O caminho poético. lírica galego-portuguesa. yara frateschi vieira maria isabel morán cabanas josé antónio souto cabo



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Transcrição:

O caminho poético de SANTIAGO lírica galego-portuguesa yara frateschi vieira maria isabel morán cabanas josé antónio souto cabo

11 Antes de iniciar o caminho: algumas notas os trovadores e santiago de compostela Afonso Eanes do Cotom 23 Abadessa, oí dizer 25 Covilheira velha, se vos fezesse 26 sobre o trovador e suas cantigas Airas Fernandes Carpancho 28 Por fazer romaria, pug en meu coraçon 29 Pois que se non sente a mia senhor 30 sobre o trovador e suas cantigas Airas Nunes 32 Porque no mundo mengou a verdade 34 A Santiag en romaria ven 35 Bailemos nós ja todas tres, ai amigas 36 sobre o trovador e suas cantigas Bernal de Bonaval 39 A Bonaval quer eu, mia senhor, ir 40 Ai, fremosinha, se ben ajades 41 Diss a fremosa en Bonaval assi: 42 sobre o trovador e suas cantigas Fernando Esquio 45 Que adubastes, amigo, alá en Lug u andastes 46 Vaiamos, irmana, vaiamos dormir 47 sobre o trovador e suas cantigas

Fernão Pais de Tamalhancos 49 Con vossa graça, mia senhor 50 Non sei dona que podesse 52 Quand eu passei per Dormãa 53 sobre o trovador e suas cantigas Fernão Rodrigues de Calheiros 56 Madre, passou per aqui um cavaleiro 57 Agora oí d ũa dona falar 58 sobre o trovador e suas cantigas João Airas de Santiago 60 Pelo souto de Crexente 62 A por que perço o dormir 64 Ai Justiça, mal fazedes que non 65 sobre o trovador e suas cantigas João Peres de Aboim 68 Cavalgava noutro dia 69 Lourenço, soías tu guarecer 71 sobre o trovador e suas cantigas João Soares Somesso 74 Punhei eu muit en me guardar 76 Ũa donzela quig eu mui gran ben 77 sobre o trovador e suas cantigas João Vasques de Talaveira 80 Direi-vos ora que oí dizer 81 Joan Airas, ora vej eu que á 83 sobre o trovador e suas cantigas

Juião Bolseiro 86 Fez ũa cantiga d amor 87 Da noite d eire poderan fazer 88 Joan Soares, de pran as melhores 90 sobre o trovador e suas cantigas Martim Moxa 93 O gran prazer e gran viç en cuidar 95 Per quant eu vejo 98 sobre o trovador e suas cantigas Nuno Eanes Cêrzeo 101 Agora me quer eu ja espedir 104 sobre o trovador e sua cantiga Nuno Fernandes Torneol 106 Levad, amigo, que dormides as manhanas frias 108 Vi eu, mia madr, andar 109 sobre o trovador e suas cantigas Osório Eanes 111 Cuidei eu de meu coraçon 112 E por que me desamades 115 sobre o trovador e suas cantigas Pai de Cana 117 Vedes que gran desmesura 118 Amiga, o voss amigo 119 sobre o trovador e suas cantigas Pai Gomes Charinho 121 Ai, Santiago, padron sabido 122 Quantos oj andan eno mar aqui 123 sobre o trovador e suas cantigas

Pai Soares de Taveirôs 126 Como morreu quen nunca ben 127 No mundo non me sei parelha 128 Vi eu donas en celado 130 sobre o trovador e suas cantigas Pedro Amigo de Sevilha 135 Quand eu un dia fui en Compostela 137 Quen mi ora quisesse cruzar 139 sobre o trovador e suas cantigas Pero da Ponte 143 Quen seu parente vendia 144 Se eu podesse desamar 146 Quen a sesta quiser dormir 147 Maria Peres, a nossa cruzada 148 sobre o trovador e suas cantigas Pero Garcia de Ambroa 152 Pero d Armea, quando composestes 153 sobre o trovador e sua cantiga Pero Meogo 155 Levou-s a louçana, levou-s a velida 156 Digades, filha, mia filha velida 157 sobre o trovador e suas cantigas Rui Fernandes de Santiago 159 Quand eu vejo las ondas 160 sobre o trovador e sua cantiga Sancho Sanches 161 En outro dia, en San Salvador 162 sobre o trovador e sua cantiga

trovadores e textos em diálogo Dom Afonso x 167 Non me posso pagar tanto 169 O genete 171 sobre o trovador e suas cantigas Dom Dinis 175 Levantou-s a velida 177 Quer eu en maneira de proençal 178 Proençaes soen mui ben trobar 179 Ũa pastor ben talhada 181 sobre o trovador e suas cantigas João de Gaia 186 Eu convidei un prelado a jantar, se ben me venha 188 sobre o trovador e sua cantiga João Zorro 191 Bailemos agora, por Deus, ai velidas 192 sobre o trovador e sua cantiga 195 glossário 200 mapa de santiago de compostela 202 topônimos nas cantigas 204 imagens dos cancioneiros 210 bibliografia 221 sobre os autores

antes de iniciar o caminho: algumas notas A lírica galego-portuguesa medieval, a mais antiga manifestação literária da língua portuguesa, é patrimônio comum de todas as literaturas nacionais que, como a brasileira, se exprimem nessa língua. Originada na Galiza no último terço do século xii, essa expressão cultural foi cultivada no âmbito dos reinos centro-ocidentais da Península Ibérica (Galiza, Portugal, Leão e Castela) até o primeiro quarto do século xiv. O adjetivo galego-portuguesa que a define refere-se ao idioma que lhe serviu de veículo, falado na Galiza e em Portugal, e aos espaços políticos em que se desenvolveu com maior vigor. Trata-se da variante regional de uma moda europeia mais ampla, a poesia trovadoresca, que nasceu na Occitânia (atual sul da França), no começo do século xii, e se difundiu por todo o ocidente europeu, desde a Alemanha até a Galiza e Portugal, e do norte da França até a Sicília. O tópico dominante, embora não exclusivo, da poesia trovadoresca foi a expressão do amor, segundo os princípios do que se convencionou chamar de amor cortês, um código de comportamento amoroso complexo, envolvendo aspectos sociológicos, éticos e literários. Trata-se de uma concepção desse sentimento que, oposta em vários pontos à da Antiguidade, sobrevive em essência ainda hoje, de tal forma que se chegou a afirmar que o século xii inventou o amor como o entendemos e celebramos na cultura ocidental. 11

cantares fremosos e rimados Apesar das origens occitanas, o trovadorismo galego-português apresenta características particulares que resultaram da simbiose com o substrato cultural específico do noroeste peninsular. Ordena-se em três gêneros maiores: a cantiga de amor, a cantiga de amigo e a cantiga de escárnio e maldizer. A de amor e a de amigo compartilham a temática amorosa, mas não a perspectiva, já que na primeira o sujeito poético é um homem que expressa o seu amor, quase sempre impossível, por uma mulher referida como senhor (o mesmo que senhora ); e na de amigo, pelo contrário, a voz poética corresponde à de uma jovem que exprime os seus sentimentos pelo namorado (amigo) num tom, em geral, mais otimista. Quanto à produção satírica, conhecida pelo nome de cantigas de escárnio e maldizer, caracteriza-se, na maior parte dos casos, pela censura de caráter pessoal, com uma finalidade cômico-burlesca. Entre os gêneros menores, destaca-se a pastorela, na qual a temática amorosa aparece associada ao encontro, num locus amoenus (lugar ameno), entre um cavaleiro e uma pastora. Já a tenção (tençon) tem como traço definidor a estrutura dialogal, ou seja, a cantiga é resultado da colaboração de dois autores que nela estabelecem uma espécie de disputa literária. Além dos gêneros profanos, conservam-se também as Cantigas de Santa Maria, de temática religiosa, que geralmente apresentam narrativas de milagres atribuídos à Virgem. O corpus poético não religioso foi-nos transmitido, essencialmente, por três cancioneiros: o Cancioneiro da Ajuda, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa e o Cancioneiro da Biblioteca Vaticana. Outros testemunhos menores, 12

mas de grande interesse por serem contemporâneos dessa manifestação cultural, são o Pergaminho Vindel, com as sete cantigas do jogral galego Martim Codax (seis com a respectiva notação musical), e o Pergaminho Sharrer, folha de um cancioneiro que transcreve partes de sete cantigas do rei Dom Dinis de Portugal, também musicadas. As Cantigas de Santa Maria possuem uma tradição manuscrita própria, composta de quatro códices da segunda metade do século xiii. Essa poesia, tanto a profana quanto a religiosa, era inseparável da música. Infelizmente, salvo no caso das Cantigas de Santa Maria e dos dois testemunhos menores citados, as pautas musicais não chegaram até nós. No que concerne aos autores, de acordo com os critérios gerais e nem sempre muito claros da época, podemos distinguir dois grupos: os trovadores, poetas de condição aristocrática, em seus vários níveis; e os jograis, que não pertenciam a esse estamento. Ao todo, conhecemos o nome de cerca de 160 compositores, integrados em diversos grupos sociais: monarcas, nobres, clérigos, burgueses. Não devemos esquecer que estamos diante de uma expressão cultural da camada aristocrática e que foi em seus espaços privativos que se produziu e executou, predominantemente, essa moda poética. ai santiago, padron sabido A amostra representativa da lírica galego-portuguesa que aqui trazemos toma como fio condutor a cidade de Santiago de Compostela, capital da Galiza: os compositores e, em parte, os textos editados foram selecionados pelos laços que, em diversos níveis e de modo mais ou menos direto, guardaram com Compostela. 13

O movimento poético em que se integravam manteve, com efeito, uma ligação constante com a cidade, o que se explica facilmente quando levamos em conta que Santiago, enquanto centro urbano mais importante do reino galego, constituiu um palco privilegiado para as primeiras experiências do trovadorismo. A vinculação de Compostela a essa corrente literária evidencia-se também pela possibilidade de associar tal prática poética a algumas camadas socioculturais específicas da urbe, como se demonstra pela existência, no interior dos Cancioneiros, de um cancioneirinho de clérigos compostelanos. Na segunda metade do século xii, momento em que nasce a lírica galego-portuguesa, não havia no reino galaico-leonês outro centro urbano que pudesse competir com o prestígio de Santiago, cuja supremacia se devia ao uso eficiente dos recursos materiais e culturais gerados pela peregrinação. Esse protagonismo remonta, em última instância, à decisão dos bispos da diocese, com sede até então em Íria Flávia (Padrom / Padrón, Galiza), de transferir sua residência para Compostela, antes do ano 847. Ao bispo Teodomiro, cujo túmulo se encontra no subsolo da Sé compostelana, devemos, como se sabe, a inventio ( achado, c. 825) do sepulcro do apóstolo Santiago, ao identificar como tal um mausoléu de época romana. O suporte histórico para essa descoberta consistia numa tradição que situava a predicação de Santiago na Hispânia, permitindo também a suposição de que tivesse sido sepultado no extremo ocidental da Europa. O achado, inserido no contexto de afirmação e fortalecimento político do reino asturo-galaico, associa- -se à formação de uma igreja autônoma, desvinculada de 14

Toledo, naquela altura em território dominado pelos muçulmanos. Compostela torna-se, assim, santuário nacional e internacional, atraindo, por meio da peregrinação, pessoas de todo o ocidente cristão. O fato de Compostela utilizar o título de apostólica, juntamente com o grande poder dos seus prelados, sobretudo do primeiro arcebispo Diogo Gelmires, permitiu que a cidade não se integrasse na arquidiocese de Braga a que histórica e geograficamente pertencia, quando se produziu a restauração desta última, em 1070. Do ponto de vista material, para além dos benefícios que resultavam das numerosas doações recebidas e das posses territoriais, cada vez mais extensas, a Igreja compostelana contava com uma importante receita constituída pelo imposto conhecido como Voto de Santiago. A magnitude econômica da instituição catedralícia resultou na organização de uma importante rede de funcionários, em geral clérigos, para gerir esse enorme patrimônio. A expansão, digamos, eclesiástica de Santiago de Compostela foi paralela à consolidação da urbe, graças ao aparecimento de uma importante burguesia comercial, infrequente na Galiza. Ao mesmo tempo, a Igreja e a cidade aparecem estreitamente vinculadas às camadas aristocráticas, a começar pela própria monarquia. Dois fatos devem ser salientados: por um lado, a instauração de uma dinastia galaico-borgonhesa com Afonso vii, filho de Dona Urraca e de Dom Raimundo de Borgonha, condes da Galiza. A identificação dessa estirpe com a Galiza e com a urbe compostelana culmina com Fernando ii quando, em 1180, faz da Sé de Santiago o panteão da própria dinastia. Isso constitui o apo- 15

geu de um processo que fez da capital galega o epicentro, sobretudo eclesiástico, mas também político e cultural, do reino galaico-leonês. Esse fato serve também para explicar, pelo menos em parte, o generoso contributo daquele monarca e do filho, Afonso ix, aos trabalhos de conclusão da catedral, designadamente os da nave central, cuja abertura exibe o seu elemento arquitetônico mais relevante, o Pórtico da Glória. A casa real, por outro lado, desde os tempos de Afonso vi até Afonso ix, está associada por fortes laços à família condal dos Travas, a mais importante da Galiza, junto à qual foram instruídos Dom Afonso vii, Dom Fernando ii e Dom Afonso ix. Contamos com vários testemunhos que demonstram a presença dos Travas em Santiago, cidade em que possuíam diversos imóveis. E sabemos, também, que essa família aparece intimamente relacionada às origens e à expansão do trovadorismo galego-português. Não é necessário salientar o enorme peso artístico e cultural da cidade: a própria catedral (1075-1211) e obras como a História compostelana, o Códice calistino ou o Tombo A constituem, por motivos diversos, os exemplos mais visíveis. Existem também indícios que apontam para uma atividade musical intensa e inovadora, pelo menos no âmbito catedralício. Lembre-se ainda o papel da Escola Episcopal, que tinha como maior objetivo a formação do corpo clerical da própria Sé. Do progresso dessa escola resultará a fundação de um Estudo Geral em Salamanca por Afonso ix, c. 1219, que será o berço de uma das primeiras universidades do continente. A união com Castela, em 1230, supôs o afastamento da Galiza dos centros de decisão política, o que não deixou de 16

ter importantes repercussões econômicas e culturais. No entanto, a Igreja de Santiago vai ainda viver um período áureo que se reflete, entre outros aspectos, na atividade construtora promovida por João Airas, arcebispo compostelano entre 1238 e 1266. Esse prelado dota o conjunto catedralício de novos espaços anexos que facilitarão a vida do corpo clerical da Sé, entre eles o paço arcebispal, cujos salões terão constituído um magnífico cenário para o espetáculo trovadoresco. No que tange à vida urbana, note-se que em 1273 Dom Afonso x, desavindo-se com a Sé de Santiago, tirou-lhe o senhorio eclesiástico sobre a cidade, incorporando-a ao domínio real e permitindo, assim, que os burgueses compostelanos ampliassem o seu poder. Já com seu sucessor, Sancho iv (1284-95), mudou-se o relacionamento da monarquia com a Sé, o que se evidencia com as visitas desse monarca a Compostela, em 1286 com repercussão literária conhecida e em 1291. uma rede familiar, social e textual Nos séculos xii e xiii, portanto, foi determinante o papel de Santiago de Compostela como centro religioso, político e cultural, fazendo da cidade não só o polo de atração para as correntes intelectuais e artísticas prevalecentes na Europa, mas também o ponto de difusão dessas tendências ou de outras que ali teriam encontrado o seu berço. Não é de estranhar que boa parte dos trovadores cuja produção se encontra recolhida nos Cancioneiros galego-portugueses esteja, de alguma forma, a ela relacionada. Assim, os trovadores mais antigos, unidos entre si por laços familiares ou por nexos sociais vinculativos 17

que os caracterizam como um grupo fortemente coeso e solidário, remetem a linhagens poderosas no contexto galego da época: entre elas, como já foi dito, tem papel preponderante a estirpe dos Travas, mas há outras igualmente importantes, que lhe estão associadas, como a dos Vélaz, a dos Limas, a Celanova-Toronho, a dos Cabreras e a dos Urgells. Com ramificações e alianças que se estendem aos outros reinos da Península, essas famílias ligavam-se intimamente também aos círculos do poder real e eclesiástico, com presença marcante inclusive na comunidade religiosa do arcebispado de Santiago. Desses precursores que figuram entre os primeiros trovadores na Tavola colocciana, elaborada pelo humanista Angelo Colocci provavelmente como índice do Cancioneiro da Biblioteca Nacional não nos chegou, por azares da transmissão manuscrita, a produção poética de João Vélaz, Dom Juião, Pedro Rodrigues da Palmeira, Dom Rodrigo Dias dos Cameros, Airas Oares e Pedro Pais Bazaco. Os Cancioneiros registram, entretanto, as composições de outros trovadores também pertencentes a linhagens nobres e possuidoras de casas em Compostela, as quais serviriam, dada a importância política e cultural da cidade, como centro aglutinador para as suas respectivas cortes. Entre eles, Osório Eanes, Airas Fernandes Carpancho, Fernão Pais de Tamalhancos e Afonso Eanes do Cotom. Além dos poetas que eram membros das famílias nobres, é preciso ainda lembrar os clérigos e os burgueses compostelanos cujas composições nos foram transmitidas nos Cancioneiros. 18

organização do livro Tendo em vista, portanto, a importância de Santiago de Compostela na origem e difusão da lírica trovadoresca, apresentamos os trovadores, por ordem alfabética, dividindo a coletânea em duas partes. Na primeira e maior estão aqueles que fazem alguma menção a Santiago na sua produção ou que se ligam a essa área geográfica por documentação histórico-biográfica. Na segunda parte, estão trovadores cujas composições dialogam com poetas do primeiro grupo: assim, Dom Afonso x, que em duas cantigas refere Afonso Eanes do Cotom, Bernal de Bonaval e Pero da Ponte; Dom Dinis, que dialoga com Pero Meogo; João de Gaia, que menciona Martim Moxa; e João Zorro, autor de uma cantiga retomada por Airas Nunes. A seleção dos autores e das cantigas, nesta seção, levou em conta a relevância dos poetas e de suas composições, segundo critérios literários, e a consideração do papel importante que a intertextualidade desempenhou na obra dos trovadores em geral, conforme o reconhece a própria Arte de trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, ao falar sobre a cantiga de seguir. os textos As cantigas selecionadas foram transcritas de maneira que pretendemos rigorosa. Dada a natureza desta publicação, não se inclui aparato crítico nem se indicam as eventuais alterações editoriais. Nossa versão raramente corrige o texto conservado nos testemunhos manuscritos, desde que legítimo do ponto de vista linguístico. Limitamos as intervenções, assim, aos erros evidentes de cópia e a ques- 19

tões relacionadas à estrutura, recorrendo, ocasionalmente, à tradição editorial já estabelecida. A grafia utilizada na transcrição das cantigas é a sugerida nas Normas de edición para a poesía trobadoresca galego-portuguesa medieval (ver a bibliografia, no final), exceto no caso dos acentos diacríticos, que só excepcionalmente são incorporados. As cantigas são apresentadas como textos poéticos que possibilitam leitura e fruição independentes. Mas, para que o leitor se sinta amparado em sua leitura, elaboramos uma nota biobibliográfica para cada trovador, contendo um pequeno comentário elucidativo de cada cantiga. Além disso, incluem-se um glossário com os termos considerados mais problemáticos para o leitor contemporâneo e uma lista dos topônimos mencionados nas cantigas. O livro conclui com uma bibliografia que elenca obras de caráter geral e, quando se julgou pertinente, alguns estudos que focalizam aspectos mais específicos das composições editadas. 20