MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAPITAL: A INSERÇÃO DA LÓGICA DO TERCEIRO SETOR NO ENSINO PÚBLICO Aline Aparecida Martini Alves 1 - UFRGS



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Transcrição:

MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAPITAL: A INSERÇÃO DA LÓGICA DO TERCEIRO SETOR NO ENSINO PÚBLICO Aline Aparecida Martini Alves 1 - UFRGS Este artigo visa debater a problemática da pretensa categorização das Organizações Não-Governamentais sem fins lucrativos, que se colocam como parte da mesma lógica e da mesma luta dos movimentos sociais populares. No entanto, sabe-se que os focos de lutas dos movimentos sociais populares contra a hegemonia do capital são contraditórios, e até antitético, em relação à lógica que está sendo trazida pelos novos movimentos sociais, que selecionam, focalizam e segregam as classes populares, e fazem parte de um movimento (neoliberal) que nega os direitos sociais universais conquistados historicamente, privando-as de seus direitos e convencendo-as de que não existem alternativas para a saída da crise e que o Terceiro Setor traz as soluções para os problemas sociais que o Estado e o Mercado não conseguiram trazer. Através das parcerias com as Organizações Não- Governamentais, o Estado desresponsabiliza-se pela execução das políticas sociais e repassa para o Terceiro Setor essa tarefa, que se utiliza da lógica que lhe convém (a da hegemonia do capital) e executa ações focalizadas, acríticas, aistóricas e reprodutoras da ordem vigente. Palavras-chave: Movimentos Sociais do Capital; Terceiro Setor; Parcerias; Escola Pública; Formação de Gestores Escolares na Lógica do Capital. This article aims to debate the problematic of the pretense categorization from the Non-governmental Organizations with no-profits-making, that place itself as a parte of the same logic and the same fight of the popular social moviments. However, it knows that the foccus from the fights of the popular social movements against the capital hegemony are contradictorie, and even antithetical, in relation to the logic that is being brought by the new social moviments, that select, focalize and segregate the popular classes, and make part of a moviment (neoliberal) that denies the universal social rights acquired historically, privating them of its rights and convincing them that there are not alternatives for the crises outlet and the Third sector brings the solutions for the social problems that the State and the Market did not bring. Throught the partnerships with Non-governmental Organizations, the State disconsider responsable for the execution of the social politcs and repasses this task to the Third Sector, that utilizes the logic that agrees with (the capital hegemony) and executes focalized actions, acritic, aistorics and reproductory from the effective order. Key-words: Social Movements from the Capital; Third Sector; Partnerships; Public School; Scholar Administrator s Formation of the Logic from the Capital. 1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Luterana do Brasil. Especialista em Gestão Educacional pelas Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT. Atualmente é aluna do Programa de Educação Continuada do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da rede pública estadual do Rio Grande do Sul e da rede pública municipal de Gravataí/RS. E-mail: alinemartini@bol.com.br

2 Temos no Brasil, a partir da década de 1970, o início de um período de abertura política, após um longo período de ditadura, onde começa a ocorrer a mobilização pela democratização da sociedade e para o fortalecimento e a consolidação dos movimentos sociais populares. Concomitante a isso, desencadeia-se nos países capitalistas centrais, como Inglaterra e Estados Unidos, uma grave crise de acumulação (HARVEY, 2005, p. 22). O desemprego e a inflação se ampliavam, surgiam crises fiscais e as receitas de impostos caíam acentuadamente e os gastos sociais disparavam (idem), o que configurou a lógica da crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2009), que é justificada pela lei geral da acumulação capitalista que, considerada a longo prazo, intercala períodos de crescimento acelerado, seguidos de fases de crescimento desacelerado, convulsões e estagnações, derivando em crises econômicas generalizadas e cumulativas (MONTAÑO, 2008, p. 28). A crise do capital foi interpretada ideologicamente pelos neoliberais, não como uma crise estrutural do capital, mas como uma crise do Estado, justificando que o Estado gastou mais do que podia para legitimar-se, já que tinha que atender às demandas da população por políticas sociais, o que provocou a crise fiscal, quanto porque, ao regular a economia, atrapalhou o livre andamento do mercado (PERONI, 2006, p. 13). Para os neoliberais, as políticas sociais são um verdadeiro saque à propriedade privada, pois são formas de distribuição de renda, além de também serem um obstáculo para o livre andamento do mercado, visto que os impostos oneram a produção (idem). Segundo Peroni (2006, p. 14): O papel do Estado para com as políticas sociais é alterado, pois, com esse diagnóstico, duas são as prescrições: racionalizar os recursos e esvaziar o poder das instituições, já que instituições democráticas são permeáveis às pressões e demandas das populações, além de serem consideradas como improdutivas pela lógica de mercado. Nesse cenário, os neoliberais propõem o repasse das responsabilidades pela execução das políticas sociais para a sociedade, através das privatizações

3 (mercado), e do Terceiro Setor, pelo público não-estatal 2 (sem fins lucrativos), desresponsabilizando o Estado de suas tarefa da promoção do bem-estar social aos cidadãos, isentando-se, inclusive, dos possíveis resultados que tal transferência pode acarretar no futuro. Isso comprova que o Estado 3 também está a serviço da hegemonia do capital. No Brasil, dada a inexistência de um Estado de Bem Estar Social 4, o desmonte das políticas sociais foi mais fácil e também mais devastador, possibilitando a introdução de reformas que terminaram por eliminar direitos sociais duramente conquistados no passado (SOARES, 2005). Sabe-se que a partir da década de 1970 as ONGs tentam inserir-se na mesma dinâmica dos movimentos sociais populares, mas não tiveram grande expansão. Foi só a partir do advento das reformas neoliberais que ocorrem no Brasil, desde 1995, quando o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, juntamente com o Ministro da pasta Luis Carlos Bresser Pereira, através do MARE Ministério da Administração e Reforma do Estado, instituiu o PDRAE Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado que considerava as políticas sociais como serviços não exclusivos do Estado, ou seja, de propriedade pública não-estatal ou privada (PERONI, 2006), proporcionando assim a abertura de espaços (deixados pelo Estado) para a proliferação de um novo setor na sociedade. Essa redefinição do papel do Estado trouxe consigo a criação do Terceiro Setor 5, que, por não ter uma definição precisa de quem faz parte desse movimento, engloba tanto organizações como atuações radicais com a lógica contrahegemônica do capital, como o Green Peace, que luta pela preservação do meio 2 O público não estatal pressupõe a existência do Estado e do Mercado. O conceito designa um conjunto de iniciativas particulares com um sentido público (FERNANDES apud PERONI, 2006). Mais especificamente, o público não estatal refere-se às parcerias público/privadas. 3 Estado aqui entendido como Estado histórico, concreto, de classe e, nesse sentido, Estado máximo para o capital, já que no processo de correlação de forças em curso, é o capital que detém a hegemonia (PERONI, [S.d.]). 4 Estado do Bem-Estar é um modelo de Estado desenvolvido na Europa e nos Estados Unidos no pós-guerra, conhecido também como Welfare State que tinha como estratégias administrativas planificar e fazer intervenções estatais na economia para estabilizar o capitalismo. Segundo David Harvey (1989), as características demonstradas pelo Estado de bem-estar social são o controle dos ciclos econômicos, o direcionamento de políticas para o investimento público, a seguridade social, a assistência médica, a educação e a habitação, portanto um Estado de direitos (AMARAL, 2006, p. 34). 5 Montaño (2005, p.16) coloca a fragilidade do conceito de Terceiro Setor, já que com essa denominação subentende-se a existência de um Primeiro Setor o Estado e de um Segundo Setor o Mercado. Segundo Montaño, esse conceito desarticula e fragmenta a totalidade social, escamoteando o verdadeiro fenômeno: a desarticulação do padrão de resposta estatal às seqüelas da questão social.

4 ambiente, o Movimento dos Sem-Terra, que busca a regulamentação da Reforma Agrária há várias décadas, os indígenas de Chiapas, que lutam apenas para terem sua cultura respeitada; mas também, e o que causa grande preocupação por parte daqueles que lutam contra a lógica perversa do capitalismo, as entidades que seguem a lógica do capital, como federações (como a Fiergs Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul), fundações (como a Fundação Bradesco, Fundação Itaú Social), institutos (como o IAS - Instituto Ayrton Senna, Instituto Alfa e Beto), que são valorizadas pelas elites e pela grande mídia por ser apenas manifestações pacíficas [grifo do autor], e não organizações de lutas de maior impacto no enfrentamento (MONTAÑO, 2005, p. 56), como é o caso dos movimentos sociais populares que lutam abertamente pelo enfrentamento, embate de ideias, reconhecimento, respeito e igualdade na sociedade. A problemática da entrada do Terceiro Setor na execução das políticas públicas (que são deveres do Estado), apontada por autores como Montanõ (2005), Soares (2005), Peroni (2006), Pires (2009), alerta para a falta de regulação por parte do Estado dessas políticas terceirizadas, para a disputa de verbas públicas na execução de projetos focalizados, portanto, não universais, e para o seu caráter substitutivo e não complementar em relação às políticas sociais universais, que desmascara as supostas parcerias entre o Estado e a Sociedade [grifos do autor] (SOARES, 2005). Segundo Montaño (2005) o Terceiro Setor presta um grande serviço ao capital e à ofensiva neoliberal, na luta pela hegemonia na sociedade civil, no interior do processo de reestruturação do capital, e por isso exerce uma forte funcionalidade neste processo, no que se refere ao afastamento do Estado das suas responsabilidades nas respostas à questão social, pois retira e esvazia a dimensão de direito universal dos cidadãos quanto às políticas sociais (estatais) de qualidade. Sanfelice também alerta: [...] Tudo vem sendo feito para a acomodação do Estado à lógica neoliberal. [...] Jogar as políticas sociais para o âmbito do que o neoliberalismo chama de sociedade civil. Mas é preciso tomar cuidado, porque o que o neoliberalismo chama de sociedade civil é o mercado. O público não-estatal. As políticas sociais foram deslocadas para a sociedade civil. São políticas sociais submetidas à lógica do mercado, à concorrência, à competitividade. [...] A mercantilização dos direitos sociais não politiza a sociedade civil (2006, p. 61-2).

5 O conceito do Terceiro Setor é, portanto, ideológico 6, encobridor e desarticulador do real. Pode-se perceber uma de suas contradições/confusões pretensas quando as Organizações Não-Governamentais são financiadas pelos governos, através das parcerias, suas funções não tão fiéis ao seu dito caráter nãogovernamental e à sua condição de autogovernada [grifos do autor] (MONTANÕ, 2005, p. 57), porque ao escolher uma entre várias ONGs, por exemplo, o governo faz uma seletividade, dentro e a partir da política governamental, o que leva tendencialmente à presença e permanência de certas ONGs (idem) e não outras, conforme o projeto daquele governo. Então, as Organizações Não Governamentais não são isentas, não-partidárias, como querem parecer, pois exercem cunho político partidário, na medida em que projetam ações coerentes com os modelos de administração pública que lhes interessam naquele período particular. É o que ocorre, por exemplo, no Estado do Rio Grande do Sul, em que o atual governo do Estado 7, via Secretaria Estadual de Educação, estabeleceu uma parceria com a ONG sem fins lucrativos Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS) e Serviço Social da Indústria (SESI/RS) 8, para a execução do Programa Consultoria para Educação de Qualidade. O programa consiste na execução de consultorias, por um grupo especializado de profissionais dessas entidades, para a formação de gestores escolares da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, para a implementação de metodologia de Gestão pela Qualidade nas escolas, focada na melhoria contínua dos indicadores educacionais (SAERS, SAEB, índices de evasão/reprovação, etc.). O método empregado pela FIERGS e SESI/RS integra o Programa Educação para Nova Indústria, lançado nacionalmente em 2007, pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Segundo as prescrições apresentadas durante a execução do programa, é colocado que este visa ajudar a sanar as dificuldades e limitações do Estado. Ou seja, há o diagnóstico de que o Estado está em crise e precisa ser ajudado, pelos neoliberais, que consideram que: 6 Conceito ideológico aqui entendido como conceito Gramsciano de falsa consciência. 7 A atual governadora do Estado do RS é Yeda Crusius, do Partido da Social Democracia Brasileira (gestão 2007-2010). 8 Essa parceria foi estabelecida através do Termo de Cooperação Nº. 197/2008, assinado em 19 de março de 2008, com vigência para o triênio 2008/2010.

6 [...] não é o capitalismo que está em crise, mas o Estado. A estratégia, então, é reformar o estado ou diminuir a sua atuação para superar a crise. O mercado é que deve superar as falhas do Estado. Assim, a lógica do mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, para que ele possa ser mais eficiente e produtivo (PERONI, 2006, p.11). Para isso, é criada uma retórica benevolente, porém produtivista e mercantilista. Como pode-se observar nas palavras de Paulo Tigre, presidente da FIERGS: A FIERGS reconhece que a educação não é apenas um problema dos educadores, mas da sociedade como um todo, por isso vem prestando sua colaboração como entidade social vinculada aos empresários do setor industrial do Estado, visando à qualificação educacional dos futuros trabalhadores da indústria rio-grandense 9. Dentro da mesma lógica mercantil e produtivista, a então Secretária da Educação do Rio Grande do Sul Mariza Abreu salientou que: somente com Educação Básica de qualidade é possível fazer crescer a produtividade e desenvolver a economia no País e no Estado, por isso precisamos cada vez mais do apoio dos empresários para melhorar a Educação 10. Esta fala traz a ideia ilusória de que a produtividade capitalista traz benefícios financeiros e educativos para toda a população. Mas, como sabemos, neste modelo capitalista/desenvolvimentista atual, apenas quem lucra como as produções em larga escala são os proprietários dos bens de produção, ou seja, os grandes empresários, as grandes redes, enfim, lucra o capitalismo. Além disso, a educação pública precisa do apoio do empresariado, mas não da forma que está sendo colocada na atualidade. Eles querem movimentar a economia, lucrar a qualquer preço, precisam de mão-de-obra qualificada (preferencialmente, de caráter puramente técnico) para isso. Por isso investem (inteligentemente) na formação de uma cultura empresarial dentro da escola pública, que é o local onde se geram os futuros trabalhadores da indústria. Costa salienta que na luta travada entre as classes burguesa e trabalhadora pela direção da sociedade, a primeira busca usar a escola não só como lugar de reprodução de ideologias, mas também da força de trabalho para atuar nos processos produtivos, por meio de uma educação adestradora, disciplinadora, que 9 Disponível em: www.educacao.rs.gov.br> Acesso em: 15 jan. 2009. 10 Disponível em: www.educacao.rs.gov.br> Acesso em: 15 jan. 2009

7 introduz nos sujeitos o modus operandis [grifos do autor] do mundo do trabalho e, assim, participando ativamente na produção da mercadoria força de trabalho (2009, p. 60). Percebe-se então que há um interesse ideológico fortíssimo, de formar gestores escolares para a reprodução dessa gestão gerencial e para a formação de trabalhadores da indústria que, desde a formação escolar inicial, estejam conformados com a situação na qual se encontram e não vejam saídas ou horizontes possíveis para a superação dessas condições. Sobre isso, Vitor Paro (2002, p. 107) é incisivo quando fala que há muito de equívoco na posição que a identifica a escola como essencialmente reprodutora de força de trabalho. E continua: É preciso ter presente que não basta formar para o trabalho, ou para a sobrevivência, como parece entender os que vêem na escola apenas um instrumento para preparar para o mercado de trabalho. [...] Se a escola deve preparar para alguma coisa, deve ser para a própria vida, mas esta entendida como o viver bem, no desfrute de todos os bens criados socialmente pela humanidade (1998, p. 2). Assim, o gestor em contato direto com uma gestão puramente empresarial e convencido de que a escola é o espelho da sociedade e que o seu papel é formar/conformar/deformar para o mercado de trabalho (alienado, reprodutor do capital e das desigualdades sociais), conduz a escola através dessas práticas gerenciais, que transformam o cotidiano escolar em uma verdadeira empresa, garantindo a dominação, a conformação e as práticas antidemocráticas, e acabam tendo um papel fundamental na disseminação dessas ideias produzidas fora do âmbito estatal (Terceiro Setor), mas seguidas à risca por este. Como afirma Chistian Laval (2004, p. 283), nessa lógica de persuasão, o gestor, convertido à pedagogia inovadora, deve usar a sua influência para converter os professores às boas práticas [grifos do autor], e, consequentemente, está instaurada na escola pública a lógica do capital, via ação dos benfeitores do Terceiro Setor. Parece ingênuo pensar que uma Organização Não-Governamental sem fins lucrativos, como a Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, não tenha interesses lucrativos ao formular e executar um programa que visa qualificar os gestores escolares para pôr em prática uma gestão gerencial, com ferramentas da gestão empresarial, onde o produto é o lucro (a aquisição da mais-valia pelos

8 capitalistas), que não coincidem em nada com os verdadeiros mecanismos da gestão democrática da escola pública, garantidos constitucionalmente, onde diálogo, participação, autonomia, descentralização do poder são premissas básicas na gestão escolar, que não visa a criação de um produto vendável, mas a criação de um ambiente de participação no processos de ensino e de aprendizagem dos alunos, em especial, e da comunidade escolar, no geral. Percebe-se que há um grande interesse na sociedade de passar a ideia de santificação das organizações sem fins lucrativos, e que estas estão imbuídas de uma solidariedade universal. Mas se está se querendo gerir a escola pública conforme os moldes empresariais (de mercado), como pensar que o objetivo dessas entidades sejam o contrário, do bem comum, da igualdade, da luta contra a lógica do capital? Sobre isso Montaño (2005, p. 157) coloca: Resulta impressionantemente ingênuo pensar que as atividades filantrópicas das empresas (chamadas simpaticamente de iniciativa privada ), também incluídas no terceiro setor, não visam, mesmo que indireta e encobertamente, a fins lucrativos. [...] Como não ter consciência do interesse eminentemente lucrativo e político na atividade filantrópica empresarial? A preocupação desta entidade com a formação dos gestores escolares e, consequentemente, com os futuros trabalhadores da indústria, como citado anteriormente pelo presidente da ONG, nada mais é do que a garantia da naturalização da lógica do capital, através da introdução de ferramentas gerenciais da empresa privada no setor público para que, futuramente, alcancem o objetivo de (des)qualificação de mão-de-obra de baixo custo para o mercado. É o interesse da hegemonia do capital personificado na filantropia do Terceiro Setor. O Mercado que já tem como aliado o Terceiro Setor, passa a ter o Estado como seu braço forte na busca incessante pela hegemonia plena. O Estado, desfigurado, abertamente seguindo a lógica neoliberal, ao invés de lutar pela escola de qualidade para todos, usando como referência as ferramentas da gestão democrática da escola pública, acaba por fazer o caminho inverso: entrega a formulação das políticas pública para as ONGs, que demonstram que todos os esforços de sua orientação/focos aparentemente transparentes são obtusos e difusos (SZILAGYI, 2006, p. 218).

9 A partir disso, Sousa (1997, p. 81) avalia que gerir o sistema público de educação de acordo com a lógica da economia de mercado tende a promover, não a sua democratização, mas o seu desmonte. Para a superação da real situação de desumanização que vive a sociedade atualmente, em nome da manutenção da ordem (neoliberal), primeiramente, é preciso criar uma consciência coletiva e uma diferenciação dos verdadeiros movimentos sociais de lutas pela igualdade, pela dignidade 11, pela preservação do meio ambiente, pela defesa das minorias étnicas, que sofrem um processo de criminalização, pelas elites econômicas e pela grande mídia, que pretendem passar a ideia de que esses movimentos populares são arruaceiros, vândalos, vagabundos, mal-educados, desconsiderando toda a trajetória histórica da sociedade capitalista que levou essas pessoas à condição de exclusão social, daqueles movimentos sociais do capital, da burguesia que, em nome de uma solidariedade universal (MONTAÑO, 2005) fajuta, pretendem assegurar o domínio do capital e a continuação das desigualdades sociais. A partir disso, é necessário criar um movimento de desmonte do domínio do capital, via os três setores (Estado, Mercado e Terceiro Setor). Um movimento de conscientização, de reflexão, de humanização das relações, regidas por valores de solidariedade e respeito mútuo, para desmascarar a lógica do capital escamoteada pelos neoliberais, através das santificadas Organizações Não-Governamentais, que além de não terem regulação do Estado, atuam de maneira focalizada, portanto, não-universal, para suprir as deficiências do Estado, e que, paulatinamente, está virando moda e já dominam grande parte do cenário das políticas públicas, em especial (e catastroficamente), as educacionais. É preciso ficar atento! É preciso tirar a sociedade desse senso-comum criado pelas elites! É preciso mostrar aos desprovidos dos meios a saída dessa alienação e que outro mundo é possível! E que a mudança de consciência e atitude começa agora! Como bem colocou Blake (apud THOMPSON, 1981, p. 8): A razão, ou o ratio de tudo o que já conhecemos, não é a mesma que será quando conhecermos mais. 11 Ver John Holloway. La revuelta de la dignidad. Chiapas. [S.l.]: Neus Espesate, [S.d.].

10 REFERÊNCIAS AMARAL, Joseane Carolina Soares Ramos do. A trajetória da gestão democrática da educação na rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2006. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006. COSTA, Áurea C. Entre a dilapidação moral e a missão redentorista: o processo de alienação no trabalho de professores do ensino básico brasileiro. In: ; NETO, Edgar; SOUZA, Gilberto. A proletarização do professor: neoliberalismo na educação. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2009. FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO RIO GRANDE DO SUL. Programa Consultoria para Educação de Qualidade. Porto Alegre, 2008. LAVAL, Chistian. A escola não é uma empresa: o neo-liberalismo em ataque ao ensino público. Londrina: Planta, 2004. MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo: 2009. MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e questão social. São Paulo: Cortez, 2005.. Novas configurações do público e do privado no contexto capitalista atual: o papel político-ideológico do Terceiro Setor. In: PERONI, Vera; ADRIÃO, Theresa. Público e Privado na educação: novos elementos para o debate. São Paulo: Xamã, 2008. PARO, Vitor Henrique. A gestão da escola ante as exigências de qualidade e produtividade da escola pública. In: CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE REESTRUTURAÇÃO CURRICULAR, 1998, Porto Alegre. Publicado em: SILVA, Luiz Heron da; (org). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 300-7. PERONI, Vera Maria Vidal. Política Educacional e papel do Estado no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003.. Mudanças na configuração do Estado e sua influência na política educacional. In: ; BAZZO, Vera Lúcia; PEGORARO, Ludimar. (orgs). Dilemas da educação brasileira em tempos de globalização neoliberal. Porto Alegre: UFRGS, 2006.. A relação público/privado e a gestão da educação em tempos de redefinição do papel do Estado. In: PERONI, Vera; ADRIÃO, Theresa (orgs.).

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