UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL



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Transcrição:

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL IV SEAD - SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO 1969-2009: Memória e história na/da Análise do Discurso Porto Alegre, de 10 a 13 de novembro de 2009 Introdução RESISTÊNCIA TUYUKA NAS POLÍTICAS DE ENSINO DA LÍNGUA Judite Gonçalves de Albuquerque juditeg@terra.com.br Doutora Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) Esta pesquisa tem como tema a análise de políticas de línguas na Amazônia, tomando como corpus duas modalidades de escola indígena no Alto Rio Negro: as escolas da colonização, implantadas e dirigidas por missionários salesianos, em estreita aliança com o Estado, desde 1914, e as escolas pensadas e dirigidas por comunidades indígenas, organizadas pela FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), enquanto forma de resistência aos gestos de imposição que se cristalizaram, ao longo de quase um século de atuação salesiana, como se fossem naturais. Esta pesquisa 1 teve como objetivo analisar as políticas de ensino das línguas indígenas, fazendo a ligação entre linguagem e história, numa perspectiva discursiva, buscando compreender a colonização como se dando também no campo lingüístico, pelo apagamento de línguas indígenas e de seus falantes, por ocasião da chegada dos europeus no Brasil; a pesquisa permitiu compreender como se deu essa colonização via catequese, e as complexas relações entre língua, língua materna, língua nacional, língua geral, dialetos (ORLANDI, 2002, p. 13). Nesse processo, se destaca o papel da Escola, em que se ensina e se aprende uma língua nacional, a língua de referência para o ensino-aprendizagem das outras disciplinas. No caso das escolas missionárias para os índios, no rio Negro, a língua portuguesa foi duramente imposta como condição de civilização e as línguas indígenas foram sistematicamente proibidas, apagadas, silenciadas. É na língua 1 As informações aqui contidas foram retiradas de uma pesquisa que realizei para o MEC, em convênio com a UNESCO, em 2004, para um Diagnóstico da Escolarização em Nível Médio dos Povos Indígenas do Alto e Médio Rio Negro-AM, através do PROJETO 914BRA1086 DIVERSIDADE NA UNIVERSIDADE: Produto I, Ensino Médio no Alto e Médio Rio Negro: demanda/oferta e condições de funcionamento, Cáceres, MT, junho de 2004.

nacional que se constitui o sujeito nacional. O Estado delega esta missão à igreja que, além de ter os melhores professores, tem também, como prática, a rígida disciplina (Di Renzo, 2005). Os rituais no cotidiano das escolas de influência salesiana, no Alto Rio Negro, são repetidos ainda hoje, funcionando, discursivamente, como uma memória de como deve ser uma escola Indígena (ou melhor, para índios). Por outro lado, a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Negro) tem proposto e organizado núcleos próprios de escolarização, a que chamei de escolas de resistência em minha tese de doutorado 2, trazendo em sua estrutura e funcionamento, gestos de ruptura em relação aos modelos impostos. O meu recorte de análise incidiu sobre uma escola em particular, que traçou os seus objetivos em torno da retomada e valorização da própria língua e cultura, a Escola Estadual Utapinopona Tuyuka. 1. Missão civilizatória salesiana no rio Negro: uma só religião, uma só língua, uma só bandeira a captura da fala indígena Os Salesianos chegaram ao rio Negro comprometidos com a Igreja (que os envia para converter os índios a uma única religião) e com o Estado (que os recebe para impor uma língua, uma cultura e o culto a uma bandeira); sabem que devem investir na instituição Escola, pois é esse o lugar onde será possível legitimar o ensino da língua portuguesa. Era preciso, portanto, apagar as outras línguas, as línguas indígenas, fluidas, que não se deixam imobilizar nas redes de formulações fixas da língua imaginária (Orlandi, 2002, p. 22); as línguas, no entender de Guimarães (2005), são objetos históricos e estão sempre relacionados inseparavelmente daqueles que as falam (...), elementos fortes no processo de identificação social dos grupos humanos. Por isso, os colonizadores nunca tiveram dúvida de impor aos povos colonizados o seu próprio idioma. Mariani (2004) fala de um dos aspectos presente na colonização lingüística: a relação da língua da colonização e as demais línguas encontradas na terra brasilis; os colonizadores estudam as outras línguas e falam/escrevem sobre elas, porém, frente a esses dizeres, não há um direito lingüístico de reposta : os índios não podem nem contestar a interpretação portuguesa, uma vez que não sabem o que está sendo dito sobre eles, nem têm como deixar na memória sua interpretação sobre esse desconhecido português, já que sua língua não tem escrita (Mariani, 2004, p. 29). Os salesianos falam não apenas sobre as línguas indígenas do rio Negro, mas sobre os próprios índios; os sentidos sobre os índios já estão postos desde 1500, e se multiplicam indefinidamente, no silêncio, porque antes de ser palavra o sentido já foi silêncio (Orlandi, 1997, p. 164). Historicamente, a imagem negativa do índio sempre foi considerada natural. Gambini (2000) explica: porque o contraste assegurava ao civilizador a confirmação da sua duvidosa superioridade [...]. Os índios já eram conhecidos muito antes de serem encontrados (p. 90). Os primeiros jesuítas viam a civilização do índio como a 2 Educação Escolar indígena: do panóptico a um espaço possível de subjetivação na resistência, IEL/UNICAMP, 2007. 2

repetição do mito da Criação: civilizá-los seria o mesmo que moldar de novo a argila corrupta à imagem do autor. Os jesuítas fincaram o pé no Novo Mundo com esse objetivo, e convencidos de que a argila era má (p. 90). Essa formação discursiva atravessa os séculos e vai se acomodando folgadamente na bagagem dos missionários salesianos, no século XX (1914), para quem o índio é violento, tem instintos rebeldes, está sempre pronto para atacar, mas o missionário [...] vai amansando os instintos rebeldes do índio (D Azevedo, 19950, p.22). No Rio Negro, os salesianos pretenderam construir uma humanidade idêntica e identificada, regulada em suas posições e seus fluxos, em uma língua única, legítima, feita de conceitos bem definidos e de significados estáveis; um nome para cada coisa e uma coisa para cada nome (Larrosa (2004, p.272). Nos internatos salesianos, no rio Negro, crianças e jovens, que não entendessem o Tukano e nem o Português, chegavam a ficar meses sem ter com quem conversar. Surpreendidos falando com parentes em suas próprias línguas, eram castigados e humilhados, uma prática de língua que regulava um certo modo de convivência e fazia calar uma subjetividade como condição de se ser escolarizado, de se ser civilizado, de se ser cidadão do Estado brasileiro: Deixar de usar sua língua materna, para deixar de ser índio. Se o projeto salesiano, como um todo, tinha por objetivo impor uma só religião, os mesmos costumes e a mesma bandeira, o princípio de tudo era, necessariamente, a imposição de uma só língua. E a conseqüência era o apagamento das outras vinte e tantas línguas faladas no Rio Negro, era o silenciamento do sujeito, o estancamento da produção de certos sentidos, a qualquer preço. Privar alguém de sua palavra é imputar-lhe um sofrimento na alma muito mais doloroso do que aquele causado por uma ferida corporal. No entanto, isso faz funcionar a estrutura do Estado nacional, a homogeneização dos sujeitos. Para haver Estado, é preciso nacionalizar os indivíduos: uma mesma língua como condição de pertencimento, pois é através dela e por ela que costumes, tradições e comportamentos se tornam hábitos comuns, e em decorrência, igualam (imaginariamente) os sujeitos: um efeito ideológico. No caso dos índios, passa a ser condição para pertencer à brasilidade, abster-se da própria língua. Separar uma criança, um jovem da sua família e interná-los num ambiente alheio aos seus costumes, às suas brincadeiras, aos seus afetos é produzir na sua alma uma ferida que jamais será cicatrizada. Mesmo que se aprenda a outra língua, como se dizer numa língua que não metaforiza o seu cotidiano, um cotidiano que culturalmente também não é seu? Espaços, comida, ritmo de trabalho, lazer, descanso, risos, jogos, rituais religiosos, tudo é europeu e cristão. Neste trabalho com a língua não é só a fala que é capturada, mas o corpo, o ser todo também o é, na medida em que se entra num jogo complexo de modificação do cultural de origem naquele do outro, 3

da língua materna na do outro, do total no parcial, da linguagem em um código (...). Não há enunciado da origem da dor senão coletivo, cultural ou mítico. (DOUVILLE, 1989, p. 273-274). 2. A Escola Utapinopona Tuyuka: políticas lingüísticas e resistência Contra essa perversa política, muitos grupos organizados de/por índios têm se levantado e tomado uma posição, servindo-se da mesma instituição de domínio a Escola para, no conflito e confronto, se afirmarem com sua própria cultura e língua. A Escola Utapinopona Tuyuka é uma delas. Depois de anos de articulação de suas comunidades, decidiu investir num projeto educacional diferenciado daquele trabalhado pelos salesianos com um objetivo bem claro de fortalecer as comunidades e populações que permanecem em seus territórios de ocupação tradicional e buscam a melhoria do ensino e qualidade de vida. Tem por objetivo lutar pela autonomia no modo de ser tuyuka e na relação com os outros, levando crianças e jovens a identificarem-se com seu povo, valorizando sua cultura e posicionando-se com segurança diante dos demais povos e dos brancos. No início não foi muito fácil para as lideranças tuyuka discutir nas comunidades a organização de uma escola tuyuka, pensada e dirigida pelos tuyuka, com autonomia. Muitos acharam que estavam retrocedendo no progresso, que a escola indígena e o ensino na língua são um atraso. É um imaginário de sentidos estabilizados funcionando, dificultando a emergência de sentidos outros que tornassem possível compreender que o reconhecimento da língua e da cultura está na base de uma política lingüística autônoma e criativa, capaz de dar respostas práticas para a vida da comunidade. A região do rio Tiquié é uma região multilíngüe. Todos falam pelo menos duas línguas indígenas ou mais; os homens tuyuka se casam com mulheres de outras etnias, que falam outras línguas. A língua tuyuka estava perdendo cada vez mais espaço lingüístico rio Tiquié, tendo em vista a hegemonia da língua tukano na região, as questões de parentesco e a força da educação introduzida na Região pelos missionários europeus. Resistir é burlar a língua do Estado e todos os seus paradigmas. Diante de um contexto em que o tukano tendia seriamente a tomar espaço da língua tuyuka, buscou-se estratégias para fortalecer e reconhecer a própria língua com ações a serem feitas dentro e fora das escolas: Estamos buscando juntos estratégias, na escola e fora dela (Prof. Higini Tenório, diretor da escola). As lideranças e os coordenadores começaram a animar as mães para usarem mais o tuyuka com seus filhos jovens e crianças, e os jovens a usarem o tuyuka entre eles. Toda a comunidade ajudou a criar um alfabeto tuyuka adaptado do português e a registrar, por escrito, o resultado das pesquisas que estavam fazendo na escola. Dessa forma começou-se a reconhecer o tuyuka falado e, também, escrito. 4

Hoje todos falam o tuyuka e o principal ganho é que os jovens estudantes escrevem literatura na própria língua. O português tem sido usado entre os tuyuka só para se comunicar com falantes de português. Vindos de uma educação que tentou castrar línguas e culturas, depois de terem passado nos internatos a dura experiência da captura da fala, pois foram proibidos de se expressarem na própria língua, os tuyuka e outros povos indígenas estão, hoje, vivendo essa experiência de registrar e publicar os seus mitos, as suas memórias históricas. Payer (2006) chama para a importância da formulação das memórias discursivas apagadas e deixa bem claro que não se trata de resgate da memória, cujos sentidos já estariam postos, mas se fala de sua formulação discursiva (p.39). Os tuyuka se propõem a fazer essa formulação não tanto pelo resultado, mas pelo processo de significação que ela instaura. A não ser assim, o registro da língua que os Tuyuka estão fazendo não passaria de arquivo morto e não estaria produzindo os efeitos de alegria, de auto-estima, de influência sobre um cem número de escolas vizinhas, que manifestam o desejo de ter uma escola semelhante, ou de colocar o seu filho na escola tuyuka, ou seja, de ter a oportunidade de reconhecer-se na língua de origem, de se sentirem novos sujeitos na escola. Novos espaços-tempos estão sendo engendrados pelos povos indígenas e cada pequena tentativa fortalece a sua capacidade de resistência aos mecanismos oficiais de controle. Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, Judite Gonçalves de. Educação Escolar Indígena: do panóptico a um espaço possível de subjetivação na resistência. Tese de doutorado, IEL/Unicamp, 2007. AUROUX, Sylvain. A Revolução Tecnológica da Gramatização. Tradução de Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992. BORGES, Luiz Carlos. A Instituição de Línguas Gerais no Brasil. In ORLANDI, Eni (org.). História das Idéias Lingüísticas: Construção do Saber Metalingüístico e Constituição da Língua Nacional. Campinas/SP e Cáceres/MT: Pontes e Editora da Unemat, 2001. BRASIL. MEC/UNESCO. Diagnóstico da Escolarização em Nível Médio dos Povos Indígenas no Alto e Médio Rio Negro-AM. Brasília, 2004. CABALZAR, Aloísio (1999) O Templo Profanado: missionários salesianos e a transformação da maloca tuyuka, in WRIGHT, Robin M. (org) Transformando os Deuses Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999. D AZEVEDO, Soares. Missões Salesianas do Amazonas (apresentação). Nas Fronteiras do Brasil, Rio de Janeiro, 1950. DI RENZO, Ana. A Constituição do Estado Brasileiro e a imposição do Português como Língua Nacional: uma história em Mato Grosso. Tese de Doutorado em Lingüística, IEL/Unicamp, 2005. 5

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