Figuras Retóricas de Repetição Melódica em André da Silva Gomes Eliel Almeida Soares USP eliel.soares@usp.br Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar o emprego das figuras retóricas de repetição melódica por parte do compositor André da Silva Gomes. Para tanto, utilizaram-se de métodos analíticos adequados, de acordo com o texto, harmonia e disposição do discurso musical. Apesar de a pesquisa estar em fase inicial, foram obtidos alguns resultados, os quais serão demonstrados no decorrer do trabalho. Palavras-chave: Figuras Retóricas, Análise, André da Silva Gomes, Musica Colonial Brasileira. Rhetorical Figures of Melodic Repetition in André da Silva Gomes Abstract: This article aims to present the use of rhetorical figures of melodic repetition by the composer André da Silva Gomes. To achieve this goal, appropriate analytical methods are used according to the text, harmony and arrangement of the musical discourse. Despite the fact that the research is in the initial stage, some results were obtained which will be shown throughout the work. Keywords: Rhetorical Figures, Analysis, André da Silva Gomes, Brazilian Colonial Music. 1. Introdução A retórica é o elemento fundamental na elaboração de discursos, objetivando convencer o público a aderir à tese apresentada pelo orador, seja através do logos dialético ou pela habilidade em empregar a linguagem como recurso de persuasão, onde são movidos os afetos de quem ouve. Entretanto, para que as obras musicais, entre o final do século XVI e XVIII, pudessem lograr êxito em sua execução e audição, fez-se necessário o emprego de vários recursos, tais como metáforas, alegorias, relação entre texto e música, tanto harmônica quanto motívica e semântica, aplicados juntamente com as figuras retórico-musicais. Essa vinculação entre retórica e música foi amplamente difundida desde os primórdios da civilização ocidental, isto é, tanto por gregos e romanos. Posteriormente, na Idade Média, essa disciplina foi ensinada e relacionada à educação, através do viés universitário, muito propagado por Martin Lutero e pela música, na Renascença, sob perspectiva humanística, até desembocar no Barroco, onde a redescoberta dos textos clássicos, além da concepção das diversas teorias sobre a retórica, mostraram-se essenciais para a fundamentação dos tratadistas e pensadores musicais para elaboração do que é conhecido como Música Poética, ou seja, teorias sistematizadas na elaboração da música como discurso, e, por fim, no Classicismo, onde alguns gêneros, estilos e composições mantinham essa tradição. 1
Não obstante, André da Silva Gomes (1752-1844) conhecedor, seguidor e portador desses preceitos, em seu Tradado A Arte Explicada de Contraponto, ressalta a importância de o compositor se instruir pela faculdade retórica para obter uma apresentação consistente e eficaz, isto é, aquele que compõe deve empregar, no discurso musical, a invenção das ideias e argumentos que sustentarão o discurso e sua tese (Inventio), ordenar as ideias encontradas anteriormente na Inventio (Dispositio) e usar com diligência as figuras retóricas (Elocutio) (SILVA GOMES 1, apud DUPRAT, et al, 1998, p.17-18). Enfim, a utilização desses recursos retóricos na música, em período anterior ao século XIX, tem motivado a musicologia contemporânea a investigar como foram elaborados e constituídos tais elementos de retórica, em contributo para a compreensão da disposição do discurso musical. Portanto, o neste trabalho será apresentado o emprego de figuras retóricas de repetição melódica por parte de Silva Gomes, utilizando-se métodos analíticos adequados, de acordo com o texto, harmonia e disposição do discurso musical. Mesmo a pesquisa estando em fase inicial, obteve-se alguns resultados, os quais serão demonstrados através das análises e exemplos, a seguir. 2. Análises e Exemplos de Figuras Retóricas de Repetição Melódica 2.1. Anaphora Athanasius Kircher (1601-1680) ressalta que a Anaphora ocorre quando uma passagem é constantemente repetida com ênfase (BARTEL, 1997, p.188). O compositor lusobrasileiro, na Confutatio 2, emprega a referida figura para repetir e, ao mesmo tempo, destacar a esperança depositada pelo salmista ao se alegrar no Senhor (laetabitur). Semelhantemente, podem ser examinadas nessa parte, as relações harmônico-funcionais entre Tônica e Dominante, reforçando tal artifício disposto pelo autor. 2
Exemplo 1: Anaphora no Ofertório da Missa do 2 Domingo do Advento de André da Silva Gomes, comp. 16 a 18 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.140). 2.2. Epizeuxis Observa-se, nesse excerto do Ofertório da Missa de Natal, o uso da Epizeuxis, que é a repetição imediata e enfática de uma palavra, nota, motivo ou frase. Johann Gottfried Walther (1684-1748), afirma que: A Epizeuxis é uma figura de retórica pela qual uma ou mais palavras são imediatamente e enfaticamente repetidas. Por sua vez, Johann Georg Ahle (1651-1706) define-a como a mais usada pelos compositores e a mesma pode ser aplicada em ocasiões de júbilo e alegria. (BARTEL, 1997, p.263-265). Tal indicação é notada dentro da Perotatio 3, tanto nas repetições da palavra exsultet (exultem/regozijem-se) como das funções harmônicas Tônica, Tônica Paralela e Dominante. 3
Exemplo 2: Epizeuxis no Ofertório da Missa de Natal de André da Silva Gomes, comp.61 a 63 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.205). 2.3. Gradatio Johann Walther, salienta a relevância dessa figura da seguinte maneira: Gradatio ou Climax podem ser interpretadas dessas formas: 1. Quando há palavras que falam sobre alegria, glorificação e louvor. 2. Em uma figura musical que ocorre quando duas vozes se movimentam para cima e para baixo, progredindo em terças paralelas. 3. Quando uma passagem com ou sem cadência é imediatamente repetida várias vezes em alturas progressivamente maiores. 4. Esse termo também pode ser dado a um cânone de quatro partes em que as duas primeiras vozes reentram, e as outras duas vozes permanecem na parte anterior e ainda harmonizam. É visível, portanto, a aplicação da Gradatio por Silva Gomes na Narratio 4, estabelecendo maior intensidade na argumentação desenvolvida pelo salmista, nesse ofertório, projetando-a em terças paralelas, na soprano e contralto. 4
Exemplo 3: Gradatio no Ofertório da Missa da Conversão de São Paulo Apóstolo de André da Silva Gomes, comp.10 a 12 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.221). 2.4. Palilogia É um tema repetido no mesmo nível de altura, podendo ocorrer também em alturas diferentes, na mesma ou em várias vozes. Bartel (1997) relata que a Palilogia é descrita como uma forma específica de repetição, tanto na música quanto na retórica, também significa uma repetição mais geral de uma palavra por causa da ênfase. Dentre as definições das funções da citada figura, pelos teóricos e tratadistas retórico-musicais, podem ser destacas duas: a de Joachim Burmeister (1564-1629), o qual a define como uma repetição de uma inteiração ou apenas do início dos meios e temas sobre a mesma altura e voz, e Walther, que afirma ser a Palilogia a repetição por demais frequente das mesmas palavras (BARTEL, 1997, apud SOARES; MACHADO NETO, 2011, p.397). No exemplo abaixo, na Confirmatio 5, vê-se a apropriação da supracitada figura de repetição pelo compositor, enfatizando a expressão ipse veniet (ele virá), gerando maior intensidade na prerrogativa textual dessa música, a qual é fundamentada em Isaías 35:4, cujo título é: Libertação e Glória de Israel. 5
Exemplo 4: Palilogia no Ofertório da Missa da Quarta-feira das Têmporas do Advento de André da Silva Gomes, comp. 48 e 49 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.171). 2.5. Polyptoton Mauritius Johann Vogt (1669-1730) a define como repetição de uma passagem em alturas diferentes (BARTEL, 1997, p.369). No Exordium 6, do 2º Movimento do Ofertório da Ascenção do Senhor, pode-se verificar a entrada deslocada de cada voz em sequência a cada 2 compassos, onde o texto Alleluia é trabalhado pelo autor, seja em polifonias, homorritmicamente e em uníssono, no final, nas quatro vozes. Em síntese, a referida palavra de canto e louvor (aleluia), é bem disposta por Silva Gomes nesses 12 compassos da obra, sendo que, do primeiro ao oitavo, o autor emprega Polyptoton, que enfatiza, por meio de repetição, as palavras e notas em todas as alturas e vozes dessa composição. 6
Exemplo 5: Polyptoton no Ofertório da Missa da Ascenção do Senhor (2º mov.) de André da Silva Gomes, comp. 1 a 8- Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.192). 3. Considerações Finais Para atrair a atenção e persuadir o ouvinte, os compositores utilizaram elementos retóricos para valorar e desenvolver suas músicas. Dentre tais mecanismos podem ser destacadas as figuras retóricas de repetição melódica, as quais são necessárias não só na disposição das imitações, repetições e ênfase das palavras, melodias, mas, também, em cada afeto trabalhado objetivando o mover dos sentimentos afetivos do ser humano. Segundo Cano (2000), o repertório de recursos retóricos disponível para uso do autor em uma obra é consideravelmente grande, por exemplo, reprodução de notas e acordes, descrições de expressões textuais, ornamentos realizados conforme o momento e fase da peça, seções de contrastes, descrições, passagens sequenciais, entre outros, ou seja, todo esse aparato é parte integrante de um discurso expressivamente organizado (CANO, 2000, p.109-110). Ao examinar esses excertos das obras de André da Silva Gomes, verificou-se o emprego das figuras e elementos de retórica, inter-relacionados, conforme a circunstância do discurso. Por exemplo, no Ofertório do 2º Domingo do Advento, Silva Gomes usa a Anaphora, para destacar o afeto de alegria e júbilo, o mesmo sentido pode ser observado tanto no Ofertório da Missa de Natal, com a utilização da Epizeuxis, repetindo imediata e enfaticamente a palavra exsultet (exultem/regozijem-se), como no início do segundo Ofertório 7
da Missa de Natal, onde o Polyptoton ressalta a expressão aleluia repetida melodicamente em todas as vozes, por fim, os Ofertórios da Missa da Conversão de São Paulo Apóstolo e o da Missa da Quarta-feira das Têmporas do Advento, pela Gradatio, na progressão sequencial e repetitiva das notas, por terças paralelas e a Palilogia, enfatizando os motivos, frases e funções harmônicas. Enfim, nos cinco exemplos o compositor luso-brasileiro trabalha com esses artifícios de forma ordenada e consciente, demonstrando, assim, ser possuidor da transmissão doutrinária da retórica, indispensável na composição de suas obras. Referências: BARTEL, Dietrich. Musica Poetica: Musical-Rhetorical Figures in Germany Baroque Music. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997. CANO, Rubén López. Música y Retórica en el Barroco. México, D.F: Gráfica da Universidade Nacional Autônoma do México, 2000, vol.1. Disponível: http://www.geocties.com/lopezcano/articulos/mrb/02.primeiraparte.pdf Acessado em: 22 de Julho de 2012. DUPRAT, Régis. Música Sacra Paulista. Marília (SP): Editora Empresa Unimar, 1999. DUPRAT, Régis et al. A Arte Explicada de Contraponto de André da Silva Gomes. São Paulo (SP): Arte & Ciência, 1998. SOARES, Eliel Almeida; MACHADO NETO, Diósnio. A Aplicação de Figuras e Elementos Retóricos em Dois Ofertórios de André da Silva Gomes. Florianópolis (SC): DAPesquisa, v. 4, p. 391-403, 2011. Notas 1 O único modelo conhecido do Tratado é em cópia ituana, de 1830. Régis Duprat afirma que: Infelizmente o texto não faz nenhuma alusão à data ou configuração da versão original (DUPRAT, et al, 1998, p.9). 2 Onde são encontrados os materiais contrastantes e também há ocorrência de oposição das ideias anteriormente expostas nas outras partes do discurso. 3 Conclusão do discurso. 4 Narração dos fatos ocorridos, podendo ser aplicada no início da parte vocal. Da mesma forma, pode ser notada na entrada do solo, todavia, esse elemento retórico também é utilizado em todas as vozes de uma composição. 5 Confirmação das ideias principais, expostas desde a introdução do discurso. 6 Introdução ou início do discurso. 8