CONTRATOS PÚBLICOS E PROJECT FINANCE Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 23 de Julho de 2004 I. O QUE É O PROJECT FINANCE? 1. Introdução a) Noção básica Método de financiamento de projectos infraestruturais de longo prazo com base nos cash-flows previsíveis ou capacidade de gerar receitas do próprio projecto. Ou seja, com base na análise da capacidade de o próprio projecto gerar receitas e não na análise do histórico da sociedade incumbida de desenvolver o projecto. É isto que distingue o Project Finance. b) Financiamento privado de projectos públicos não é novidade (Ex: renovação dos caminhos de ferro ingleses nos séculos XVIII e XIX). c) O próprio mecanismo de Project Finance também não é novo: - Utilizado nos anos trinta para projectos de recursos naturais (extracção de minério, petróleo, etc);
- Desenvolvimento nos anos setenta na sequência da crise petrolífera e do crescimento de défices orçamentais e da dificuldades em realizar despesa. 2. Noção de Project Finance a) Trata-se de uma forma de financiamento de projectos, que envolve um conjunto de contratos de natureza muito variada b) Elementos essenciais - Envolve a criação de um veículo - o Special Purpose Vehicle (SPV) - para o projecto, cujo único objecto é a realização desse projecto; - É utilizado, normalmente, para um novo projecto e não para uma actividade já em desenvolvimento; - Existe uma elevada percentagem de financiamento externo do projecto (debt), face à precentagem suportada pelos accionistas (equity) (70 a 90% para 30 a 10%, respectivamente); - Não existem garantias para o financiamento externo do projecto (non recourse finance) ou existem apenas garantias limitadas (limited recourse finance). Em regra, são os próprios cash-flows que garantem o financiamento. Quanto mais garantias, mais o Project Finance se assemelha a uma parceria público-privada com recurso ao crédito com a análise de crédito tradicional. É por isto que a fronteira não é evidente nem clara; - Os financiadores dependem da análise dos cash flows previsíveis do projecto. Ou seja, na capacidade de o próprio projecto gerar recursos. Não dependem do valor
do património do SPV, da análise do seu historial ou de outro tipo de análise de crédito da entidade privada; - O projecto tem um determinado lapso temporal de duração (fim do prazo de concessão, etc.). Os financiamentos externos devem estar integralmente pagos no final. - Principal segurança para os investidores são os contratos e licenças do projecto. Normalmente são contratos públicos que conferem/atribuem a uma entidade o direito de realizar o projecto. c) Contratos geralmente associados a um Project Finance - O Project Agreement ou contrato habilitante do projecto, que pode ser um contrato de concessão que dá ao SPV o direito de construir e explorar o projecto, seja através da prestação de um serviço a entidades públicas ou a particulares. É este o contrato público normalmente associado ao Project Finance. Mas atenção: a. Pode não ser um contrato. Pode ser uma licença ou autorização; b. E pode não ser um celebrado com pessoa colectiva pública, mas antes uma posição contratual resultante de um contrato com outros privados que garanta a venda de um produto gerado pelo projecto a um preço fixado a longo prazo (p.ex. um contrato Take or Pay). - Contrato de Construção, que pode ser de tipo chave na mão (Engineering, Procurement and Construction Contract). Ou seja, um contrato de tipo chave na mão
para a concepção e construção do projecto por um preço fixo, para estar construído numa data fixada. - Contrato de Fornecimento (Input Supply Contract). Ou seja, um contrato que permita o fornecimento de combustível ou outro produto permanentemente necessário ao desenvolvimento do projecto a longo prazo, de acordo com fórmula previamente convencionada. - Contrato de Gestão (Operating and Maintenance Contract). Incumbe um terceiro da execução do projecto depois de construído. - Contrato de Apoio Público ou Contratos de Atribuição (Government Support Agreement). Apoios, garantias e benefícios fiscais dadas ao projecto e ao investimento pelo Estado. Muito relevante em investimentos em Estados subdesenvolvidos. - Contratos de financiamento com financiadores. d) Aplicações - Construção de Auto-Estrada, com base em contrato público de concessão de obras públicas, e posterior exploração com pagamento por privados; - Montagem e exploração de Hospital, com base em contrato público de concessão de serviço público, com pagamento do serviço pelo Estado; - Construção de central eléctrica, com base em contrato público de compra e venda, 3. Distinção de Parceria Público-Privada (PPP) a) Noção de PPP (art. 2.º e 7.º-b) Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de Abril)
i) Delegação de uma entidade pública numa entidade privada da responsabilidade por executar, prestar, manter ou financiar uma obra, infraestrutura ou serviço, 1 ii) de forma duradoura, iii) para satisfazer uma necessidade colectiva, iv) em que investimento, pelo menos parcial, e exploração cabem ao privado. 2 v) quinto elemento duvidoso: Efectiva transferência de riscos para a parte privada (art. 7.º-b) Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de Abril) b) Distinção de Project Finance Pode envolver Project Finance ou não. Por exemplo, não envolve Project Finance, mas é uma PPP: - A simples concessão da gestão de um Hospital a um privado, pagando-lhe o Estado um montante acordado; - A concessão de um serviço público de fornecimento de electricidade a um privado quanto a uma infraestrutura já existente ou que não careça de financiamento estrutural através da avaliação e análise de um projecto; e, - Concessão do mesmo serviço público que careça de financiamento, mas este não se faça com base nos cash-flows do projecto. Por exemplo, é Project Finance, mas não PPP um projecto em que apenas figurem privados. Ex: Contrato de longo prazo celebrado entre companhias petrolíferas e SPV no qual se estabeleçam fórmulas para um preço a longo prazo, incumbido a esta o fornecimento de um bem. 1 Poderá ser para proporcionar uma necessidade colectiva de forma indirecta? Por exemplo, através de um contrato de fornecimento de bens que entidade públicas possam utilizar no desempenho das suas atribuições e competências. 2 Trata-se de qualquer investimento? A verdade é que quase todos os contratos implicam um investimento da parte privada. Mas se a interpretação for no sentido de o investimento implicar a construção do serviço, bem ou equipamento, então ficam de fora importantes contratos que deveriam estar incluídos no conceito de PPP. Por exemplo, os contratos de exploração do domínio público de concessão da gestão de hospitais.
4. Tipos de Project Finance a) BOOT (Build-own-operate-transfer) A SPV faz o projecto e é proprietária e operadora por um período de tempo. No final, transfere para o sector público a propriedade. Em Portugal isto não é possível quanto a bens do domínio público. b) BOT (Build-operate-transfer) A SPV faz o projecto e opera por um período de tempo. Não é proprietária, mas pode ter um arrendamento ou leasing dos equipamentos. Logo, no final, não transfere para o sector público a propriedade. Também conhecido por DBFO (Design-build-finance-operate). O normal nos casos portugueses de concessão de obras públicas. c) BTO (Build-transfer-operate) A SPV faz o projecto. Após a construção, transfere a propriedade para o sector público. Depois disso, é operadora por um período de tempo. Não é proprietária depois da construção. Logo, no final, não transfere para o sector público a propriedade. d) BOO (Build-own-operate) Propriedade mantém-se sempre na SPV. O normal em projectos com o sector privado ou com o sector público, quando seja sustentado por um contrato que garanta preço ou fórmula de preço para um período de longo prazo. 5. Porquê Project Finance?
Existem várias razões. Aqui estão algumas das razões mais ligadas às opções de políticas públicas. a) Rapidez na concretização de projectos b) Possibilidade de realização de projectos com despesa pública não imediata c) Custos geralmente mais reduzidos d) Tendência para o preço final ser mais baixo Num projecto com elevada percentagem de investimento externo (debt), o nível de receita para obter um determinado lucro pretendido pelo investidor é menor que o necessário para garantir esse lucro num projecto com escassa percentagem de investimento externo. Isto normalmente não é assim em teoria, porque o accionista esperaria um lucro maior num projecto com elevada percentagem de financiamento externo, uma vez que este implica um risco acrescido. Só que, no Project Finance, a elevada percentagem de financiamento externo não significa maior risco. e) Os investimentos em grandes projectos implicam grandes investimentos, mas não uma elevada e rápida remuneração Os financiadores estão, em regra, mais dispostos a aceitar uma remuneração menor pelo capital emprestado (debt) que os accionistas pelas suas entradas (equity). O facto de a percentagem de capital financiado por terceiros ser muito maior (70% a 90% num Project Finance) que o capital investido pelos accionistas torna-o especialmente adequado para estes grandes projectos. 6. A experiência portuguesa em Project Finance
a) Ponte Vasco da Gama Lusponte (Decreto-Lei n.º 168/94, de 15 de Junho e Resolução do Conselho de Ministros n.º 121- A/94, de 15 de Dezembro) Aspectos particulares: Caso de Concessão de Obra Pública para Ponte Vasco da Gama e Concessão de Exploração de bem do domínio público para Ponte 25 de Abril (concessão da gestão), por período máximo de 33 anos, com condições quanto ao volume de tráfego (actualmente 35 anos, sem variação em função do volume de tráfego). Em Project Finance. (Base II do Decreto-Lei n.º 168/94, de 15 de Junho e cláusula 6.ª da minuta de contrato aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 121-A/94, de 15 de Dezembro) Caso de Limited Recourse Project Finance. Financiamento através da emissão de dívida obrigacionista, garantida pelo Estado. Não era só financiado com base nos cash-flows previsíveis (Bases XXIII e XXIV e cláusulas 27 e 28). Havia ainda subsídio da UE (Base XXV e cláusula 29) Caso de BOT/DBFO. Concepção, construção, financiamento e operação. Existência de Caso-Base. Ocorrência de várias modificações unilaterais, que levou a celebração de vários acordos de reequilíbrio financeiro, a partir do Caso-Base (congelamento dos preços das portagens, via de utilizador frequente e isenção no mês de Agosto). Encargos com este contratos: várias dezenas de milhões de contos. b) SCUTS (Decreto-Lei n.º 267/97, de 2 de Outubro) Concessões de Obra Pública, com portagem virtual, paga pelo Estado e não pelos utilizadores (artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 267/97, de 2 de Outubro). Casos de BOT/DBFO. Concepção, construção, financiamento e operação.
Existência de Caso-Base. c) PPPs dos hospitais Regime legal prevê a concessão a privados de uma, ou várias, das seguintes tarefas: concepção, construção, financiamento, conservação e exploração dos estabelecimentos (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 185/2002, de 20 de Agosto). Denomina-se Contrato de Gestão, mas é um tipo de Contrato de Concessão de Serviço Público, se envolver a montagem do serviço. Regime legal aceita projectos em Project Finance. Abrangendo a concepção, construção, financiamento, conservação e exploração com recurso a financiamento externo de longo prazo, analisado com base nas receitas expectáveis, trata-se de um Project Finance. E do tipo BOT/DBFO. O financiamento é externo, como resulta do artigo 22.º. A remuneração é efectuada pelo Estado, e não pelos utentes (artigo 18.º e 19.º-3). E permite a construção de um Caso-Base. Nalguns concursos já lançados adoptou-se um modelo que pode criar algumas dificuldades: um hospital/duas concessões de gestão. Uma para o edifício, para a gestão infraestrutural e outra para a prestação de serviços clínicos e cuidados de saúde. II. O CONTRATO PÚBLICO NO ÂMBITO DE UM PROJECT FINANCE 1. Tipos de contratos públicos mais comuns em Project Finance a) Noção de contrato público
Associada aos contratos regulados pelo direito comunitário: empreitada de obras públicas, concessão de obras públicas (este último por força da interpretação evolutiva da Comissão Europeia), prestação de serviços e fornecimentos de bens b) Tipos de contratos celebrados com pessoas colectivas em que Project Finance é mais comum - Concessão de obras públicas Contrato através do qual particular assume dever de executar ou conceber e executar obra pública, ficando com o direito de a explorar, podendo, ou não, cobrar um preço. O único que é um contrato público na acepção comunitária. Contrato típico como habilitante de um Project Finance. Grande projecto infraestrutural de longo prazo, a suportar por privado, podendo ser criado SPV financiável através do próprio projecto. Ex: Ponte Vasco da Gama e SCUTS. - Concessão de serviços públicos Efectuam e regulam a transferência da responsabilidade de montar e gerir uma actividade de serviço público de uma entidade pública para um terceiro, normalmente privado. Também é um contrato típico como habilitante de um Project Finance. Grande projecto infraestrutural de montagem e gestão de todo um serviço, podendo ser criada SPV, para ser financiada através do projecto. Pode ser o caso das PPPs da saúde no âmbito da construção de hospitais. - Concessão de exploração (concessão da gestão) do domínio público Tranferência para particular de poderes relativos à gestão e exploração de um bem público. Não se confunde com a concessão de serviços públicos. Este não envolve a montagem do serviço público.
Neste, como não há, em regra, financiamento para construção de infraestrutura, o Project Finance será menos usual. - Contrato de fornecimento contínuo ou prestação de serviços Também podem proporcionar um Project Finance, embora seja menos óbvio. Suponha-se que é celebrado um contrato de fornecimento contínuo de um bem ou prestação de serviços de longo prazo, com um preço pré-fixado (p.e. tipo take or pay). Para o cumprir pode ser necessário realizar um projecto infraestrutural. 2. Especificidades de conteúdo do contrato público de um Project Finance a) Formas particulares de indemnizar e de calcular a indemnização: o caso-base a. Noção de Caso-Base Caso-Base é a equação financeira, constituída por um modelo financeiro. Tenta prever a evolução do projecto durante o seu prazo de duração. Normalmente em anexo ao contrato. b. Papel na reposição do reequilíbrio financeiro Visa minimizar os riscos associados ao projecto, tendo normalmente um papel no reequilíbrio financeiro. Exemplo: SCUT do Grande Porto reconhece o Caso Base nas Bases LXXXIII e LXXXIV. Caso Base é forma de efectuar o reequilíbrio financeiro. Só pode ser alterado quando haja lugar a reposição do equilíbrio e para reflectir a reposição. Há reposição do equilíbrio nas seguintes situações:
- Modificação unilateral por interesse público; - Ocorrência de caso de força maior; - Alterações legislativas de carácter específico, com impacto directo sobre as receitas ou custos; - Outros casos previstos no contrato. (Bases LXXXIII e LXXXIV do Decreto-Lei n.º 189/2002, de 28 de Agosto e cláusulas 86 e 87 da minuta aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 114/2002, de 28 de Agosto, com importante Declaração de Rectificação n.º 27-A/2002, de 28 de Agosto). b) Reconhecimento de formas de financiamento Bases da concessão e cláusulas contratuais que reconhecem o tipo e realidades de financiamento. Exemplo: SCUT do Grande Porto. Financiamento integral pela concessionária, excepto quanto às indemnizaçõs por expropriações que ultrapassem um certo limite. (Bases XIX, XX e XXIII do Decreto-Lei n.º 189/2002, de 28 de Agosto e cláusulas 22, 23 e 26 da minuta aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 114/2002, de 28 de Agosto, com importante Declaração de Rectificação n.º 27-A/2002, de 28 de Agosto) III. CONCLUSÕES 1. O contrato público em Project Finance não é figura nova. 2. As especificidades do Project Finance encontram-se nos mecanismos de financiamento e no acervo de contratos do projecto globalmente considerado em geral e não no contrato público. 3. O contrato público só reflecte essas especificidades, normalmente nas cláusulas relativas ao Caso-Base e ao financiamento do projecto. 4. Futuros desenvolvimentos. Novas aplicações de Project Finance.
5. Tem sido sobretudo em grandes obras públicas, para fugir ao acréscimo de despesa pública. Mas pode ter outros propósitos. Ex: Fomento do mercado de arrendamento.