FREUD NA SALPÊTRIÈRE. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O INFORME SOBRE MEUS ESTUDOS EM PARIS E BERLIM.



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Transcrição:

FREUD NA SALPÊTRIÈRE. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O INFORME SOBRE MEUS ESTUDOS EM PARIS E BERLIM. (Freud at Salpêtrière. Some Considerations on Bericht über meine mit Universitäts-Jubiläums-Reisestipendium unternommene Reise nach Paris und Berlin) Claudio Eduardo Rubin 1 Resumo: Palavras Chave: Abstract: Key-words: O Informe sobre meus estudos em Paris e Berlim texto redigido por Freud em 1886, exemplifica sua adesão aos ditados da doutrina da Salpêtrière em relação aos fenômenos da histeria e a hipnose. O propósito do artigo é aproximar as considerações freudianas retratadas no mencionado Informe com sua possível fonte de inspiração, a aula inaugural da cadeira de Clínica das doenças nervosas da Salpêtrière. Freud, Charcot, histeria, hipnose. The Report about my studies in Paris and Berlin, text written by Freud in 1886, shows his adherence to Salpêtrière s principles about the phenomena of hysteria and hypnosis. The purpose of the article is to bring together the Freudian considerations portrayed in the mentioned text to his possible inspiration, Salpêtrière's opening class on the Clinic of nervous disorders. Freud, Charcot, hysteria, hypnosis. La théorie, c'est bon; mais ça n'empêche pas d'exister (Charcot, segundo Freud) Introdução O presente artigo aborda o que pode se considerar o encontro formal de Freud com o ensino de Charcot, acontecido durante a viagem de estudos realizada entre final de 1885 e início de 1886, a qual foi destinada na maior parte do tempo a interiorizar-se sobre o trabalho realizado na Salpêtrière sobre dois temas que ocupavam especialmente a atenção tanto de Charcot como de boa parte dos seus discípulos: histeria e hipnose. Nosso interesse nesta ocasião estará centrado por um lado no informe apresentado por Freud ao Colégio de Professores da Faculdade de Medicina de Viena, no retorno da viagem de estudos, onde constam algumas observações pontuais sobre os temas citados. Ao mesmo tempo, incluiremos nas nossas considerações alguns comentários sobre uma aula pronunciada por Charcot por motivo da inauguração da cadeira de Clínica das doenças nervosas na Salpêtrière, onde fora delineada, de maneira geral, a abordagem das doenças nervosas tal qual realizada na época da estadia de Freud na instituição parisiense.

160 F r e u d n a S a l p ê t r i è r e C l a u d i o E d u a r d o R u b i n Dita aula inaugural reveste para nossa indagação uma importância particular devido a que o conteúdo da citada lição fora de pleno conhecimento por parte de Freud, tendo sido incluída no leque de lições charcotianas traduzidas ao alemão, na sua volta da Salpêtrière. Por outro lado, a aula inaugural nos permitirá apontar de maneira mais ajustada a presença efetiva do ensino de Charcot nas iniciais considerações freudianas sobre a histeria ao tempo que permitirá referenciar de forma consistente a procedência das considerações de Freud retratadas em dito Informe. Dedicaremos ainda no presente artigo alguns comentários sobre as observações plasmadas no Informe sobre o fenômeno da hipnose, mesmo levando em consideração que no curso da aula inaugural Charcot não tivesse abordado este tema. Para aproximar os comentários de Freud sobre hipnose aos ditados de Charcot incluiremos algumas referências sobre o particular extraídas de outras aulas pronunciadas por Charcot, datadas até a época da viagem de Freud à Salpêtrière. O Informe Nos primeiros parágrafos do Informe sobre meus estudos em Paris e Berlim 2 encontra-se um esboço de justificação em relação à decisão de Freud de dedicar quase a integralidade do tempo de duração de sua bolsa de estudos em atender ao ensino de Charcot, na Salpêtrière: (...) e por último, que já não podia esperar aprender algo essencialmente novo em uma universidade alemã, depois que tinha usufructuado em Viena do ensino indireto e direto dos professores T. Meynert e H. Nothnagel. Porém, me parecia que a escola francesa de neuropatologia oferecia muito de novo e singular na sua modalidade de trabalho, e também tinha abordado novos âmbitos da neuropatologia, aos que a labor científica na Alemanha e Áustria não tinha se estendido de maneira semelhante. 3 Em que teriam consistido ditas novidades, e quais teriam sido os novos âmbitos que a neuropatologia charcotiana teria abrangido na sua doutrina? Tentar-se de aproximar algumas considerações a estas questões acompanhando por um lado o próprio Informe, ao longo do qual Freud forneceu algumas explicações ao respeito e por outro lado, intercalando alguns trechos da lição inaugural proferida por Charcot na ocasião da criação da cátedra Clínica das doenças do sistema nervoso na Salpêtrière, 4 e que fora traduzida por Freud 5 onde encontram-se alguns dos lineamentos que organizavam a pesquisa neuropatológica na Salpêtrière. A aula inaugural contém boa parte dos argumentos que Freud sugeriu no Informe, em relação às limitações do método anatomopatológico para explicar fenômenos como o da histeria e as vantagens, sustentadas por Charcot, da adoção do que ele denominava método nosológico. Escreve Freud no Informe: Costumava dizer Charcot que a anatomia, em linhas gerais, consumou sua obra, e a doutrina das afecções orgânicas do sistema nervoso está, por assim dizer, concluída; e que agora era a vez das neuroses. 6 Esta afirmação adjudicada por Freud a Charcot se bem destinava a pesquisa da anatomia cerebral a uma espécie de segundo plano, não implicava, em termos gerais, o abandono por parte deste último, de um entendimento que não estivesse referido a uma explicação orgânica de ditos quadros mórbidos. Este trecho do Informe é possível considerá-lo em termos de que o mapeamento dos quadros mórbidos de origem anatômica encontrava-se se não finalizado, pelo menos bastante adiantado na época, e eram as neuroses as que deviam agora ser 160 Revista Digital AdVerbum 6 (2): Ago a Dez de 2011: pp. 159-166.

161 F r e u d n a S a l p ê t r i è r e C l a u d i o E d u a r d o R u b i n enquadradas na explicação neuropatológica, o que em termos de Charcot resultou, entre outras coisas, na tentativa de constituir uma etiologia da histeria apoiada nas noções de hereditariedade e diátese, sendo estas doenças consideradas topograficamente alterações acontecidas no sistema nervoso. A direção do trabalho realizado na Salpêtrière encontra-se delineada em grandes traços na citada lição inaugural. Nessa Leçon d overture correspondente a um ciclo de aulas dedicado às doenças do sistema nervoso ministradas na Salpêtrière, Charcot anuncia a criação da cadeira de Clinique dês maladies du système nerveux. No marco de dita inauguração Charcot apresenta o procedimento utilizado na investigação neuropatológica que ele comanda, o denominado método nosológico. A este propósito cita Claude Bernard, aludindo a ele como aquele que subordinou a fisiologia à patologia, constituindo desta maneira um domínio próprio da patologia que pertenceria ao médico e não ao fisiologista. Como método de investigação a nosologia realiza as seguintes ações: descreve o estado mórbido, determina suas características, sua etiologia, suas correlações e ainda estuda as modificações que sofre sob a ação de agentes terapêuticos. Segundo Charcot, esta sequência constituiria a base de todo entendimento das entidades mórbidas indagadas e sem essa base, a fisiologia do enfermo não seria mais do que uma palavra vã (vain mot). O método nosológico não devia ficar restrito na opinião de Charcot à observação dos fenômenos exteriores da doença já que sem perder sua caracterização poderá se aplicar ao domínio anatomopatológico e até apropriar-se de certa maneira dele. De acordo com esta perspectiva a anatomopatologia forneceria um caráter puramente prático; providenciaria a nosologia dos caracteres mais fixos, os eminentemente materiais, que não são os próprios sintomas, fornecendo as relações entre as lesões e os sintomas exteriores. No domínio da nosologia Charcot incluiu alguns estados mórbidos que têm como sede o sistema nervoso, nos casos em que o estudo post mortem não permite distinguir traços materiais apreciáveis; entre eles se contam a epilepsia, a histeria ( ainda a mais inveterada ) e a coreia como as mais destacadas, que se oferecem aos olhos da neuropatologia comme autant de sphynx qui défient l'anatomie la plus pénétrante. 7 Estes compostos sintomáticos na opinião de Charcot, privados de substratum anatômico não se apresentam ao médico com uma aparência de solidez, de objetividade que pertence às afecções ligadas a uma lesão orgânica apreciável. Para Charcot alguns podem não perceber nestes quadros mais do que fenômenos bizarros incoerentes e inacessíveis à análise, por conta do que seria melhor relegá-los à categoria de incognoscíveis. Porém, esta opinião poderá ser aplicada só no caso de uma observação superficial de doenças como a histeria, pois um estudo mais atento permitiria estabelecer as regras e a ordem que as rege. É neste aspecto que Charcot evidencia o resultado de seu extenso trabalho sobre a histeria realizado até esse momento, resumido sob uma espécie de fórmula que regeria a apresentação deste quadro: Quatro períodos se sucedem no ataque completo com a regularidade de um mecanismo: 1) Èpileptoide; Grands Mouvements (contraditórios, ilógicos); 3) Attitudes Passionelles (lógicas) e 4) Délire Terminal. 8 Mesmo assim, o ataque pode ser incompleto, podendo se apresentar isolado algum dos períodos, ou ainda só dois deles serem necessários em determinados casos. Haveria ainda a possibilidade de estabelecer combinações entre eles, mas mesmo assim torna-se possível para quem considerar dita fórmula, reduzir todas as variantes ao type fundamental. Esta regularidade da histeria proposta por Charcot estender-se-ia 161 Revista Digital AdVerbum 6 (2): Ago a Dez de 2011: pp. 159-166.

162 F r e u d n a S a l p ê t r i è r e C l a u d i o E d u a r d o R u b i n não só na sua forma de apresentação durante o ataque senão também no seu caráter universal com presença em todos os países, por todos os tempos e por todas as raças. 9 No Informe, Freud retoma estas considerações de Charcot: Sobre a universalidade da histeria, A asserção de que formas de histeria tão graves como as que tinham servido a Charcot para seus trabalhos não se apresentavam em Alemanha foi questionado em Paris com documentos históricos sobre as epidemias dessa índole se sustentou a identidade da histeria em todo tempo e lugar. 10 Sobre o type, (...) Charcot partiu dos casos mais acentuados, que concebeu como tipos completos desta afecção. 11 E sobre as possibilidades de uma classificação eficiente da histeria, Assim, graças a seus empenhos, a histeria se destacou do caos das neuroses, se deslindou de outros estados de parecida manifestação e adquiriu uma sintomatologia que, ainda que assaz variada, já não permite ignorar por mais tempo o reinado de uma lei e uma ordem. 12 O que segundo Charcot teria dificultado sua classificação até então teria sido a peculiaridade da histeria se apresentar na sua sintomatologia em uma estreita proximidade com os dos quadros de lesão material. Esta espécie de capacidade das afecções sine materia para simular a apresentação das doenças orgânicas era denominada neuromimésie. De dita conjunção semelhante entre a lesão sine materia e da lesão orgânica, que compartilhariam uma síndrome comum, na opinião de Charcot haveria de se contemplar mutatis mutandi a lesão dinâmica a partir da indagação da possível lesão orgânica correspondente. Este procedimento permitiria, na opinião de Charcot, reconhecer que os princípios que guiam a patologia tradicional são aplicáveis às neuroses, completando a pesquisa com observações anatômicas e fisiológicas correspondentes. Outra das questões abordadas por Charcot nesta aula inaugural esteve referida à possível presença de simulação intencional de sintomatologia por parte dos pacientes, tema retomado por Freud no Informe. O problema se apresentava em duas vias confluentes: por um lado, o esforço na direção de estabelecer uma objetividade que permitisse definir o típico da histeria, que tal como referido acima tinha na sua apresentação sintomática uma grande capacidade mimética em relação a quadros mórbidos com lesão anatômica visível, e por outro lado diversos procedimentos clínicos orientados a minimizar ao máximo as possíveis simulações feitas por pacientes histéricos durante os exames a que eram submetidos. Sobre este último aspecto da simulação, Charcot considerava que alguns histéricos sentiam a intenção de mentir às vezes, sem uma motivação particular, por amor à arte e até para produzir alguma sensação ou provocar a piedade alheia. Frente a isto, parte do trabalho nosológico consiste em diferenciar as sintomatologias reais das possíveis exagerações dos sintomas ou ainda da invenção de sintomatologias imaginárias por meio de diversos engenhos mecânicos associados (tambor de reação de Marey, pneumógrafo, cilindro giratório) nos quais se registram diversas informações fisiológicas que permitem decidir sobre a veracidade do sintoma. A respeito afirma Charcot: Nós abordaremos com prudência sem dúvidas, mas também com confiança, o estudo das afecções temerárias, convencidos que somos, da segurança dos métodos de observação que temos. 13 162 Revista Digital AdVerbum 6 (2): Ago a Dez de 2011: pp. 159-166.

163 F r e u d n a S a l p ê t r i è r e C l a u d i o E d u a r d o R u b i n Desprende-se das palavras de Charcot que o método nosológico seria o ideal para a indagação de fenômenos como a histeria, para o qual absorveria de certa maneira o entendimento anatomopatológico, não afastando-se desse método uma explicação que se baseasse em diversas alterações acontecidas no sistema nervoso. Mais um alicerce formava parte do arcabouço teórico cimentado na Salpêtrière. A consideração da hereditariedade como fundamento etiológico da histeria redobrava a correspondência da explicação charcotiana com um embasamento orgânico. A noção de hereditariedade manejada por Charcot se encontrava nos ditados de Magnan e Morel, que incluíam nas suas considerações sobre este tema a questão da degenerescência, que tingia a predisposição hereditária charcotiana de um caráter mórbido em si mesma: as sucessivas gerações ligadas amplificariam uma debilidade progressiva, aumentada em cada novo descendente incluído na genealogia familiar, o qual supunha Charcot o palco ideal e eficiente para o surgimento de seres predispostos à histeria. A época da chegada de Freud à Salpêtrière coincide com a época de universalização desta explicação etiológica, ao consolidar Charcot a ideia da histeria masculina, rompendo o tradicional cerco que circunscrevia às mulheres como exclusivas destinatárias da histeria. Esta disseminação da histeria além das suas fronteiras seculares (devendo considerar-se tentativas anteriores como no caso de Sydenham) correspondeu-se com o deslocamento do eixo topográfico desde o útero na direção do sistema nervoso, efetuado algum tempo antes pelo próprio Charcot e seus discípulos. Era a culminação de um esforço a que Charcot vinha dedicando os últimos tempos de seu ensino na Salpêtrière, tendente a confirmar entre outras coisas, a presença abrangente da histeria. A este respeito, escreve Freud no Informe: Ante todo, reduziu à sua correta medida o nexo da neurose com o sistema genital quando comprovou a existência da histeria masculina e, em particular, a traumática em toda sua extensão até então insuspeitada. 14 Ao mesmo tempo em que estendia a abrangência da histeria a ambos os sexos, Charcot aprofundava a pesquisa sobre a histeria traumática, tal como comentado na citação acima. Esta vertente de histeria apresentava uma certa ampliação da doutrina, mesmo estando atrelada à disposição hereditária, pano de fundo de toda consideração charcotiana sobre este quadro. Ao longo da estadia de Freud na Salpêtrière estas não seriam as únicas novidades que a doutrina charcotiana apresentara. Ainda estava para ser anunciada, em algum momento das aulas que Freud seria ouvinte, a modalidade de histeria denominada por Charcot psíquica ou por ideação. O empecilho na explicação orgânica da histeria motivado pela falta de substratum material era explicado por Charcot mediante a adoção do termo de perturbação dinâmica ou funcional destinado a franquear a falta de traços anatômicos visíveis na apresentação da doença. Esta característica da histeria não implicava, tal como indicado anteriormente, na resignação de Charcot da expectativa desta observação vir a ser possível de ser conferida em algum momento, facilitada pelo progresso da tecnologia aplicada à neuropatologia. Em termos gerais, Freud coincide com Charcot em relação às dificuldades iniciais na classificação da histeria: (...) São estes, a suposta dependência que a afecção histérica teria respeito de irritações genitais, a opinião segundo a qual é impossível indicar uma sintomatologia precisa para a histeria porque qualquer combinação arbitrária de sintomas poderia apresentar-se nela, e, por último, o desmedido valor que tem se atribuído à simulação dentro de seu quadro clínico. 15 163 Revista Digital AdVerbum 6 (2): Ago a Dez de 2011: pp. 159-166.

164 F r e u d n a S a l p ê t r i è r e C l a u d i o E d u a r d o R u b i n No entendimento de Freud, se até então estas peculiaridades da histeria se tornaram traços negativos para sua definição, a partir das pesquisas charcotianas sobre o ajuste do papel da genitalidade feminina na histeria, a inclusão das considerações sobre histeria masculina e traumática e a enumeração de diversos signos distintivos como anestesia, perturbações da visão e pontos histerógenos, entre outros, permitiram uma definição da histeria pela via de traços positivos, que inauguraram a possibilidade de uma indagação organizada. A hipnose, fenômeno e estado Durante a aula inaugural, Charcot não dedicou comentários específicos aos desenvolvimentos sobre a hipnose realizados desde alguns anos atrás na Salpêtrière, apesar destes terem tido uma importância ascendente na elucidação da histeria, passando de ser uma ferramenta de reprodução de sintomas a um estado assimilável ao que os histéricos traumáticos apresentavam. No Informe Freud descreveu a abordagem charcotiana da hipnose: Mediante o estudo cientifico da hipnose -um campo da neuropatologia que foi preciso arrebatar por uma parte à incredulidade e por outra à fraude- ele mesmo chegou a uma espécie de teoria sobre a sintomatologia histérica, que teve coragem de reconhecer como real e objetiva para a maior parte dos casos, sem por isso descuidar a cautela indispensável a causa da insinceridade dos enfermos. 16 As considerações de Charcot sobre a hipnose tinham seus antecedentes nas experiências terapêuticas com metaloscopia e metaloterapia, inspirado no trabalho de Burq, autor de uma tese em 1852 sobre a ação de metais na clorose (forma de anemia presente em mulheres, característica pelo tom amarelo-esverdeado impresso na pele), mas cujas ideias tinham sido rejeitadas em diversos ambientes hospitalares. A pedido de Burq, Charcot encabeça uma comissão investigadora comissionada pela Société de biologie destinada a determinar a veracidade das afirmações daquele em relação ao uso terapêutico de metais. Os resultados da comissão, que atuou entre 1876 e 1878, foram registrados na forma de dois informes para a Société; Charcot, por sua vez, não só colaborou na corroboração da credibilidade na metaloterapia senão que também, a experiência na comissão lhe permitiu incluir um novo fenômeno ao leque de suas investigações sobre a histeria. Tal como comenta Swain, 17 Charcot o descreveu no final de 1877 para seu auditório na Salpêtrière: Há outro fenômeno do qual quero que sejam testemunhas, desconhecido para Burq, e que é suscetível de estabelecer que não todos os fenômenos dos que falamos podem interpretar-se como um estado que às vezes os fisiólogos ingleses designam com o nome de atenção expectante: o fenômeno de transferência. 18 Este peculiar fenômeno será executado por Charcot em princípio por via de metais e posteriormente por utilização de eletricidade (o que já tinha sido vislumbrado ainda na época da comissão de Société) por solenoides e ímãs e por fim, pela via da hipnose a partir de 1878. A função inicial da hipnose tal como empregada na Salpêtrière teve a ver com a transferência, sendo utilizados os metais na produção de anestesia metálica. Para 1882, a hipnose alcança o estatuto de neurose experimental ; em 1884 já forma parte das paralisias psíquicas experimentais e em 1885, época da chegada de Freud à Salpêtrière, Charcot sustenta o modelo da paralisia sugerida -que inclui hipnose- como equivalente da paralisia histérica, a fim de estabelecer uma diferenciação efetiva com a 164 Revista Digital AdVerbum 6 (2): Ago a Dez de 2011: pp. 159-166.

165 F r e u d n a S a l p ê t r i è r e C l a u d i o E d u a r d o R u b i n paralisia orgânica. A cientificidade da hipnose é destacada por Freud no Informe: A hipnose era para ele [Charcot] então, um campo de fenômenos que submeteu a descrição com referência à ciência natural, como anos antes tinha feito com a esclerose múltipla ou a atrofia muscular progressiva. 19 O enlace entre histeria e hipnose estabelecido por Charcot repercutiria na abordagem inicial da neurose por parte de Freud, quem, junto com o precedente de Josef Breuer no caso Anna O, abordaria o tratamento das histéricas na sua volta a Viena, utilizando a hipnose como recurso terapêutico. A aula inaugural encerrava-se com a seguinte afirmação de Charcot: Na solução dos problemas que nos serão impostos, todas as disciplinas da ciência biológica deverão emprestar um apoio mútuo, controlar-se umas a outras, marchar ao mesmo passo, na direção do mesmo objetivo. Porém, afirmo que nesse concerto o papel preponderante, a jurisdição suprema deverá sempre pertencer à observação clínica. 20 Em consonância com a orientação impressa por Charcot ao método nosológico estabelecido na Salpêtrière, Freud afirma sobre o modo de trabalho de Charcot: Em geral, não me pareceu que fosse alguém a quem atrai mais o raro que o ordinário, e toda sua orientação espiritual me leva a conjecturar que ele não descansa até ter descrito de maneira correta, e classificado cada fenômeno de que se ocupa, mas depois e muito capaz de repousar uma noite inteira sem ter dado a explicação fisiológica do fenômeno em questão. 21 Desta maneira, torna-se possível identificar nas considerações retratadas por Freud no Informe, a impronta da doutrina charcotiana, da qual Freud se assumiria no caráter de discípulo. Por sua vez, a inclusão dos próprios textos charcotianos na análise do Informe permitiu mensurar por um lado o alcance da própria empresa charcotiana e ao mesmo tempo descreve, de maneira ajustada, sua presença na letra freudiana. Permitimo-nos uma digressão já no final deste artigo. Na introdução do Informe, o tradutor à língua inglesa da obra freudiana, James Strachey, saudou o informe como um fato histórico consistente no deslocamento do interesse científico de Freud da neurologia à psicologia. 22 Da nossa parte entendemos que dita afirmação, deve ser examinada com prudência, a partir justamente da adesão manifesta de Freud neste texto, aos ditados da doutrina da Salpêtrière. Notas 1. Psicólogo e Mestre em Filosofia 2. Bericht über meine mit Universitäts-Jubiläums-Reisestipendium unternommene Reise nach Paris und Berlin (1886) Obras completas Sigmund Freud V. 1. 2001 Amorrortu Editores -a partir de agora Informe-. 3. Informe p. 5 4. Publicada como primeira lição Leçon d'overture em Leçons su les maladies du système nerveux, faites a la Salpêtrière Tome III. 1887 Aux Bureaux du Progrès Médical A. Delahaye et E. Lecrosnie -a partir de agora Leçons Tome III -. Esta publicação reúne aulas pronunciadas por Charcot entre 1882 e 1886. 5. Sob o título de Zur Eröffnung em sua tradução de aulas de Leçons Tome III no volume Neue Vorlesungen über die Krankheiten des Nervensystems. 1886. Liepzig und Wien Toeplitz e Deuticke a partir de agora Neue Vorlesungen - A coletânea traduzida ao alemão foi publicado com certa antecipação à edição francesa. 6. Informe, p. 10. 7. Leçons, Tome III, p. 14. 8. Leçons, Tome III, p. 15. 165 Revista Digital AdVerbum 6 (2): Ago a Dez de 2011: pp. 159-166.

166 F r e u d n a S a l p ê t r i è r e C l a u d i o E d u a r d o R u b i n 9. Leçons Tome III, p. 15 Esta argumentação vinha a contrastar algumas das críticas que eram feitas por parte de Meynert em relação à limitada abrangência da histeria tal como definida na Salpêtrière e ao alcance da própria doutrina charcotiana. 10. Informe, p. 12. 11. Informe, p. 11. 12. Informe, p.12. 13. Op. Cit., p. 20. 14. Informe, p. 11. 15. Informe, pp. 10-11. 16. Informe, p. 11. 17. Swain, Gladys e Gauchet, Marcel. El verdadero Charcot. Los caminos imprevistos del inconsciente. 2000. Ediciones nueva Visión SAIC. Buenos Aires, Argentina. 18. Op. Cit., pp. 88-89. 19. Informe, p. 13. 20. Leçons Tome III, p. 21. 21. Informe, p. 13. 22. Strachey, James, Sigmund Freud, Obras Completas V. 1, Nota Introductoria p. 3. 2001 Amorrortu Editores. Referências Bibliográficas CHARCOT, J.M. (1887) Leçons su les maladies du système nerveux, faites a la Salpêtrière. Tome III. Aux Bureaux du Progrès Médical. A. Delahaye et E. Lecrosnie FREUD, S (2001) Obras completas Sigmund Freud, v. 1. Amorrortu Editores. SWAIN, G. & GAUCHET, M. (2000) El verdadero Charcot. Los caminos imprevistos del inconsciente. Ediciones Nueva Visión SAIC: Buenos Aires. Recebido em 27/10/2011 Aprovado em 10/12/2011 166 Revista Digital AdVerbum 6 (2): Ago a Dez de 2011: pp. 159-166.