Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear

Documentos relacionados
Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear*****

IMPLANTE COCLEAR EM CRIANÇAS DE 1 A 2 ANOS DE IDADE

ANÁLISE DA VOZ DE DEFICIENTES AUDITIVOS PÓS-LINGUAIS PRÉ E PÓS USO DE IMPLANTE COCLEAR

Benefício do implante coclear em crianças com paralisia cerebral

Análise sistemática dos benefícios do uso do implante coclear na produção vocal

DIFERENÇAS ENTRE PARÂMETROS VOCAIS EM CRIANÇAS USUÁRIAS DE IMPLANTE COCLEAR E EM CRIANÇAS USUÁRIAS DE APARELHO DE AMPLIFICAÇÃO SONORA INDIVIDUAL

VARIABILIDADE DA FREQUÊNCIA FUNDAMENTAL: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE VOZES ADAPTADAS E DISFÔNICAS

Mara Carvalho / Filipe Abreu. Jornadas Interdisciplinares sobre Tecnologias de Apoio Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra

Marina Emília Pereira Andrade

TELEPROGRAMAÇÃO DOS SISTEMAS DE IMPLANTE COCLEAR

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE MEDICINA. Maruza Souza Ramos Nívia Dayane Fernandes Silva

A MATRIZ DE CONFUSÃO E A CONTAGEM FONÊMICA COMO PROTOCOLOS PARA A ANÁLISE DA ACLIMATIZAÇÃO

Percepção da fala em deficientes auditivos pré-linguais usuários de implante coclear****

Palavras-Chave: deficiência auditiva, inspeção acústica, estratégias terapêuticas. Área: Audição

VOZ E PROCESSAMENTO AUDITIVO: TEM RELAÇÃO??

Medidas de inteligibilidade da fala: influência da análise da transcrição e do estímulo de fala.

Produção de Oclusivas e Vogais em Crianças Surdas com Implante Coclear

TERMINOLOGIA DE RECURSOS VOCAIS SOB O PONTO DE VISTA DE FONOAUDIÓLOGOS E PREPARADORES VOCAIS

Diagrama de desvio fonatório na clínica vocal

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Departamento de Fonoaudiologia

Tempo Máximo de Fonação: influência do apoio visual em crianças de sete a nove anos

Foram considerados como participantes desse estudo, adultos com. idade entre 18 e 45 anos, alunos do curso profissionalizante de Radialista

60 TCC em Re-vista 2012

Fonoaudióloga Mestranda Ana Paula Ritto Profa. Dra. Claudia Regina Furquim de Andrade

Análise dos instrumentos de avaliação autoperceptiva da voz, fonoaudiológica da qualidade vocal e otorrinolaringológica de laringe em professores.

A voz do deficiente auditivo: revisão bibliográfica

MOVIMENTOS FACIAIS E CORPORAIS E PERCEPÇÃO DE ÊNFASE E ATENUAÇÃO 1

Eletroglotografia em crianças com e sem Transtorno Fonológico

Material desenvolvido com conteúdo fornecido pelas unidades acadêmicas responsáveis pelas disciplinas.

UTILIZAÇÃO DA LINGUAGEM FALADA POR CRIANÇAS USUÁRIAS DE IMPLANTE COCLEAR: LINGUAGEM FALADA DA CRIANÇA IMPLANTADA

Análise acústica e perceptivo-auditiva da voz em indivíduos com doença de Parkinson Idiopática nos estágios on e off

Luciana Lourenço Ana Paula Dassie Leite Mara Behlau. Correlação entre dados ocupacionais, sintomas e avaliação vocal de operadores de telesserviços

TÍTULO: DESVANTAGEM VOCAL EM CANTORES POPULARES PROFISSIONAIS E AMADORES COM E SEM TREINAMENTO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE MEDICINA

ACESSO LEXICAL E A RELAÇÃO COM A VELOCIDADE DE LEITURA DE

PERCEPÇÃO AUDITIVA E VISUAL DAS FRICATIVAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Thalita Evaristo Couto Dias

IDENTIFICAÇÃO AUDITIVA E ANÁLISE ACÚSTICA DA EMISSÃO Y-BUZZ DE LESSAC COMPARADA À EMISSÃO HABITUAL ESTUDO COM ATORES Autora: Viviane M.O. Barrichelo O

Alterações vocais no Parkinson e método Lee Silverman

Audição e linguagem em crianças deficientes auditivas implantadas inseridas em ambiente bilíngue: um estudo de casos

RELAÇÃO ENTRE TEMPO MÁXIMO DE FONAÇÃO, ESTATURA E IDADE EM CRIANÇAS DE 8 A 10 ANOS

Análise comparativa da eficiência de três diferentes modelos de terapia fonológica******

Perfil epidemiológico dos distúrbios da comunicação humana atendidos em um ambulatório de atenção primária à saúde

RESUMO SIMPLES. AUTOPERCEPÇÃO DA VOZ E INTERFERÊNCIAS DE PROBLEMAS VOCAIS: um estudo com professores da Rede Pública de Arari MA

Sintomas Vocais, Perfil de Participação e Atividades Vocais (PPAV) e Desempenho Profissional dos Operadores de Teleatendimento

ARTIGO ORIGINAL. Objetivo:

Voz e disfunção temporomandibular em professores

Correlações entre idade, auto-avaliação, protocolos de qualidade de vida e diagnóstico otorrinolaringológico, em população com queixa vocal

Estudos atuais Transtorno Fonológico

Diferenças entre o Português Europeu e o Português Brasileiro: Um Estudo Preliminar sobre a Pronúncia no Canto Lírico

Apoio Financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

ANÁLISE ACÚSTICA E PERCEPTIVO-AUDITIVO DA VOZ DE MULHERES ADULTAS DURANTE O CICLO MENSTRUAL

Características acústicas das vogais e consoantes

Relatório sobre as Especialidades em Fonoaudiologia. Conselho Federal de Fonoaudiologia

Análise dos aspectos de qualidade de vida em voz. após alta fonoaudiológica: estudo longitudinal

ANEXO IV DIRETRIZES PARA O FORNECIMENTO DE APARELHOS DE AMPLIFICAÇÃO SONORA INDIVIDUAL (AASI)

Sintomas vocais e desvantagem vocal em adultos usuários de implante coclear

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE MEDICINA. Adriana Jennifer Lopes Ribeiro Rosa

AVALIAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE TONICIDADE E DISTINÇÃO DE OCLUSIVAS SURDAS E SONORAS NO PB

PP CONSIDERAÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO FONOLÓGICO E DESVIOS DA FALA NO PORTUGUÊS

APLICATIVO MÓVEL PARA TREINAMENTO AUDITIVO PARA IDENTIFICAÇÃO DE ALTERAÇÕES DE FALA DECORRENTES DA FISSURA LABIOPALATINA

Relação entre o desenvolvimento cognitivo e a produção de atos comunicativos com função instrumental em crianças com síndrome de Down.

AVALIAÇÃO DA QUALIDADE DO ATENDIMENTO FONOAUDIOLÓGICO DE PACIENTES TRATADOS DO CÂNCER DE CABEÇA E PESCOÇO

FATORES QUE INTERFEREM NO DESEMPENHO DE USUÁRIOS DE IMPLANTE COCLEAR EM TESTES DE PERCEPÇÃO DE FALA

Phonological Disorder is a disturbance of primary manifestation

Voz ressoante em alunos de teatro: correlatos perceptivoauditivos e acústicos da emissão treinada Y-Buzz de Lessac

Data: 23/05/2017 Horário: 13h Local: Anfiteatro da Biblioteca. Apresentação: Brenda Catalani (4º ano) Susanna Ferruci (2º ano)

Palavras-chaves: Qualidade da voz; Qualidade de vida, docente. (4). Um importante aspecto a ser avaliado em processos

REABILITAÇÃO AUDITIVA PÓS IMPLANTE COCLEAR

29/05/14. Psicoacústica. Conceito. Psicoacústica. Psicoacústica. Lei de Weber-Fechner. Lei de Weber-Fechner

LESÕES DE BORDA DE PREGAS VOCAIS E TEMPOS MÁXIMOS DE FONAÇÃO

ReSound Sparx SP90-VI Perfeita Fusão entre Potência e Qualidade Sonora

O Programa de Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia da PUC-SP sugere a apresentação das teses em forma de estudos. Sendo assim, esta tese é

Escore Máximo. Masculino 50,63 17, , Feminino 52,21 18, ,27 29, Total 51,86 18, ,18 27,

Uso alternativo do sistema de frequência modulada (FM) em crianças com perda auditiva

INVESTIGAR AS EMISSÕES OTOACÚSTICAS PRODUTO DE DISTORÇÃO EM TRABALHADORES DE UMA MADEREIRA DO INTERIOR DO PARANÁ

Desempenho em prova de Memória de Trabalho Fonológica no adulto, no idoso e na criança Palavras Chaves: Introdução

Percepção Auditiva. PTC2547 Princípios de Televisão Digital. Guido Stolfi 10 / EPUSP - Guido Stolfi 1 / 67

ÍNDICE DE DESVANTAGEM VOCAL NOS LARINGECTOMIZADOS TOTAIS

AVANCES TECNOLOGICOS EN IMPLANTE COCLEAR Avanços tecnológicos em implante coclear. Dra. Kátia de Freitas Alvarenga Professora Titular USP/Bauru

Porcentagem de Consoantes Corretas (PCC) em crianças com e sem deficiência auditiva

A EFETIVIDADE DA REALIMENTAÇÃO NO TRATAMENTO DA GAGUEIRA DE DESENVOLVIMENTO: ESTUDOS COMPARATIVOS

Ouvir é bom? Fga Cristina Simonek Mestre em Ciências UNIFESP Doutor em Fonoaudiologia

PROTOCOLO DE ADAPTAÇÃO DE AASI EM ADULTOS

CONSELHO REGIONAL DE FONOAUDIOLOGIA 2ª REGIÃO SÃO PAULO

Revista CEFAC ISSN: Instituto Cefac Brasil

ESTUDO COMPARATIVO COM BRINQUEDOS RUIDOSOS COMPARATIVE STUDY WITH NOISY TOYS

AVALIAÇÃO ESPECTRAL DE FRICATIVAS ALVEOLARES PRODUZIDAS POR SUJEITO COM DOWN

ESTUDO COMPARATIVO ENTRE HABILIDADES AUDITIVAS E METALINGUISTICAS DE CRIANÇAS DE CINCO ANOS COM E SEM PRÁTICA MUSICAL INTRODUÇÃO

Características da duração do ruído das fricativas de uma amostra do Português Brasileiro

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ALINE VARGAS MAIA

REUNIÃO CLÍNICA: PERDA AUDITIVA E ATRASO DE LINGUAGEM

Speech perception in adolescents with pre-lingual hearing impairment with cochlear implants

Voz e fala de Parkinsonianos durante situações de amplificação, atraso e mascaramento

Implante coclear: audição e linguagem em crianças deficientes auditivas pré-linguais****

Aquisição e desenvolvimento da linguagem em crianças com implante coclear

Implante Coclear e Meningite - estudo da percepção de fala com amostras pareadas

PADRÃO FORMÂNTICA DA VOGAL [A] REALIZADA POR CONQUISTENSES: UM ESTUDO COMPARATIVO

Estudo do pré-vozeamento, frequência do burst e locus de F2 das oclusivas orais do Português Europeu

Transcrição:

Universidade de São Paulo Biblioteca Digital da Produção Intelectual - BDPI Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional - FM/MFT Artigos e Materiais de Revistas Científicas - FM/MFT 2009 Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear Pró-Fono Revista de Atualização Científica, v.21, n.1, p.7-12, 2009 http://producao.usp.br/handle/bdpi/9081 Downloaded from: Biblioteca Digital da Produção Intelectual - BDPI, Universidade de São Paulo

Ana Cristina de Castro Coelho* Maria Cecília Bevilacqua** Gisele Oliveira*** Mara Behlau**** Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear***** Relationship between voice and speech perception in children with cochlear implant *Fonoaudióloga. Especialização em Voz pelo Centro de Estudos da Voz. Endereço para correspondência: Praça Wenceslau Brás, 74 - Apto. 21 - Itajubá - MG - CEP 37500-038 (anacrisccoelho@yahoo.com.br). **Fonoaudióloga. Professora Titular da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ***Fonoaudióloga. Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (Unifesp - EPM). Vice-Coordenadora do Curso de Especialização em Voz do Centro de Estudos da Voz. ****Fonoaudióloga. Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp - EPM. Coordenadora do Curso de Especialização em Voz do Centro de Estudos da Voz do Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Unifesp - EPM. *****Trabalho Realizado no Centro de Estudos da Voz e na Universidade de São Paulo - Hospital de Reabilitação de Anomalias Crânio-Faciais - Centro de Pesquisas Audiológicas - Bauru - SP. Artigo Original de Pesquisa Artigo Submetido a Avaliação por Pares Abstract Background: the use of cochlear implant results in the optimization of speech perception, and, as a consequence in the development of oral language, speech and voice of its users, demonstrating to be one of the most effective and promissing technologies to remediate hearing loss. However, little has been studied about the relationship between auditory skills and the voice of children using cochlear implants. Aim: to relate the speech perception abilities to the vocal characteristics of cochlear implant users. Method: perceptive and acoustic analysis of the long vowel /a/ and counting of numbers were carried out. This analysis was compared to a standardized speech perception protocol, that evaluates the recognition of words, its phonemes and consonants. Results: it was observed that the higher the recognition of consonants, the higher the maximum frequency, standard deviation of the fundamental frequency and average of intensity during the sequential speech, as well as fundamental frequency average during the emission of the vowel /a/. Also, the higher the recognition of consonants, the lower the standard deviation of the quality of voice and resonance in the perceptive-auditory analysis. Conclusion: among the children with cochlear implants, the ones with better speech perception abilities present lower perceptive-auditory deviations of the quality of voice. Key Words: Voice; Quality of Voice; Cochlear Implant. Resumo Tema: o uso do implante coclear resulta na otimização da percepção de fala, e conseqüentemente no desenvolvimento da linguagem, fala e voz de seus usuários, sendo que tem se mostrado uma das tecnologias mais efetivas e promissoras para remediar a perda auditiva. Entretanto, pouco tem sido estudado sobre a relação das habilidades auditivas com a voz de crianças implantadas. Objetivo: relacionar as habilidades de percepção de fala com características vocais de crianças usuárias de implante coclear. Método: foram realizadas análises perceptivo-auditiva e acústica da vogal sustentada /a/ e da contagem de números. Essa análise foi comparada a um teste de percepção de fala padronizado que avalia o reconhecimento de palavras, seus fonemas e consoantes. Resultados: observou-se que quanto maior o reconhecimento de consoantes, maior a freqüência máxima, desvio padrão da freqüência fundamental e média de intensidade durante a fala encadeada, assim como a média da freqüência fundamental na análise da emissão da vogal /a/. Além disso, quanto maior o reconhecimento de consoantes menor o desvio geral da qualidade vocal e da ressonância. Conclusão: dentre as crianças com implante coclear, as que possuem melhor habilidade de percepção de sons da fala apresentam menores desvios perceptivo-auditivos na qualidade vocal. Palavras-Chave: Voz; Qualidade da Voz; Implante Coclear. Conflito de Interesse: não Recebido em 28.08.2008. Revisado em 08.12.2008. Aceito para Publicação em 03.02.2009. Referenciar este material como: Coelho ACC, Bevilacqua MC, Oliveira G, Behlau M. Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear. Pró-Fono Revista de Atualização Científica. 2009 jan-mar;21(1):7-12. Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear. 7

Introdução A voz varia de acordo com o contexto da fala e com as condições físicas e psicológicas do ser humano, sendo que há sempre um padrão básico de emissão que identifica a qualidade vocal. Alguns fatores podem acarretar prejuízo na produção vocal, dentre eles a perda de audição, que pode causar limitações sociais, emocionais, educacionais e de linguagem, com alterações específicas na comunicação relacionadas à fala e a voz. Geralmente, a voz não é o foco principal do trabalho fonoaudiológico com o deficiente auditivo, mas sua alteração pode representar um impacto tão negativo nessa população a ponto de interferir na inteligibilidade da fala e comprometer decisivamente a integração social do indivíduo. As alterações vocais mais encontradas no deficiente auditivo incluem tensão, soprosidade, aspereza, monotonia, ausência de ritmo, potência diminuída, qualidade desagradável 1, rouquidão, cansaço vocal, pitch elevado, redução da gama tonal, loudness com excessiva variação, desequilíbrio ressonantal, padrão respiratório alterado, ataque vocal brusco e articulação ininteligível 2. Essas características são justificáveis pela incapacidade dos falantes deficientes auditivos de controlarem seu desempenho vocal pela falta de monitoramento auditivo da própria voz, ocasionada pela perda de audição. Dessa forma, o desenvolvimento de uma fala inteligível com boa qualidade vocal para deficientes auditivos é um desafio, apesar dos avanços tecnológicos cada vez mais sofisticados dos aparelhos de amplificação sonora individual e dos implantes cocleares para otimizar o aproveitamento da audição residual. O implante coclear é um dispositivo eletrônico que desempenha parcialmente as funções das células sensoriais da cóclea e estimula diretamente o nervo auditivo, promovendo ótimos resultados nas habilidades comunicativas e de percepção auditiva de seus usuários. Sua indicação em crianças cada vez mais jovens tem sido amplamente discutida pela importância de facilitar o acesso à linguagem oral durante os anos ou durante os períodos críticos de aquisição da linguagem, reduzindo os efeitos da perda auditiva 3. Quando realizado precocemente, o implante coclear possibilita um desenvolvimento de linguagem semelhante a normalidade após certo período de uso 4. Atualmente, a cirurgia de implantação já é realizada com crianças a partir de 12 meses de idade e em alguns serviços internacionais crianças ainda mais jovens têm sido implantadas. Os critérios de seleção incluem a idade, grau de deficiência auditiva e os resultados com aparelhos de amplificação sonora 5. O implante coclear traz benefícios globais na linguagem receptiva e expressiva, incluindo a melhora da qualidade vocal. Resulta na otimização da percepção de fala, e conseqüentemente no desenvolvimento na comunicação oral de seus usuários, sendo que tem se mostrado uma das tecnologias mais efetivas e promissoras para remediar a perda auditiva. Com intuito de avaliar aspectos específicos da percepção de fala, pesquisadores têm desenvolvido estratégias que utilizam diferentes tipos de estímulo de fala. Delgado e Bevilacqua 6 propuseram um procedimento de avaliação de percepção dos sons da fala para crianças deficientes auditivas. O protocolo consiste em uma lista de 20 palavras dissílabas com estrutura silábica consoante-vogal/consoante-vogal, contendo todas as vogais e praticamente todas as consoantes nas posições inicial e medial das palavras. Os autores atribuíram escores para o acerto das palavras, acerto de fonemas (ambos vocálicos e consonantais) e acerto de consoantes. Essa subdivisão de palavras em fonemas e consoantes se deu pela tentativa de estabelecer quais os contrastes fonéticos que a criança é capaz de perceber, sendo que um alto índice de reconhecimento de fonemas e, dentre os fonemas as consoantes, sugere uma boa percepção de determinados sons da fala. Os traços distintivos de fonemas consonantais são mais difíceis de ser reconhecidos pelo deficiente auditivo do que os fonemas vocálicos, e por esse motivo é que foi proposta a análise do acerto de consoantes separadamente. Nos resultados do estudo que propôs este teste, foi concluído que o número de acerto de palavras inteiras foi significantemente menor do que o número de acerto de fonemas contidos nessas palavras, pois existem combinações que a criança não é capaz de reconhecer. Diversos trabalhos, embora alguns sejam controversos, têm mostrado as principais características vocais de usuários de implante coclear, como diminuição significativa da freqüência fundamental com uso do implante 7, normalização do controle da intensidade de fala, mas não da freqüência fundamental 8, freqüência fundamental e inteligibilidade de fala normais 9, melhora no desvio de pitch e prosódia dos deficientes auditivos após 8 Coelho et al.

seis meses de implantação, porém com manutenção dos desvios de ressonância, ritmo, loudness e qualidade vocal 10, diminuição da hipernasalidade 11, e melhora da articulação 12. Os ajustes motores empregados para que uma determinada qualidade vocal seja produzida depende enormemente da audição. A avaliação de discriminação auditiva-fonêmica normalmente apresenta-se pobre em deficientes auditivos com alterações vocais, portanto é imprescindível que as habilidades auditivas estejam preservadas, dentre elas um bom reconhecimento de fala para uma boa produção vocal 13. A literatura mostra que o implante coclear, além de todos os benefícios auditivos, também traz grandes vantagens para a produção vocal. Entretanto, pouco tem sido estudado sobre a relação das habilidades auditivas com a voz de crianças implantadas. Assim, esse estudo tem o objetivo de relacionar as habilidades de percepção de fala com características vocais de crianças usuárias de implante coclear. Método Este estudo recebeu aprovação prévia do Comitê de Ética em Pesquisas do Centro de Estudos da Voz (CEP-CEV 0115/07) e do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do HRAC-USP (ofício 297/2007). Os pais/responsáveis foram contatados para que as crianças pudessem participar do estudo e, se de acordo, receberam a carta de informação e o termo de esclarecimento sobre o trabalho e a garantia de sigilo quanto a quaisquer informações da identificação da criança, segundo orientações da Resolução 169 de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Saúde sobre estudos com seres humanos. Participaram deste estudo 25 crianças deficientes auditivas pré-linguais de grau severo a profundo implantadas no HRAC/USP, com idade de cinco a dez anos na época de realização da pesquisa, usuárias do implante Nucleus 24K. Os critérios de inclusão para a participação da pesquisa foram perda auditiva neurossensorial congênita de grau severo e/ou profundo bilateral, ausência de comprometimentos de natureza intelectual ou emocional, participação da criança em programa de (re) habilitação na cidade de origem e ser usuário de implante coclear há pelo menos três anos com média dos limiares auditivos de 500Hz, 1KHz, 2KHz e 4KHz menor ou igual a 30dB. Foram coletadas de cada participante a emissão da vogal /a/ e da contagem de números de um a dez. A coleta foi realizada por meio de gravação de voz no laboratório de voz da Clínica de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Para a gravação, foi utilizado o programa de gravação Sony Sound Forge - Sony Pictures Digital Inc. Version 7.0, microfone de cabeça H 74 com plugue P10 - Leson, posicionado à 45º com distância de 3cm da boca do participante, e Pré- Amplificador Voice Range Profile Preamplifier-Kay. As amostras de voz foram gravadas com taxa de amostragem de 44.100Hz e canal Mono em 16 bit. A avaliação perceptivo-auditiva da voz foi realizada por três juízes especialistas em voz por meio de uma escala analógica linear em ordem crescente. Os parâmetros selecionados foram o grau geral do impacto negativo da voz, rugosidade, soprosidade, tensão, instabilidade, presença de desvios de pitch, loudness e ressonância. Cada juiz recebeu um CD contendo as amostras das duas diferentes emissões de fala, que foram analisadas separadamente, de forma que não era possível identificar de qual sujeito pertencia cada emissão. A análise acústica da vogal /a/ e contagem de números utilizou os programas Multi-Dimensional Voice Program Advanced, e Multi-Speech da Kay Lab, e também foi realizada no laboratório de voz da Clínica de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo. Os parâmetros analisados para a análise da vocal /a/ foram a média da freqüência fundamental, desvio padrão da freqüência fundamental, jitter, shimmer, proporção harmônicoruído (NHR), índice de fonação suave (SPI) e índice de turbulência vocal (VTI). Já os parâmetros analisados na contagem de números foram a freqüência mínima, freqüência máxima, média e desvio padrão da freqüência, intensidade mínima, intensidade máxima, média e desvio padrão da intensidade. Além disso, foi realizada análise dos prontuários dos sujeitos participantes para extração de dados do teste de percepção de fala anteriormente descrito. Os dados extraídos foram a porcentagem de acerto de fonemas e consoantes, uma vez que esses escores dão informações suficientes para determinar o nível de reconhecimento auditivo da criança 6. A análise estatística das variáveis estudadas foi realizada por meio da Correlação de Spearman com nível de significância de 5%. O teste foi utilizado para a comparação dos dados acústicos e perceptivos da voz com o escore de reconhecimento de fonemas e de consoantes do teste de percepção de fala proposto 6. Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear. 9

Resultados Na análise perceptivo-auditiva dos dados foi observado que quanto maior o escore de consoantes, maior o desvio de loudness (p = 0,030) e menor o desvio geral da qualidade vocal (0,037) e da ressonância (p = 0,049). Além disso, vale comentar alguns dados próximos à significância estatística, como quanto maior o reconhecimento de consoantes e fonemas, menor o desvio geral da fala encadeada (p = 0,055) e quanto maior o reconhecimento de consoantes, menor tensão (p = 0,061) e pitch (p = 0,072) do /a/ sustentado (Tabela 1). TABELA 1. Correlação entre análise perceptivo-auditiva da qualidade vocal da vogal sustentada e fala encadeada com o escore de fonemas e consoantes do teste de percepção de fala. TPF Fonemas TPF Consoantes Material de Fala Correlação P-Valor Correlação P-Valor vogal /a/ grau geral 26,1% 0,207 39,9% 0,037* rugosidade 25,5% 0,219 24,6% 0,236 soprosidade -18,3% 0,380-5,6% 0,789 tensão 24,2% 0,244 38,0% 0,061 pitch 43,4% 0,030* 36,6% 0,072 loudness 30,5% 0,138 43,4% 0,030* ressonância 21,3% 0,308 39,8% 0,049* instabilidade 11,2% 0,593 12,1% 0,563 fala encadeada grau geral 38,8% 0,055 33,7% 0,100 rugosidade 8,3% 0,695 21,2% 0,308 soprosidade 3,3% 0,877 12,6% 0,547 tensão 27,6% 0,182 14,9% 0,478 pitch 9,8% 0,641-4,8% 0,821 loudness 14,7% 0,484-9,1% 0,667 ressonância 15,9% 0,447 12,9% 0,538 instabilidade 24,1% 0,246 20,8% 0,319 Os dados acústicos encontrados, quando comparados com os valores de normalidade fornecidos pela Kay Elemetrics para análise pediátrica 14 sugeriu que todos os parâmetros acústicos estudados com exceção da média da freqüência fundamental e índice de fonação suave encontram-se alterados, com valores acima da normalidade (Tabela 2). Na correlação entre os dados acústicos e as habilidades de percepção de fala, observou-se que quanto maior o reconhecimento de consoantes, maior a freqüência máxima (p = 0.026), o desvio padrão da freqüência fundamental (0,011) e a média de intensidade durante a fala encadeada (0,014), assim como freqüência fundamental (p = 0,020) e média da freqüência fundamental (p = 0,020) na análise da emissão da vogal /a/ (Tabela 3). TABELA 2. Comparação entre os achados acústicos com os valores de referência de normalidade da F 0 moda, média e DP (em Hz), do jitter (%), shimmer (%), do VTI (%), do SPI (%) e do NHR (%). Parâmetros Acústicos Normalidade Média dos Valores Encontrados F 0 média 279,05 261,93 F 0 DP 4,86 7,00 jitter 1,24 1,32 shimmer 3,35 3,73 VTI 0,05 0,06 SPI 9,8 4,99 NHR 0,11 0,13 Legenda: F 0 = freqüência fundamental; VTI = índice de turbulência vocal; SPI = índice de fonação suave; NHR = proporção harmônico-ruído. 10 Coelho et al.

TABELA 3. Correlação entre os parâmetros acústicos da F 0 moda, média e DP (em Hz), do jitter (%), shimmer (%), do VTI (%), do SPI (%) e do NHR (%) na vogal sustentada e da F 0 média, mínima, máxima e DP (em Hz) e da amplitude média, mínima, máxima e DP (em db) na fala encadeada com os escores de fonemas e consoantes do teste de percepção de fala. vogal /a/ Material de Fala TPF Fonemas TPF Consoantes correlação P-Valor Correlação P-Valor F 0 média 38,2% 0,059 46,1% 0,020* F 0 DP 36,1% 0,076 28,8% 0,162 jitter 4,7% 0,822 15,5% 0,460 shimmer 16,8% 0,422 18,1% 0,386 VTI 23,3% 0,261 23,2% 0,265 SPI -17,2% 0,411-28,7% 0,165 NHR 11,4% 0,587 18,9% 0,366 fala encadeada F 0 min -32,9% 0,108-16,2% 0,440 F 0 max 36,8% 0,070 44,4% 0,026* F 0 média -18,0% 0,389-27,0% 0,191 F 0 DP 39,0% 0,054 49,9% 0,011* amplitude mínima -14,4% 0,491 6,0% 0,776 amplitude máxima 6,6% 0,756 8,1% 0,701 amplitude média 27,5% 0,184 48,7% 0,014* amplitude Dp 18,3% 0,382-5,5% 0,794 Legenda: F 0 = freqüência fundamental; VTI = índice de turbulência vocal; SPI = índice de fonação suave; NHR = proporção harmônicoruído. Discussão Foi observado que quanto maior o escore de consoantes, maior o desvio de loudness, como encontrado em outros estudos 10, além de menor o desvio geral da qualidade vocal e da ressonância (Tabela 2). Além disso, dos dados próximos da significância estatística, temos que quanto maior o escore de consoantes e fonemas, menor o grau geral de desvio da fala encadeada. Esses achados sugerem que além dos benefícios para a percepção de fala, o implante coclear promove também o feedback auditivo necessário para uma produção equilibrada da voz 11, estando esses dois fatores interligados. Além disso, os resultados mostram que quanto maior o reconhecimento de consoantes, menor tensão e pitch do /a/ sustentado, o que também fala a favor da maior estabilidade vocal com o uso do implante, porém esse achado entra em contradição com alguns autores 7, que não encontraram correlações entre reconhecimento de fala e produção de fala. A comparação dos dados acústicos encontrados na emissão da vogal /a/ com os valores de referência da normalidade fornecidos pelo programa de análise acústica sugeriu que todos os parâmetros estudados, com exceção da média da freqüência fundamental índice de fonação suave (SPI), encontram-se alterados, com valores acima da normalidade, indicando que deficientes auditivos, mesmo usuários de implante coclear apresentam desvio de jitter, shimmer, proporção harmônico-ruído e índice de turbulência vocal. Observou-se que quanto maior o reconhecimento de consoantes, maior a freqüência máxima, o desvio padrão da freqüência fundamental e maior média de intensidade durante a fala encadeada, o que pode significar que as crianças que possuem melhor reconhecimento dos sons da fala apresentam melhores condições para apresentarem uma entonação de mais rica em termos de freqüência e intensidade durante a fala. Além disso, as crianças com maior reconhecimento de consoantes apresentaram maior média da freqüência fundamental e menor desvio padrão da Relação entre voz e percepção de fala em crianças com implante coclear. 11

freqüência fundamental na análise da emissão da vogal /a/, sugerindo que os sujeitos com maior reconhecimento dos sons fala, apesar de apresentaram emissão mais aguda da vogal sustentada, apresentam maior estabilidade desta (Tabela 1). Esses achados entram em concordância com alguns autores 7 e em contraposição com outros, que não encontraram nenhuma influência do implante na freqüência fundamental, sendo que apenas o controle de intensidade foi normalizado com seu uso 8. Os demais parâmetros acústicos, embora alterados, não foram sensíveis para se fazer uma relação precisa com as habilidades de percepção de fala. De forma geral, os resultados encontrados demonstram que existe uma relação positiva entre o reconhecimento de fala e uma boa produção vocal, assim como afirmam outros autores 13, que referem que crianças com alterações vocais apresentam pobre habilidade de percepção de fala. Implantes cocleares oferecem benefícios significantes para crianças deficientes auditivas em termos vocais e prosódicos 10. Além disso, algumas colocações 1-2 sobre as características da voz de deficientes auditivos não se aplicam a crianças implantadas precocemente. Conclusão Existe uma relação direta entre alguns parâmetros vocais com as habilidades de percepção de fala, a saber, o grau geral da alteração vocal, o desvio de ressonância, desvio da tensão e desvio do pitch. Assim, crianças com implante coclear e melhor habilidade de percepção de sons da fala apresentam menores desvios perceptivo-auditivos na qualidade vocal. É importante que as habilidades auditivas estejam preservadas, dentre elas um bom reconhecimento de fala para uma boa produção vocal. Referências Bibliográficas 1. Wirz SL, Subtelny JD, Whitehead RL. Perceptual and spectrographic study of tense voice in normal hearing and deaf subjects. Folia Phoniatr. 1981;33(1):23-36. 2. Hocevar-Boltezar I, Vatovec J, Gros A, Zargi M. The influence of cochlear implantation on some voice parameters. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2005 dec;69(12):1635-40. 3. Frederigue NB, Bevilaqcua MC, Otimização da percepção da fala em deficientes auditivos usuários do sistema de implante coclear multicanal Rev. Bras. Otorrinolaringol. 2003 mar-abr;69(2):227-33. 4. Stuchi RF, Nasciemento LT, Bevilacqua MC, Brito Neto RV. Linguagem oral de crianças com cinco anos de uso do implante coclear. Pró-fono. 2007 abr-jun;19(2):167-76. 5. Moret AML, Bevilacqua MC, Costa OA. Implante coclear: audição e linguagem em crianças deficientes auditivas prélinguais. Pró-Fono - Barueri (SP). 2007 jul-set;19(3):295-304. 6. Delgado EMC, Bevilacqua MC. Lista de palavras como procedimento de avaliação da percepção dos sons da fala para crianças deficientes auditivas. Pró-fono. 1999;11(1):59-64. 7. Hamzavi J, Deutsch W, Baumgartner WD, Bigenzahn W, Gstoettner W. Short-term effect of auditory feedback on fundamental frequency after cochlear implantation. Audiology. 2000 mar-apr;39(2):102-5. 8. Campisi P, Low A, Papsin B, Mount R, Cohen-Kerem R, Harrison R. Acoustic analysis of the voice in pediatric cochlear implant recipients: a longitudinal study. Laryngoscope. 2005 jun;115(4):1046-50. 9. Perrin ME, Berger-Vachon C, Le Dissez C, Kauffmann I, Morgon A. The normality of the voice of cochlear implant children. Advances in Otorhinolaryngology. 1995;50(2):167-73. 10. Lenden JM, Flipsen Jr P. Prosody and voice characteristics of children with cochlear implants. Journal of Communication Disorders. 2006 jan-feb;40(1):66-81. 11. Nguyen LH, Allegro J, Low A, Papsin B, Campisi P. Effect of cochlear implantation on nasality in children. Ear, nose throat J. 2008 mar;87(3):140-3. 12. Kunisue K, Fukushima K, Nagayasu R, Kawasaki A, Nishizaki K. Longitudinal formant analysis after cochlear implantation in school-aged children. 2006 dec, Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 70(12):2033-42. 13. Buosi MMB. A interdependência entre habilidades auditivas e produção vocal. Fono Atual. 2002 abrjun;5(20):54-7. 14. Campisi P, Tewfik TL, Manoukian JJ, Schloss MD, Pelland-Glais E, Sadeghi N. Computer-Assisted Voice Analysis: Establishing a Pediatric Database. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2002 feb;128:156-60. 12 Coelho et al.