A linguagem e o indizível em Nietzsche. Vitor Henriques Mestrando em Teoria Literária

Documentos relacionados
Filosofia (aula 15) Dimmy Chaar Prof. de Filosofia. SAE

FATORES HISTÓRICOS DO SURGIMENTO: Agentes motivadores:

NIETZSCHE NÃO SOU HOMEM, SOU DINAMITE

Autoconhecimento. Sri Prem Baba. "Tome cuidado com o que você deseja. Você pode acabar conseguindo Scott Flanagan

Artigo publicado: BULHÕES, F.M. In Princípios. Natal: v. 14, n. 22, jul/dez, ( p )

Trabalho sobre: René Descartes Apresentado dia 03/03/2015, na A;R;B;L;S : Pitágoras nº 28 Or:.Londrina PR., para Aumento de Sal:.

Ar infinito: indeterminado, não tem uma forma clara.

Referências bibliográficas

RESOLUÇÃO FILOSOFIA SEGUNDA FASE UFU SEGUNDO DIA

Os Sociólogos Clássicos Pt.2

UM OLHAR SOBRE A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA EM NIETZSCHE

Filosofia (aula 7) Dimmy Chaar Prof. de Filosofia. SAE

6Ï$%5$48$1'2$8725,=$'2

Como observar a realidade social? Operários, pintado por Tarsila do Amaral em 1933.

Heráclito e Parmênides

Como diria Nietzsche, pensar é (antes de tudo) uma atividade criativa

Filosofia da Arte. Unidade II O Universo das artes

TEXTOS SAGRADOS. Noções introdutórias

O DIREITO COMO CIÊNCIA

França: séc. XX Período entre guerras

Dançar Jogando para Jogar Dançando - A Formação do Discurso Corporal pelo Jogo

Revista Filosofia Capital ISSN Vol. 1, Edição 3, Ano AS CONDUTAS DE MÁ-FÉ. Moura Tolledo

FILOSOFIA. Professor Ivan Moraes, filósofo e teólogo

Ficção é a Realidade que se inventa, Realidade é a Ficção que se obtém

É verso único. Sem segundo. Não tem frente nem verso; nem face nem dorso. Nem manifesta nem imanifesta, está por trás de todo o manifesto.

A LINGUAGEM NO CENTRO DA FORMAÇÃO DO SUJEITO. Avanete Pereira Sousa 1 Darlene Silva Santos Santana 2 INTRODUÇÃO

PERSPECTIVAS DO ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO.

Teorias éticas. Capítulo 20. GRÉCIA, SÉC. V a.c. PLATÃO ARISTÓTELES

O TRABALHO NA DIALÉTICA MARXISTA: UMA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA.

PSICOLOGIA SOCIAL I. Psicologia Geral e Psicologia Social. De que trata a Psicologia Social? 21/08/2016

A Mística do Educador:

Especulações sobre o amor

O MÊS DE OUTUBRO CHEGOU E COM ELE MUITAS CONQUISTAS!!!

AS RELAÇÕES CONSTITUTIVAS DO SER SOCIAL

IDEALISMO ESPECULATIVO E A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO CURSO DE EXTENSÃO 22/10/ Prof. Ricardo Pereira Tassinari

Um novo paradigma? e Da representação

CONCEPÇÕES ÉTICAS Mito, Tragédia e Filosofia

DACEX CTCOM Disciplina: Análise do Discurso. Profa. Dr. Carolina Mandaji

CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA. Profº Ney Jansen Sociologia

DAVID HUME ( )

O conceito de sujeito de direito em paul ricoeur

breves notas sobre ciência breves notas sobre o medo breves notas sobre as ligações

Revista Filosofia Capital ISSN Vol. 1, Edição 2, Ano BREVE ANÁLISE FILOSÓFICA DA PESSOA HUMANA DO PERÍODO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO

CSO 001 Introdução à Sociologia. Aula 11 auladesociologia.wordpress.com

ENTREGAR ESSE ROTEIRO DIRETAMENTE AO PROFESSOR DA DISCIPLINA. DATA DA ENTREGA: até 26/09/18 (QUARTA-FEIRA)

Unidade 3: A Teoria da Ação Social de Max Weber. Professor Igor Assaf Mendes Sociologia Geral - Psicologia

ORIGEM DA PALAVRA. A palavra Ética

TRABALHO DE RECUPERAÇÃO 1º TRIMESTRE DISCIPLINA: FILOSOFIA PROFESSOR (A): KATIANE ASSINATURA DOS PAIS E/ OU RESPONSAVEIS:

Responsabilidade Profissional

A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE DA CRIANÇA: UMA REFLEXÃO SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DA ESCOLA 1

A EXISTÊNCIA COMO SER

Roberto Machado NIETZSCHE E A VERDADE. 3ª edição Edição revista

Introdução à Estética

Perfil do Aluno Final do 1.º Ciclo Ano letivo 2016/2017

AVISO: O conteúdo e o contexto das aulas referem-se aos pensamentos emitidos pelos próprios autores que

Existir é estar presente ou abandonar uma presença? 2. O ser que questiona existir ou o ser que se instaura na existência?

SARTRE: FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO LIBERDADE E RESPONSABILDIADE

Fenômenos Linguísticos

HENRY, Michel. Ver o invisível: Sobre Kandinsky. São Paulo: Realizações, 2012.

Como a análise pode permitir o encontro com o amor pleno

Competências Pessoais e Sociais I Inteligência Emocional Sessão 2 20 e 21 de Outubro. Isabel Paiva de Sousa

Anaí Machado Resende- Psicóloga Elizene dos Reis Oliveira - Psicóloga Marnia Santos Muniz- Psicóloga

IV EDIPE Encontro Estadual de Didática e Prática de Ensino 2011 THOMAS HOBBES: NATUREZA E ENSINO

Nietzsche: a verdade como ficção

SEXUALIDADE SEM FRONTEIRAS. Flávio Gikovate

AUTORIDADE E ALTERIDADE NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DO PAPEL ATRAVÉS DA IMAGINAÇÃO DO ATOR

Profa. Dra. Adriana Cristina Ferreira Caldana

ASPECTOS VISUAIS: CONCEITOS E FUNÇÕES

CERIMÔNIAS DO FAZER FOTOGRÁFICO

contextualização com a intenção de provocar um melhor entendimento acerca do assunto. HEGEL E O ESPÍRITO ABSOLUTO

A sociologia de Marx. A sociologia de Marx Monitor: Pedro Ribeiro 24/05/2014. Material de apoio para Monitoria

O DESENVOLVIMENTO HUMANO SOB A PERSPECTIVA DE BION E WINNICOTT

Platão a.c. Arístocles Platão (Amplo) Um dos principais discípulos de Sócrates

O caminho moral em Kant: da transição da metafísica dos costumes para a crítica da razão prática pura

Sobre este trecho do livro VII de A República, de Platão, é correto afirmar.

INTRODUÇÃO AO O QUE É A FILOSOFIA? PENSAMENTO FILOSÓFICO: Professor Cesar Alberto Ranquetat Júnior

Sejam Bem-Vindos! Mary Kay Ash

TEMA DA SESSÃO. Patriarcado de Lisboa JUAN AMBROSIO PAULO PAIVA 2º SEMESTRE ANO LETIVO CRER/ACREDITAR 2.

INCLUSÃO EM TRANSICIONALIDADE

gênio na antiguidade, mostrando como os gregos consideraram o tema, e como o romantismo se apropriou da idéia, com forte inspiração kantiana.

A produção de verdades em processos criminais: o discurso jurídico e moral em Mallet-PR de 1913 a 1945.

Filosofia. Aula 3 - Cursinho ATHO filosatho.wordpress.com

CONCEITOS. Realidade Social Ideologia Alienação Paradigma

PROCESSO SELETIVO 2011

PROGRAMA ANUAL DE CONTEÚDOS ENSINO FUNDAMENTAL II - 7ª SÉRIE PROFESSOR EDUARDO EMMERICK FILOSOFIA

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ARTE E DA VONTADE NO PENSAMENTO DE NIETZSCHE

O Espectador Emancipado Jacques Rancière

MATÉRIA DA DISCIPLINA ÉTICA E CIDADANIA APLICADA AO DIREITO I

PARA QUEM A ESCOLA GAGUEJA?

Análise de discursos textuais: questões

Ética e Competência PROJETO EVOLUA LENDO Por: Luiz Otávio Pacheco Barreto

II ENCONTRO "OUVINDO COISAS: EXPERIMENTAÇÕES SOB A ÓTICA DO IMAGINÁRIO"

FORMAÇÃO CONTINUADA EM LÍNGUA PORTUGUESA

A intenção ética e a norma moral. Ética e moral

... Cultura. Em busca de conceitos

ANO LETIVO DEPARTAMENTO FILOSOFIA 2012 DADOS SOBRE A DISCIPLINA. 6 FIL 075 Antropologia Filosófica

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Aula 21. Boa Tarde! Filosofia Moderna Nietzsche

Linguagem e Ideologia

O FUNCIONALISMO DE ÉMILE DURKHEIM. Prof. Cesar Alberto Ranquetat Júnior

Transcrição:

A linguagem e o indizível em Nietzsche Vitor Henriques Mestrando em Teoria Literária Para Roland Barthes, a vida de um amante é uma vida demoníaca, no sentido goethiano do termo encontrado em Werther, para quem os demônios somos nós, que nos expulsamos do paraíso. O amante para Barthes é aquele que fabrica sua Queda. E de que o demônio é feito? De linguagem. Uma força precisa arrasta minha linguagem em direção ao mal que posso fazer a mim mesmo: o regime motor do meu discurso é a roda livre: a linguagem vai girando, sem nenhum pensamento tático da realidade. Procuro me fazer mal, expulso-me a mim mesmo do meu paraíso, empenhando-me a suscitar em mim as imagens (de ciúmes, de abandono, de humilhação) que podem me ferir [...]. A vida demoníaca de um amante assemelha-se à superfície de uma solfatara [1]: grandes bolhas (ardentes e lamacentas) eclodem uma após a outra; quando uma baixa e apazigua-se, retorna à massa, uma outra, mais adiante, se forma, infla. As bolhas Desespero, Ciúme, Exclusão, Desejo, Incerteza de conduta, Pavor de perder a dignidade (o mais perverso dos demônios) fazem ploc uma após a outra, numa ordem indeterminada: a desordem mesma da Natureza. [2] No contato com a dor, procuramos sempre um termo que a explique ( A dor sempre pergunta pela causa, enquanto o prazer é propenso a ficar junto de si próprio e não olhar para trás. [3]). Podemos, na dor ou na alegria, ter sentimentos confusos, embaralhados e ambíguos, entretanto, aprendemos a lhes dar algum tipo de definição: um nome, um demônio. Nietzsche, para quem a vida não é um argumento, sabe como somos enredados pelo demônio que tecemos. Para ele, essas bolhas infernais são, em sua maioria, estados para os quais, por serem extremos, temos palavras, logo, consciência. As considerações de Nietzsche em torno da linguagem passam antes por considerações sobre a consciência. Esta, segundo ele, nasceu sob o signo da necessidade de comunicação. O animal-homem precisava do auxílio de outro animalhomem para que pudesse ter suas necessidades e medos atendidos. Nesse sentido,

ele precisava exprimir o que lhe faltava, o que ele sentia e o que ele pensava; para isso, fez-se necessário ter consciência do que lhe faltava, do que ele sentia e do que ele pensava, podendo assim ser compreendido pelos demais. A consciência é apenas uma rede de comunicação entre homens; foi nesta única qualidade que se viu forçada a desenvolver-se: o homem que vivia solitário, como animal de presa, poderia ter passado sem ela. [...] O desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de si própria), esses dois desenvolvimentos caminham a par. [4] Consciência e linguagem são gregárias por excelência, elas se desenvolvem em nome de uma necessidade de comunidade, comunicação e agenciamento do homem social. Justamente por conter esse aspecto generalizante de integração, que a consciência não digere a diferença, o singular, sendo ela uma máquina de homogeneização. Nietzsche, no mesmo aforismo, diz que poderíamos pensar, sentir e querer sem que tivéssemos consciência desse pensar, sentir e querer. A consciência não é um corredor necessário para a vida, que seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho. Para Nietzsche, a consciência não é o resultado e nem o apogeu da evolução intelectual do homem, ela tem sua importância fisiológica como qualquer outra parte do corpo, como o estômago : assimila, processa, reduz e simplifica tanto quanto este. É um aparelho dotado de signos que, como tudo que existe, nasceu para atender uma necessidade. A consciência se define por apresentar para o outro e para nós mesmos aquilo que de mais grosseiro, visível, coletivo e mediano nós temos; um filtro, portanto, que cumpre a sua função: comunicar e promover o entendimento. É imprescindível, para a eficácia da comunicação, a não ambigüidade, a não sutileza, a não individualidade. Está na essência da linguagem (pois atrelada à consciência, logo, à comunicação) a simplificação e redução daquilo que nomeia e faz existir. Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse folha [...]. Denominamos um homem honesto ; por que ele agiu hoje tão honestamente? perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. [5]

Para Nietzsche, a noção de Verdade só foi possível porque primeiro se acreditou nas representações das palavras diante das coisas. Nada mais contrário à condição humana do que a adjetivação. Honestidade, desonestidade, sinceridade e falsidade não definem o que é um caráter, são palavras que só existem enquanto palavras, pois não dão conta das vivências e circunstâncias de um homem, já que cada uma exige e pede um tipo de comportamento específico, isto é, ora sincero, ora não sincero, ora honesto, ora desonesto, o que vai depender do interlocutor em jogo e do interesse daquele que atua. A linguagem promove, no mundo, um outro mundo, um mundo próprio ao lado do outro. [6] Ela tem em sua origem uma vontade e um fracasso. O homem passou a acreditar que o universo dos signos pudesse falar sobre o universo das coisas; falar sobre para então melhor apreender e controlar a realidade. Essa vontade da linguagem, porém, transparece e revela um fracasso diante da vida: toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qual deve seu surgimento [...]. [7] Essa noção da linguagem é o ponto de encontro entre Nietzsche e Alberto Caeiro: entendem-na como um substituto falho e fraco do mundo, fruto de uma debilidade primeira e direta para com as coisas. Em ambos, o universo simbólico é o resultado de afetações convertidas (tornadas conscientes) em sinais uniformes e reconhecíveis, sinais que transparecem uma perda de vigor sensorial com a realidade; úteis, sim, para o convívio entre os homens, mas dispensáveis para o reconhecimento de toda forma e caráter individualizados. Os dois autores alinham consciência, linguagem e subjetividade. Segundo Nietzsche, quando os instintos vitais não podem agir no mundo exterior, quer dizer, quando são reprimidos, sua direção é invertida, voltando-se para dentro: cria-se a interioridade, crescendo no homem o que depois será chamado de alma. [8] O que Nietzsche diz sobre consciência e subjetividade pode ser dito igualmente por Caeiro. [9] O entrar em si seria necessário para uma saída alheada de si, isto é, a subjetividade é uma condição para a linguagem; ambos negam a necessidade da formação de um eu interiorizado e consciente para o contato humano com a vida. A noção de uma subjetividade (portadora do livre-arbítrio) foi articulada a partir da idéia da vontade como causa primeira. Nietzsche, na verdade, aponta três dados, sempre considerados como naturais, para a construção da subjetividade: o querer, a consciência e o sujeito. A crença na vontade como causa justifica a crença da consciência de si, portanto, da identidade e do próprio querer como manifestação do sujeito. A partir do momento em que o homem se vê como possuidor de uma interioridade, a realidade passa a ser concebida como algo fora do indivíduo, como algo que possa sofrer sua investigação, o que acaba promovendo a invenção de uma exterioridade antropomórfica: "Primeiramente deduzo a noção do ser da noção do eu, representando-se as coisas como existentes a sua imagem e semelhança, de acordo com sua noção do eu enquanto causa. Que tem de estranho que depois tenha encontrado nas coisas apenas aquilo que eu mesmo tinha colocado nelas?. [10]

Assim como Caeiro, Nietzsche vincula a linguagem simbólica à metafísica, discurso que contribui para o afastamento do homem em relação às sensações do mundo, que ele chamou algumas vezes de efetividade. Nietzsche acredita que conceitos como Deus, Espírito, Alma, Eu (que o filósofo chamou de causas imaginárias - criadas pelas religiões) ganharam substância de uma forma proporcional a um desprezo em relação às pulsões tônicas que vigoram no homem, tudo em nome de uma hostilidade em relação ao prazer e em prol de supostas virtudes da alma. Nietzsche pergunta, e ele mesmo dá a resposta, para o porquê dessa aversão à vida: Quem é que tem razões para se mentir para fora da efetividade? Quem sofre com ela. [11] Como podemos ver, palavras são criadas: mundos são criados. Mas o que é uma palavra para Nietzsche? Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. [12] Ver (um estímulo nervoso) é fabricar uma imagem sintetizada dentre várias impressões, imagem esta condensada em um conceito. A metáfora, que se define pela utilização do igual para identificar o desigual, é o que fundamenta a linguagem. O mundo só passa a ser controlado e apreendido no momento em que o homem empresta ao mesmo uma capa metafórica de entendimento, em que o não familiar é sempre conduzido para o familiar; o absurdo, o inaudito e as diferenças ganham regularidade e explicação através de um olhar metafórico-conceitual. Nietzsche vincula diretamente o nascimento da linguagem às noções de sobrevivência e necessidade. Para o filósofo, o conhecimento é fruto do medo; a pluralidade caótica e sem sentido do mundo precisa sofrer algum tipo de controle para que possa ser suportada: a linguagem é o suporte. Cria-se, como apontamos acima, dois mundos paralelos. No entanto, o mundo dos sinais inventados passa a tomar o lugar do próprio mundo das efetividades, como se aquele pudesse se converter neste último, já que revestido por critérios de verdade. Mas o que é a verdade para Nietzsche? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. [13] Apesar de identificar no sistema de códigos um instrumento de abreviação da realidade, Nietzsche não deprecia a linguagem em si, mas sim à paralisia que a noção de verdade sobre ela provoca diante da pluralidade do mundo. Não há desvalorização, já que para o filósofo, as ficções são imprescindíveis para a conservação e manutenção da espécie. Além disso, segundo Nietzsche, quando a necessidade de

comunicação e linguagem se fez presente entre os homens, surgiu dela um excedente dessa arte e dessa força, uma espécie de tesouro que o tempo empilhou e que espera um herdeiro que o desperdice [...] ; para ele, o artista é esse herdeiro. [14] Desta forma, a critica nietzschiana volta-se contra o esquecimento do processo de invenção das palavras, isto é, contra o abandono do caráter ficcional da linguagem em nome de uma crença em seu poder de representação da realidade, conseqüentemente, em seu poder de produzir discursos verdadeiros sobre a mesma. Quando Nietzsche diz: Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática... [15], ele aponta para a condição de a palavra estabelecer e definir o que uma coisa é. Quando o conceito instaura a verdade de um ente, atua como um Deus. Sabe-se que Nietzsche falou de uma grande razão, que seria uma razão corporal, e não intelectual, uma razão pautada pelos afetos do corpo, que não diz eu, mas faz o eu. A noção de linguagem no filósofo deve ser entendida na esteira dessa razão sensível. Assim sendo, perante as necessidades vitais e concretas de sobrevida social, o homem implanta uma bússola lingüística, quer dizer, através de afetações estabelecem-se códigos que permitam um maior controle sobre os afetos do mundo. A linguagem é um sintoma de uma vontade de vida e de apropriação, é tão fisiológica e com expectativas de dominação quanto à consciência, o que levou Nietzsche, como vimos, a associá-las. Assim é formado o sujeito do conhecimento, que através da linguagem busca um domínio, logo, uma simplificação, de si e da realidade: Esse algo imperioso a que o povo chama espírito quer ser senhor e sentir-se senhor, em si e à sua volta. Denota vontade de partir da multiplicidade para a simplicidade, uma vontade restritiva, escravizadora, sequiosa de mando e realmente dominadora. Suas necessidades e capacidades são nesse ponto as mesmas que as estabelecidas pelos fisiólogos para tudo o que vive, cresce e se multiplica. Manifesta-se a força do espírito ao apropriar-se de coisas estranhas numa forte tendência de assemelhar o novo ao antigo, de simplificar o complexo, de desprezar ou rejeitar o totalmente contraditório. [16] Nietzsche avalia o mundo e se avalia como fruto de uma produção lingüística. Se a alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo, como disse em Zaratustra [17], o mundo é somente uma palavra para alguma coisa no homem. 1. Abertura por onde saem os vapores em terrenos vulcânicos. 2. Barthes, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.111-112. 3. Nietzsche. A Gaia Ciência. Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, 13.

4. Ibidem, 354. 5. Nietzsche. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. In: Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção "Os Pensadores"). 6. Nietzsche. Humano, Demasiado Humano. In: Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção "Os Pensadores"), 11. 7. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. 8. Nietzsche. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, segunda dissertação, 16. 9. Ser real quer dizer não estar dentro de mim. Pessoa, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1976, Poemas Inconjuntos. 10.Crepúsculo dos ídolos. Trad. Edson Bini e Márcio Pugliesi. São Paulo: Hemus, 1976, Os quatro grandes erros, 3. - Mas a primavera nem se quer é uma coisa / É uma maneira de dizer (Alberto Caeiro Poemas Inconjuntos ). 11. Nietzsche. O Anticristo. In: Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores ), 15. 12. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. 13. Ibidem. 14.A Gaia Ciência, 354. 15.Crepúsculo dos Ídolos, A razão' na filosofia, 5. 16. Nietzsche. Para Além do Bem e do Mal. Trad. Alex Marins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005, 230. 17. Nietzsche, Assim Falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1998, Dos Desprezadores do corpo.