Projeto A NEGRA FELICIDADE. Moacir Chaves dramaturgia e direção. cia de teatro



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Transcrição:

Projeto A NEGRA FELICIDADE Moacir Chaves dramaturgia e direção cia de teatro

Moacir Chaves, diretor de A Negra Felicidade, constrói provocante dramaturgia cênica para levar ao palco documento histórico do século 19, tornando-o material dramático capaz de se sustentar como narrativa....essa montagem, aparentemente de recepção menos fácil, mas suficientemente envolvente para trazer o espectador aos porões da intolerância, conduzindo-o por trilhas teatrais que iluminam o esquecido e para o situar naquilo que não quer lembrar. Macksen Luiz...estamos diante de um espetáculo que empreende reflexões atualíssimas sobre a sociedade em que vivemos. E cuja materialização cênica me parece em total sintonia com os conteúdos em causa. Assim como não sacrifica a escrita, Moacir Chaves não facilita a tarefa do espectador, muito pelo contrário: propõe-lhe um permanente desafio, o instiga a pensar, a tentar entender os signos de que se vale, como, por exemplo, o fato de os atores estarem vestidos a rigor, ainda que com os pés descalços. Lionel Fisher A peça procura alargar a nossa sensibilidade, na medida em que o encenador opta por não criar equivalente cênico, por meio de ações, de uma representação da repressão negreira, mas sim, de pôr em verbo a documentação de um fato verídico insuspeito. A linguagem rebuscada dos autos corresponde a uma provocação interessante que a estética do espetáculo assume em primeiro plano (...) O sentido literal do texto é manipulado de forma irônica, em momentos bem pontuais da encenação, por meio de intervenções vocais e corporais, que descaracterizam, propositalmente, a seriedade do documento histórico. Pedro Allonso (...) os temas da escravidão no Brasil e do racismo são tratados de forma extremamente singela, mas sem melodrama, de forma profunda, mas sem retórica aparente. (...) A direção de Moacir Chaves é corajosa em acreditar em um texto tão duro, tão árduo, tão seco, mantendo, em quase todos os momentos, a movimentação discreta e sem disfarces. (...) fugindo dos lugares usuais, ele investe com vigor em uma proposta cheia de méritos. Rodrigo Monteiro

ÍNDICE Apresentação... 5 Justificativa... 7 A companhia... 8 Espetáculos... 9 Ficha Técnica... 12 Anexo I - Prêmios... 14 Anexo II - Críticas... 18 Anexo II - Clipping... 26 Contato... 35

4 ALFÂNDEGA 88

A NEGRA FELICIDADE 5 A NEGRA FELICIDADE é o segundo espetáculo da Cia. Alfândega 88, que foi vencedora do 25º Prêmio Shell na Categoria Especial pelo seu projeto de residência artística no Teatro Serrador, e estreou em abril de 2012 neste mesmo teatro. O espetáculo A Negra Felicidade foi indicado ao Prêmio Shell na categoria Melhor Direção e ao Prêmio Questão de Crítica nas categorias Melhor Direção e Melhor Espetáculo. A peça teatral é construída a partir de dois pilares de composição; o primeiro é um documento histórico: os autos de um processo judicial de 1870, em que uma mulher negra, escrava, registrada com o nome de Felicidade, moveu uma ação na justiça do Rio de Janeiro pleiteando sua liberdade. O segundo é o Sermão de Santo Antonio aos peixes, do padre Antonio Vieira, grande defensor da igualdade entre os seres humanos e da abolição da escravatura. No contraponto entre a coisificação máxima do ser humano a escravidão e o profundo respeito à vida humana pregado e defendido por Vieira é calcado o espetáculo. Reconhecido por realizar espetáculos de grande comunicabilidade a partir de materiais não dramatúrgicos, como o premiado Bugiaria, construído a partir dos registros de um processo inquisitorial, ou o sermão do Padre Vieira, na premiada montagem do Sermão da Quarta-feira de Cinza, com Pedro Paulo Rangel, o diretor Moacir Chaves retorna à obra de Vieira. Agora, entretanto, acompanhado da Alfândega 88, grupo fundado com os atores com os quais mantém uma parceria constante, assim como são constantes os parceiros da equipe de criação. Juntos, já realizaram mais de vinte espetáculos e conquistaram inúmeros prêmios e indicações.

6 ALFÂNDEGA 88 Nascido em 1608, em Lisboa, Antônio Vieira foi religioso, escritor e orador da Companhia de Jesus e um dos mais influentes personagens da política e oratória do século XVII. Destacou-se como missionário no Brasil, defendendo infatigavelmente os direitos dos povos indígenas, os judeus e a abolição da escravatura, criticando severamente os sacerdotes de sua época e a própria inquisição. Faleceu na Bahia em 1697. Chamado por Fernando Pessoa de Imperador da língua portuguesa, seus sermões, de imensa propriedade imaginativa e ora críticos e satíricos, revelam um apurado olhar sobre o comportamento humano e possuem grande importância literária. Dois séculos depois da luta de Vieira pela igualdade humana e fim da escravidão, em 1870, na cidade do Rio de Janeiro, uma negra de nome Felicidade move uma ação em juízo pleiteando sua liberdade. Sua mãe, a preta livre Maria Anna de Souza do Bonfim, solicitou a um terceiro que, por compra ou por qualquer outra transação, conseguisse a vinda de sua filha, Felicidade, para o Rio de Janeiro, para então poder pagar por sua liberdade. Assim, mãe e filha começaram a criar dívidas com as quais não puderam arcar. Mas esse fato verídico, que, por si só, é um resgate da nossa história, não é adaptado a uma dramaturgia convencional, pois os autos da ação de liberdade trazem, em si, uma questão fundamental da reflexão a ser feita: de um lado, a nossa familiaridade com a forma jurídica, reconhecida de imediato por qualquer um que já tenha tido algum contato com o aparato judicial (como ao alugar de um imóvel, por exemplo), de outro, o nosso estranhamento - ou repulsa - ao objeto dessa ação: a compra e venda de um ser humano. Porém, é preciso considerar que, em 1870, o tema do processo não causava qualquer estranhamento a ninguém. Será que daqui a cem anos perceberemos como afrontosas ações que hoje soam tão naturais? Teremos a capacidade de compreensão assim tão obnubilada pelo simples fato de sermos contemporâneos aos acontecimentos? Cometeremos, agora, o pecado da indiferença semelhante ao cometido pelos nossos ancestrais há tão pouco tempo? Essas questões, que transcendem a pessoalidade e a temporalidade, são o ponto crucial da reflexão: o homem como objeto de uso de outro homem. E até que ponto essa relação, verdadeira e evidente na nossa vida social até bem pouco tempo, perdura ainda hoje no cotidiano de nossa sociedade.

A NEGRA FELICIDADE 7 JUSTIFICATIVA Difundir o espetáculo A Negra Felicidade, fruto de acurada pesquisa do grupo Alfândega 88, ao mesmo tempo sofisticado pela inovação da linguagem cênica e simples e tocante no material que leva à cena: o caso verídico de Felicidade, mulher negra e escrava que lutou na justiça para ser reconhecida como pessoa livre. O espetáculo não tem como ponto de partida um texto de teatro por assim dizer tradicional : parte da pesquisa que correlaciona documentos históricos, como os autos de um processo de libertação de uma escrava da segunda metade do século XIX, e um sermão do Padre Antônio Vieira de meados do século XVII. Assim, embora o espetáculo resulte esteticamente inovador, sua forma é consequencia do interesse e pesquisa do grupo sobre um tema crucial para o entendimento da formação da sociedade brasileira. A montagem, embora seja extremamente comunicativa, não possui os convencionais diálogos, nem tem como base personagens, mas sim uma espécie de assemblagem, com a utilização de partes do processo e do Sermão, além de anúncios de venda e locação de escravos extraídos do Jornal do Comércio, bem como a inserção de outros elementos teatrais, a partir do entendimento das questões relevantes no trabalho, de ordem teatral e social. O resultado final é uma peça não dramática, que deita raízes na história do teatro e das artes no século XX, na senda aberta por Brecht, com seu Verfrendungseffekt, efeito de tornar estranho, de desnaturalizar aquilo que nos parecia dado; ou por Samuel Beckett e o dilaceramento da personagem, em peças nas quais o teatro se constrói como coisa em si, aparecendo a realidade exterior apenas como leve fantasmagoria. Neste caso, a temporalidade é o elemento crucial. Ao não se fixar um aqui e agora outro que não o da própria cena, é abolido o interregno que permite ao espectador alienar-se da realidade presente, perceptível na comparação com o tempo passado.

A matéria é a transformação do homem em objeto, de forma direta, no passado, e escamoteada de todas as maneiras, no presente, tanto na exploração da força do trabalho, quanto nas relações interpessoais, decididamente contaminadas por aquela. A violência decorrente dessa organização, óbvia no século XIX, com a demonização dos negros vindos do norte, que reagiam com violência ao seu desenraizamento; e não tão clara para nós, do século XXI, quando essa mesma violência transborda das favelas e atinge toda a cidade. Em resumo, A Negra Felicidade aponta para a triste pergunta: deve a felicidade ser calcada na derrocada do outro, seja esse outro um continente, um país, uma classe, um concorrente? A conciliação final no processo, quando Felicidade e sua mãe acedem em trabalhar ainda três anos como escravas para conquistar a liberdade definitiva da filha, trabalho esse na especialidade das duas, naturalmente, em serviços domésticos, parece abolir de vez o espaço de tempo entre aquele Rio de Janeiro e o nosso. A COMPANHIA A Alfândega 88, companhia carioca de teatro que tem direção artística de Moacir Chave e coordenação técnica de Aurélio de Simoni, fundamenta sua pesquisa cênica no questionamento de nosso passado, estudando teoricamente nossas raízes culturais e históricas e dividindo questões através do experimento de materiais não convencionais de dramaturgia. O nome da companhia é inspirado no episódio histórico que deu origem ao espetáculo A Negra Felicidade, em que a escrava de nome Felicidade moveu uma ação em juízo pleiteando sua liberdade. Sua mãe, a preta livre Maria Anna de Souza do Bonfim, solicitou a um terceiro que, por compra ou por qualquer outra transação, conseguisse a vinda de sua filha para o Rio de Janeiro, para que então pagasse por sua liberdade. Para liquidar a dívida, ambas tiveram que permanecer durante anos em trabalho na Rua da Alfândega nº 88. O espetáculo A Negra Felicidade, o segundo da companhia, foi indicado a diversos prêmios, inclusive ao Prêmio Shell de Melhor Direção. Com patrocínio do FATE (SMC- Prefeitura do Rio de Janeiro), a companhia reabriu em 2011 um teatro particular histórico, o Teatro Serrador, que, no século passado, recebeu estreias de Nelson Rodrigues, Procópio Ferreira, Eva Todor, entre outros. A Cia. implementou seu projeto de manutenção de grupo no espaço em 2012 e 2013, que foi revitalizado e recebeu mais de 20 espetáculos, além de oferecer uma série de atividades gratuitas à comunidade. Por este projeto, a companhia Alfândega 88 ganhou o Prêmio Shell na Categoria Especial.

A NEGRA FELICIDADE 9 Em 2014 a Cia realizou duas semanas de temporada na Caixa Cultural de São Paulo com os espetáculos Labirinto e A Negra Felicidade; Circulou através do Projeto SESC-Palco Giratório com os espetáculos Labirinto e O Controlador de Tráfego Aéreo. Foram aproximadamente 20 cidades, oficinas ministradas e intercâmbio com grupos locais; No Rio de janeiro, o grupo circulou pelas Lonas e Arenas Culturais do município com o espetáculo A Negra Felicidade. ESPETÁCULOS O primeiro espetáculo da companhia, Labirinto, foi contemplado pelo FATE - SMC/RJ, e estreou em 2011 no Espaço SESC, em Copacabana. Do consagrado autor gaúcho José Joaquim de Campos Leão - Qorpo-Santo, Labirinto teve bem sucedidas temporadas em diversos teatros do Rio de Janeiro, além de ter sido convidado para os principais festivais de teatro do país, como o SESC-Palco Giratório 2014, todos com excelentes críticas e retorno de público. A trajetória feita por Labirinto, em cartaz há mais de dois anos e com apresentações em sete palcos diferentes, traduz o objetivo da Cia: Manter suas montagens em repertório, ativas pelo maior tempo possível, estimulando, desta forma, a formação de plateia e valorizando o exercício e os esforços dos profissionais envolvidos na criação da obra assim como os recursos investidos pelos apoiadores da cultura. Manter o espetáculo vivo, à disposição do público, possibilitando sua divulgação para as mais diferentes plateias, permitindo seu amadurecimento artístico e sua realização de forma plena.

10 ALFÂNDEGA 88 O segundo espetáculo da companhia, A Negra Felicidade, estreou em 2012, com patrocínio da Eletrobrás e foi indicado ao Prêmio Shell de Melhor Direção e aos Prêmios Questão de Crítica de Melhor Direção e Melhor Espetáculo. A Negra Felicidade foi contemplado com o Fomento da SMC do Rio de Janeiro e circulou, em 2014, pelas lonas e arenas culturais do município. O terceiro espetáculo, O Controlador de Tráfego Aéreo, que estreou em agosto de 2013, reflete sobre a busca pela felicidade a partir da trajetória de vida de um dos atores da Cia., que trabalhou na Força Aérea e, após sofrer alguns revezes, tornou-se morador de rua. Tendo recebido excelentes críticas, o espetáculo fez duas temporadas no Rio de Janeiro, integrou o Festival Janeiro de Grandes Espetáculos (PE) 2014 e circulou por diversas cidades brasileiras pelo Projeto SESC- Palco Giratório 2014. O mais recente espetáculo da Alfândega 88, Fim de Partida, de Samuel Beckett, estreou no Tempo Festival em novembro de 2013 e fez temporadas no Teatro Ipanema e na Sede das Companhias em 2014, tendo excelente repercussão junto ao público e crítica. Dirigido por Danielle Martins de Farias, que é uma das fundadoras da companhia junto com Moacir Chaves e que trabalhou como diretora assistente em todas as montagens da Alfândega 88, dá continuidade à pesquisa que teve inicio com a leitura encenada pela diretora de Fim de Partida no Projeto de Manutenção da Cia. no Teatro Serrador em junho de 2013.

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FICHA TÉCNICA PEÇA A Negra Felicidade TEXTOS (extraídos de) Autos de um processo de 1870, movido por Felicidade, negra, escrava, contra seu senhor para que fosse reconhecida a sua liberdade; Anúncios do Jornal do Comércio do ano de 1870; Trecho da peça teatral O Jardim das Cerejeiras, de Tchecov (fala do personagem Trofimov); Sermão de Santo Antonio aos Peixes, do Padre Antonio Vieira. DIREÇÃO E DRAMATURGIA Moacir Chaves ELENCO Adriana Seiffert, Andy Gercker, Danielle Martins de Farias, Edson Cardoso, Fernando Lopes Lima, Leonardo Hinckel, Luísa Pitta, Rafael Oliveira, Rafael Mannheimer, Rita Fischer e Silvano Monteiro. CENÁRIO Fernando Mello da Costa FIGURINOS Inês Salgado ILUMINAÇÃO Aurélio de Simoni DIREÇÃO MUSICAL Tato Taborda PROJETO GRÁFICO Maurício Grecco ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO Danielle Martins de Farias UM PROJETO Alfândega 88 Cia de Teatro

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Anexo I PRÊMIOS A) Prêmio SHELL

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B) Prêmio Questão de Crítica

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Anexo II CRÍTICAS A) LIONEL FISCHER 10 de abril de 2012 Teatro/Crítica A NEGRA FELICIDADE REALIDADE E FICÇÃO NO SERRADOR O fato é real, o documento, histórico: os autos de um processo de 1870. Uma negra, chamada Felicidade, entra na justiça pleiteando sua liberdade. Mas recebe uma bizarra sentença: ela será livre desde que trabalhe como escrava (juntamente com sua mãe) para o seu senhor, durante três anos. Paralelo ao fato, dois textos ficcionais: o Sermão de Santo Antonio aos peixes, de autoria do padre Antonio Vieira, que defende apaixonadamente a igualdade entre os homens; e a célebre fala de Trofímov a Ânia, em O jardim das cerejeiras, de Tchecov, na qual o personagem defende a tese de que, para viver plenamente o presente, impõe-se expiar o passado. Realidade e ficção, portanto, estão presentes em A negra Felicidade, mais recente produção da Companhia Alfândega 88, em cartaz no Teatro Serrador. Moacir Chaves responde pelo texto e pela direção, estando o elenco formado por Adriana Seiffert, Mariana Guimarães, Peter Boos, Fernando Lopes Lima, Elisa Pinheiro, Renata Guida, Leonardo Hinckel, Diego Molina, Andy Gercker, Danielle Martins de Farias, Pâmela Côto, Rita Fischer e Edson Cardoso. Como muitas montagens oriundas de textos não escritos especificamente para o palco, esta poderá causar algum espanto, quem sabe um certo desconforto. E por traz desse espanto e desconforto paira inevitavelmente a mesma pergunta: Mas por quê montar isto?, quando o mais salutar, correto e libertário seria perguntar: Por quê não montar isto? Em seus 25 anos de carreira, Moacir Chaves encenou mais de 40 espetáculos, alguns partindo da mesma premissa: textos não escritos para o teatro. Curiosamente, em dois deles ( Bugiaria e Sermão da Quarta-Feira de Cinzas ) ganhou todos os prêmios disponíveis. Será que nestes casos os puristas de plantão torceram seus graciosos narizes? Ao que me parece, não...

Assim, o que está em causa é o desejo deste artista de materializar no palco questões que julga relevantes. E, no presente caso, são abordados temas mais do que pertinentes, como a exploração, a intolerância, o desejo de liberdade e a possibilidade de os homens considerarem- -se irmãos, dentre muitos outros. Mas é possível que alguns espectadores julguem, digamos, um tanto difícil acompanhar as passagens relativas aos autos do processo, já que as mesmas mantêm a linguagem da época - e, mais ainda, a linguagem específica dos tribunais. Pois bem, que seja: mas, e daí? Melhor seria adaptar essas passagens para uma linguagem atual e fazer o mesmo com os autos do processo, a eles impondo uma dramaturgia convencional? Talvez o resultado fosse mais agradável a ouvidos preguiçosos, mas certamente perderia sua contundência histórica. E como o autor deveria proceder com relação ao sermão do padre Antonio Vieira? Deveria também adaptá-lo, quem sabe recheá-lo de gírias, desfigurar sua belíssima escrita e original estrutura? Para os que pensam desta forma, caberia então um procedimento idêntico com, por exemplo, uma sonata de Beethoven: não seria mais prudente encurtá-la? Empobrecer sua harmonia? Reduzir a um seus muitos temas? Enfim...estamos diante de um espetáculo que empreende reflexões atualíssimas sobre a sociedade em que vivemos. E cuja materialização cênica me parece em total sintonia com os conteúdos em causa. Assim como não sacrifica a escrita, Moacir Chaves não facilita a tarefa do espectador, muito pelo contrário: propõe-lhe um permanente desafio, o instiga a pensar, a tentar entender os signos de que se vale, como, por exemplo, o fato de os atores estarem vestidos a rigor, ainda que com os pés descalços. Com um mínimo de fantasia pode-se chegar à hipótese de que as sóbrias vestimentas são signos do poder e os pés descalços remetem à escravidão - não sei se foi esta a intenção do encenador, mas posso perfeitamente encará-la como crível, da mesma forma que outro espectador encontrará o sentido que mais lhe aprouver. Quanto ao elenco, todos os atores atendem com total eficiência àquilo que imagino que lhes foi pedido: texto perfeitamente articulado, proferido em voz forte, quase sempre em ritmo acelerado e priorizando a clareza expositiva. E nas passagens em que o ritmo é menos acelerado e imprevistasquebras geram humor, todos se saem igualmente bem. Na equipe técnica, Aurélio de Simoni assina uma iluminação muito expressiva, sempre ressaltando os múltiplos climas emocionais em jogo. A mesma eficiência se faz presente na cenografia de Fernando Mello da Costa, nos figurinos de Inês Salgado e na direção musical de Tato Taborda. A NEGRA FELICIDADE - Dramaturgia e direção de Moacir Chaves. Com a Companhia Alfândega 88. Teatro Serrador. De segunda a domingo, 19h.

20 ALFÂNDEGA 88 B) MACKSEN LUIZ 15 de maio de 2012 Críticas, opinião, notícias e indicações teatrais. Crítica: A NEGRA FELICIDADE 18ª Semana da Temporada 2012 NEGROS NO CENTRO DA CENA: DE VOLTA PARA DOCUMENTAR O PASSADO, FIXANDO O OLHAR NO PRESENTE Moacir Chaves, diretor de Negra Felicidade, em cartaz no Teatro Serrrador, constrói provocante dramaturgia cênica para levar ao palco documento histórico do século 19, tornando-o material dramático capaz de se sustentar como narrativa. Não é fácil, muito menos simples, fazer esse transporte da frigidez jurídica de um processo, vazado em terminologia própria e com a distância de quase dois séculos, para a linguagem teatral que a torne factível como cena e da qual se extraia a indignação provocada pelo divisionismo, preconceito e violência social. É posto para leitura dramática o processo de 1870 da escrava Felicidade, que pleiteia a liberdade, que lhe é concedida de maneira transversa, já que a sentença a obriga a trabalhar, ao lado da mãe, por mais três anos para o mesmo senhor contra o qual foi à justiça. O absurdo do veredicto fica exposto, ressaltado pela descrição dos meandros da legislação que, pela forma como a justiçaé distribuída, como acusação ou defesa, revelando bem mais do que o sistema político-social, escravocrata e democrático atual, pretenderiam que o fosse. Talvez por essa razão, a dramaturgia de Chaves amplie o espectro do documento, introduzindo, como quebras narrativas, o extraordinário Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do padre Antônio Vieira, trecho retirado de peça de Tchecov e relatório numérico sobre a escravatura. A estrutura narrativa, fria, expositiva, reveladora por si mesma, candente nas entrelinhas, explosiva na indignação, é a própria encenação e daquilo que se alimenta para se fazer teatro, sem o populismo da solidariedade de intenções dirigidas e o protesto gerado pelo politicamente correto. A força do que é dito, nos documentos e na sua transfiguração cênica, está no modo como se volta ao passado para fixar o olhar no presente, na busca de formas não dramáticas para impô

A NEGRA FELICIDADE 21 -las como tal. A aridez linguística da documentação, em alguns momentos, pode ressaltar a dificuldade de um ator em corporificá-la como interpretação, o que acontece quando reduzida à mera explicitação da palavra, tornando a atuação redundante. Mesmo que a direção intente manter a dinâmica em constante movimentação, estilo (humor, leitura branca, ação subjetiva, emoção, racionalidade) e construção de uma teatralidade a serviço da narrativa. De mais de uma dezena de atores da companhia Alfândega 88, a maioria se mostra integrada ao espírito da montagem, com destaque para a inteligência interpretativa de Elisa Pinheiro, a presença do humor de Peter Boss, a emoção genuína de Edson Cardoso, e para as múltiplas e precisas intervenções de Adriana Seiffert, Mariana Guimarães, Fernando Lopes Lima, Renata Guida, Leonardo Hinckel, Diego Molina, Andy Gercker, Danielle Martins de Farias, Pâmela Coto e Rita Fisher. A sutil solução cenográfica de Fernando Mello da Costa e a música de Tato Taborda complementam essa montagem, aparentemente de recepção menos fácil, mas suficientemente envolvente para trazer o espectador aos porões da intolerância, conduzindo-o por trilhas teatrais que iluminam o esquecido e para o situar naquilo que não quer lembrar.

22 ALFÂNDEGA 88 C) RODRIGO MONTEIRO Crítica da peça: A NEGRA FELICIDADE da Alfândega 88 Cia. de Teatro A FORMA CÊNICA DA COMPLEXIDADE: UM EXCELENTE PROGRAMA A negra felicidade é um excelente espetáculo por vários motivos. Primeiro, porque os temas da escravidão no Brasil (o último país do mundo a libertar oficialmente seus escravos) e do racismo são tratados pelo todo de forma extremamente singela, mas sem melodrama, de forma profunda, mas sem retórica aparente. Segundo, porque a dramaturgia une bem quatro tipos diferentes de fontes discursivas, de jeito que uma faz sentido em relação a outra sem obviedades, mas com poesia. Terceiro, porque a direção de Moacir Chaves é corajosa em acreditar em um texto tão duro, tão árduo, tão seco, mantendo, em quase todos os momentos, a movimentação discreta e sem disfarces. E, por fim, mas não menos, pela excelente interpretação que o elenco oferece ao público: palavras bem ditas, oratória precisa, dicção exata e pausas nobres. Trata-se de um trabalho difícil de assistir, mas compensador, porque, fugindo dos lugares usuais, ele investe com vigor em uma proposta cheia de méritos. Em 1870, a escrava Felicidade protocolou um processo na justiça do Rio de Janeiro contra o seu senhor, Antônio Vietas da Costa, afim de que fosse reconhecida a sua liberdade. Uma das quatro bases da dramaturgia do espetáculo A negra Felicidade são os atos desse processo jurídico: atas, protocolos, extratos de depósito e de saque, memorandos, encaminhamentos, relatórios. Falado no linguajar da época e dito em sua completude, o espectador vai desvendando os acontecimentos do texto na medida em que vai driblando o palavrório usual do direito e interpretando os fatos. Reconhecer o que realmente houve entre a escrava e seu dono é complicado, mas é valorosa a opção da dramaturgia em trazer para o palco os atos judiciais em sua integridade. Além de uma bela homenagem à língua portuguesa, o gesto revela as relações mais vibrantes: a posse de um ser humano sobre outro ser humano, o gesto da compra, da venda, do empréstimo e do pagamento em dinheiro e em trabalhos forçados, a lógica e os valores da época que, diferentes dos de hoje, situavam criminosos e vítimas em lu

gares, talvez, opostos. Intercalam-se na narrativa hostil, o belíssimo Sermão de Santo Antônio aos Peixes, do Padre Antônio Vieiera, uma das pérolas da literatura barroca; um trecho de O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov; e anúncios do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro do ano de 1870 que tratam da busca de escravos fugidos, de suas características e de recompensas para quem achá-los. Sem verdades absolutas, porque o assunto é indiscutível, A negra Felicidade não duvida da inteligência dos seus espectadores, mas ressalta o seu lado humano em atender o seu chamado: é preciso, como diz o dramaturgo russo citado, purgar o passado. Com positivos destaques para Andy Gerker, Fernando Lopes de Lima, Peter Boos, Adriana Seiffert e Edson Cardoso, o elenco, composto também por Danielle Martins de Farias, Diego Molina, Elisa Pinheiro, Leonardo Hinckel, Mariana Guimarães, Pâmela Côto, Renata Guida e Rita Fischer, tem apenas nessa última o seu momento negativo. Em uma determinada cena, Fischer parece querer se sobrepor ao texto, enfeitando-o com uma interpretação fleumática, o que felizmente não lhe acontece sempre e, ainda bem, tampouco em outras situações do elenco. O cenário de Fernando Mello da Costa perde a oportunidade de ser melhor. Composto por vários objetos entulhados, seu lado positivo é ilustrar a complexidade das relações e dos temas, além da profundidade dessas marcas tão antigas, mas ainda tão presentes. O lado negativo é simplesmente ilustrar. Boa a iluminação de Aurélio de Simoni, a direção musical de Tato Taborda e os figurinos de Inês Salgado. Na semana em que se comemorou o Dia da Consciência Negra, sem dúvida, A Negra Felicidade foi uma das melhores programações. Em outras oportunidades, não menos o será.

D) PEDRO ALLONSO Crítica da peça: A Negra Felicidade da Alfândega 88 Cia. de Teatro A HISTÓRIA QUE PERMANECE Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Walter Benjamin A companhia Alfândega 88 apresenta, no palco do Teatro Serrador, o espetáculo A negra Felicidade. Sob a direção de Moacir Chaves, a montagem é organizada a partir da alternância de diferentes registros de escrita, entrecruzando vozes de elementos narrativos diversos, como dois autos de um processo jurídico, retirados dos arquivos públicos da cidade do Rio de Janeiro, de fins do século XIX, classificados do Jornal do Commercio da mesma época, um sermão religioso e, por fim, o fragmento de um solilóquio, extraído da peça O jardim das cerejeiras, de Tchekov. Os quadros são dispostos de forma fragmentada e forjam sentidos na medida em que a sucessão dos fatos deixa entrever uma necessidade do diretor de trazer, para o debate público, as mazelas que herdamos dos procedimentos de conduta éticos e morais do passado. A base da dramaturgia se concentra na trama que envolve a negra que dá nome à peça, Felicidade, e o comerciante Antônio Vietas da Costa, que a toma como sua escrava, por meio de diversos ardis. O comerciante, aproveitando-se da boa fé da liberta, elabora meios para enganá-la, não só lhe tomando dinheiro, como também induzindo-a a assinar documentos, sem que a mesma sequer soubesse do conteúdo discriminado. Felicidade e sua filha decidem, então, entrar com recurso na justiça, porém, o veredito determina que ela seja obrigada a cumprir serviços forçados para o comerciante, por um prazo de três anos. A narrativa que explode em cena é o conteúdo do processo, movido pela mulher, em sua linguagem técnica. O sermão de Santo Antônio aos peixes, do Padre Antônio Vieira, e o fragmento do solilóquio de Tchekhov se intercalam no drama de Felicidade, despidos de uma linguagem visual que reconstitua, historicamente, uma época delimitada. Estes dois textos são fundamentais na medida que preenchem possíveis lacunas de sentido e arrematam uma estrutura dramatúrgica coesa, já que os diferentes fragmentos textuais foram concebidos para atenderem a fins diversos, em diferentes dimensões de tempo e espaço. Os sentidos de que falei há pouco se referem à ideologia defendida pela montagem, de uma sociedade que não pode caminhar em direção ao progresso sem olhar para trás e ignorar os escombros, os rastros e o peso da crueldade e da opressão, praticados por homens contra outros homens.

A peça fala de escravidão, mas não se circunscreve a esse tema. Seu projeto prevê uma reflexão maior. A condenação de Felicidade pressupõe defesas de interesse nas relações de poder e o exercício da demonstração de autoridade via artifícios de linguagem. O cinismo se pulveriza pelo espaço cênico quando as determinações das sentenças históricas privilegiam a manutenção de um status quo social, tecendo, em torno dessa estrutura, uma forte rede de proteção às ligações corruptas que administram os organismos públicos, ontem e hoje. A peça procura alargar a nossa sensibilidade, na medida em que o encenador opta por não criar equivalente cênico, por meio de ações, de uma representação da repressão negreira, mas sim, de pôr em verbo a documentação de um fato verídico insuspeito. A linguagem rebuscada dos autos corresponde a uma provocação interessante que a estética do espetáculo assume em primeiro plano, confrontando o espectador com um jogo de impossibilidade de assimilação total do conteúdo narrado pelos atores. O sentido literal do texto é manipulado de forma irônica, em momentos bem pontuais da encenação, por meio de intervenções vocais e corporais, que descaracterizam, propositalmente, a seriedade do documento histórico. O numeroso elenco faz intermediação do texto para a plateia sem vestir máscaras individualizantes. Todo procedimento se volta para formas de vocalização e disseminação do conteúdo das narrativas, procedimento este já característico dos trabalhos anteriores do diretor. Os atores lidam com um material complexo e sua maioria consegue expressar domínio de entendimento do contexto, jogando com nuances de falas que, ora reforçam o desconforto retórico excessivo, ora sublinham, no espaço cênico, certo tom de deboche que o próprio texto deixa entrever. Edson Cardoso, por exemplo, se apropria da sua condição de dançarino para executar partituras de movimento enquanto enuncia um fragmento correspondente. Esta opção provoca reação cômica na plateia, já que os movimentos realizados por ele fazem associação à banda musical É o Tchan, que o tornou nacionalmente conhecido. As pistas que identificam clímax e estados conflituosos, detectados no texto, são pontuados, tanto pela direção musical de Tato Taborda, que sublinha e realça certa dramaticidade, atenuada pela escrita fria dos documentos, quanto pela iluminação de Aurélio de Simoni, que joga com blecautes entre as cenas, imprimindo, nesse movimento, um efeito de peça dentro da peça. A cenografia de Fernando Mello da Costa é pensada em termos de acumulação. Numa estrutura no centro do palco, entulham-se materiais dispostos de forma desordenada, criando uma espécie de caos entre códigos civis, livros de história, cadeiras, madeira, cordas, correntes e refletores inutilizados, que formam um conjunto amontoado de destroços à espera de um novo reordenamento, uma outra reorganização, uma outra história que ainda está para ser contada. Num momento em que se iniciam intensos debates sobre a obrigatoriedade das cotas para negros nas universidades públicas e das contas que serão ajustadas com o período da ditadura, a encenação de A negra Felicidade se articula aos temas atuais e urgentes, em voga nos noticiários da TV e nas mídias eletrônicas.

Anexo III CLIPPING Jornal EXPRESSO, Rio de Janeiro

A NEGRA FELICIDADE 27 Revista BRAVO, São Paulo/Rio de Janeiro

28 ALFÂNDEGA 88 Site da CAIXA CULTURAL, São Paulo

A NEGRA FELICIDADE 29 Jornal EXTRA - Caderno DIVERSÃO, Rio de Janeiro Jornal O GLOBO e Jornal EXTRA - Caderno ZONA NORTE, Rio de Janeiro

30 ALFÂNDEGA 88 Jornal O DIA, Rio de Janeiro

A NEGRA FELICIDADE 31 Divulgação CAIXA CULTURAL, São Paulo