MEIO AMBIENTE O apogeu dos CaTadORES texto SÉRGIO ADEODATO fotos ANDRÉ PESSOA Quatro anos após a promulgação da lei de resíduos, pouco se fez para o fim dos lixões até 2014. Mas os catadores de materiais recicláveis estão cada vez mais valorizados e reconhecidos como prestadores de serviço ambiental 60 Terra da Gente Terra da Gente 61
A mudança A nova lei prevê a substituição dos lixões (acima) por aterros sanitários (pág. seguinte) só para o lixo orgânico. Materiais recicláveis ficam aos cuidados dos catadores e cooperativas de reciclagem (págs. anteriores) 62 Terra da Gente m e io am b ie nt e cidade de Brejo Santo, famosa pelos festivais de rock que sedia no sertão do Ceará, prepara-se para receber a água da transposição do São Francisco, prevista para chegar ao Açude Atalho, com potencial de transformar a terra seca em eldorado agrícola. Por lá passará também a ferrovia Transnordestina. Mas o município quer escrever o nome na história não tanto em razão da música, das águas ou da nova linha férrea, mas por ingressar no seleto clube dos que terão acabado com os lixões até 2014, conforme determina a Política Nacional de Resíduos Sólidos. No lugar do vazadouro a céu aberto, onde catadores em situação degradante garimpavam resíduos para vender, foi construído um aterro sanitário que segue critérios ambientais. Ao lado, um galpão de reciclagem permite a separação do lixo com equipamentos e condições de trabalho mais dignas. Organizados em cooperativa, trabalhadores antes reféns da informalidade e sujeitos aos preços impostos por atravessadores passaram a produzir mais e melhor. A renda triplicou para cerca de R$ 1 mil mensais. Já deu para ajeitar a casa, diz Joaquim Pereira da Silva, que no passado recorreu ao lixão para o sustento da família e hoje dirige a cooperativa local, a Arbresa. Os 23 catadores cooperados recebem capacitação para lidar com os resíduos com segurança e eficiência e, além disso, são beneficiados por projetos de assistência social. A produção em maior quantidade e melhor qualidade viabiliza economicamente o transporte e a venda para regiões onde há fábricas que reprocessam os materiais do lixo para posterior transformação em novos produtos, explica Fernando Valença, diretor da Proex, empresa de limpeza urbana responsável pelo projeto. Apesar dos avanços, urubus permanecem à espreita no pátio de estocagem, pois os resíduos de valor comercial chegam misturados com restos orgânicos. O problema se deve ao ainda incipiente serviço de coleta do lixo reciclável nas residências, realizado pela prefeitura. Mudanças acontecem passo a passo, pois o processo de adequação ambiental em região historicamente desassistida é vagaroso, justifica Valença, ao lembrar a necessidade de conscientização, qualificação de servidores e recursos financeiros. Nada diferente em relação à maior parte do Brasil. Cada brasileiro gera em média Após 20 anos de debates e 4 da nova lei, só 1 em cada 4 municípios tomou providência para acabar com o lixão 1 quilo de lixo por dia, quantidade que dobra na faixa de renda mais alta. Do total de 193,6 mil toneladas diárias produzidas no País, cerca de 40% acabam em lixões e aterros sem controle ambiental, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Os municípios já não discutem se a lei vai pegar ou não, mas como fazer para cumpri-la, analisa Carlos Silva, diretor da Abrelpe, associação que representa as empresas de limpeza urbana. O prazo para a erradicação das montanhas de dejetos expostos ao relento acaba este mês, de acordo com a nova legislação sobre resíduos (Lei nº m e i o a mb i e n t e Terra da Gente 63
SELEÇÃO Em lixeiras de recicláveis no aeroporto de Curitiba, no Paraná, material é recolhido regularmente. Lixo separado corretamente em casa contribui para eficiência da coleta seletiva 12.305/2010), promulgada há quatro anos, após duas décadas de debate no Congresso Nacional. A demora indica a complexidade das soluções e os interesses políticos e econômicos que o problema abrange, além de expor a fragilidade da gestão ambiental da maioria dos municípios. Em recente seminário em São Paulo, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, admitiu: A consolidação da política de resíduos deverá demorar mais do que o esperado em razão de diversos fatores, entre eles as dimensões continentais do País. Dos mais de 5 mil municípios brasileiros, 2,8 mil têm lixões, a maior parte no Norte e Nordeste, e apenas um quarto deles se movimentou para cumprir a lei, segundo o governo federal. O fim dos terrenos repletos de lixo exige investimentos para criar alternativas aos catadores que lá atuam como meio de vida. Enquanto isso, o perigo ronda lugares de alta importância ecológica. Na entrada do Parque Nacional da Chapada Diamantina, o lixão à beira da estrada de acesso para a cidade histórica de Lençóis (BA) expõe o conflito entre conservação da biodiversidade e expansão urbana sem regras ambientais. Homens e mulheres garimpam o lixo em meio à fumaça que emana da área uma tentativa de transformar em cinza a sujeira que atrai vetores de doenças. Ao lado do vazadouro, o apelo de um outdoor instalado na estrada pelo governo da Bahia soa paradoxal: Os incêndios não podem tomar conta da Chapada. Nós podemos. Encontrar um jeito de se livrar da sujeira gerada pelo consumo é desafio antigo para as populações do mundo. A questão ganhou vulto a partir da Revolução Industrial, no Século XIX, e mobilizou campanhas na Europa nas décadas de 1970 e 1980. Hoje se destaca na agenda ambiental de países que buscam maior acesso ao consumo e melhores índices de desenvolvimento 64 Terra da Gente meio ambiente meio ambiente Terra da Gente 65
LUCRO Em cooperativas, o trabalho dos catadores é mais lucrativo. O lixo já virou acervo de museu (pág. 68) e inspirou a intervenção artística para a conscientização ecológica na Marginal do Tietê, em São Paulo (pág. 69) econômico, como o Brasil. Pela nova legislação, ficou estabelecido que apenas os materiais não recicláveis podem ir para os aterros sanitários. Todo o resto deve ser reaproveitado. Isso implica a necessidade de coleta seletiva nas residências, mas hoje apenas 14% dos municípios oferecem o serviço. As obrigações, no entanto, não se restringem às prefeituras, pois a legislação considera o problema dos resíduos responsabilidade de empresas, governo e população. Bem gerenciado, o lixo urbano evita impactos à água, ao solo e à biodiversidade, além de promover economia de energia na indústria, menor extração de recursos naturais e queda na emissão de gases do efeito estufa, sem falar na redução do desperdício. Cálculo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que o Brasil perde R$ 8 bilhões por ano ao enterrar materiais que poderiam ser reciclados valor quase igual a todo o faturamento do mercado da reciclagem no País em 2012, quando 27% do lixo reaproveitável foi coletado e encaminhado à fabricação de novos produtos. A mudança de patamar depende não apenas de tecnologias de ponta, mas principalmente de gestão eficiente. A base é o trabalho dos catadores, beneficiados pelo viés social da nova lei, que prioriza a participação deles para a liberação de recursos aos municípios. No Brasil há 800 mil catadores de recicláveis. Cerca de 30 mil organizados em cooperativas, segundo dados da organização que representa a categoria. A participação delas é crescente, embora a maior parcela de papel, plástico, latas e embalagens de vidro e longa vida seja ainda coletada por empresas atacadistas para reciclagem. Em razão dos riscos ambientais para as cidades, passamos a ser mais respeitados e não imaginávamos que chegaríamos a esse ponto, afirma Severino Lima, um dos mentores do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), criado em 2001. No lixão de Natal (RN), ainda menino, vendia picolé aos catadores e logo descobriu que ganharia mais dinheiro negociando materiais recicláveis. Quando a prefeitura resolveu acabar com o despejo de lixo no local e construir um aterro sanitário, Lima mobilizou os colegas para que tivessem um trabalho digno sem abandonar os resíduos, articulando Ministério Público e governo municipal na instalação de centrais de triagem de materiais e o início de um novo modelo de reciclagem em Natal. Hoje, Lima frequenta seminários sobre o tema no exterior e senta-se à mesa com o alto escalão do governo e executivos de empresas para participar de discussões sobre a gestão de resíduos no País. Os catadores dos tempos modernos têm acesso a expressivos recursos financeiros do governo e a programas de capacitação apoiados por empresas de grande porte. Graças a eles e à esperada expansão da Modelo prevê financiamento para os catadores, pontos de entrega de recicláveis e educação ambiental coleta seletiva, as indústrias poderão cumprir a obrigação legal de recolher embalagens e produtos após o uso pelos consumidores, no sistema conhecido como logística reversa. O governo federal deverá aprovar nos próximos meses o modelo de reciclagem proposto por uma coalização de entidades empresariais, prevendo investimento em cooperativas de catadores, pontos de entrega voluntária de resíduos pela população e educação ambiental. O objetivo é aumentar em 20% a atual taxa de retorno dos materiais, com menor envio para aterros ou para lixões, agora proibidos. Após a aprovação da lei, já houve grande avanço e o desafio atual é o envolvimento das grandes cidades, como São Paulo, avalia Victor Bicca, presidente 66 Terra da Gente meio ambiente meio ambiente Terra da Gente 67
do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre). A capital paulista tem plano de expandir de 1% para 10% o que é recuperado do lixo. Enquanto isso, municípios como Ourinhos (SP) avançam em modelos inovadores, utilizando o trabalho de cooperativas capacitadas para a coleta nas residências. Além do ganho com a venda dos materiais, os catadores que deixaram o antigo lixão são remunerados pelo serviço ambiental prestado à população. A experiência chega agora a Campinas (SP), onde os catadores receberão R$ 300 por tonelada coletada, mais um valor sobre o que for efetivamente vendido, sem ir para o aterro. Ainda assim, a estimativa é de que o custo total seja inferior em relação ao serviço tradicionalmente operado por empresa de limpeza urbana. O formato tem o conceito de comércio justo como apelo para a maior adesão popular. Quem separa o lixo reciclável em casa sabe que está contribuindo com a geração de renda e a inclusão social. Como o lixo urbano é uma questão complexa, há espaço para diferentes modelos de gestão. A prioridade deveria estar no consumo Consumo sustentável e investimento em tecnologia para reduzir a geração de resíduos deveriam ser prioridades mais sustentável e em tecnologias para a menor geração de resíduos, mas a ênfase da política tem sido o crescimento econômico: produzir o lixo e depois investir em soluções para minimizar seus impactos, analisa Olavo Cardoso, autor de recente estudo de campo sobre tema, no Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces), da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. A atual legislação prioriza a redução na geração de resíduos, dentro da lógica dos seis Rs : reduzir, reutilizar, reciclar, repensar, repor e reparar. Seja qual for o R, os catadores ocupam cada vez mais espaço no cenário como agentes ambientais e ajudam a sociedade a refletir sobre o consumo e seus impactos. Já passou da hora de reconhecer o valor dos velhos carroceiros, tão conhecidos nas cidades brasileiras. Não é para menos. Diante dos dilemas ambientais do Planeta, é perigoso varrer a sujeira para debaixo do tapete. 68 Terra da Gente meio ambiente meio ambiente Terra da Gente 69