Poder econômico e direito autoral da música na internet: por um debate mais democrático



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ISSN 1809-4651 Poder econômico e direito autoral da música na internet: por um debate mais democrático Doutoranda em Comunicação e Cultura UFRJ, RJ Resumo A era digital intensifica as disputas de interesse sobre o direito autoral. A cópia eletrônica é parte integrante da tecnologia da web, que é baseada no download de arquivos. Este artigo pretende abordar algumas perplexidades que cercam o debate sobre o direito da propriedade intelectual da música na internet. Os conflitos entre a hegemonia da indústria cultural, a regulação internacional e a transformação da realidade cultural impõem a discussão de um novo pacto social internacional que concilie o direito dos autores com o direito universal de acesso a cultura. Palavras-chave: Direito autoral, Cultura da Internet, Industria da Música. O desenvolvimento das tecnologias, sua penetração no mercado doméstico e a difusão das suas possibilidades de uso desencadeiam um conflito entre a ideologia do mercado e a transformação da realidade cultural. A tecnologia digital conjugada com a internet tornou muito fácil a cópia e a distribuição de material protegido pelo direito autoral quase não há uma ação na internet que não tenha alguma relação com a infração de direitos autorais dos produtos culturais. Este artigo pretende discutir os desafios da propriedade intelectual da música em decorrência do advento da internet e das tecnologias digitais. A relação entre direito de propriedade e cultura sempre foi um tema central nos estudos sobre comunicação e mediação, principalmente a partir dos processos de mercantilização da informação nas sociedades capitalistas e das reflexões relacionadas ao conceito de indústria cultural. Este tema adquire nova relevância no contexto das aplicações das novas tecnologias digitais no campo da produção cultural. Procuramos descrever o cenário em que se insere a discussão sobre o direito autoral destacando os conflitos de interesse no ramo da música. Recorremos a bibliografias recentes no contexto da economia da internet e suas peculiaridades. Consideramos as teorias citadas para tentar delinear trilhas que possam servir para pensar os conflitos existentes entre a lógica dominante - do direito a propriedade - com a cultura, em face da transformação social. O conceito de propriedade intelectual surgiu no século XVIII e a prática desta política por quase três séculos tem demonstrado que existem dificuldades associadas a ela: por um lado, a tecnologia de fazer cópias evoluiu constantemente e substancialmente com o tempo, dificultando a imposição da lei, e podendo torná- 1

la não efetiva. Por outro, a cópia tem inúmeros papéis positivos e altamente desejáveis para o progresso das sociedades em geral e para a preservação e incremento das suas culturas. A discussão sobre a proteção intelectual se atualiza na sociedade da informação digital. Porém, é importante ressaltar que os mecanismos e princípios legais não são universais: mudam de país para país e em cada lugar podem mudar com o passar do tempo. As mudanças devem refletir a evolução tecnológica por um lado, e por outro, os interesses, a cultura e a tradição de uma sociedade, dada a sua posição de produtor e/ou consumidor no mercado local e mundial: À medida que o progresso amplia as facilidades de fazer cópias, a legislação é alterada para levar em conta a nova realidade tecnológica. (...) A lei define exceções e restrições à aplicação do copyright procurando manter um equilíbrio entre o interesse do uso justo e limitação temporal dos direitos exclusivos, restritos apenas à primeira venda, no caso da tradição americana. (Simon, 2000, p. 3) Atualmente, grandes perplexidades cercam a questão da propriedade intelectual, que provavelmente passará por novidades ainda difíceis de serem previstas. A maior parte destas perplexidades surge em função do advento das tecnologias digitais, representadas, no caso, por computadores que se comunicam através de redes de alcance mundial. O pesquisador Lesk (1997, p.15), por exemplo, sugere que o conteúdo da teia é a concretização do sonho de Vannevar Bush sobre a criação cooperativa de uma enciclopédia do conhecimento universal. Qual seria então o sentido de impor restrições à cópia dentro da realidade do protocolo http 1 da Internet? Esta questão paradoxal de difícil solução é colocada principalmente para aqueles que estão preocupados em restringir e controlar a disseminação do seu bem de informação: a indústria cultural. A perplexidade que envolve a Internet é a questão dos direitos autorais e a disseminação de bens de informação. Para Shapiro e Varian (1998) os bens de informação são bens de experiência. Experimentá-los é fundamental até mesmo para criar a sua necessidade. Por outro lado, esses bens freqüentemente perdem pelo menos parte do seu valor após a sua experimentação. Esta situação é responsável por uma anomalia que presenciamos na Internet diariamente. Parece que ninguém sabe exatamente que parte da informação liberar, para ser livremente distribuída, e que parte deve reservar para fornecimento exclusivo em troca de alguma compensação monetária. Exemplo desta anomalia é o conceito inovador de compartilhamento instantâneo deflagrado na Internet através de redes de troca gratuita de arquivos baseados nos Sistemas P2P. Inseridos na própria arquitetura de abertura da web 2, estes programas vêm rompendo com o direito de propriedade intelectual dos músicos e autores. Empresas disponibilizam na Internet softwares gratuitos que dão acesso ao banco de dados compartilhado em rede em troca da possibilidade de fazer propaganda própria e para terceiros. Enquanto 1 hyper-text transfer protocol: protocolo de transferência de hiper-texto. 2 Termo utilizado por Manuel Castells (2003) 2

isso, muitos usuários participam de movimentos na Rede em prol do copyleft 3 e tentam impor orgulhosamente a bandeira do uso livre na Internet. Os sistemas P2P apresentam duas características importantes: 1) possibilitam o intercâmbio, a distribuição e a reprodução massiva de produtos culturais sob a forma de arquivos digitais que circulam através da Internet como recursos livres e gratuitos. 2) o valor de sua rede aumenta exponencialmente com o número de usuários que se conecta a ela. Estas características fazem com que os Sistemas P2P apresentem taxas de crescimento superiores a qualquer outro sistema de informática que opera na Internet. (Calvi, 2004, p. 10) Diante do desenvolvimento dos Sistemas P2P, do número de seus usuários e dos produtos culturais que distribuem, as associações que representam a Indústria Cultural, como a Record Industry American Association (RIAA) e a Motion Picture American Association (MPAA), dos setores fonográfico e cinematográfico respectivamente, deram início a ações judiciais contra aqueles que desenvolviam estes sistemas, contra alguns provedores de acesso à Internet e contra os próprios usuários. Estas estratégias não foram eficazes para interromper a difusão e a reprodução de bens culturais na Rede por conta da impossibilidade tecnológica, política e legal para impedir o desenvolvimento e o uso desses Sistemas P2P pelos internautas; e também devido à resistência dos próprios usuários em deixar de utilizá-los. Segundo Oberholzer-Gee e Strumpf (2004), os estudos da RIAA não apresentam números reais sobre os impactos das redes P2P na venda de CDs por se basearem em dados coletados em pesquisas de opinião enviadas pela Internet, que não apresentam cálculo de amostragem representativo dos usuários dos programas. Os autores alegam que as perguntas são respondidas por voluntários que concordam em ter seus computadores monitorados: As pessoas que aceitam ter seu uso de Internet acompanhado e discutido (por pesquisas feitas pela RIAA) não são representativas dos usuários da Internet como um todo, afirmam os cientistas no estudo. Lessig (2005) descreve os participantes das redes P2P que compartilham diferentes tipos de conteúdo e os divide em quatro grupos: a) Aqueles que usam redes de compartilhamento como substitutos para a compra de conteúdo. É questionável se todos que baixam faixas de música comprariam o CD de fato, caso ele não estivesse disponível de graça. Esses formam a categoria A: usuários que baixam em vez de comprar. b) Aqueles que usam as redes P2P para ouvir uma amostra da música antes de comprá-la, ou seja, como uma etapa de experimentação da música antes do ato de compra. Essa é uma espécie de publicidade direcionada, com grandes chances de sucesso. O saldo final desse compartilhamento pode aumentar a quantidade de música comprada. c) Aqueles que usam redes P2P para ter acesso a conteúdo protegido por copyright que não é mais vendido (fora de catálogo), e aqueles que não comprariam porque os custos da transação fora da 3 O termo copyleft vem de um trocadilho de duplo sentido em inglês, que substitui o right (direita ou direito, em inglês) de "copyright" por "left" (que em inglês significa esquerda ou pode se referir a conjugação do verbo leave (deixar) no passado) tornando copyleft um termo próximo a cópia autorizada. Outro trocadilho brinca com a famosa frase Todos os direitos reservados, que sempre acompanha o símbolo das obras protegidas. Com o copyleft, All rights reserved torna-se All rights reversed ( Todos os direitos invertidos ). 3

Internet seriam muito altos (espécie de sebo virtual). Essa, para muitos, é a utilidade mais compensadora dos P2P. Músicas que há muito desapareceram do mercado, aparecem de novo na rede. Mesmo para conteúdo fora de catálogo, isso tecnicamente ainda constitui violação de copyright. Considerando que o titular do direito não está mais vendendo o material, os prejuízos econômicos são nulos. d) Finalmente, há aqueles que usam as redes P2P para acessar conteúdo sem copyright ou cujo dono quer distribuir de graça. Para avaliar se o compartilhamento é prejudicial, no final das contas, depende essencialmente do tamanho do prejuízo que o tipo A causa. A indústria fonográfica reclama que o compartilhamento do tipo A é uma espécie de roubo que está devastando o mercado. Embora os números sugiram que o compartilhamento seja negativo para os negócios, é difícil quantificar seus danos. Culpar a tecnologia por qualquer queda nas vendas é uma prática antiga da indústria fonográfica. Deve-se investigar também o benefício trazido pelos outros tipos de compartilhamento. Comecemos a responder essa questão nos concentrando nos prejuízos totais, do ponto de vista da indústria, que as redes de compartilhamento causam. Os prejuízos totais da indústria são o montante em que o tipo A excede o tipo B. Se as gravadoras vendem mais discos por causa das pessoas que testam novidades do que perdem devido às substituições, as redes de compartilhamento, no fim das contas, podem beneficiar as companhias. Elas teriam, portanto, poucas argumentações estatísticas para resistir à tecnologia. Pode isso ser verdade? A indústria, em seu conjunto, poderia estar lucrando por causa do compartilhamento de arquivos? Por mais estranho que isso pareça, os dados sobre vendas de CDs disponíveis até o momento sugerem que isso esteja próximo da realidade. Copyright versus Copyleft Os ciber-ativistas acreditam que a rede deve ser um espaço livre, democrático e aberto, e não um tentáculo eletrônico do capitalismo mundial integrado. Segundo esta concepção, restringir o acesso à música é uma forma inaceitável de controle que descaracteriza o espírito da web. Neste viés, está em jogo a própria definição de propriedade intelectual, ou direito autoral da informação: longe de ser uma unanimidade, a questão dos direitos autorais é percebida de modo distinto por gravadoras, artistas, e toda uma nova geração de ouvintes que floresceu na Internet. (Castro, 2003) A proposta das gravadoras, que custaram a perceber o enorme potencial do mercado on-line, é a criação de um sistema de distribuição com base em assinaturas de baixo custo, o que, segundo alegam, garantiria o pagamento dos royalties - contemplando ao mesmo tempo a demanda de música na rede por parte dos internautas. Desta forma, o mercado de divulgação e distribuição de música digital na Rede passaria a ser regulamentado pelos interesses das grandes corporações - exatamente o que toda uma legião de ciberouvintes não quer. Os artistas parecem estar divididos. Enquanto músicos como Madonna, Courtney Love, Bono Vox e o brasileiro Lobão vêm a público dar seu apoio ao download gratuito de música na Internet, outros se dizem 4

lesados pelo que consideram um escandaloso caso de ciber-pirataria como por exemplo o grupo de rock norte-americano Metallica. Entretanto, a possibilidade de divulgar suas obras que dificilmente chegariam ao grande público, devido às regras de mercado que fazem com que as grandes gravadoras hesitem em correr riscos (seja investindo em bandas ou músicos desconhecidos, seja abrindo espaço para que os artistas desenvolvam trabalhos experimentais), vem atraindo inúmeros músicos, estreantes ou não, a disponibilizar suas músicas na Internet. Além deste interesse, o que parece motivar a defesa do copyleft é que a principal fonte de renda do artista é a venda de ingressos para shows e apresentações na mídia, e não a venda de discos, reforçando assim o movimento pró-download. Alega-se que apenas os músicos de altíssima vendagem chegam a lucrar. A maior parte desta receita fica com as gravadoras, que debitam no total a ser pago aos artistas os altos custos com a produção e divulgação de seus trabalhos. (Castro, 2003; Calvi, 2004). Por esta razão, diversos músicos como Bob Dylan, George Michael e bandas como o Public Enemy e Weezer, encorajam o público a fazer e distribuir gravações piratas de suas músicas. Por esta mesma razão, Lobão vem há tempos alertando os artistas brasileiros sobre a necessidade de se redefinir os parâmetros de direitos autorais. Em ambos os casos, são atitudes que desafiam o monopólio da distribuição no mercado da música. No caso brasileiro, ainda há uma histórica insatisfação dos músicos com o sistema de arrecadação de direitos autorais pelo ECAD (Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais), órgão nãogovernamental encarregado de fiscalizar e administrar os direitos autorais em música no Brasil 4. As redes de usuários e comunidades virtuais de música encararam a censura ao download do MP3 como um erro e por isso vêm construindo suas rotas de modo a driblá-la. Toda vez que a indústria processa alguns envolvidos no compartilhamento de música, os próprios usuários desenvolvem redes mais seguras contra a espionagem da indústria para dar continuidade ao download livre e gratuito, fenômeno que para Manuel Castells (2003) é próprio da cultura da Internet : à medida que os usuários tornaram-se produtores da tecnologia e artífices de toda a rede, adaptando-se a seus usos e valores, acabam por transformá-la. A explosão da Internet vem ocasionando o aparecimento de uma nova cultura, conceitos de comercialização inéditos, problemas de controle da difusão da informação e grandes desafios às regras jurídicas que ainda protegem os direitos autorais. Para Gandelman (2001) as principais dificuldades encontradas para a proteção do direito autoral na web estão relacionadas com uma questão básica: definir se a Internet é um meio de comunicação impresso como por exemplo os jornais, revistas ou livros e assim sendo, estaria livre de qualquer censura prévia e de qualquer controle governamental; ou se a Internet deveria ser considerada como um veículo de transmissão (broadcast), como a televisão e o cinema - e nesse caso estaria sujeita ao controle governamental e a critérios de auto-regulamentação. Outro fator complicador 4 O ECAD, órgão não-governamental sem fins lucrativos, é responsável por arrecadar os direitos autorais dos músicos e interpretes (direitos conexos) no Brasil. Os valores arrecadados são repassados para as gravadoras, que retiram uma porcentagem (supostamente destinado a cobrir custos operacionais de produção e distribuição da música) e depois então repassam aos artistas o restante do valor. Os artistas brasileiros reclamam que os direitos não são repassados de forma justa e adequada. As gravadoras alegam que o problema está no ECAD, que não distribui o valor correto do montante por dificuldades operacionais e burocráticas. Do outro lado o ECAD responsabiliza as gravadoras pelos problemas no repasse dos direitos autorais. 5

para qualquer análise é que a Internet não tem dono, ou seja, pertence ao patrimônio público que a utiliza, através de seus computadores interligados internacionalmente. A violação do direito autoral germina violentamente no ciberespaço, gerando um pessimismo generalizado sobre o desafio da Internet que ainda não possui legislação própria. A Internet modifica certos conceitos de propriedade intelectual - atingindo conceitos éticos e morais tradicionais e dando origem a uma nova cultura baseada na liberdade de informação que por suas características eminentemente imateriais, vem sofrendo um grande desafio na Rede. Isto faz com que muitos especialistas discutam a sobrevivência do copyright. Lance Rose (1995), ao comentar sobre o problema de vida ou morte que o copyright enfrenta no ambiente digital, ressalta que as violações continuarão a existir no mercado underground até que alguma autoridade policial identifique e leve à Justiça. Mesmo concordando que as violações são difíceis de serem interrompidas, o autor norte-americano é otimista em relação à manutenção da propriedade intelectual tal como conhecemos: ele acredita que a viabilidade da continuação de mercados baseados no copyright encorajará mais pessoas a criarem obras valiosas a serem distribuídas on-line para o público em geral. E esta perspectiva justificaria o fato de ainda termos a lei do copyright em primeiro plano. O governo norte-americano considera suas sanções civis e criminais válidas no ciberespaço. Entretanto estas punições foram escritas e aprovadas originalmente em uma época na qual as obras intelectuais possuíam apenas suportes físicos e eram distribuídas materialmente. Parece que o governo dos EUA está tentando regular a web extensivamente para beneficiar um certo setor na Internet: o do comércio 5. Lawrence Lessig (1999) afirma que a nova arquitetura da Internet já está sendo traçada por empresas norte-americanas com a ajuda silenciosa e protecionista do governo dos Estados Unidos - em prejuízo do usuário comum e de outros países, como o Brasil. "O ciberespaço está se tornando um espaço muito menos livre do que no passado, e o que está causando isso é primordialmente o interesse comum do governo e do comércio em fazer do ciberespaço um lugar onde é mais fácil rastrear as pessoas, monitorar seu comportamento. O futuro da Internet está se tornando cada vez mais sombrio, desde que o comércio passou a ser o fator determinante das mudanças na rede (Lessig, 2000) 6 5 Em janeiro de 2003 a Suprema Corte dos Estados Unidos estendeu o prazo da lei de proteção de direitos autorais por 20 anos, adiando a entrada no domínio público de obras como os desenhos animados da Walt Disney e os romances de Scott Fitzgerald. A decisão representou uma vitória para companhias de mídia e editoras de música, que alegaram precisar de mais tempo para proteger um setor vital da economia norte-americana, estimado em mais de US$ 500 bilhões anuais. No entanto, a extensão da lei foi uma derrota para empresas de Internet, para as quais a lei limita o direito de livre expressão e prejudica o processo criativo ao bloquear acesso a material que deveria ser de domínio público. A juíza norteamericana Ruth Bader Ginsburg afirmou que a maioria dos juizes que participaram da aprovação da lei acredita que a adoção da lei não viola limites constitucionais. Ela disse também que não há problemas relacionados à livre expressão. Os adversários da lei acham que a extensão dos direitos autorais impede que a Internet utilize uma ampla gama de cultura comum a todos em uma época em que a tecnologia permite que mais pessoas tenham acesso a obras de arte e de criação sem muitas restrições. Como resultado da decisão, milhares de obras famosas, como os primeiros desenhos do Mickey Mouse, "Rhapsody in Blue", de Gershwin, ou "O Grande Gatsby", de Fitzgerald, não passarão a ser de domínio público antes do prazo dos 20 anos adicionais, ou seja, no ano 2023. (Disponível em: www.folhaonline.com.br/ilustrada, Acesso: 15/01/2003). 6 In: Folha S. Paulo: 05/03/2000, p.5 6

Muitos discordam de Lessig, como por exemplo o presidente da empresa norte-americana Icann 7, Esther Dyson. Em uma conferência na Universidade de Harvard intitulada Internet & Society 2000, ele defendeu o comércio eletrônico argumentando que os sites comerciais existem, mas não estão sozinhos: eles convivem com milhões de sites caseiros que não deixarão de existir 8. Ao contrário de Esther Dyson e muitos outros empresários do mundo virtual, Lessig (1999) defende que a arquitetura da Internet era bastante livre no seu começo, ou pelo menos preservava a liberdade muito bem. Porém, essa liberdade original está mudando e o ciberespaço está se tornando um espaço muito menos livre do que no passado: o autor argumenta que liberdade de expressão e a privacidade estão sendo seriamente ameaçadas por interesses comerciais e defende que são falsas e perigosas as idéias de que o ciberespaço é um lugar de liberdade. Para o autor os governos devem interferir na regulação da Internet. Lessig (2005) alerta para o que está ocorrendo no governo norte-americano: pressionado pelo lobby do comércio, tem legislado sobre as leis de software, baseado no Digital Millenium Copyright Act 9 por exemplo, tornando as regras de direitos autorais e patentes muito mais duras do que no mundo real, além de não coibir a invasão de privacidade. Essa regulamentação tem trazido riscos para a sociedade por três grandes motivos: em primeiro lugar, está criminalizando os defensores do código livre - muitas vezes chamados de hackers pelo governo - contrários ao uso de direitos autorais em softwares; em segundo, a falta de regulamentação sobre privacidade no ciberespaço deixou o campo livre para o uso de tecnologias que tornam vulnerável a vida privada do internauta; e por último, no futuro, ficará mais difícil para que outros países, como o Brasil, desenvolvam programas na Internet sem ter de prestar contas aos Estados Unidos 10. Em relação ao paradigma do MP3 na Internet, o autor explica que o problema dessa tecnologia é que ela não dá ao dono dos direitos autorais um controle suficiente. Por isso, as gravadoras estão lutando tanto quanto podem para transformar o MP3 em uma tecnologia na qual possam ter controle sobre o uso que as pessoas fazem de música. O modo mais apropriado de o governo intervir é garantindo os direitos individuais e transferindo esses direitos para o mundo on-line, para que se tenha um sistema de proteção no ciberespaço semelhante ao do mundo real. Apesar de defender alternativas de regulamentação, Lessig inventou uma espécie de passaporte virtual para o usuário em uma rede paralela: com o objetivo de criar uma alternativa para o meio termo legal entre todos os direitos reservados dos contratos de direito autorais tradicionais e o domínio público, ele lançou a 7 Internet Corporation for Assigned Names and Numbers entidade mundial encarregada da concessão de endereços IPs, criação e registro de domínios. 8 Ver Folha S. Paulo, 09/06/2000, p. E19 9 O DMCA é um texto normativo adotado nos EUA em 1998, com o objetivo de modificar o regime de proteção à propriedade intelectual, mais especificamente os direitos autorais, no sentido de combater a facilidade de cópia, circulação e, consequentemente, de violação de direitos autorais, trazida pela conjugação da tecnologia digital com a internet. As disposições do DMCA ampliaram de forma significativa os tradicionais limites do direito autoral, tais como forjados no século XIX - como por exemplo, criminalizou quaisquer iniciativas que tivessem por objetivo violar mecanismos técnicos de proteção a propriedade intelectual, isto é, bens intelectuais. Outro aspecto importante do DMCA é a necessidade de responsabilização de terceiros pela violação de direitos autorais na internet, como provedores de serviço de acesso (PSAs) e provedores de serviços on-line (PSOs). Ver detalhes na obra de Ronaldo Lemos, 2005. 10 É importante destacar que, dado o caráter global da internet, o Brasil enfrenta questões semelhantes na internet, mas ainda não adotou nenhuma disposição legal específica regulamentando a responsabilidade de terceiros (conforme prevê o DMCA) pela violação de direitos autorais na Rede. Entretanto, segundo Lemos (2005) o DMCA exerce influência retórica imensa sobre a interpretação do projeto brasileiro proposto pela OAB em 1999, ou mesmo sobre praticantes do direito no Brasil quanto à resposta a essas perguntas. 7

licença Creative Commons 11, onde os artistas e autores podem escolher como e quanto desejam autorizar a utilização de sua obra para o público ao disponibilizar sua obra na Rede da entidade. A iniciativa é aberta a qualquer produtor cultural interessado (músicos, cineastas, fotógrafos, escritores etc). O Creative Commons foi criado nos EUA em 2001 e no Brasil vem sendo adaptado por grupos de especialistas da Escola de Direito da FGV-RJ desde 2003. Em 2004 o governo brasileiro lançou oficialmente seu apoio ao projeto, que tornou-se um movimento global com a participação de mais de 30 países, dentre eles Alemanha, França, Itália, Croácia, Inglaterra, África do Sul, Brasil, Estados Unidos. Em meados de 2005, mais de 15 milhões de obras encontravam-se licenciadas no Creative Commons, incluindo textos, fotos, trabalhos acadêmicos, filmes, músicas, composições, livros, materiais didáticos, dentre outras. Lessig (2005) defende que os governos devem ter a preocupação de garantir um ambiente competitivo e aquecido na Internet, e não devem permitir que empresas tenham controle do conteúdo ou das aplicações utilizadas na rede. A lei de proteção intelectual tem sido sempre uma tentativa de equilíbrio entre a oferta de proteção aos detentores de direitos autorais e a garantia de alguns direitos de uso para os consumidores comuns. Muitos especialistas são pessimistas em relação aos direitos autorais na Internet: ao mesmo tempo em que não acreditam na rigidez e na ordem que tenta se impor na web como solução para as questões de propriedade intelectual, temem o caos. Por outro lado, alguns vêem na desordem da Rede uma possibilidade para a liberdade. O inglês Richard Barbrook, professor de hipermídia da Universidade de Westminster em Londres, criador do termo cibercomunismo (2004) 12, comemora a estrutura anárquica da web. O autor acredita que a revolução nas tecnologias de comunicação leva o desenvolvimento das forças produtivas a tal ponto que o modo de produção capitalista será superado: Há coisas mais complexas acontecendo na Internet que não é a apoteose do mercado, como afirmam os ideólogos neoliberais. Na prática diária de milhões de pessoas que usam a Internet está a semente de uma nova forma de economia em que a troca - em um primeiro momento, basicamente, a de informação - não consegue mais estar totalmente mediada por regras do mercado. Informação e arte não são mercadorias ou "commoditties" e tentar "cercá-las" na Internet é não apenas infrutífero, mas também contrário à própria lógica da rede. (...). O capitalismo gerou em seu ventre a besta que irá consumi-lo. (Barbrook, 1999) 13 Barbrook (2004) rotula de "ideologia californiana" o corpo de idéias que define a web como apoteose do mercado. Crítico dessa visão, o autor acredita ser necessário a inversão da propaganda (sobre a Internet) que está sendo veiculada por pessoas apenas preocupadas em ganhar dinheiro. Segundo Barbrook, a 11 www.creativecommons.org 12 Richard Barbrook publicou em 1998 um texto entitulado Manifesto Cibercomunista na Internet e é autor um ensaio polêmico publicado na web cujo título é: "Cibercomunismo: Como os Americanos Estão Superando o Capitalismo no Ciberespaço" (Disponível em: < http://members.fortunecity.com>. Acesso: 06/06/2004). Para aprofundamento nas idéias do autor, ver: Media Freedom - The Contradictions of Communications in the Age of Modernity, Londres: Ed. Pluto, 2003. 13 In: Folha S. Paulo, 03/10/1999, Editoria Mais!, p. 5 8

Internet possui um aspecto central baseado na gift economy 14 por meio da qual a informação não tem valor de mercado, mas sim de um "presente". O argumento é que o centro da Internet não é o mercado e a comercialização de informações, mas pelo contrário, a circulação livre de informação. Um dos ideais da Revolução Francesa era o de que todo cidadão tinha o direito de publicar. Esperava-se que cada cidadão contribuísse com seus pensamentos e com suas opiniões. Quando surge a produção em escala, tornou-se necessária a intermediação de um processo industrial para que isso pudesse acontecer e assim toda contribuição intelectual passou a ser cercada pela lógica da propriedade. Com o advento da Internet essa lógica é alterada e torna-se extremamente difícil colocar barreiras à distribuição gratuita de informação. Parece que a maioria das pessoas não está interessada em vender ou comprar informação na web. O surf pela Internet não se trata de uma atividade comercial: é a priori uma atividade de pesquisa e experimentação. John Perry Barlow (1994), co-fundador da EFF (Eletronic Frontier Foundation), levanta questões relacionadas à equação econômica que sustenta a propriedade intelectual e seus aspectos jurídicos (como o copyright e patentes) face às novas tecnologias que permitem sua reprodução e distribuição quase instantânea a custo zero para todo o planeta. O autor argumenta que o modelo jurídico que protege a propriedade intelectual, baseado no copyright e em patentes, é focado não nas idéias mas na expressão destas. As idéias são consideradas propriedade coletiva da humanidade, segundo Barlow. O modelo jurídico vigente está sendo abalado pelo surgimento de novas tecnologias que permitem a reprodução e distribuição quase instantânea e sem custo para todo o planeta de bens de natureza intelectual, e as leis atuais não são suficientes para comportar esta nova realidade: Assim, as idéias contidas em um livro não são protegidas pelo copyright. O que se protege é o invólucro que as contêm: é o livro que não pode ser livremente reproduzido. A patente, por sua vez, até recentemente era uma descrição de como materiais devem ser utilizados para servir a algum propósito. O ponto central da patente é o resultado material. Se não se tinha um objeto utilizável então a patente era rejeitada. Em outras palavras, protege-se a garrafa e não o vinho.(barlow, 1994). Diante destes paradigmas, diversas questões devem ser discutidas pela sociedade: os bits devem ser protegidos pelo direito autoral ou não? Como podemos protegê-los? Se os bits não forem protegidos, é possível proteger os interesses econômicos dos diversos agentes (autores, financiadores, produtores, distribuidores)? Se não for possível proteger estes interesses econômicos, então como vamos assegurar a contínua criação destes bens? Para responder estas questões com clareza, e para poder legislar sobre o assunto, se faz necessário analisar o que é informação, conhecer suas características básicas e que ações e papéis a informação desempenha na sociedade. Entre as propriedades da informação que devem ser analisadas nesse contexto, segundo Barlow (1994), destacamos: 1) a informação é experimentada e não possuída; 2) a informação necessita estar em 14 Alguns autores traduzem a expressão de Barbrook como economia do presente, outros como economia da dádiva. 9

movimento (uma informação que não se movimenta passa a não existir, a não ser como potencial, até que venha a ser permitido sua movimentação novamente); 3) uma distinção econômica central entre a informação e os bens físicos está na habilidade da informação em ser transferida sem que o dono original perca a sua posse. No caso de bens físicos, existe uma correlação direta entra a sua raridade e seu valor. Entretanto, em relação à informação muitas vezes acontece o inverso: quanto mais universalmente ressonante for uma idéia, imagem ou som, em mais mentes ela penetrará. Por exemplo, muitos softwares aumentam seu valor à medida que se tornam mais comuns. Todavia, a exclusividade e o ponto de vista também são valorizados pela sociedade. No mundo físico o valor depende de posse ou de proximidade no espaço. No mundo virtual a proximidade no tempo e as possibilidades de uso são valores determinantes: Uma informação produzida geralmente possui valor maior se o comprador puder acessá-la em um momento próximo de sua expressão. A proteção da execução deve ser repensada - não lhe dão muito crédito apenas por ter idéias. Você é julgado pelo que se pode fazer com elas. (Barlow, 1994). Considerações Finais As idéias apresentadas levantam uma série de questões sobre o futuro da propriedade intelectual na era digital. Devido à complexidade, ao número de atores e de tantos interesses envolvidos, ainda não é possível dar uma resposta clara e definitiva. O futuro está na dependência das experiências em curso e das ações legislativas sobre o tema. Em qualquer tentativa de análise das perspectivas da propriedade intelectual é preciso pensar se as práticas usadas durante séculos continuam válidas para a obtenção das finalidades pretendidas. E mesmo que estas práticas continuem válidas, é questionável se são as mais indicadas para o novo contexto da arte, da tecnologia e da comunicação na sociedade da informação. O problema sobre o qual nos debruçamos é que, com o avanço da tecnologia digital e da internet, o custo marginal 15 dos bens intelectuais tende a ser zero. Ou seja, mesmo que uma pessoa pague pela aquisição de uma música pela internet, uma próxima pessoa poderá obter essa mesma música de graça, seja de outras pessoas, seja daquela que pagou inicialmente por ela. A solução para os conflitos entre mercado e cultura não passam nem por defender a gratuidade da cultura e da informação na Internet e nem por sua privatização a favor das empresas. Menos ainda pela criminalização (pirataria) dos usuários. O que se propõe é pensar um novo pacto social que reconcilie o direito dos autores de viver de seus trabalhos com o direito do acesso universal a cultura - isto é, um pacto que gire em torno do interesse dos criadores e do público e não em beneficio dos grandes grupos de mídia. 15 Custo incremental ou marginal é o custo de produzir uma unidade adicional de produto ou serviço, ou seja, o custo que mede a relação entre o custo final e a produção de uma unidade extra de produto. 10

Muitas idéias têm sido discutidas para contornar esse problema. Há diversos trabalhos sérios e complexos que pretendem dar conta desta questão e que propõem modelos semelhantes: a criação de um modelo de incentivo para a produção intelectual, inicialmente voltado para música e filmes, gerido pelo Estado, que se encarregaria de coletar os fundos necessários na sociedade e repassá-los para os criadores. Esse modelo propõe a eliminação de todas as proteções monopolistas conferidas ao autor pelo direito autoral (sobretudo exclusividade de reprodução e distribuição) e, em contrapartida, estabelece um mecanismo público de remuneração para os autores, com fundos obtidos por meio de cobrança de impostos 16. Destacamos aqui a proposta de Willian Fisher (Universidade de Harvard) que vem sendo estudada e adaptada à realidade brasileira por Ronaldo Lemos 17 (FGV/RJ). Fisher calculou quanto seria necessário arrecadar para continuar remunerando artistas e demais detentores de propriedade nos mesmos níveis históricos que eles auferem no presente 18. Esse modelo pressupõe a idéia de pagamento aos artistas e detentores da propriedade intelectual não pelo valor social integral de suas obras, o que seria provavelmente impossível de calcular. A proposta é arrecadar apenas o valor necessário para que os atuais beneficiários econômicos de bens intelectuais continuem a receber o que recebem no momento atual, do mesmo modo que novos autores possam também receber valores compatíveis em igualdade de condições. Há diversas discussões sobre como arrecadar esse valor. Aponta-se como forma mais viável de arrecadação a tributação de bens e serviços utilizados para a obtenção da música. Ou seja, os autores ou detentores dos direitos autorais publicariam livremente suas obras e a remuneração poderia vir através de um sistema de compensação via taxação de hardware (por exemplo, DVD players, gravadores de CD, tocadores de MP3, discos virgens e assim por diante) e/ou dos serviços utilizados para obter acesso à internet - como os valores pagos pelos usuários a provedores de acesso. Outro caminho seria verificar a audiência de sites número de ouvintes de playlists ou número de downloads de arquivos. Os sistemas P2P reportariam a freqüência de registros de compartilhamento de arquivos e os criadores da obra receberiam dinheiro de acordo com sua popularidade. Tal método, se aplicado no mundo da música, libertaria os artistas das gravadoras e lhes permitiriam oferecer música ao público sem intermediários. Diversos pesquisadores no Brasil e no mundo estão pensando soluções para o acesso livre à cultura na internet com alternativas para remuneração dos criadores. Porém, estas soluções colocam em cheque o modelo de mediação da indústria cultural. Não há dúvidas que a indústria fonográfica irá agir para defender e manter seu modelo de negócios. Entretanto, parece que o fator de maior importância na determinação dos rumos futuros será a reação da sociedade às novas realidades, que será expressa através das formas que a própria sociedade encontrará (ou não) para absorver e usar as novidades que lhe serão apresentadas. 16 Ver os seguintes autores: Fisher, 2004. Lessig, 2005. Lemos, 2005. Netanel, 2003. Love, James. Artists want to be paid: the blur/baff proposal. Disponível em: www.nsu.newschool.edu/blur/blur02/users_love.html. O Hare (s.d.). Grassmuck et al. (s.d.). 17 Lemos, 2005. 18 Os cálculos feitos por Willian Fisher são complexos, e faço remissão à obra do autor para sua verificação: Fisher, 2004. Disponível em: http: //cyber.law.harvard.edu/people/tfisher/ptkchapter6.pdf. 11

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