1 de julho de 2011 Os trinta segundos deram espaço para um dos canais contar apenas metade da notícia, editada até o talo na tentativa de deletar as intrusões. Após usar o cameraman robusto para abrir espaço por entre a multidão, a repórter, sem consultar nenhuma possível testemunha ocular ou mesmo alguém que estivesse por perto na hora do ocorrido, noticia a cena óbvia; as feições de curiosidade carnívora das pessoas em volta caíram bem de pano de fundo, acentuaram o drama. Uma grávida inserida no grupo de curiosos que se avolumou em torno do que a repórter chama sucinta de atropelamento fatal na plataforma inferior da rodoviária guarda para si uma interjeição por tido seu pé pisado na pressa da equipe de filmagem. Chega a murmurar algo
A cada 15 - Hugo Crema para o homem ao seu lado, mas a cara de dor dele a faz conter as palavras no último momento; não só isso, contém palavras também por causa de alguém mais alto que no exato do contido gemido de dor se posta bem na frente dela tampando a visão da cena e o alcance da reclamação, raiva surda, muda e cega. O problema é o estrondo dos carros passando a toda na pista em frente, não deixa eles ouvirem nada do que a repórter diz. Perdem pouco: as escoriações na cabeça do corpo estirado suprimem qualquer dúvida, obviamente um atropelamento e obviamente fatal. Quem pode ouvir a repórter era quem estava mais distraído; o homem à esquerda da grávida estava mais perto da clareira em torno do acidente, encalhou no meio da multidão procurando um banheiro e no momento relê as escoriações na lataria do carro, parado enviesado, a roda dianteira esquerda engolindo o meio-fio. Quando a raiva pelo pé pisado e pela obstrução da vista estoura a represa do silêncio, a grávida emparelha à direita do homem alto e pergunta como é possível que um atropelamento destrua tanto a frente de um carro, ao que, a pretexto de perguntar onde fica o banheiro, o outro homem se intromete: pelo que ele viu do acidente, o lado direito do pára-choque acertara o velho de raspão. A voz do motorista, recém saído do carro, se submerge no barulho atrás de esconderijo e consegue, tanto é que, apesar da distância curta, a grávida e o alto só o vêem gesticular violentamente, a boca desleixada sempre aberta, como se esquecida nesta posição. O homem multiplica a prestidigitação dos braços sem sucesso, ao tentar apoiar uma mão contra o ombro da repórter é avidamente repelido, ela deu um passo para trás e o cameraman faz menção de projetar o corpo levemente para frente: clara ameaça seriam as palavras que o atropelador usaria depois para caracterizar esta ação frente às câmeras de uma outra rede de televisão, a que se interessará por esta versão. Uma rede cujo repórter de campo demorou a chegar e cuja equipe de filmagem também pisa no pé da grávida. O porra amigo, toma cuidado, tem grávida aqui do homem alto confirma que o entendimento dele da irritação dela não precisou de palavras, e ainda foi reiterado por um pé displicente deixado no caminho do assistente de gravação para fazê-lo tropeçar. Funcionou em parte, não cai, tropeça, berra cambaleante ao cameraman para esperar por ele mas não é ouvido: mais um atraso em relação à emissora concorrente, cuja repórter já enfurecia a má-vontade adquirida do atropelador com perguntas que ele considerou em testemunho posterior ao repórter concorrente
1 de julho de 2011 ofensivas e tendenciosas. Enquanto isso, o homem de caminho extraviado e bexiga cheia pergunta à grávida onde fica o banheiro, ao que ela retruca irritada e é acalmada pelo alto o qual, ao indicar a ele a direção, tampa a sua própria visão e a da grávida com o braço e perde a reviravolta. O repórter atrasado tenta arrancar o atropelador dos tentáculos das perguntas da rival, deu sorte porque o corpo estirado no chão recobrou a consciência, engrolou uma sequência de consoantes e começou a reivindicar pontuação inverossímil. Contando o número de hematomas e estimando a extensão e a profundidade de arranhões, resmungando; o velho mal levantou e vira presa dos repórteres. O alto entabula com a grávida um pré-assunto sobre o aguçamento das sensibilidades física e emocional na gestação, pretexto para um convite para um caldo de cana ali na rodoviária mesmo, ela concorda: os dois se afastando notam cada vez menos o murmúrio, nem chegam a ouvir o velho ressuscitado contar para a câmera da aposta feita com um amigo, velho e desenganado também, ganha quem colecionar mais machucados sem morrer. Depois de prometer ao proprietário do carro pagar os danos e depois de acompanhar, como prometeu, o repórter ao estúdio para uma exclusiva na qual tentarão explicar como uma queda de uns cinco metros, da altura da marquise, não matou o velho; ele pretende ligar para o seu amigo, que alegou doença para não ir filmar a façanha do dia, e contar sobre o aumento da coleção e a conseqüente tomada da liderança. A repórter entrou no carro de reportagem brava, tendo, durante a desmontagem do tripé, o seu pé fincado por uma das hastes, culpa do cameraman. Hugo Crema - brasiliense, vinte anos - já fez de tudo que um escritor desses de internet pode fazer, de zine virtual a preparação de textos dos outros, já apareceu em sites e pá. Hoje vive de passado e escreve seu segundo romance, apenas. Mantem o bolg http://calopsitaescapista.blogspot.com/.
A cada 15 - Hugo Crema
1 de julho de 2011
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1 de julho de 2011
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