A SEGURANÇA DE CHÁVEZ E A (IN)SEGURANÇA DE SEUS VIZINHOS Eduardo Ishida, Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP, na área de concentração em Paz, Defesa e Segurança Internacional. Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES) da UNESP- Marília e Oficial da Aeronáutica. eishida@gmail.com A partir de 2005, o governo de Hugo Chávez iniciou uma intensa articulação para (re)aparelhar as forças armadas venezuelanas. Entre as recentes aquisições, majoritariamente de origem russa, encontram-se sofisticados fuzis de assalto AK-103 Kalashinikov, helicópteros de transporte e ataque MI-17/26/35, além de modernas aeronaves de combate multi-role Sukhoi SU-30MK2 - que não possuem similares na América do Sul. Ainda em fase de negociações, vislumbram-se a compra de submarinos de última geração da classe Kilo, aeronaves de transporte AN-70 e de sistemas de defesa antiaérea. i Até o presente momento, os gastos já totalizaram cerca de US$ 4 bilhões com perspectiva de alcançarem US$ 8 bilhões. ii O eixo tradicional de aquisições bélicas para a Venezuela sofreu mudanças significativas nos últimos três anos. Nesse contexto, o abandono de um acordo bilateral de 35 anos com os EUA, que previa assessoria no treinamento de tropas venezuelanas, pode ser apontado como uma de suas causas imediatas, tendo em vista que grande parte de seu acervo bélico tem origem estadunidense. iii De fato, em abril de 2005, quatro militares norte-americanos foram expulsos do país sem explicação oficial iv ; e em 2006, um adido militar naval da embaixada norte-americana, em Caracas, sob a acusação de que houve prática de espionagem, foi considerado persona non grata. A partir de então, Caracas lançou-se na busca de fornecedores alternativos que pudessem suprir o seu arrojado plano de (re)aparelhar as forças armadas. Algumas das propostas venezuelanas de compra no exterior tiveram de ser revistas, em uma clara intervenção do Departamento de Estado dos EUA, por envolver componentes e tecnologias de origem norte-americana. Foi por uma ingerência direta dos EUA que um negócio estimado em 1.7 bilhão de euros entre a Espanha e a Venezuela foi cancelado. As negociações com os espanhóis incluíam o fornecimento de aeronaves de transporte CASA 295, de patrulha marítima CASA 235 e de embarcações de patrulhamento costeiro para a Armada venezuelana. Além da Espanha, a França
também vetou uma potencial venda de submarinos da classe Scorpène o mesmo adquirido pela Armada chilena aparentemente, movida por preocupações dos EUA de que tal aquisição causaria um desequilíbrio entre as marinhas da região. A fim de superar as barreiras impostas à concretização de sua política de defesa, Chávez buscou alternativas em países que, por serem detentores de tecnologias próprias, exercem maior autonomia nas exportações de seus armamentos. Entre os novos fornecedores, encontram-se a Rússia, a República Popular da China e o Irã. Da China, foram adquiridos radares móveis de defesa aérea, e, além disso, seguem as negociações para o fornecimento de todo um sistema de comunicações militares, baseada em satélite, que substituirá a atual de origem estadunidense. v Com o Irã, a Venezuela pretende modernizar sua frota de caças VF-5 e firmar uma parceria para o desenvolvimento de um Veículo Aéreo Não-Tripulado (VANT) com fins militares. O governo de Caracas tem se valido, em grande parte, da alta dos preços do barril de petróleo perto de US$ 100 - para poder alavancar suas aquisições militares. Como membro fundador da OPEP e ocupando a sexta posição entre os países exportadores de petróleo, a Venezuela é detentora de uma economia baseada nos petrodólares, o que responde por quase 30% de seu PIB. Nesse sentido, o antagonismo chavista aos EUA não deixa de ser um tremendo paradoxo, pois estes ainda são responsáveis pela compra de mais da metade de todo o petróleo produzido na Venezuela. Em uma situação hipotética, caso ocorresse um corte repentino no fornecimento de petróleo para os EUA, de imediato, a mais prejudicada seria a própria Venezuela. Talvez por isso, associado às incertezas causadas pelo governo de Chávez, a participação do petróleo venezuelano no mercado norte-americano tenha caído de 17,4% para 10,4%, entre os anos de 1997 e 2006. vi Gradativamente, Chávez tem construído um discurso antiestadunidense, não só no plano doméstico, mas também na condução de sua política externa. Em janeiro deste ano, Hugo Chávez e Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, propuseram a criação de uma aliança militar antiimperialista, que foi justificada para se contrapor a uma provável intervenção militar dos EUA na América Latina. Fundamentando-se no princípio da segurança coletiva, a coalizão militar seria formada com o reforço dos países membros da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), da qual fazem parte a Bolívia, Cuba e Dominica. vii Em novembro de 2007, a sua vizinha Guiana em um gesto, aparentemente, guiado pelo temor de uma pretensa aventura militar venezuelana para anexar a região de Essequibo viii que corresponde a 2/3 do território guianense e é considerada uma Zona en Reclamación pela Venezuela propôs ao Reino Unido a criação de uma área de preservação ambiental, na fronteira com a Venezuela, que passaria para a responsabilidade e controle britânico. Oficialmente, tratar-se-ia de uma concessão com fins puramente econômicos e ambientais, no entanto, a debilidade de Georgetown em prover a sua defesa territorial, provavelmente, tenha influenciado em grande medida a elaboração de tal proposta. ix Já as relações entre a Colômbia e a Venezuela têm se deteriorado progressivamente nos últimos meses impulsionado, notadamente, pelos
desentendimentos bilaterais relacionados com o resgate de reféns colombianos em poder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Na verdade, o governo colombiano sempre alimentou certa desconfiança de que Chávez simpatizava com as FARC, permitindo que estas transitassem seguramente na fronteira entre os dois países. O recente pedido de Chávez para que as FARC deixassem de ser classificadas internacionalmente como um grupo terrorista só fortaleceu as suspeitas de Bogotá. Além disso, as relações bilaterais entre a Colômbia e os EUA são vistas com maus olhos pela Venezuela, que considera a presença norte-americana no território vizinho, por meio do Plano Colômbia, um entrave para a integração e a segurança sulamericana. Parte da ajuda financeira recebida através do Plano Colômbia visa custear gastos militares voltados para combater os narcoterroristas colombianos FARC e outros grupos paramilitares. No Brasil, ao longo do ano passado, o processo de aceitação da Venezuela como membro efetivo do MERCOSUL atravessou momentos de calorosa discussão no Congresso Nacional. O governo chavista foi acusado por parlamentares brasileiros de não respeitar a cláusula democrática, prevista no regimento do bloco sul-americano, ao deixar de renovar o contrato, por razões políticas, com a principal rede de TV privada venezuelana a RCTV é considerada uma opositora ferrenha de Hugo Chávez. Neste episódio, Chávez acusou o congresso brasileiro de servir aos interesses dos imperialistas norte-americanos e que tais parlamentares, críticos de seu governo, comportavam-se como papagaios de pirata de Washington. Com exceção do ex-presidente da República e atual senador pelo Amapá, José Sarney x, as autoridades brasileiras tem evitado falar criticamente o que pensam a respeito do (re)aparelhamento militar da vizinha Venezuela, porém, coincidência ou não, a partir do segundo semestre do ano passado, o governo brasileiro anunciou diversas medidas voltadas para o fortalecimento da Defesa Nacional. Entre elas encontra-se a retomada do programa F-X, o compromisso de dar continuidade ao projeto do submarino nuclear brasileiro, a priorização de projetos que visem o reaparelhamento e modernização das capacidades bélicas dos três comandos militares, além de ter sido anunciado um PAC Programa de Aceleração do Crescimento - específico para as Forças Armadas. Vale destacar ainda que, no final de 2007, foi criado o Sistema Nacional de Mobilização (SINAMOB), com o objetivo de prover uma estrutura nacional de apoio a ser acionada em caso de agressão estrangeira. Além disso, foi anunciado o compromisso do Ministério da Defesa em elaborar a Estratégia de Defesa Nacional, até setembro de 2008, que traduzirá com mais detalhes a atual Política de Defesa Nacional vigente, de maneira que as forças armadas brasileiras possam ser melhores orientadas na sua instrumentalização operacional e doutrinária. Na Bolívia, a suspeita de que o governo venezuelano tenha assessorado o processo de nacionalização da exploração do gás natural e do petróleo no país, em maio de 2006, trouxe desconforto ao Palácio do Planalto, em Brasília. De fato, a aproximação entre os governos de La Paz e de Caracas faz-se notória. No mesmo mês de maio, os dois países assinaram um acordo no qual a Venezuela se comprometia em financiar a construção de bases no território boliviano: um porto fluvial no Rio Paraguai e uma base militar perto da fronteira com o Brasil. Esta com capacidade de abrigar cerca de
2.500 homens, além de unidades mecanizadas e uma pista de pouso, totalizando uma ajuda de US$ 47 milhões. Dois helicópteros de transporte pesado Cougar já foram entregues à Bolívia em julho de 2006 e existem reportes de que também estariam sendo fornecidos os modernos fuzis AK-103 às forças armadas bolivianas. xi Com respeito à Bolívia, é importante destacar que a assinatura do tratado bilateral que permitiu a construção do Gasoduto Brasil-Bolívia, durante o governo de FHC, selou uma parceria estratégica de longo prazo semelhante à binacional de Itaipu. Por esta razão, a influência de Caracas sobre a Bolívia, na esfera política, social, econômica e militar, de certa forma, despertou a atenção das autoridades brasileiras. Se, inicialmente, a compra do gás natural da Bolívia envolvia mais uma questão política, hoje, ela tornou-se imprescindível para suprir parcela significativa da matriz energética brasileira. A legitimidade da República Bolivariana da Venezuela em armar-se é inquestionável. Dentre as prerrogativas fundamentais de qualquer Estado soberano está o seu direito à legítima defesa contra uma agressão externa. Por esta lógica, baseada no princípio do jus ad bellum, que ainda rege o Direito Internacional, a Venezuela apenas exerce um direito que lhe é inalienável. Então, por que as recentes aquisições de equipamentos militares pela Venezuela têm despertado suspeitas e questionamentos entre seus vizinhos? A América do Sul estaria caminhando em direção a uma corrida armamentista? Em parte, essas perguntas poderiam ser respondidas com base em uma das teorias de Relações Internacionais que ainda é considerada dominante na análise do sistema internacional: o realismo. Nesta abordagem, cada Estado, individualmente, procura garantir a sua sobrevivência dentro do sistema anárquico dos Estados. Em última instância, tal garantia somente pode ser assegurada pela capacidade militar de cada um. À luz dessa visão, as desconfianças e temores advindos do (re)aparelhamento militar de Chávez podem ser compreendidos por meio do que comumente ficou conhecido como Dilema de Segurança. O conceito do Dilema de Segurança foi elaborado durante a guerra fria por John Herz para explicar o fenômeno que acontece toda vez que um ator A busca se armar para obter segurança. Tal iniciativa, na realidade, acaba gerando medo e desconfiança em um ator B que também passa a se armar, com o objetivo de aumentar a sua capacidade militar, diminuindo a ameaça de uma agressão externa. Nesse ínterim, o ator A identifica o aumento da capacidade militar de B, o que confirma as suas preocupações iniciais, levando-o a se armar ainda mais a fim de superar a capacidade do outro ator. Essa dinâmica de ação-reação pode levar a uma escalada militar, culminando em uma típica Corrida Armamentista nos moldes da Guerra Fria. Portanto, o incremento do poder militar de Chávez, caso não sejam discutidos e implementados multilateralmente as chamadas medidas de confiança mútua no nível regional, tende a gerar um clima de insegurança entre seus vizinhos. Nesse contexto, a busca por segurança, na verdade, acaba diminuindo a própria segurança regional. xii As chamadas medidas de confiança mútua estão entre as soluções que podem tornar o ambiente regional mais estável e seguro, pois elas não só estabelecem pontes de
diálogo para o trato específico na temática de defesa e segurança, como também possibilitam a criação de mecanismos alternativos que visam impedir a progressão de uma crise: operações conjuntas entre as forças armadas da região, transparência na elaboração dos Livros Brancos de Defesa, reuniões bilaterais e multilaterais para se discutir temas de segurança comuns - sob o marco de uma segurança regional cooperativa - entre outras iniciativas consagradas pela diplomacia preventiva. * * * Referências bibliográficas: i The Military Balance 2007. London: The International for Strategic Studies, 2007. p. 52,53. ii Cf. Rússia quer triplicar vendas à Venezuela. Disponível em:< http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil /fc0511200706.htm>. Acesso em: 14/Jan/2008. iii O governo norte-americano cortou a linha de suprimento logístico para a frota de aeronaves F-16A/B venezuelanos adquiridos no início da década de 80. Até 2006, quando as primeiras aeronaves F-16C/D começaram a ser entregues ao Chile, apenas a Venezuela operava tal equipamento na América do Sul. iv The Military Balance 2005/2006. London: The International for Strategic Studies, 2005/2006. p.316. v The Military Balance 2007. London: The International for Strategic Studies, 2007. p. 55. vi Cf. Energy Information Administration. Disponível em: <http://www.eia.doe.gov>. Acesso em: 30/Jan/2008. vii Chávez quer aliança militar contra EUA. Disponível em:< http://www.estadao.com.br/estadaodehoje /20080128/not_imp116105,0.php>. Acesso em: 31/Jan/2008. viii Cf. o artigo de Carlos Alberto Borges da Silva, da Universidade Estadual de Roraima, 2006, intitulado Região do Rio Essequibo: Atualidade de uma reivindicação venezuelana. Disponível em:< http://www.uerr.edu.br/revistas/remgads/uploads/c881ba82-22d7-64fe.pdf>. Acesso em: 25/jan/2008. ix Coincidentemente, em novembro de 2007, uma guarnição venezuelana destruiu uma draga de garimpo, ao que parece, dentro do território guianense, gerando um conflito diplomático. Cf. Força Militar da Venezuela domina fronteira com Brasil. Folha de S.Paulo, São Paulo, 29 dez 2007. Brasil. p. A4. x Em setembro de 2007, Sarney acusou a Venezuela de ser a responsável por uma corrida armamentista na América do Sul. xi The Military Balance 2007. London: The International for Strategic Studies, 2007. p.53. xii COLLINS, Adam. Contemporary Security Studies. New York: Oxford University Press, 2007. p. 18.