INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS PERCEPÇÃO E NEUROSE



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Transcrição:

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS PERCEPÇÃO E NEUROSE Maria Fernanda Guita Murad Freud ao estudar o mecanismo psíquico presente nos chistes, lapsos, sintomas e sonhos nos abre uma porta para o inconsciente da psicanálise. Ao escrever a Interpretação dos Sonhos em 1900, nos apresenta um estudo onde demonstra como os sonhos revelam os mecanismos psíquicos que atuam no inconsciente. Através dos mecanismos de figuração (stellbarbrit), deslocamento (verchiebrung) e condensação (verdichtung) que ocorrem no pensamento do sonho, o autor nos mostra o que se passa no psiquismo humano. Os sonhos são uma formação do inconsciente e a partir de sua decifração é possível sabermos algo sobre o sujeito. O sujeito endereça ao outro sua verdade. O sujeito está interessado em se enunciar, insiste em se enunciar, e o faz através dos sonhos. O sonho é, portanto, a via de acesso ao inconsciente. O sonho passa pela linguagem, é o que demonstra Freud nos sonhos onde as palavras estão presentes como resultado do deslocamento e da condensação, como por exemplo, no sonho de Freud onde aparece a palavra Autodidasker que irá ser decifrada por ele para ter acesso ao conteúdo do sonho. Lacan extraiu com excelência este aspecto ao afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, ou seja, por metáfora e metonímia, privilegiando sempre o significante.

O sonho se apresenta sob a forma que Freud chamou de conteúdo do sonho, que seria o conteúdo manifesto do sonho, aquele que a elaboração secundária exerceu um novo trabalho a serviço da censura. Os pensamentos oníricos seriam os pensamentos inconscientes que originaram o sonho, seu conteúdo latente. Conforme Freud, o conteúdo do sonho surge-nos como uma transferência dos pensamentos oníricos para um outro modo de expressão cujos sinais e leis de composição temos que aprender a conhecer. Na deformação do sonho Freud observou os mecanismos de deslocamento, condensação e figuração. A condensação seria uma estrutura de superposição e o deslocamento um meio adequado para despistar a censura. O desejo, tendo sofrido o deslocamento e a condensação, aparece disfarçado na figuração do sonho. A censura do sonho tem como efeito a desfiguração do conteúdo do sonho, ou seja, a deformação onírica. O paciente resiste por força da censura. A resistência aparece, então, como fenômeno clínico apontando para o recalcado, para aquilo que o paciente não suporta lembrar. O sonho é uma realização de desejo. A questão do inconsciente é o desejo; o inconsciente não é ôntico e sim ético. O sujeito da psicanálise é o sujeito do desejo. Não há um ser originário, mas aparências de ser. O desejo tampouco é sinônimo de prazer. O princípio do prazer visa evitar o desprazer, evitar a tensão desagradável. Contudo, o desejo está ligado também à pulsão de morte, fato que Freud irá constatar em 1920 em Além do Princípio do Prazer, apontando para o aspecto mais elementar do desejo que é a irrealização.

Portanto, os sonhos traumáticos também são da ordem da realização do desejo, justamente em seu aspecto mais intrínseco que é o desejo como irrealizável, evidenciando, assim, o encontro faltoso. Sendo assim, repetimos marcas não lembradas, marcas que jamais se extinguem. Repete-se o encontro faltoso onde o desejo é irrealizável. Freud observa a pulsão de morte através dos sonhos traumáticos, sonhos de angústia, que não fugiriam à realização do desejo já que repetem o desejo na relação com o objeto perdido. Portanto, tanto os sonhos onde a realização de desejo nos parece evidente, onde após a decifração do pensamento do sonho vemos surgir o sujeito e o conteúdo recalcado, também os sonhos de angústia correspondem à realização do desejo na medida em que repetem o desejo em seu aspecto relativo à pulsão de morte, ou seja, primariamente o encontro faltoso. Nos sonhos traumáticos repete-se o que é mais intrínseco ao desejo que é o seu caráter de irrealizável. Portanto, vemos nos sonhos a presentificação do desejo. Vemos através do estudo dos sonhos os mecanismos psíquicos que atuam no inconsciente. Vejamos agora, especificamente, como os restos diurnos se relacionam com a percepção e o desejo e como poderiam nos fornecer alguma hipótese sobre o que ocorre na neurose. Conforme mencionei no sonho do Autodidasker, Freud descreve os mecanismos de deslocamento e condensação presentes na própria linguagem do sonho. Em relação a este sonho Freud aponta que este repete uma fantasia diurna inconsciente. Além do termo Autodidasker, Freud lembra claramente do pensamento do sonho, que se referia a um resto diurno, um episódio que havia ocorrido entre ele e o professor N e que aparecia no sonho através da frase: O paciente sobre cujo estado eu o consultei recentemente está de fato sofrendo apenas de

uma neurose, justamente como o senhor suspeitava. Esta seria uma reprodução fiel de uma conversa de Freud com o professor N. Freud queria falar-lhe algo a fim de reparar o que não havia lhe dito dias atrás sobre o estado de um paciente. Queria dizer-lhe que ele Freud estaria enganado a respeito de tal paciente e que o professor N estaria certo sobre o diagnóstico. Conforme Freud, Autodidasker pode ser analisado como autor (autor), Autodidakt (autodidata) e Lasker (Lassale). Cada um desses termos juntamente com o resto diurno da conversa de Freud precipitou o sonho por sua relação com o recalcado. Porém, vamos nos ater ao que se refere aos restos diurnos. Este sonho após sua decifração, revelava a preocupação de Freud com o perigo despertado numa conversa com sua mulher dias atrás sobre o futuro de seus filhos, onde esta lhe contava sobre a história de David, um homem de talento que se arruinou. A partir da conversa tida com o professor N e incorporá-la ao sonho, Freud repetiu seu desejo de estar enganado sobre seus temores, ou melhor, como ele descreve, seu desejo era de que sua esposa estivesse enganada em sua preocupação para com os filhos. O que pretendo chamar a atenção é como o psiquismo humano, a percepção aliada ao desejo, se apropria da realidade e a interpreta conforme o recalcado. Isso pode ser observado pela forma como o sonho é produzido a partir dos restos diurnos. O autor descreve também um sonho contado por uma paciente sua que também ilustra essa hipótese. Trata-se de um sonho onde um resto diurno teve papel importante na formação deste. Um pai passou dias a fio na cabeceira do filho enfermo e após o falecimento deste passou para um quarto contíguo para repousar deixando uma porta aberta para que pudesse enxergar de seu quarto a peça onde o filho jazia. Haviam

longas velas em torno do filho e fora contratado um velho para murmurar preces ao seu lado. O pai pegou no sono e teve um sonho onde o filho aparecia ao seu lado de pé o tomando pelo braço e sussurrando-lhe em tom de censura Pai, não vês que estou queimando?. O pai então acorda e percebe um clarão vindo do quarto do filho e vê que as roupas e um dos braços do filho haviam sido queimados por uma vela acesa que caira sobre ele. Conforme Freud, o clarão de luz chegou ao rosto do pai, como um resto diurno, e contribuiu na formação do sonho. Freud vê nesse sonho uma realização de desejo, pois nele o filho morto se comporta como se estivesse vivo. O pai prolongou o sono por isso. Conforme o autor, o pai preferiu sonhar do que ter a reflexão desperta da morte do filho. Podemos observar como a formação do sonho se apropria da percepção para atender ao desejo do sonhador. Esse sonho foi analisado por Freud em 1900, ainda sem a conceituação da pulsão de morte. Lacan, em Tiquê e Autômaton (Livro XI, 1964), fala que a percepção está relacionada com o desejo e descreve como isso seria demonstrado através do sonho descrito por Freud que citamos acima. Conforme Lacan, o sonhador ao perceber o clarão das chamas, introduz essa percepção imediatamente ao pensamento onírico. Este sonha com o filho a repreender-lhe para perpetuar seu próprio remorso, segundo Lacan. O pai se repreenderia por deixar velar o filho alguém que não estava à altura de desempenhar bem a tarefa. Conforme Lacan, indo além da análise de Freud, mas a partir do conceito de Freud de pulsão de morte, nesse sonho de angústia a realização do desejo se efetiva também em sua

forma mais elementar que é a do desejo irrealizável, do encontro com o objerto perdido, o filho morto. Neste sonho, o sonhador ao introduzir no sonho a frase de repreensão: Pai, não vês que estou queimando?, testemunha que a percepção é traduzida pelo recalcado, ou seja, pelo remorso do pai. O pai através de sua percepção do fogo, a insere no seu desejo, contudo, desejo irrealizado, onde o objeto filho está perdido. Por outro lado, está presentificado aí o remorso do pai dada a sua preocupação ainda antes de dormir se o filho estaria bem cuidado. Conforme Lacan, o que desperta o sonhador do sono, nesse caso, não é o clarão das chamas, mas o encontro faltoso. Sobre o sistema perceptual, vemos em Notas sobre o Bloco Mágico (Freud, 1925), que consciência e memória se excluem. Freud ressalta que nosso aparelho mental possui uma capacidade receptiva ilimitada para novas percepções e registra delas traços mnêmicos permanentes embora não inalteráveis. A percepção humana deveria, portanto, ser dividida e composta em dois sistemas diferentes. Temos um sistema Pcpt-Cs, que recebe percepções, mas não retém traço permanente delas, podendo reagir como uma folha em branco a toda nova percepção, ao passo que os traços permanentes das excitações recebidas são preservados em sistemas mnêmicos contíguos. O fenômeno da consciência surge no sistema perceptual em lugar dos traços permanentes. Freud faz um paralelo entre o Bloco Mágico e a estrutura hipotética do aparelho perceptual que parece ir além do sistema Pcpt- Cs:

Contudo, se é examinada mais de perto, descobre-se que sua construção apresenta uma concordância notável com a minha estrutura hipotética de nosso aparelho perceptual e que, de fato, pode fornecer tanto uma superfície receptiva sempre pronta, como traços permanentes das notas feitas sobre ela. ( Id. P. 287, grifo nosso) Freud refere nesse texto, que Em Além do Princípio do Prazer (1920) havia descrito que o aparelho perceptual consistiria em duas camadas, ou seja, um escudo protetor externo contra os estímulos para diminuir a intensidade das excitações que estão ingressando e de uma superfície por trás dele receptora dos estímulos que corresponderia ao sistema Pcpt-Cs. Contudo, o autor ressalta que sua atual hipótese do aparelho perceptual iria muito mais além do que sua concepção anterior. Fazendo uma analogia com o funcionamento do Bloco Mágico, Freud expõe o que ocorreria no aparelho perceptual. A construção do bloco demonstra que se levantarmos a folha de cima a escrita se apaga e novas escritas poderão se feitas. Mas vemos também que se levantarmos as duas folhas do Bloco Mágico o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a prancha de cera sob a forma de sulcos. Assim, temos uma superfície receptiva que pode ser utilizada inúmeras vezes e também os traços permanentes do que foi escrito. Descreve, então: Assim o Bloco fornece não apenas uma superfície receptiva, utilizável repetidas

vezes como uma lousa, mas também traços permanentes do que foi escrito, como um bloco comum de papel: ele soluciona o problema de combinar as duas funções dividindo-as entre duas partes ou sistemas componentes separados mas interrelacionados. Essa é exatamente a maneira pela qual, segundo a hipótese que acabo de mencionar, nosso aparelho mental desempenha sua função perceptual. (Id., p289) Freud, na Carta 52 (1950[1892-1899]), propõe que o material presente em forma de traços de memória está sujeito a rearranjos e explica como uma falha nesse curso origina a neurose. A memória não se faz presente de uma vez só, se desdobra em vários momentos e é registrada em diferentes espécies de indicações. Freud destaca três tipos de registros de memória referentes à realizações psíquicas de épocas sucessivas da vida. Cada transcrição subseqüente inibe a anterior e lhe retira o processo de excitação. Se faltar uma transcrição posterior, a excitação é conduzida segundo as leis psicológicas do período anterior. Cria-se um anacronismo. Ocorre uma falha na tradução, o que se conhece clinicamente por recalque. Seu motivo é evitar o desprazer que seria gerado se a tradução fosse feita. Cria-se uma defesa patológica contra um traço de memória de uma fase anterior, que ainda não foi traduzido. Podemos perceber através dos sonhos onde os restos diurnos produzem a cena do sonho, onde a percepção de algo externo ao sonho é apropriada pelo sonhador a partir de seu desejo, como funciona a percepção humana. Através de percepções que são interpretadas de acordo com o desejo do sujeito, a partir do recalcado, ocorre a repetição. Repete-se uma falha na tradução. Nesse aspecto, vemos também como o analista,

no lugar do a, como um resto diurno pode suscitar a associação de desejo do paciente. A neurose de transferência, nada mais seria que o analista tomado como resto diurno, resultasse numa formação do inconsciente, propiciando a emergência do recalcado. O que parece curioso, o fato do sonhador se servir do estímulo percebendo-o como pertencente ao pensamento do sonho, parece nos fornecer uma pista de como se comporta o psiquismo humano na neurose. A percepção humana em situação de vigília, na neurose, faz exatamente isso, percebe sob a égide do recalcado. O estudo dos sonhos nos oferece uma compreensão do funcionamento do inconsciente através dos mecanismos de deslocamento e condensação que servem à censura no intuito de evitar o desprazer. O recalque é uma falha na tradução do insuportável. A percepção, a exemplo do que se passa no sonho a partir dos restos diurnos, estando ligada ao desejo do sonhador e relacionada ao real da castração, interpreta a vida de vigília a partir dos traços de memória do material recalcado, constituindo o discurso neurótico.

BIBLIOGRAFIA: 1- FREUD, S. (1950 [1892-1899]) Extratos dos Documentos Dirigidos a Fliess, Carta 52, ESB, Vol I, RJ, Imago, 1969. 2- (1900) A Interpretação dos Sonhos, Vol IV, RJ, Imago. 3- (1900-1901) A Interpretação dos Sonhos, Vol V, RJ, Imago. 4- (1916-1917 [1915-1917]) Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Vol XV, RJ, Imago. 5- (1920) Alem do Princípio do Prazer, Vol XVIII, RJ, Imago. 6- (1924) A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, Vol XIX, RJ, Imago. 7- LACAN, J. (1953-1954) Seminário, Livro 1, Os Escritos Técnicos de Freud, RJ, JZ ed. 8- (1954-1955) Seminário, Livro 2, O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, RJ, JZ ed. 9- (1964) Seminário, Livro 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, RJ, JZ ed.