TRANSGREDINDO UMA ESTÉTICA RACISTA: O TRABALHO COM NARRATIVAS E A PRODUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA Juliana Ribeiro PPGEDUC/UFRRJ



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Transcrição:

TRANSGREDINDO UMA ESTÉTICA RACISTA: O TRABALHO COM NARRATIVAS E A PRODUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA Juliana Ribeiro PPGEDUC/UFRRJ Resumo O presente trabalho é parte da pesquisa em andamento Pensando fora do eixo: rede de conhecimentos femininos na transgressão de uma estética racista, onde nos dedicamos a ouvir narrativas femininas negras sobre a relação entre identificações e estranhamentos na produção estética neste processo, na tentativa de identificar maneiras de transgredir o racismo manifestado em forma de padronização estética no Brasil. Pretendemos narrar um pouco de uma experiência docente no encontro entre professora e aluna negras. Esse encontro nos trouxe reflexões a cerca da completude necessária para a construção identitária entre os sujeitos concedida através do olhar exotópico que possuímos sobre a vida. Por fim, sustentamos a ideia de que não existem historias únicas sobre sujeitos únicos, uma vez que ao nos encontrarmos com o outro contamos e produzimos sobre ele de acordo com a nossa própria visão, com o nosso próprio acabamento, por isso a importância de trabalhar com narrativas, em novos contextos e sob novas vozes. Palavras-chave: encontro narrativas - identidade negra- estética TRANSGREDINDO UMA ESTÉTICA RACISTA: O TRABALHO COM NARRATIVAS E A PRODUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA A narrativa transcrita e analisada neste trabalho é sobre uma professora da educação básica da rede privada do Rio de Janeiro que abordou a identidade negra para seus alunos, através da sua própria estética. O resultado foi uma história sobre formação identitária contada pelos seus próprios protagonistas (Carla e Aline 1 ) e pela perspectiva da estética, fazendo emergir uma verdade também possível sobre o negro. Verdade que não anula estereótipos materializados no negro dos livros didáticos e na discriminação 1 Nome fictício aqui aderido por questões éticas da pesquisa.

racial nossa de cada dia, mas que fez existir também mais um negro: o negro contado por si próprio. Carla nos contou que durante um bom tempo da sua infância usou um tipo de corte de cabelo chamado Joãozinho (cabelos muito curtinhos, como um menino). Ela, nunca gostou deste corte, e nem de se parecer com um menino, por isso, constantemente brincava de amarrar uma toalha de banho amarela na cabeça para fingir longas madeixas loiras. Madeixas estas que na época eram privilégio das apresentadoras de televisão, seus referenciais de beleza. Em busca destes referenciais, Carla foi a inúmeros salões de beleza, e gastou muitas horas para estar sempre impecável e cabível, em algum lugar que não foi, nunca seria e nem será dela. Sua vida começou a mudar, quando no primeiro ano do Ensino Médio decidiu ser professora, e por isso foi transferida do colégio particular que estudava para um instituto de educação público, pois o curso normal era oferecido na rede pública. Carla percebeu a gritante diferença social e contou-nos que fora tomada por questionamentos como: onde estavam todas aquelas pessoas tão diferentes enquanto ela vivia sua vida embranquecida? Então percebeu que o mundo era diferente do mundo que o que antes ela vivia, e as pessoas eram diferentes das pessoas que antes conhecia. Ainda assim, embora já fazendo parte de toda diferença social, ela ainda o via com um olhar embranquecido, forjado e enraizado (SANTOS, 2010) ao longo de anos da vida de qualquer cidadão integrante de uma sociedade colonizada. Um ano depois de se formar, Carla viajou à Bahia. Chegou a Salvador com cabelos alisados, voltou para o Rio com eles trançados. Mal sabia que não tinham sido só seus cabelos que haviam mudado... Estar numa cidade onde a maioria da população é negra, mostrou que a visão embranquecida que antes possuía sobre o mundo e, sobretudo sobre si própria, poderia ser e pode -, também uma visão enegrecida da vida. Pensamos que a maneira como olhamos para a vida, para suas situações, para as coisas e os sujeitos que as protagonizam, é antes de tudo uma maneira de olharmos para nós mesmos. Sobre essa experiência de entender o mundo e principalmente as pessoas, ou dar acabamento a eles - como nas próprias palavras de Mikhail Bakhtin (2001) -, o autor nos sugere como forma imprescindível para alcançar a compreensão do outro, uma ação de desdobramento.

Esta ação seria como vivenciar o que o outro (o mundo, as pessoas) vivencia, se colocando no lugar dele, adotando seu horizonte vital e concreto de forma a ter acesso a elementos únicos de sua experiência, elementos que nós mesmos na nossa posição na vida jamais alcançaríamos. Depois disto feito, deveríamos retornar a nós mesmos, ao nosso lugar fora dele, para dar forma e acabamento ao outro (àquilo que experimentamos sobre ele), complementando-o fundamentalmente com os valores que haurimos do excedente da nossa visão, da nossa (própria) vontade e do nosso sentimento (BAKHTIN, 2001, p.83). É este segundo momento do acabamento, neste retorno a nós mesmo e à nossa própria visão, momento que segundo o autor é onde se inicia de fato a atividade estética (o ato de dar sentido ao outro), que apontamos ser o nosso olhar sobre nós mesmos, ou seja, a nossa posição no mundo e nossas experiências, condicionante fundamental na forma como entendemos o outro. Assim, aquilo que vemos, ou que escolhemos ver sobre o outro, algo que ele mesmo não consegue ver sobre si (excedente de visão), nossas próprias vontades e nossos sentimentos são constituídos ou norteados antes de tudo pela forma como nos vemos e no posicionamos no mundo. Logo, estar no mundo de forma embranquecida, colorida e/ou enegrecida é também olhar para nós e para ele destas maneiras. Confirmando essa nossa reflexão, examinamos agora a segunda narrativa de Carla, onde Aline apareceu. Assim que voltou da Bahia, Carla começou a dar aulas para crianças, e o encontro com uma aluna que um dia fez questão de imitá-la na fala, no andar e no cabelo fez com que tudo mudasse mais uma vez. Chamava-se Aline, e as duas eram as únicas negras na turma 103 de um dos colégios mais caros de Bangu (subúrbio do Rio de Janeiro). No início do ano, assim que Carla e a turma começavam a se conhecer, havia muitas especulações por parte das crianças sobre o seu cabelo trançado (se era peruca, se ele já nascia assim). O que realmente lhe surpreendeu, foi o fato de numa segunda-feira ao chamar a turma para formar na hora da entrada, Aline ter surgido com os cabelos iguaiszinhos aos de Carla! Sorridente, ela se aproximou, balançando suas lindas tranças de fios de canecalom 2 pretos com loiros e fez questão de ser a primeira da fila. 2 Fios de cabelos falsos.

Carla ficou boquiaberta e retribuiu àquele belo sorriso de dentes ainda de leite branquinhos que diziam estou bela como você, não estou tia?. Numa outra ocasião, Carla voltava da secretaria para a sala de aula, onde a turma havia ficado sozinha por uns minutos, e antes ainda de aparecer na porta, ouviu a voz alta e aguda de Aline: não tem o cabelo da tia Carla? É igual gente! Pega só nele!, dando as mesmas explicações que sua professora. A partir daquele dia, o fato de ter seus gestos, falas e visual como referenciais para alguém, não tinha só atrelado sobre Carla um fardo de responsabilidade. Mais do que isso, a preocupação que ela passou a ter com sua estética havia lhe possibilitado perceber quem realmente era: negra com cabelo de negro, diferente e única. No texto Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra, Nilma Lino Gomes nos traz significantes contribuições acerca da estética do corpo negro, em especial do cabelo, enquanto elemento cultural de sua representação na sociedade. Segundo ela, o cabelo e o corpo negro só adquirem significações quando pensados em seus contextos históricos, sociais e etnográficos, neste sentido propomos que antes de entender a relação entre as mudanças estéticas e identitárias de Carla e de Aline, olhemos para o contexto histórico social em que o cabelo do negro está inserido. No caso do Brasil, assim como em outras sociedades colonizadas que sofreram a experiência de um sistema escravocrata, o racismo foi estruturado atribuindo ao negro o local de politicamente dominado e culturalmente inferior, a partir de uma série de práticas de violência contra seu corpo e sua cultura. A raspagem dos cabelos, por exemplo, era uma dessas práticas que significavam a mutilação do corpo negro, uma vez que algumas etnias já o compreendiam como marca de dignidade e identidade. Nesse sentindo, a ideia do cabelo negro como um cabelo ruim foi mais uma prática de construção e disseminação do racismo, bem como a construção de um padrão estético ideal cabelos lisos que até hoje coloca os negros em conflito com seus padrões estéticos reais cabelos crespos. No entanto, o que Nilma aponta em seus estudos, é que essas práticas não são aceitas pacificamente pelos negros, e que numa constante construção e reinvenção de práticas políticas e culturais, a estética negra, em especial o cabelo negro, tem sido o local ambíguo onde emergem as tensões que é pertencer a uma identidade negra. O cabelo negro, sua maleabilidade e visibilidade, têm representado um local de constante fuga da exclusão e opressão, e ao mesmo tempo um lugar de reinvenção e pertencimento (orgulhoso) a uma identidade resistente.

Nessa perspectiva, o estilo, a manipulação, o tipo de penteado e os sentidos atribuídos ao cabelo crespo tanto podem representar uma forma de encobrimento dos dilemas referentes à identidade negra (como seu pertencimento étnico/racial), como pode também representar um estilo de vida, uma afirmação de identidade ou reação, resistência e denúncia ao racismo. Para Nilma, o entendimento do cabelo crespo como forma de linguagem (ou um signo) que representa e reinventa as relações sociais, pode ajudar a entender, por exemplo, o sistema de classificação racial brasileiro, que além de cromático, é estético e corpóreo. Sendo o cabelo crespo um signo da linguagem, em numa perspectiva Bakhtiniana, o local onde esse cabelo é usado e as pessoas para quem ele é exposto (auditório social), o sujeito que o usa (seu enunciador) e a forma como é usado preso, alisado, para o alto, trançado, tingido, etc.- (sua enunciação) são condições que estruturam seus contextos e por isso são fundamentais para seu entendimento. Esse entendimento nos ajuda a compreender, por exemplo, a confortável sensação de pertencimento que Carla sentia ao estar com os cabelos trançados em Salvador, e a incômoda sensação de inquisição que era estar com eles trançados na escola em que dava aula. Faz-nos pensar ainda, e, sobretudo, o quanto que a identidade negra que Carla reivindicava com aquele penteado (bela, ousada, firme), despertando diferentes reações nos sujeitos que ela e seu cabelo dialogavam. Enquanto para alguns Carla ainda era motivo de piadas e estranhamentos, para outros era motivo de identificação e afirmação. O que Aline - que vive num momento em que alguns aspectos da estética negra têm ganhado algum espaço e reconhecimento 3, filha de cabeleireira dona de um salão afro, (pessoas que ainda segundo GOMES são envolvidas com reivindicações de reconhecimento da cultura e beleza negra) - via, sentia e entendia sobre o mundo e as pessoas, fez com que ela desse à Carla um acabamento que até então a própria não havia recebido. Percebemos então que a construção da identidade, o encontro dos sujeitos com sujeitos e dos mesmos com si próprios, trata-se de uma relação dialógica de identificação estética. Mais do que refletirmos a respeito da atuação no papel de exemplo que o professor tem para seus alunos, exemplo ético e estético, esta narrativa nos instigou a 3 Embora nos preocupemos com os contextos dos espaço-tempos onde a estética negra tem ganho visibilidade, não é nossa intenção discutir tais preocupações neste trabalho.

pensar sobre a forma como o mundo tem sido contado nos ambientes escolares. De que maneira tem sido falado, ou o como tem sido contado sobre ser negro no Brasil? O que tem sido construído sobre esta identidade quando ignoramos narrativas reais para nos prendermos somente às representações? A possibilidade de contar histórias de outras maneiras, a partir de olhares diferentes, como nos sugere Chimamana A. em Os perigos de uma história única, faz com que nos atentemos a pluralidade das práticas, permitindo que emirjam novas histórias e novas verdades sobre o mundo, assim como procuramos fazer neste trabalho. A pesquisa continua, ainda estamos buscando experiências e correspondências. Referências bibliográficas ADICHIE, Chimamanda. Os perigos de uma história única. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=zutlr1zwtey > BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2001. GOMES, Nilda L. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. SANTOS, B. S., (2010). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: MENEZES, M. P.; SANTOS, B. S.(org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010 p. 31-83.