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Transcrição:

Tania Portella* Combate às desigualdades na educação escolar A educação (formal e informal) pode e deve ser um dos caminhos para promover o respeito à diversidade e a igualdade nas relações étnico-raciais. Algumas iniciativas voltadas para as populações negra e indígena no campo da educação estão em curso no Brasil e podem ser consideradas resultados diretos e indiretos da luta do movimento negro e do movimento indígena pela igualdade racial e social. Ainda que esses avanços estejam registrados como conquistas históricas, um dos principais enfrentamentos para que se efetuem permanece inalterado: a resistência das instâncias governamentais em adotar políticas de Estado, e não de governo, para combater as desigualdades no campo étnico-racial. JAN / MAR 2007 3

Entre as conquistas dessas duas populações na educação formal são bons exemplos as medidas de ações afirmativas na educação escolar indígena e a Lei 10.639/03, para a população negra. Na região Norte do país, principalmente, as ações visam incentivar a formação de educadoras(es) indígenas e a construção de uma estrutura escolar mais próxima da realidade e da cultura local. Em âmbito federal, a Lei 10.639/03 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) e insere a obrigatoriedade do estudo de história e cultura africana e afro-brasileira em todo o ensino nacional, público e privado. Uma parcela significativa dos trabalhos apresentados na área de educação no IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros realizado em Salvador, de 13 a 16 de setembro de 2006 foi dedicada à abordagem de vários aspectos da aplicabilidade da Lei 10.639/03. A reflexão, praticamente consensuada entre pesquisadores(as) do tema, foi sobre a importância da mobilização da sociedade brasileira para que a implementação do ensino de história e cultura africana e afrobrasileira não se transforme em letra morta. Outra constatação explicitada no congresso foi a relevância de trabalhar para que o saber ancestral de mulheres negras e homens negros seja reconhecido e possibilite que essas pessoas contribuam para a formação de jovens pesquisadoras(es) e professoras(es). Em países como a Nigéria, elas são remuneradas para desenvolver esse trabalho. Levantar os processos históricos agregados aos aspectos políticos, econômicos e sociais que resultaram na exclusão da população negra dos centros de poder decisórios e na contínua presença desse grupo, majoritariamente, nos índices de inacessibilidade a direitos fundamentais, possibilita a constatação da existência de um pacto invisível que perpetua esses cenários. Pacto invisível e silencioso que foi naturalizado, é socialmente estruturante e está cristalizado em todos os setores da sociedade. Desse modo, não é difícil constatar que essa prática estende-se também à área da educação. Conhecer as questões de fundo que contextualizam esse debate é um exercício essencial para assimilar a importância da inserção do tema na educação brasileira. Trata-se de uma proposta de revisão histórica também dos olhares, dos saberes e das práticas, não apenas nas relações pedagógicas, mas nas relações cotidianas entre as pessoas que devem se perceber e perceber o outro em novos lugares. Para tanto, é necessário saber exatamente o que é a Lei 10.639/03 e trilhar o caminho que originou a sua promulgação. Que lei é essa? De autoria da deputada Esther Grossi (Partido dos Trabalhadores PT /Rio Grande do Sul), a Lei 10.639/03 foi promulgada pelo presidente da República em 9 de fevereiro de 2003. Ela altera a LDB de 1996 e inclui no currículo oficial dos estabelecimentos de ensino básico das redes pública e privada a obrigatoriedade do estudo da temática história e cultura africana e afro-brasileira. De acordo com a lei, o conteúdo programático das diversas disciplinas deve abordar o estudo de história da África e dos povos africanos, a luta das pessoas negras no Brasil, a cultura negra brasileira e o(a) negro(a) na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar e, principalmente, nas áreas de educação artística, literatura e história brasileira. A promulgação da Lei 10.639/03 foi precedida por leis municipais em Belém, Aracaju e São Paulo. Todas são resultado de um longo processo de ativismo do movimento negro. Essas primeiras iniciativas foram impulsionadas pela constatação, por parte dos movimentos negro e indígena, de que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) abordavam a temática racial-étnica na pluralidade cultural em forma de orientação genérica, sem maiores conseqüências na produção das políticas educacionais nas diferentes esferas de governo. Segundo os segmentos negro e indígena, esse tipo de orientação abria margem para a falta de compromisso no tratamento do tema ou a abordagem equivocada que reforça estereótipos e folclorizações. A Lei 10.639/03 é regulamentada por parecer homologado em 19 de maio de 2004, que estabelece as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e traz orientações de como a lei deve ser implementada. Ela também faz parte do rol de ações afirmativas na área da educação que devem ser implementadas pelo governo federal como signatário de compromissos internacionais no combate ao racismo. A medida atende 4 DEMOCRACIA VIVA Nº 34

COMBATE ÀS DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO ESCOLAR uma demanda gerada pelo desconhecimento, por parte de grande parcela da população brasileira, das questões relativas às sociedades africanas e, mais especificamente, sobre as marcantes influências do povo africano na formação da sociedade brasileira. O parecer foi elaborado para contribuir com a efetivação dessa medida de ação afirmativa e estabelecer as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no país. Ao ser homologado pelo Ministério da Educação, constitui um instrumento para que todo(a) cidadão(ã) principalmente pais, mães, estudantes e profissionais de educação possa dialogar com as escolas e todo o sistema de ensino, além de monitorar o cumprimento da lei. Essa é a recomendação da própria relatora do documento, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que integrava o Conselho Nacional de Educação. De acordo com juristas que acompanham a questão, a partir de sua homologação e publicação no Diário Oficial, o parecer tem força de lei e, portanto, deve ser usado como norma regulamentadora. Ele corrige conceitos e abordagens das políticas de reparações; reconhece e valoriza os indivíduos e as ações afirmativas; contextualiza a educação nas relações étnico-raciais; apresenta as Atuação do movimento negro É sempre importante reforçar que a inclusão da temática história e cultura africana e afro-brasileira no ensino público e privado é resultado de um processo de reivindicações e ações por parte do movimento negro (MN). Existem registros sobre as discussões do MN no campo da educação com a temática étnico-racial no ambiente escolar já em 1948: Nos dias de hoje, a pressão contra a educação do negro afrouxou consideravelmente, mas convenhamos que ainda se acha muito longe do ideal. (Quilombo ano I, n. 0, dez. 1948). Em 1954, Guiomar Mattos indicava em seus textos os problemas gerados com o preconceito nos livros infantis. Na década de 1960, a ampliação da rede de ensino público possibilitou que a presença de pessoas negras nas salas de aula se tornasse mais rotineira, mas não favoreceu a alteração das relações raciais e do ambiente no interior das escolas oficiais, que permaneceram discriminatórios. Vale ressaltar que nessa mesma década a sociedade brasileira foi vítima do golpe que instaurou a ditadura militar e que reprimiu todos os movimentos e todas as manifestações populares. Os grupos negros de protesto também foram reprimidos. A partir de 1969, a ditadura militar censurou tanto a publicação de notícias sobre indígenas, esquadrão da morte e guerrilhas, como qualquer informação sobre movimento negro e discriminação racial. Com a instalação do regime ditatorial, o governo impunha ao povo o que deveria ser estudado desde as escolas da educação básica até as universidades. Nesse contexto, a partir da década de 1970, o MN e o Movimento de Mulheres Negras (MMN) atuam de maneira mais incisiva para tentar influenciar mudanças no sistema educacional e lutam para incluir a história do povo negro no currículo escolar. Essa atuação culmina, em 1995, com a Marcha Zumbi dos Palmares, quando 30 mil pessoas foram para Brasília e entregaram um documento à Presidência da República pleiteando políticas para combater a desigualdade. Seis anos depois, durante a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo ocorrida em Durban, África do Sul, de 30 de agosto a 7 de setembro de 2001, o governo brasileiro apresentou propostas e assumiu o compromisso internacional de implementar medidas de ações afirmativas para combater o racismo e as desigualdades no Brasil. Essa postura foi tomada em decorrência das pressões e reivindicações do MN e do MMN, que há décadas lutam por medidas de combate às desigualdades raciais, particularmente na área da educação. Em 2002, a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva foi indicada, pelo MN e pelo MMN, para ocupar um lugar no Conselho Nacional de Educação (CNE). No mesmo ano, ela propôs que o CNE se manifestasse sobre a questão da educação e das relações étnico-raciais. Em seguida, formou-se uma comissão para elaborar parecer sobre o assunto. Após a aprovação da Lei 10.639/03, o CNE pediu à comissão que ampliasse o parecer, já em fase de elaboração, a fim de estabelecer as diretrizes curriculares para a implementação da lei. O parecer que contempla as diretrizes e teve a professora como relatora foi aprovado em 10 de março e homologado em 19 de maio de 2004. A Resolução 01 do Conselho Pleno do CNE institui oficialmente as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e foi publicada no Diário Oficial no dia 22 de junho de 2004. Essa trajetória é inspirada em experiências realizadas em salas de aula, por iniciativas pontuais de professoras e professores, e também em espaços das organizações do movimento negro. Com o mesmo empenho demonstrado ao longo da história, o MN continua enfrentando o desafio de fazer com que a lei seja respeitada e implementada de modo eficaz em todo o território nacional. Para isso, continua a monitorar as propostas, os conteúdos programáticos, os materiais didáticos e a formação oferecida aos(às) profissionais de educação, que sempre devem observar as práticas de uma educação não-racista. JAN / MAR 2007 5

determinações para a inclusão da história e cultura afro-brasileiras e africanas e suas implicações e repercussões pedagógicas, incluindo a formação do professorado. O parecer trata de questões como consciência política e histórica da diversidade, fortalecimento de identidade e de direitos, ações educativas de combate ao racismo e às discriminações e discute o papel dos conselhos de educação em adequar o proposto pela lei, e pelo próprio parecer, à realidade de cada sistema de ensino. O documento foi elaborado com a participação da sociedade civil, por meio da distribuição de questionários a um público amplo, principalmente profissionais de educação de perfis variados. Na sua elaboração, o documento também contemplou as sugestões feitas por pais, mães e estudantes. A comissão responsável por sua realização foi composta pelo conselheiro Carlos Jamil Cury e pelas conselheiras Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Francisca Novantino e Marília Ancona Lopez. Dois bons exemplos da prática de incentivo à educação antiracista nos últimos três anos são iniciativas de organizações da sociedade civil voltadas para a formação e a prática do profissional de educação Práticas da educação anti-racista Existem registros de experiências do estudo de história e cultura da população negra no currículo da educação formal mesmo antes da promulgação da Lei 10.639/03. Em 1984, em São Paulo, a Comissão de Educação do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e o Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-brasileiros promoveram discussões com professores(as) de várias áreas sobre a necessidade de rever o currículo e introduzir conteúdos não-discriminatórios. Em 1985, o sentido das comemorações de 13 de maio (data de assinatura da Lei Áurea, assumida pelo MN e MMN como Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo) foi questionado pelo MN, por meio de cartazes enviados às escolas do estado de São Paulo, juntamente com informações do 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) e questionário sobre a história do povo negro no Brasil. Um ano depois, em 1986, a Bahia inseriu a disciplina introdução aos estudos africanos nos cursos do ensino fundamental e médio (então primeiro e segundo graus) de algumas escolas estaduais, atendendo a uma antiga reivindicação do movimento negro. Na década de 1990, os municípios de Belém, Aracaju e São Paulo também aprovaram leis tratando do mesmo tema. Várias dessas experiências, sejam iniciativas isoladas ou em parceria com o poder público, provam que é possível promover uma educação inclusiva, participativa e anti-racista. Dois bons exemplos da prática de incentivo à educação anti-racista nos últimos três anos, já após a promulgação da Lei 10.639/03, são iniciativas de organizações da sociedade civil voltadas para a formação e a prática do profissional de educação. Tanto o projeto Educadores pela Diversidade como o prêmio Educar para a Igualdade Racial são de abrangência nacional. O projeto Educadores pela Diversidade é uma proposta que nasceu da parceria entre o Fórum Nacional de Educação em Direitos Humanos, Comunidade Bahá i e Geledés Instituto da Mulher Negra, com o apoio e participação do Fundo das Nações Unidas de Apoio à Infância (Unicef) e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC). A proposta, lançada em 16 de novembro de 2004, consiste em capacitar educadoras(es), por meio da Internet, para lidar com as questões de raça e gênero no ambiente escolar. O trabalho é realizado por meio do portal Unidade na Diversidade e oferece materiais práticos e teóricos que auxiliam na sensibilização e no empoderamento de profissionais da educação professores(as), coordenadores(as), diretores(as), funcionários(as) de secretarias de educação, entre outros a fim de valorizar as diferenças de gênero e raça como aspectos de enriquecimento da humanidade. O prêmio Educar para a Igualdade Racial registrou a participação de 600 iniciativas de todos os estados brasileiros em seus dois 6 DEMOCRACIA VIVA Nº 34

COMBATE ÀS DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO ESCOLAR concursos. As experiências selecionadas para o Educar para a Igualdade Racial foram apresentadas nas duas edições do seminário Desafios das Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial, atividade proposta pela ONG Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert). Nosso lugar nessa história Observando o caminho percorrido até aqui, percebemos certo avanço com relação à implementação da Lei 10.639/03. Na esfera governamental, ainda que as primeiras ações efetivas tenham sido realizadas em 2004, após um ano da promulgação da lei, o MEC, por meio da Secad, realizou fóruns regionais em 22 estados para sensibilizar profissionais e gestores. A partir desses encontros, foram constituídos fóruns locais permanentes para acompanhar o processo nas regiões e algumas secretarias de educação de estados e municípios iniciaram a formação de professores(as). No mesmo ano, o Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FNPIR) distribuiu kits de materiais paradidáticos em 40 municípios de sete estados brasileiros. Em 2005, o governo federal realizou a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e essa questão foi umas das mais debatidas no eixo de educação. Algumas universidades brasileiras, principalmente as que contam com núcleos de estudos afro-brasileiros (Neabs), e também com a iniciativa de pesquisadores(as) envolvidos(as) com a temática, começam a oferecer cursos de especialização, extensão e mestrado que contemplem história e cultura africana e afro-brasileira, como acontece na Universidade Candido Mendes (Rio de Janeiro), na Universidade do Espírito Santo, na Universidade Federal da Bahia, na Universidade Federal de São Carlos, na Universidade de Brasília, entre outras. Esses principais apontamentos evidenciam que, pela primeira vez, existe a tentativa de se estabelecer uma política nacional para o tema e que as secretarias municipais e estaduais de educação estão tentando refletir sobre a questão. Entretanto, vários desses passos precisam ser enfatizados, como a participação das secretarias de regiões que ainda oferecem resistência em assumir o compromisso, tanto em estados como em municípios, e a colaboração das universidades públicas na formação do professorado. Muitos(as) professores(as) brasileiros(as) ainda não sabem sequer da existência dessa obrigatoriedade e boa parte interessada em implementar a lei ainda não sabe como fazê-lo. As reivindicações por material didático e paradidático para trabalhar o tema ainda permanece. Em muitas localidades onde educadores(as) têm acesso aos materiais e à alguma formação no tema ainda não se consegue traduzir esse conhecimento e esse acervo em práticas cotidianas. Para enfrentar esses desafios, é necessário realizar um diagnóstico regional e entender as demandas de cada localidade. O estudo de história e cultura africana e afro-brasileira só vai se efetivar plenamente quando o(a) professor(a) souber o que está fazendo e entender que está propondo uma reeducação das relações raciais, que tem que ser vivida por estudantes e profissionais de educação. De todos os desafios, um dos maiores é fazer o tema das relações étnico-raciais entrar no orçamento da educação. Outra ação necessária, que também pode se enquadrar na categoria de grandes desafios, é que o tema logre influenciar o modelo de gestão da escola e das secretarias de educação. Ainda que os desafios estejam latentes e sejam complexos, os avanços alcançados até o momento provam que uma outra educação é possível, e que construir essa obra não é tarefa de pessoas negras, indígenas, asiáticas ou brancas, mas do conjunto da sociedade brasileira. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). 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MUNANGA, Kabenguele (Org). Superando o racismo na escola. Brasília: MEC, 2005. MUNANGA, Kabenguele & GOMES, Nilma Lino. Para entender o negro no Brasil. São Paulo: Global, 2004. PORTELLA, Tania. O jornalismo e a implementação da Lei 10.639/03 análise de cobertura jornalística. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2005. SILVA JUNIOR, Hedio. Anti-racismo: coletânea de leis brasileiras (federais, estaduais, municipais). São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. * Tania Portella Jornalista, assessora da ONG Ação Educativa e integrante da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) JAN / MAR 2007 7