172 Resumos de Dissertações serração não iríamos dar por encerrada a nossa meditação sobre o pensamento marinhiano - e por isso escrevemos, no "posfácio", que "a viagem que realizámos através dessa viagem que é a própria Teoria não terminava aí". Hoje podemos acrescentar, ainda com maior convicção: "não terminou aí, aí começou". É, com efeito, assim, como um "ponto de partida", que olhamos hoje para esta nossa dissertação. E por isso não nos martirizamos com os seus defeitos de estruturação, ou mesmo de análise. Não obstante esses defeitos, ela tem sido, efectivamente, o "ponto de partida" de muitos dos estudos que entretanto temos realizado, inclusivamente da dissertação de Doutoramento que estamos a preparar. E por isso a ela temos voltado muitas vezes, cada vez mais, assim prosseguindo a "viagem". E, de resto, assim que temos encarado todo o nosso trabalho de investigação: como um esforço permanente de aprofundamento, de aperfeiçoamento. Sabendo, à partida, que jamais chegaremos a atingir a perfeição, a "obra perfeita". Ainda bem. Chegar a atingir a perfeição, a "obra perfeita", seria a nossa perdição. A DISTÂNCIA COMO VALOR ESTÉTICO por Rui Cambraia Dissertação de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2000. A Distância como valor estético é o título de uma dissertação que se fundamenta em toda a sua extensão na ideia de uma natureza como escala relacional e na distância como seu princípio relacional primordial. Tendo a distância como princípio relacional, o conceito de natureza aqui presente afasta-se relativamente da esfera da ecologia ou da biologia, assumindo-se assim a vertente fitosófico-especulativa deste estudo, que, nesse sentido, procura aprofundar uma reflexão 1 em torno da afirmação de Bachelard segundo a qual o homem, enquanto objecto natural, é referido como contradição da própria natureza: "o homem é talvez o primeiro objecto natural em que a natureza tenta contradizer-se" (A Psicanálise do Fogo). Foi assumido desde o início do projecto que esta dissertação teria um carácter de interpretação e não de exposição. Nesse sentido, as obras dos autores estudados foram explicitadas apenas na extensão, e profundidade, consideradas necessárias para a fundamentação desta tese. Foram os autores estudados a vir ao encontro dos temas deste trabalho, e não o contrário, verificando-se que não há nenhum capítulo dedicado a qualquer autor por si mesmo, mas tão somente ao sub-tema que respeita à continuidade
Resumos de Dissertações 173 da dissertação. Na verdade, sendo o tema da distância tão vasto como a própria vida, uma vez que a natureza se assume aqui como tudo aquilo que está em relação - e porque tudo está em relação -, seria absolutamente impossível realizar este trabalho se não fosse severa e obstinadamente circunscrito, mesmo no aspecto das referências que o fundamentam. A grande quantidade de referências explícitas ou implicadas na estrutura desta reflexão apresenta-se como que tecida sob a forma de uma rede ou fragmento de rede - na qual cada capítulo é preparado no anterior, referindo cada um sempre de alguma forma os anteriores, em torno de dois sub-temas centrais: um sublinha a absoluta interdependência entre todas as coisas; o outro o facto de que nada pode ser determinado que não se alicerce na nossa relação com nós próprios; neste último, afigura-se ancorada a ideia de que essa relação entre nós e nós próprios depende profundamente da existência do outro. Assim, logo na apresentação da dissertação são explicitadas quatro formas de distância observáveis distintamente: 1 - Distância entre as coisas; 2 - Distância entre nós e as coisas; 3 - Distância entre nós e nós próprios; 4 - Distância entre nós e o outro. Estes quatro planos relacionais emergem de uma síntese de temas e trabalhos teóricos coligidos ao longo do nosso percurso académico, síntese essa onde se afirmam os seguintes aspectos gerais de reflexão: - a distância é relação, um princípio de distinção: distinguir é relacionar, a distinção é a relação primordial. - a ideia de uma "sensibilidade" como atributo primordial da matéria e das substâncias. - a distinção entre uma perspectiva ontológica e uma perspectiva antropológica na nossa postura face a qualquer problema ou tema de reflexão. - o estabelecimento de uma relação entre o conceito de arte e o conceito de amor. - a extensão do conceito de estética para fora do universo da arte, enquanto vertente qualitativa de todo o tipo de relações, o que afirma a estética como uma filosofia da relação, ou seja, como uma filosofia da sensibilidade. * No primeiro capítulo sobre a distância entre as coisas, encontrámos Leibniz que, com a Monadologia, fundamentou aqui a ideia de uma estética como carácter relacional de perfeição, constituído na própria condição da matéria e da diversidade - de onde emergem uma animação pri-
174 Resumos de Dissertações mordial e uma multiplicidade corpórea ordenada que se estendem desde a substância elementar até à concepção moral da comunidade espiritual. Numa natureza traduzida enquanto unidade constituída por entes ou elementos providos de identidade, aí se revela o apetite monádico como a génese da multiplicidade e da diversidade primordial universal: como actividade, como receptividade, afecção ou interferência, erosão - como Verbo. A estética é a qualidade, a adequação, é harmonia, carácter e graça - é Adjectivo em cada relação, numa escala onde um ser se caracteriza fundamentalmente pelo lugar que ocupa no tecido das relações, ou seja, se caracteriza pelas relações que estabelece. O segundo capítulo, sob o título de distância entre nós e as coisas, inicia-se com a questão: o que significa e como é que nos distinguimos das coisas? Procurámos explicitar uma extensão da sensibilidade enquanto propriedade primordial de afecção - constituinte de toda a matéria -, à dimensão antropológica da nossa relação com as coisas. Kant sustentou a ideia de uma "revolução coperniciana", filosoficamente falando, cuja referência era absolutamente incontornável face ao tema desse capítulo, e fundamentou uma perspectiva analítica onde abordámos o tema da sensibilidade como alicerce do conhecimento e da experiência estética. O tema da arte germinou no seio da nossa reflexão, quando estudámos a articulação da faculdade da imaginação, no exercício livre das suas possibilidades, com o entendimento, sempre presente, sobretudo para que essa liberdade seja verdadeiramente profícua. Foi com Merleau-Ponty que o tema da arte se desenvolveu, e onde se afirmaram ideias fundamentais para uma compreensão do fenómeno da percepção sensível, que subjaz à expressão e à fruição artística: como a ideia de uma matriz (de um modo de ser próprio) preexistente entre nós e o mundo; uma inspiração e expiração ou uma respiração do ser através de nós, veiculada por uma linguagem - um logos dos elementos visuais. A este universo da nossa cumplicidade sensível com o mundo, sustentado fundamentalmente pela visão, chamou Merleau-Ponty uma filosofia que está ainda por fazer. No terceiro capítulo, onde se estuda a distância entre nós e nós próprios, colocou-se de início a questão: o que significa e como nos distinguimos de nós próprios? Nós somos simultaneamente o que vê e o visível - somos videntes e visíveis para nós próprios, do mesmo modo que vemos um mundo do qual nós próprios fazemos parte. Afirma-se aqui a necessidade de distinguir objectivamente a perspectiva ontológica da perspectiva antropológica, que alicerçam paralelamente todas as reflexões desta dissertação, uma vez que em nós - ou numa abordagem à relação entre nós e nós próprios -, essa dualidade do nosso olhar sobre o mundo se apresenta fundida, no próprio momento em que somos, reflectimos e escrevemos. Em nós o universo ontológico e o universo antropológico têm um só corpo,
Kesumos ae Dissertações 175 uma só existência, que longe de qualquer fusão, pelo contrário se distinguem e articulam numa profunda e coesa simultaneidade. O pensamento de Feuerbach foi aqui estudado com a pretensão de expor o sentido da integralidade humana, da relação imediata entre nós e a nossa natureza não-humana, e todos os problemas referentes à coexistência de um eu e de um não-eu em nós, e à forma como essa distinção de "partes" na nossa existência, se resolve no exercício da sensibilidade e, consequentemente, numa relação estreita com a natureza. Lançámos a partir dessa simbiose os fundamentos para um processo de transcendência que conduz o ser-humano à essência do fenómeno artístico. Foi já no quarto capítulo, a partir do estudo da nossa relação com outrem - como caso particular da nossa relação com nós próprios -, que encontrámos, em O Ser e o Nada de Sartre, os fundamentos para um processo de transcendência que conduz o ser-humano à vivência do amor, completando-se assim um ciclo quaternário de reflexão sobre a natureza enquanto cosmos - enquanto teia relacional profunda e extensa, revestida de distâncias elas próprias tão distintas e diversas quanto distintas e diversas são as coisas concretas e possíveis, que é o fundamento de toda a estética. Aqui se determina um espaço-humano como dimensão da existência, anuladora de uma reversibilidade contínua do ser-eu e ser-tu, ou seja, das possibilidades que somos como ser-objecto e como ser-sujeito, conduzindo ao estabelecimento efectivo da relação sujei to-suje i to na transcendência possível - na ausência e na arte. * * Nada se encontra verdadeiramente separado. Mesmo a percepção, na perspectiva da sensibilidade, é uma relação que se estabelece, ou melhor, percepcionar, como distinção relacional, é uma distância que se cumpre. É o espaço interposto entre as coisas que lhes confere a substância, que concorda com a sua possibilidade relacional, ou seja, que afirma o seu ser. E é dessa forma que toda a afirmação da mais profunda unidade mais não é do que uma afirmação da mais absoluta distinção. Assim, quando nos referimos a algo como qualquer coisa portadora de universalidade, ou mesmo de sacralidade, como na arte e no amor, estamos a afirmar o carácter de perfeição da relação que estabelecemos com essa coisa - referimo-nos ao ajuste perfeito entre nós e essa coisa. Nas artes plásticas, utilizamos frequentemente o verbo funcionar com carácter adjectivante, ou seja, querendo dizer que uma peça está bem, é boa ou bonita, que é especial, em suma, que a peça funciona. Não é por acaso: o bem, o belo ou o especial, são expressões que nada nos
176 Resumos de Dissertações dizem da verdade articulada ou relacional dos objectos artísticos, que é tão somente a essência do acto, do fazer, do olhar e do próprio pensamento. O belo será a última das coisas imediatamente dadas neste mundo. Ora a estética é precisamente a forma necessária como as coisas só são o que são porque estão em relação. A estética é a forma como a relação entre as coisas funciona e tende naturalmente para uma perfeição - numa pintura, na vida. É neste sentido que podemos afirmar que a estética é atributo de todas as coisas e não só do mundo da arte ou da criação humana, ainda que tenhamos que considerar sempre que nada podemos percepcionar que não se funda na nossa relação particular com o mundo. Se a Aesthetica de Baumgarten pôde entender-se como a ciência da arte e do belo, a estética proposta ao longo desta dissertação pode ser entendida como uma filosofia da relação - e sendo que tudo é em relação, a própria vida é o mobile desta filosofia. BATAILLE E A SOMBRA DE BRETON por Francisco José da Silva Gomes de Oliveira Dissertação de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001, 217 pp. A primeira e maior dificuldade que se coloca a quem assumir o risco de apresentar Georges Bataille, cujo pensamento, por si só, já é difícil e retorcido, resulta directamente do facto de se tratar de escrever um trabalho, organizar um pensamento, numa palavra, desenvolver um projecto, acerca de alguém cuja originalidade consiste precisamente na denúncia do carácter reducionista do mundo do trabalho e cujo projecto é abandonar o domínio do projecto. Exponencialmente difícil é fazê-lo em alguns parágrafos apenas, como é o caso, pelo que me limitarei a desenvolver um pouco o Resumé que acompanha este exercício no final. Ou seja, que se trata de um trabalho sobre a obra e pensamento de Georges Bataille, confrontando-o com o daquele que é pacificamente reconhecido como figura central do panorama artístíco-intelectual francês da primeira metade do século XX. Falo obviamente de André Breton, também conhecido, com todas as implicações a que a expressão obriga, pelo papa do surrealismo. No que diz respeito à estratégia, mesmo antes de dizer em que consiste, talvez fosse conveniente referir outras igualmente possíveis, mas que não tive particularmente em consideração. Uma porque transformaria o trabalho numa cronologia, num trabalho arqueológico, outra porque o condenaria à repetição, tomando-o inútil. Falo agora da ideia de um trabalho que se limitasse a dar conta das variações de intensidade com que as obras dos autores "chocam" e se estimulam, e da leitura política igual-