ENSINO RELIGIOSO, LAICIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: PERCEPÇÕES SOBRE O CURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES NA UFPB



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Transcrição:

ENSINO RELIGIOSO, LAICIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: PERCEPÇÕES SOBRE O CURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES NA UFPB Evelin Christine Fonseca de Souza Daniela Patti do Amaral Resumo Religião e educação sempre estiveram interligadas na história educacional brasileira, mas, é a partir da proclamação da república e consequente separação entre Igreja e Estado que se iniciam os debates em torno do tema. O ensino religioso enquanto disciplina do currículo de escolas públicas é instituído em 1934 e, até o momento, não há parâmetros curriculares nacionais oficiais que o organizem, tampouco diretrizes para a formação docente, ficando a cargo de cada sistema de ensino a determinação dos conteúdos a serem ensinados e critérios de formação e admissão de professores. O presente trabalho pretende investigar de que maneira se configura o curso de licenciatura em Ciências das Religiões ofertado pela Universidade Federal da Paraíba. Traça um breve panorama do ensino religioso na legislação vigente, a formação docente para a disciplina no Brasil e no estado da Paraíba, traz uma breve caracterização do curso oferecido pela UFPB e perspectivas de análise, com lacunas a serem preenchidas pela pesquisa ainda em andamento. Parte-se da concepção de que a laicidade do Estado brasileiro, no âmbito da educação, não se afirma na prática, visto que o campo educacional perde sua autonomia frente à expansão de influências do campo religioso sobre ele e sobre o campo político. Palavras-chave: ensino religioso; laicidade; formação docente; Ciências da Religião; Introdução Embora o debate acerca da presença da religião nas escolas públicas brasileiras tenha tido início à época da proclamação da República, em 1889, é preciso destacar que a relação entre escola e religião está na gênese da educação brasileira, remontando à chegada dos padres jesuítas ao Brasil, em 1549, como os primeiros responsáveis pela educação na Colônia. Segundo Romanelli (1978), a missão catequética, razão principal para a chegada da Companhia de Jesus, foi cedendo lugar, em termos de importância, à educação das elites aqui presentes. Contudo, apesar da mudança no foco de atuação dos jesuítas e sua expulsão em meados do

século XVIII, o viés religioso, especificamente católico, permaneceu na educação brasileira e está presente até o atual momento, tanto nas aulas de ensino religioso como em práticas nos espaços escolares não ligados diretamente à disciplina (BRANCO & CORSINO, 2006; FERNANDES, 2012). Com a proclamação da República, instituiu-se a separação entre Igreja e Estado, o que também repercutiu no âmbito educacional conforme exposto no artigo 72 da primeira Constituição Federal: será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos (BRASIL, 1891). Entretanto, muitas disputas foram travadas no campo político nas décadas subsequentes como tentativas da Igreja Católica de recuperar os privilégios que deteve durante o período colonial e imperial. Um dos campos em que os grupos católicos tiveram sucesso no reclame de sua influência foi o educacional. Já na constituição seguinte, proclamada em 1934, inseriuse o ensino religioso nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e Normais. A partir dessa inserção, a referida disciplina permaneceu em todas as constituições promulgadas e outorgadas posteriormente, sendo possível perceber os movimentos de inclusão do ensino religioso com ou sem ônus para os cofres públicos, se confessional ou interconfessional e as diferentes etapas de ensino para as quais deveria ser ofertado (CUNHA, 2007; PAULY, 2004). As contradições entre a presença do ensino religioso nas escolas públicas e o proclamado caráter laico do Estado brasileiro sempre se fizeram presentes. Inicialmente, é preciso compreender o princípio da laicidade como fundamental para a democracia, pois quando o Estado não elege nenhuma religião como oficial, assegura a pluralidade de opiniões e crenças de seus cidadãos. Tal noção é reforçada por Fischmann (2009, p. 20), quando a autora afirma que: religiões e espiritualidades têm valores diversos e o Estado laico é aquele que se estrutura de forma a permitir a convivência em campo social desses diferentes valores, garantindo e promovendo o respeito a todos em seu direito de existir. Ainda de acordo com Fischmann, na relação com as religiões, o Estado laico é o Estado da modéstia, da cautela e do acolhimento (2009, p. 38), compreendendo-o como constituído pela ação humana, e não divina, dando o direito a seus cidadãos de terem ou não uma crença, mudarem de opção se assim convier e de professarem ou não sua fé sem sofrerem qualquer tipo de discriminação. A autora destaca que a pluralidade religiosa é garantida pelo princípio da laicidade do Estado, mas os postulados de cada crença devem ficar restritos à esfera privada de cada uma, não podendo ser extrapolados a toda a sociedade.

Embora a diversidade religiosa encontre respaldo na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96) e pareceres do Conselho Nacional de Educação que versam sobre a educação básica (CURY, 2004), o princípio da laicidade nunca foi plenamente assegurado, visto que tais dispositivos legais possibilitam a existência de práticas proselitistas, especialmente cristãs, ratificando a exclusão de praticantes de religiões já marginalizadas, como as de matrizes afro-brasileiras, e daqueles que optam por não professar uma fé religiosa. No contexto da permanência tão duradoura do ensino religioso no currículo da educação básica e ausência de parâmetros curriculares nacionais para a disciplina em questão e de diretrizes para a formação docente, este trabalho tem como principal objetivo investigar de que maneira se configura o curso de licenciatura em Ciências das Religiões 1 ofertado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o primeiro em uma instituição federal para a formação de professores para o ensino religioso. De modo mais específico, a intenção é investigar os objetivos, justificativas, bases legais e demandas que ancoraram sua criação, bem como o projeto político-pedagógico, estrutura curricular, ementas das disciplinas e perfil e atuação docente e discente. Adicionalmente, é de fundamental importância investigar as lacunas nas legislações que permitiram sua criação, bem como a de cursos semelhantes em outras universidades públicas e privadas, levando em consideração que os pareceres e resoluções mais recentes disponibilizados online pelo Conselho Nacional de Educação que tratam da formação docente para o ensino religioso datam do fim da década de 90 e são contrários à criação de cursos de licenciatura em Ciências da Religião. Tal investigação permitirá conhecer a estrutura de um curso de formação docente para o ensino religioso de uma instituição pertencente ao sistema federal de educação, o que é particularmente relevante para a compreensão da situação da laicidade do Estado brasileiro no âmbito educacional. Ademais, o conhecimento dos perfis docentes que estão sendo formados nesse curso permitirá avaliar seus impactos no ensino religioso ofertado nas escolas públicas de ensino fundamental, principalmente no que diz respeito a uma concepção proselitista ou pluralista dessa disciplina. Para a contextualização da análise, as sessões seguintes deste trabalho versam brevemente sobre o panorama do ensino religioso nos dispositivos legais em vigor, a formação docente para a disciplina e uma rápida caracterização do curso de 1 O curso ofertado pela Universidade Federal da Paraíba denomina-se Ciências das Religiões porque leva em consideração o pluralismo metodológico e do objeto de estudo (UFPB, 2008). Refiro-me ao curso de maneira genérica e em outras universidades como Ciências da Religião por ser o nome comumente utilizado, sem problematizá-lo metodológica ou epistemologicamente.

licenciatura em Ciências das Religiões ofertado pela UFPB. Por fim, a última sessão trata das perspectivas de análise para a presente pesquisa e quais as lacunas a serem investigadas durante pesquisa in loco a ser realizada em julho de 2014. Ensino religioso na legislação vigente Nos dispositivos legais em vigor, as contradições acerca do princípio da laicidade do Estado são marcantes. Na Constituição Federal mais recente (BRASIL, 1988), por exemplo, é possível observar as dissonâncias entre o caráter de Estado laico que supostamente exprime ao assegurar a liberdade de crença (artigo 5 ) e separação entre Igreja e Estado (artigo 19) e entre elementos religiosos, como a menção no preâmbulo de sua promulgação sob a proteção de Deus e a implementação do ensino religioso como disciplina de oferta obrigatória e matrícula facultativa nos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental (art. 210, 1 ). Ademais, o ensino religioso é a única disciplina de fato garantida por este dispositivo legal. Por sua vez, o artigo 33 da LDB/96 quando de sua aprovação, definia o ensino religioso como disciplina de matrícula facultativa, mas oferecida nos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental e sem ônus para os sistemas de ensino. A disciplina poderia ser de caráter confessional (de acordo com a opção do aluno ou de seus responsáveis e ministrada por professores ou orientadores religiosos credenciados por entidades religiosas) ou interconfessional (com base no acordo entre diferentes grupos religiosos que elaborariam um programa comum para a disciplina) (BRASIL, 1996). Contudo, tal artigo sofreu alterações poucos meses após sua publicação, estabelecidas pela Lei nº 9.475/97. Nesta lei, incluiu-se que o ensino religioso é parte da formação básica do cidadão (BRASIL, 1997), além de destacar o respeito à diversidade religiosa do país e a negação do proselitismo. A nova redação do artigo 33 também elimina a menção ao fim do ônus da disciplina para os cofres públicos e ao caráter interconfessional do ensino religioso, deixa a cargo dos sistemas de ensino a definição de conteúdos e normas de habilitação e contratação de professores e subordina tais sistemas de ensino ao conjunto de denominações religiosas para a definição dos conteúdos da disciplina. Apesar das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental incluírem o ensino religioso como área de conhecimento, ainda não foram definidos oficialmente seus parâmetros curriculares. Por conta do arranjo federativo brasileiro, os sistemas de ensino têm autonomia para definir os conteúdos a serem ministrados e a organização da disciplina. Entretanto, há uma proposta de Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Religioso (PCNER) elaborada pelo Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) 2. Segundo Toledo & Amaral (2005), os parâmetros criados pelo referido Fórum não cumprem a proposta de evitar o proselitismo e apresentam visões de mundo particulares, o que os evidenciam como uma estratégia para garantir a manutenção dessa disciplina pelo Estado em benefício das Igrejas, especialmente as cristãs (p. 1). Tal noção está em consonância com Lui (2007), quando esta afirma que o Fórum é majoritariamente composto por representantes de igrejas católicas, o que pode justificar a manutenção de seus interesses e não a garantia de um ensino religioso verdadeiramente pluralista. Tal análise é preocupante, visto que os PCNER servem como referência de organização do ensino religioso enquanto disciplina escolar para alguns sistemas de ensino, como é o caso da Secretaria Estadual de Educação da Paraíba. Formação docente para o ensino religioso Além da falta de diretrizes curriculares unificadas para todo o país sobre como deveria se organizar o ensino religioso, a formação e os critérios de admissão de professores para lecioná-lo também são difusos. A redação original do artigo 33 da LDB/96 permite interpretar que a formação deve ficar a cargo de representantes das igrejas e demais entidades religiosas. Na alteração do artigo (Lei nº 9.475/97), a responsabilidade pela definição dos conteúdos e habilitação de professores recai sobre os sistemas de ensino. Como não há de fato um Sistema Nacional de Educação, a responsabilização de municípios e estados pela definição de critérios de admissão de professores torna a disciplina, de oferta nacionalmente obrigatória, muito diversa de acordo com as determinações de cada ente federado, e isso se reflete na aceitação de diversos tipos de habilitações. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, os critérios de admissão do professor de ensino religioso consistem em posse de diploma de licenciado em qualquer área do conhecimento e apresentação de um documento da instituição religiosa que o credencie a lecionar sobre aquela fé, visto que o ensino na rede estadual fluminense é confessional (CAVALIERE, 2007). Já na Paraíba, o professor que leciona ensino religioso para as séries iniciais do ensino fundamental deverá ser habilitado em Pedagogia, Normal Superior ou Normal de nível médio; para as séries finais, deve ter licenciatura plena em Ciências da Religião, Filosofia, Ciências Sociais, Pedagogia ou Psicologia (PARAÍBA, 2004). 2 De acordo com Toledo & Amaral (2005), o FONAPER consiste em uma entidade que congrega diversas denominações religiosas e que tem o propósito de influir nas discussões e encaminhamentos da questão do ensino religioso nas escolas (p. 4).

O Parecer nº 97/99, que versa sobre as solicitações de autorização e reconhecimento de cursos de licenciatura em ensino religioso, concluiu que não há possibilidade de criar diretrizes curriculares uniformes para orientá-los. A justificativa reside no fato de cada sistema de ensino possuir autonomia para definir os conteúdos e critérios de formação e contratação de professores. Dessa maneira, a unificação de diretrizes tão diversas afetaria a autonomia desses sistemas e poderia discriminar certas orientações religiosas. Por sua vez, o Parecer 1.105/99, do Conselho Nacional de Educação, apoiou-se no Parecer supracitado para posicionar-se contra a autorização de funcionamento de um curso de licenciatura em Ensino Religioso. Apesar da ausência de diretrizes unificadas e de pareceres favoráveis à criação de cursos de graduação para formação docente em ensino religioso, algumas universidades públicas já instituíram cursos de licenciatura em Ciências da Religião para suprir a demanda por professores da disciplina em questão para o ensino fundamental, tendo sido encontrados sete cursos em universidades estaduais e federais nas regiões Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil. No escopo deste trabalho, o curso a ser investigado será o da UFPB pelo fato de ser ofertado por uma instituição federal e de ser o mais antigo em uma instituição desse âmbito, bem como pelo fato de já possuir egressos. Formação docente para o ensino religioso na Paraíba Na Paraíba, a formação de professores para o ensino religioso teve início a partir do ano 2000 com o curso de extensão ministrado pelo FONAPER (SILVA, 2011). Em 2005, devido a uma solicitação da Comissão Permanente de Ensino Religioso da Secretaria de Educação do Estado da Paraíba, ministrou-se o curso de Especialização em Ciências das Religiões na Universidade Federal da Paraíba com a finalidade de capacitar professores de ensino religioso da rede pública de ensino. Devido ao êxito do curso, a Comissão solicitou a implementação de uma licenciatura em Ciências das Religiões, de modo a formar, especificamente, o professor para a disciplina, rompendo com a lógica que limitava a formação docente para o ensino religioso apenas a professores que já atuavam lecionando a disciplina e que tinham formações em nível superior diversas (UFPB, 2008). O curso foi criado através da Resolução n 38/2008, é presencial e está vinculado ao Centro de Educação da universidade, sediado em João Pessoa, Cidade Universitária. Atualmente, oferece 100 vagas por ano, sendo metade vespertinas e metade noturnas. O curso foi avaliado pelo MEC em 2013 e obteve nota 4 em um total de cinco pontos. Seus objetivos consistem na formação de professores para lecionar

ensino religioso na educação básica e religiólogos que atuem em pesquisa sobre o fenômeno religioso, consultoria e assessoria a órgãos de pesquisa (id., p. 14). A análise preliminar do Projeto Político-Pedagógico (PPP) do curso permite observar que as justificativas para sua criação estão assentadas na importância do fenômeno religioso para as sociedades modernas. Entretanto, apesar de ressaltar uma concepção pluralista de ensino, o documento concorda com a noção presente na Lei n 9.475/97 ao considerar a disciplina em questão como parte da formação básica do cidadão (id., p.10). Este ponto é particularmente grave, visto que exclui do conceito de cidadania aqueles que optam por não professar uma fé religiosa. Tal noção reaparece no PPP na seguinte passagem: a função do Estado não é a de privilegiar este ou aquele credo, mas garantir o direito do cidadão de professar o credo de sua escolha (p.12). Ao longo de todo o documento, não há menção à opção que os indivíduos possuem de não professarem qualquer tipo de religião, um direito assegurado por um Estado verdadeiramente laico. Perspectivas de análise O curso em questão, inserido em uma instituição federal, menciona em seu PPP apresentar um viés pluralista, evitando qualquer tipo de proselitismo. Entretanto, na prática, são os sistemas de ensino que definem os conteúdos da disciplina escolar ensino religioso e os critérios de admissão de professores. Assim, no caso da Paraíba, se as diretrizes estaduais e municipais para a disciplina não estiverem em consonância com as diretrizes federais em relação a como deve ser a formação docente, haverá um impedimento na implementação de políticas alinhadas e, consequentemente, a existência de práticas dissonantes, o que enfraquece ainda mais o já incipiente Sistema Nacional de Educação. Dentro desse contexto, algumas questões sobre a licenciatura em Ciências das Religiões da UFPB poderão ser investigadas: 1) Quais são, no âmbito do Conselho Nacional de Educação, as lacunas na legislação que permitiram a criação do referido curso, visto que os documentos mais recentes disponibilizados na página virtual do Ministério da Educação datam de 1999 e são contrários à criação e autorização de cursos de licenciatura em Ciências da Religião? 2) De que maneira o projeto de criação do curso se firmou na prática? Qual foi o percurso trilhado dentro da própria UFPB para sua implementação, suas demandas e bases legais?

3) De que maneira se dá a presença da religião católica no currículo do curso e da disciplina escolar, levando em consideração que a manutenção do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras é fruto, desde o fim do século XIX, de esforços da Igreja Católica em perpetuar sua hegemonia? A presença e participação crescentes de segmentos evangélicos influem na configuração tanto da disciplina quanto da formação docente? Ao investigar o curso de licenciatura em Ciências das Religiões da UFPB, temos como ponto de partida duas concepções frequentemente utilizadas por Cunha em seus trabalhos sobre laicidade na educação (2006, 2007, 2009, 2012): a de campo social, cunhada originalmente por Pierre Bourdieu, e a noção da variação da autonomia do campo educacional em detrimento dos campos político e religioso. Campo social pode ser definido como um espaço social complexo, cuja estrutura é um estado de relações de força entre agentes ou instituições que lhe são próprias (CUNHA, 2007, p. 286). Logo, em cada campo político, religioso, educacional, econômico etc. há disputas entre seus agentes e instituições pela posse do capital próprio a cada um e diferentes graus de autonomização, isto é, graus com que o capital e as regras de disputa por sua posse estão mais ou menos definidos como próprios, não sendo redutíveis às dos demais (id., p. 287). Dessa forma, o entendimento da situação do ensino religioso e da formação de professores para a disciplina no sistema educacional público brasileiro exige a compreensão das disputas tanto no campo político quanto religioso, principalmente no que diz respeito à atuação de setores da Igreja Católica e de segmentos evangélicos e seus reflexos no campo educacional. Embora as últimas décadas tenham trazido avanços e recuos na autonomização deste campo, sua perda de autonomia em detrimento dos campos político e religioso vem sendo mais frequente, assim como o campo político vem perdendo sua autonomia frente às influências do campo religioso (Ibid., p. 302). Tais análises permitirão compreender de que maneira o curso de licenciatura em Ciências das Religiões da UFPB se configura e, consequentemente, as características da formação docente que é ofertada aos seus licenciandos, o que certamente refletirá na proposta de ensino religioso a ser ministrado na educação básica pública. Em outras palavras, a investigação se propõe a compreender se e em que grau o referido curso contribui para a formação de professores de ensino religioso voltada a uma concepção verdadeiramente pluralista e não proselitista da disciplina, fundamental para a efetivação do direito à liberdade de crença de todos os cidadãos garantida pelo princípio da laicidade do Estado. REFERÊNCIAS

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