 80 Fonte: SOUSA (2010, p.47) A figura 11 antecede o período de confecção da fonte. Nela, as características buscadas pelo quadrinista já estão consolidadas. Conforme se percebe, a escrita e fonte (figura 12) são visualmente muito semelhantes.

10 Figura 11 Decupagem: Bidu anos 2000 Fonte: SOUSA (2010, p.124) Figura 12 Fonte Mauricio Fonte: http://turmadamonica.uol.com.br/ Faremos a análise da adaptação do traço manual para o vetor utilizando os mesmo critérios adotados para a análise referente a Adão Iturrusgarai: ductus, velocidade e ritmo do traço e coerência formal. De acordo com a decupagem feita (figura 13), é possível entender que o ductus, o caminho e direção que forma a letra, foi mantido, caso contrário, teríamos uma forma que não se assemelharia ao letreiramento manual. Figura 13 Caligrafia x Fonte Fonte: SOUSA (2010) e http://turmadamonica.uol.com.br/personagem/cebola-jovem/

11 Em relação a velocidade e ritmo do traço, inferimos que Mauricio não fazia a escrita de modo rápido e espontâneo, pois as formas resultantes buscam a homogeneidade, o que não ocorre na escrita rápida. A coerência formal foi mantida. Como já explicitado, o fato do quadrinista optar pela confecção de uma letra regular facilitou o trabalho do type designer. Assim, não há (e nem precisaria) mais de uma opção de desenho por letra na fonte. Porém, quando ampliadas, notam-se pequenas imperfeições no vetor que o tornam muito semelhante à escrita do quadrinista. É relevante dizer que a fonte não apenas é aplicada nos quadrinhos da Turma da Mônica Jovem, como é parte da identidade visual da Mauricio de Sousa Produções. Dadas as análises, traçamos algumas conclusões sobre elas. Fica claro que a fonte Adão carece de update (que já existe) a fim de atender a variedade de letras que o quadrinista emprega, sendo possível programar a fonte para isso. Através de recursos como o OpenType 8, o designer desenvolve algumas letras A, por exemplo, e programa a fonte para que elas sejam dispostas randomicamente quando digitado. O código permite o random, mas como todo random, poderia colocar duas letras iguais subsequentes. A base da consistência gráfica, no caso, é que cada caractere 9 pode ter vários glifos 10. Assim, fica claro que a letra é elemento de identidade gráfica na obra de Adão Iturrusgarai, carregando o estigma de seu individualismo, e não sendo menosprezada no processo de adaptação tecnológica. Afinal, a letra nada mais é do que traço (NOORDJIZ, 2013), mesmo princípio do desenho. Mauricio de Sousa utiliza sua fonte nas revistas, mantendo a consistência gráfica perante qualquer leitor. Sua letra desenvolveu-se juntamente com seu desenho e hoje, com estilo formado, adota a fonte sem problemas. Segundo informações do stand da Mauricio de Sousa Produções (bienal do livro de 2014), As letras são feitas à mão livre, seguindo o mesmo tamanho e padrão. Cabe ao letrista 8 Para detalhes sobre os formatos de fonte, ver o livro A letra Impressa (Claudio Rocha). Sobre OpenType: [...] as tarefas que antes eram executadas de forma manual, como a inserção de ligaturas, caracteres alternativos e frações, agora são realizadas automaticamente, desde que habilitadas no menu de fontes do programa de editoração [...] (ROCHA, 2013, p.116). 9 [...] representam a menor unidade semântica de linguagem, como, por exemplo, as letras ou os algarismos[...] (ROCHA, 2013, p.116). 10 [...] glifos são formas específicas que esses caracteres assumem [...] Um único caractere pode corresponder a diversos glifos. Por exemplo, o e caixa-baixa bem como o e versalete são o mesmo caractere, mas representam glifos diferentes. (ROCHA, 2013, p.116).

12 também definir os balões para cada texto, pois seu formato enriquece a fala, enfatiza situações, sugere ação, etc [...]. Nota-se a importância que o letreiramento manual ainda possui em sua empresa. No entanto, ao passar para a editoração eletrônica (Turma da Mônica Jovem e revistas publicadas em outros idiomas), a fonte é adotada por uma razão de escala de produção. Ressalta-se ainda que a Mauricio de Sousa Produções atua em diversas áreas: quadrinhos impressos e online, roupas, brinquedos, embalagens, papelaria... logo, a adoção da fonte contribui para o reconhecimento da marca em suas diversas plataformas e manifestações. Assim, as opções pelo letreiramento manual e fonte não se anulam. Possuem suas especificidades e atendem a demandas específicas. Longe de ser extinto, o letreiramento manual ainda pode ser o preferido: nem mesmo a urgência dos jornais fez com que Adão renunciasse a sua escrita e desenho manuais. Manter a tradição de se desenhar as letras retoma nosso passado de integração manual entre texto e imagem. A vetorização com base na escrita do quadrinista resgata princípios tipográficos para uma adaptação consistente. Ambas as alternativas contibuem para a manutenção da consistência gráfica dos quadrinistas na atualidade. Por fim, fica evidente que a letra é mais do que complemento narrativo nos quadrinhos. Atua como elemento identitário, extensão de seu autor, diferenciador da marca em questão. Na prática, o criador, depois de receber ou de ter concebido uma ideia, procura desenvolvê-la num todo unificado de palavras e imagens. É aqui que os elementos gráficos passam a dominar. Pois, afinal, o produto final deve ser lido como um visual total. Essa mistura, em última análise, é a prova final do sucesso e da qualidade da experiência da arte sequencial (EISNER, 2001, p. 122). Referências EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fonte, 1999. 154 p.. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005. 168 p. GIMENEZ Mendo, Anselmo. História em quadrinhos: impresso vs. Web. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

13 HELLER, Steve. Handwritten: expressive lettering in the digital age. New York: Thame & Hudson, 2004. 192 p. JUST IN TYPE. Disponível em: <http://www.justintype.com.br/fonts/>. Acesso em 5mar. 2014. MESEGUER, Laura. Escrita, caligrafia, desenho de letras e design de tipos. In:HENESTROSA, Cristóbal; MESEGUER, Laura; SCAGLIONE, José. Como criar tipos: do esboço à tela. Brasília:Estereográfica, 2014. p. 29-41. NOORDZIJ, Gerrit. O traço: a teoria da escrita. Tradução de Luciano Cardinali; Andréa Branco. São Paulo: Blucher, 2013. 90 p. ROCHA, Claudio. A letra impressa:dos tipos móveis à tipografia digital. São Paulo: SENAI-SP editora, 2013. 160p. SOUSA, Mauricio de. Bidu 50 anos. São Paulo: Mauricio de Sousa Editora, 2010. 159 p. TURMA DA MÔNICA. Disponível em: <http://turmadamonica.uol.com.br/>. Acesso 5 dia mar. 2014. UOL Mais. Entrevista com o cartunista Adão Iturrusgarai. Disponível em: <http://mais.uol.com.br/view/1xu2xa5tnz3h/adao-iturrusgarai--parte-1-0402193966d8b97366?types=a&>. Acesso em 31 jul.2014. WHEELER, Alina. Design de identidade da marca: guia essencial para toda a equipe de gestão de marcas. PortoAlegre: Bookman, 2012. SPIEKERMANN, Erik. A linguagem invisível da tipografia: escolher, combinar e expressar com tipos. Tradução de Luciano Cardinali.São Paulo:Blucher, 2008. 191 p.