A esperança e a memória



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Apresentação O presente trabalho conta com a contribuição de três estudantes da Universidade La Sapienza de Roma: Irene Gonzalez y Reyero, Cecilia Santanchè e Elena Cecchetti. A freqüência a um curso sobre Guimrães Rosa, ministrado pelo prof. Ettore Finazzi-Agrò, despertou em nós o desejo de conhecer melhor esse autor e a participação ao curso em rede européia nos serviu de estímulo para escrever este breve ensaio. A escolha do conto Sorôco, sua mãe, sua filha, foi feita em conjunto, assim como a definição dos temas afins: o contexto do Brasil naquele período, a construção de Brasília e as idéias otimistas presentes em alguns dos contos de Primeiras Estórias, a realidade do interior do Brasil, a exclusão do sertanejo, a música... porém, para melhor apresentar a monografia, cada texto foi escrito e incluído de forma autônoma. Nos três trabalhos conseguimos focalizar o mesmo tema a partir de óticas diferentes, o que indica que a literatura de Guimarnaes Rosa é inesgotável.

A esperança e a memória É assim, com uma citação de O espelho que se quer introduzir a estória de Sorôco, aquele homenzão, brutalhudo de corpo que entrega a um carro-prisão os seus únicos bens: a sua mãe e a sua filha, laços familiares impossíveis de manter e dos quais ele é forçado a se separar. E elas vão para longe, para um lugar do qual não vão voltar. Lugar dessa tragédia familiar, o sertão. O sertão dos pobres, dos excluídos, dos que estão fora da História, o sertão onde a modernidade chega sempre com o seu cargo de fatalidade e desgraça. É a hora mais quente, a de muito sol, e todos vão assistir ao evento: a mãe e a filha de Sorôco, loucas as duas, vão partir, num vagaão especial que tinha chegado do Rio, pagado pelo Governo, para um lugar chamado Barbacena, provavelmente um hospício. O fato é inevitável, todo o mundo sabe, Sorôco já não pode curar das duas, ambas têm que ser afastadas da comunidade. E ele as acompanha, com a sua roupa melhor, como se fossem a um casamento que, na verdade, se parece muito mais com um enterro. As duas começam a cantar uma cantiga sem sentido nenhum, no início baixinho, depois mais forte, até o trem partir. Para sempre. E Sorôco, triste, mudo, sem poder dizer sua dor. E em voltar para a sua casa como se estivesse indo para longe, fora de conta, Sorôco pára e começa a cantar aquela mesma cantiga sem sentido. Até que todo o povo, sem combinação, participando da dor do homem, o acompanha no canto sem razão, numa imagem comovedora de união e solidariedade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga. É um conto maravilhoso, que com simplicidade e violência emotiva narra uma tragédia familiar que, da perda e da dor dum individuo, se torna assunto da comunidade toda de tal maneira que essa humanidade e fraternidade, essa compaixão vai se transformando no ato fundador de um novo viver, de uma nova forma de entender a vida em comum, o sentido mesmo da pátria, da nação. De fato, esta reflexão sobre a essência da nação é um dos temas predominantes da narrativa de Guimarães Rosa. Uma preocupação que já recorrera nas páginas de Grande Sertão: Veredas, e que reaparece em Primeiras Estórias com ainda mais força e

veemência, isto é: o que é na verdade este Brasil moderno? Qual é o ato fundador da sua identidade como nação? Eis aqui que, uma tragédia individual, a ato de se tornar drama coletivo, há uma passagem da dimensão existencial do homem à histórica e nacional dum povo inteiro. Eis aqui que a estória de Sorôco, de sua mãe e de sua filha metaforiza a história do povo brasileiro, e todo o conto pode ser lido como a busca de uma identidade que tem que se renovar e se reconstruir num momento em que a nação está atravessando a passagem duma dimensão arcaica à modernidade. E então a perda dos laços familiares torna-se eliminação das raízes culturais, afastamento da comunidade de uma forma pré-lógica de entender a vida que não é propriamente loucura, mas um costado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois. Antes e depois, a mãe e a filha: o homem decide renunciar à sua ascendência e descendência para a necessária construção de um presente. De-cisão, corte dumas origens que não podem sobreviver no mundo moderno, porque ninguém as entende. E são sacrificadas em nome da modernização, uma modernização que chega sempre na forma da palavra «Governo», palavra tão longe de Sorôco e de quem vive no sertão como o mais longe para aonde têm que ser banidas as duas loucas. O mundo está dessa forma... diz o povo. É necessário fazer uma escolha, é necessário mesmo que doloroso. E Sorôco, Herói trágico, faz esta escolha, ficando órfão de mãe e de filha, de passado e futuro, banindo o que sempre a figura feminina encarnou: aquela irracionalidade misteriosa, outra e enigmática que representa o antes da civilização, o antes da racionalidade, a pré-história do ser humano, o passado mítico. Mas, parou. O problema é que ao ficar sem possibilidade de passado e de futuro, Sorôco se encontra sem palavras, ou, melhor, sem palavras suas, num presente vazio, construído sobre um oco, sobre um silêncio. Já não tem palavras para reconstruir uma identidade. E é precisamente nesse vazio que ele faz a verdadeira escolha: escolhe quais vão ser as suas primeiras palavras, as sobre as quais tudo vai se reconstruir: a sua vida, o seu mundo, a sua concepção de existência. e era a cantiga. A mesma cantiga sem razão das loucas. É assim que, recuperando esta outra lógica que a modernidade quer eliminar, ele recupera a sua identidade, num ato de criação que tem algo bíblico e que num instante o restitui ao fluxo do tempo, à sua

história, à que ele criou para si, e não à do Governo, das Instituições, de uma burocracia, de um poder que estão sempre demasiado longe dos pobres. Mas isso não basta para ser ato fundador de uma nação. O que dá este papel ao gesto de Sorôco é a participação do povo, da coletividade. Porque o seu gesto se tornaria nada mais que um enlouquecer, como loucas eram a mãe e a filha, como louca é a cantiga, se não saísse da dimensão individual do privado: Sorôco teria sido afastado da comunidade como ele tinha afastado as duas. A diferença está não só nos outros compreenderem a dor de seu companheiro, ato humano de grande piedade, mas sobretudo no partilhar a escolha, na assunção de responsabilidade de seu futuro como comunidade. O indivíduo faz ressoar em si o que a Modernidade rejeita, a colectividade decide não abandonar o indivíduo, mas ao contrário seguí-lo, numa imagem de movimento que por isso é ao mesmo tempo continuação e construção. Sorôco cantava continuando ; a gente, com ele, ia até onde ia aquela cantiga. Memória e esperança. Irene Gonzalez y Reyero A linguagem que envolve O estilo lingüístico de Guimarães Rosa é certamente uma de suas características peculiares. Com um grande conhecimento da língua portuguesa o escritor consegue aproximar a escrita literária à fala menos culta, criando novas palavras e dando nova significação a palavras conhecidas. Desta forma o autor aproxima o leitor dos acontecimentos narrados, inserindo-o no contexto e, quando necessário, propondo uma certa distância. O escritor usa também as palavras para representar o silêncio característico do sertanejo, principalmente numa situação tão dolorosa como a do conto: Sorôco, sua mãe, sua filha, a estória de um homem que se vê obrigado a separar-se dos dois únicos componentes de sua família: sua mãe e sua filha. A tragédia é acompanhada pelas pessoas do lugar, as quais parecem assistir de fora, como se o fato não lhes fosse importante, mas por fim terminam por se juntar ao protagonista num gesto de solidariedade. A estória começa com um demonstrativo aquele que aproxima o leitor do contexto da narrativa, como se o mesmo pudesse ver o carro-prisão, ou já o tivesse visto. A partir de então percebe-se como o carro chegado do Rio era estranho às pessoas que o observavam; personagens não nominados mas indicados com pronomes indefinidos:

(todos, ninguém) ou coletivos (o povo, a chusma de gente), já que representam pessoas que não pertencem ao imaginário brasileiro. Desde o início do século XX a então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, havia passado por um processo de modernização que comportaria um ideal de mudança de todo o país: para tal finalidade o que estaria fora do modelo de desenvolvimento deveria ser eliminado, ou afastado. Isto signfica que uma grande parte do Brasil seria excluída, principalmente a interna do sertão, neste conto Guimarães Rosa coloca mais uma vez os marginalizados como protagosnistas. O carro viria da capital se juntaria a um trem vindo do sertão para levar a mãe e a filha de Sorôco para um lugar distante: Barbacena. A estranhesa do carro moderno, como poderia ser de tudo o que vem do Rio, indica como os habitantes, o povo, eram estranhos ao processo de modernização, e portanto marginalizados; excluídos que, na tentativa de inserir-se no novo contexto brasileiro, afastam o que lhes era mais estranho: A mãe e a filha de Sorôco, elas certamente, pelo seu comportamento, não poderiam fazer parte dos modelos de modernidade, deveriam ser mandadas longe, onde seriam mandados todos aqueles que não se enquadram. O comportamento inicial das outras pessoas, as quais pareciam estar de acordo em mandar para longe o que lhes fosse estranho, espelha uma comunidade excluída do ideal de Brasil moderno e que por sua vez também exclui na tentativa de se inserir no modelo brasileiro 1 de pátria. O lugar onde acontece o conto também é indefinido. É evidente, contudo, a distância geográfica, econômica e social em relação à capital: Para os pobres os lugares são mais longe. Talvez esta seja uma forma de representar o pouca importância que o lugar teria para o resto do Brasil. Por outro lado, a palavra Governo é escrita com maiúscula, dada a importância que essa instituição teria para o povo, é também representado em maiúscula o substantivo Agente, o homem que dirige o carro e para quem Sorôco pronuncia uma de suas poucas falas: Ela não faz nada Seo Agente, além do vocativo em maiúcula há o pronome de cortesia, visto a importância deste personagem fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço, o qual emite frases sem sujeito Vai ver se botaram água fresca no carro..., ordens direcionadas ao guarda-freios, substantivo com letra minúscula, ou para alguém do vilarejo. 1 Veja: Finazzi-Agrò: A FORÇA E O ABANDONO: Violência e marginalidade na obra de Guimarães Rosa. In: E. Finazzi- Agrò, Um lugar do mundo, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2001

O povo, concidadãos de Sorôco, público de todos os acontecimentos, é nominado com coletivos ou pronomes indefinidos. Na frase que ninguém não entendia, com a dupla negação, o pronome ninguém perde o sentido referencial de ausência, mas adquire um sentido de presença não considerada, o povo era ninguém. Ana Paula Pacheco 2 verifica como nesse conto o autor consegue usar o pronome a gente com diferentes significados: Mas a gente viu a velha olhar para ela, nessa frase referese à terceira pessoa, o povo; A gente estava levando agora para a casa dele, nessa, ao invés o pronome adquire um sentido de primeira pessoa envolvendo o narrador e o leitor. Um recurso semelhante é usado com os pronomes indefinidos todos e os outros, num momento o autor usa o primeiro para indicar uma comunidade que exclui o protagonista e se afasta do narrador Todos ficavam de parte, a chusma de gente, tal separação é reforçada pelo segundo pronome O que os outros se diziam e ora estes pronomes indicam proximidade, inclusive do narrador De repente, todos gostavam demais de Sorôco. No texto poucos personagens têm nomes próprios: O protagonista possui um nome estranho, provavelmente de origem Tupi 3, Nenêgo parece apelido proveniente de negro, neste caso os dois seriam referência a povos discriminados, e José Abençoado, um nome que parece apelido. O estilo da narrativa consegue também enfatizar a idéia de uma força externa que interfere no destino dos personagens. O uso contínuo dos verbos ter que, deve: Daí, com os anos, teve de chamar ajuda, que foi preciso ; Tiveram que olhar em socorro dele. Ou mesmo a frase O mundo está desta forma como se os acontecimentos fossem externos,distantes, interferindo todavia no estado das coisas. Além do estranhamento causado pelo carro moderno na cidade do interior O carro lembrava um canoão no seco, navio. O autor descreve Sorôco com muitos contrastes, outro recurso para indicar diferenças botara sua roupa melhor, maltrapilho, as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Por fim o autor usa uma linguagem universal para unir todos os personagens e deste modo consegue aproximar pessoas distantes e inserir o sertanejo num contexto brasileiro. A música que parte de duas loucas e vai até não se sabe aonde, pode unir pessoas além das diferenças sociais e talvez inserí-las no que chamamos de Brasil. Cecilia Santanché 2 A. Pacheco (2006) 3 Para um estudo mais aprofundado veja Pacheco (2006)

O canto como momento de construção da identidade nacional Tudo começa lentamente, com aquela calma típica do abandono. Sorôco está acompanhando sua mãe e sua filha, as suas origens e o seu amanhã, para a estação onde os espera o trem do Sertão, vindo para recolher os loucos e levá-los para longe. As duas, que principiaram a entoar no caminho uma canção sem sentido, deveriam subir naquele vagão. Sorôco não agüentava mais o desatino das duas e, por isso, tinha resolvido, embora com grande desgosto e imensa pena, mandá-las para um hospício. O dia estava sereno e ele, vestido elegantemente, estava decidido a fazer o grande passo, desligar-se do seu passado e projetar-se para um futuro totalmente incerto. O momento chega, a mãe e a filha estão prontas, mas continuam todavia a cantar, elevando a voz sempre mais para o alto, quase que para demonstrar que tudo estava imbuído e compresso naquele giro de palavras e notas, onde a dor e a esperança se fundiam num magma desconhecido. Aquele canto contém, de fato, a contradição constituiva, o enigma irresolvido, o mito não desvelado: aquele novelo vital e insolúvel que só se pode encontrar no sertão ou num livro, ou num espelho, ou no meio de um rio, ou, justamente, em aqueles poucos lugares onde se instala um estado de exceção permanente, um limiar terceiro e intransponível. Guimarães não pretende desvelar nenhum segredo, já que conhecer as cartas do adversário significa parar de jogar. Quer apenas colocar os pontos dos is neste conto, para que deste modo possa existir concretamente e restar come testemunho. Deixamos as duas mulheres no vagão, o trem está partindo, e é exatamente neste momento que acontece a ruptura. Com a frase Sorôco, Guimarães Rosa fecha uma vida e abre uma outra. Com esta palavra a cena muda por completo e o protagonista, em um excesso de espírito, começa a sua descida para a essência primordial do seu proprio ser. O personagem parece esboroar-se, parece perder a si mesmo; bem no momento em que acreditava ter-se liberado, separando-se da mãe e da filha, percebe, por um lado, que desta forma tinha perdido uma parte de si mesmo e, por outro, que tinha cedido àquela cantilena com extrema facilidade.

Sorôco, como o Brasil inteiro e como, aliás, a própria a linguagem rosiana, é uma síntese entre passado e futuro, é a juntura, é a passagem de uma época à outra, que fica suspenso ou vai adiante só graças às sua dupla filiação, combinado o elemento arcaico com o moderno, a lógica e o seu avesso. Sorôco está voltando para casa sem perceber o processo que se está verificando, e neste momento que o otimismo e a esperança de Guimarães Rosa se exprimem novamente em Primeiras Estórias. De fato, a estória de Sorôco não pode terminar com os gemidos e os grunhidos de Meu tio o Iauaretê, não pode ser novamente um retrocesso para a anomia e a atopia, deve marcar uma evolução. De fato, o canto sem sentido, aquela chirimia que avocava, o conjunto das enormes diversidades desta vida, reencontra voz na boca de Sorôco que começa a cantá-lo, em voz alta, em um primeiro momento só para si mesmo, como se deste modo coninuasse viva a recordação das duas e do passado indecifrável do qual todos nós descendemos. Outro momento de pausa, o conto sofre uma segunda freada. O solo de Sorôco é reforçado, como por magia, pelas vozes de todos os seus concidadãos. Todos cantando em voz alta o estão acompanhando para casa, todos condividem o espaço daquela canção, vivem naquele canto, se encontram nele, reconhecendo uma nova coesão, um sentimento coletividade aparentemente esquecido O canto se torna assim o entre-lugar onde tudo se mistura assitematicamente, onde os opostos entram em contato, delimitando um espaço que pulsa de vida própria. O canto transforma-se em fronteira, naquela linha limniar que oferece um teto aos marginalizados, aos excluídos pela sociedade: aqueles que da fronteira fazem uma casa, aqueles que na fronteiram são aceitos e no mais ditam a lei. Mais uma vez na obra rosiana o abandono se presta como terreno fértil para dar lugar à reconstrução da identidade nacional que neste conto se concretiza, na redescoberta de uma afetividade coletiva e recíproca. O canto não é apenas o espaço onde expressar as paixões comuns, mas o modo para manifestá-las e poder assim ressanar aquela ferida generacional. A melodia desafinada, com a sua carga evocativa, torna-se assim uma terapia que ajuda a superar os velhos traumas e a cortar os laços com o passado, sem todavia o apagar.

Através da canção se deixa a primeira trilha, se dá o primeiro passo de um percurso que durará até quando durará aquela canção, que se propagará até quando se continuará a cantar. Guimarães nos narra uma estória e no interior dela, como lhe é comum, recria um ato de fundação. A partir de uma perda, de um destaque forçado mas necessário, como nesse caso, surge uma realidade absolutamente insperada, que envolve todos sem distinção. Em um Brasil que tenta construir e encontrar o próprio baricentro com a construção de uma nova capital, Brasília, Guimarães Rosa tenta, a seu modo, recriar um tecido de estórias unindo ou re-ligando uma Nação despedaçada. Elena Cecchetti Referências bibliográficas João Guimarães Rosa. Il che delle cose, a.c. di G. Lanciani, Roma, Bulzoni, 2000 E. Finazzi- Agrò, Um lugar do mundo, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2001 J. Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. A. Paula Pacheco, Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa, São Paulo, Nankin Editorial, 2006.