ideológicos no discurso
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- Igor Garrau Arruda
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1 Vera Lúcia Casa Nova Elementos retóricos e ideológicos no discurso do pai-de-santo "S'interroger sur les rapports entre pouvoir et langage, c'est sengager dans une refléxion à plusieurs étapes". M. Godelier. 1 Proposta de leitura de um ritual Esta análise não tem um caráter geral, ela é uma tentativa de apreensão de um objeto determinado, produto de minha experiência nos meios religiosos urbanos. A proposta é de mostrar a possibilidade de uma leitura que se oriente para um enfoque semiótico umbandista, na medida em que esta prática oferece inúmeros dados para uma teoria da produção sígnica. O instrumental para ter acesso à prática ritual ística está pouco elaborado e mesmo precário. Trata-se de uma estrutura bastante complexa, onde os substratos míticos e culturais não se deixam facil mente apreender, devido à cosmologia que se despersonaliza no universo religioso afro-brasileiro. O termo cultura é visto como fenômeno semiótico, por isso observo de perto os fundamentos de Umberto Eco', quando ele afirma ser a cultura um fenômeno de comunicação estruturado em sistemas de significação. Assim é que um código implica o processo de significação: código-sistema que une entidades presentes e ausentes. 9
2 2 - O Ritual A escolha do ritual da Umbanda, religião que se quer brasileira, vem a propósito de ser essa prática um elemento transmissor de tradição cultural, um sistema de signos que modeliza o mundo, enquanto forma de dominação e permanência de ideologias vigentes na sociedade brasileira. A cada movimento de transformação social corresponde um movimento de mudança cultural, isto é, as práticas se modificam mostrando significados novos dentro do conjunto da sociedade. Convém lembrar que o nascimento da religião umbandista coincide justamente com a consolidação de uma sociedade urbanoindustrial e de classes.2 O ritual é tomado como texto, na medida em que há uma ação dramática (vários protagonistas a nível individual e social) veiculada pela fala, pela palavra, elemento atuante e mobilizador; um discurso simbólico que delineia em sua prática mítico-cultural as coisas do mundo social, além de um "sistema de representação de determinado modelo do mundo", como assinala G.A. Livinton em "Algumas Questões Gerais no Estado do Rito Matrimonial". 3 Este ritual corrobora representações da sociedade brasileira, buscando a manu tenção dos seus valores. Como a crença define a maneira dos poderes do universo, seu alcance influi na vida humana. O terreiro a que farei referência localiza-se na região periférica de Belo Horizonte, bairro Carlos Prates. O ritual é o das sextas-feiras, quando se dá o "desenvolvimento" dos médiuns. A ordem do ritual tem o seguinte esquema: 19 o pai de santo abre a gira; 29 há as incorporações das entidades (caboclos, pretos-velhos, exus e pombas-gira) e 39 a doutrinação dos médiuns, feita pelo pai-de-santo. Como o objetivo deste trabalho está ligado ao discurso do pai-desanto, me restringirei a essa última parte do ritual. 3 O jogo poder/saber: o pai-de-santo dita a norma. "É hora de trabalho. Vamos trabalhar, meus irmãos..." O pai-de-santo tem uma situação estratégica. É o posto mais alto da hierarquia espiritual, organiza o terreiro, emite mensagens e mantém o poder ideologicamente, não só a nível de código do santo, mas também do código burocrático existente no terreiro. Conhece os mitos, as entidades; dirige o ritual, faz renovar e fortalecer a convic ção, une o grupo como um todo. Seu discurso durante todo o ritual, estando ele "incorporado", ou não, é a representação da segurança, do Pai, aquele que encaminha, resolve problemas, toma decisões e dirige o comportamento dos "incorporados" e "não-incorporados" durante os trabalhos. 10
3 Na simbologia do poder/saber, a figura do pai-de-santo é centra lizadora. Ele guarda todo um patrimônio cultural, de mitos, lendas, pontos, além de ter o poder de excluir médiuns do terreiro, caso não se comportem como as regras ditadas por ele. Ninguém entra sem sua autorização. Ele detém a posse efetiva do terreiro. Essa soma de poderes está condicionada ao prestígio, já que ele sabe a Lei da Umbanda, e faz cumprir a lei, sob a capa do "bom relacionamento" que mantém com os membros do terreiro. 4 Código Retórico: Doutrina: efeito persuasivo e pedagogia. Por "doutrina", entendo o ensinamento, a catequese. Durante a doutrina, a persuasão é categoria central do discurso do pai-de-santo. É um discurso que visa o presente, com finalidades imediatas e de onde se depreendem as mais variadas formas de maniqueísmo. A relação persuasiva é evidenciada com a ajuda de meios pessoais: 19 a "autoridade" do pai-de-santo; 29 a disponibilidade dos clientes e médiuns; 39 a argumentação. Assim, se estabelece o processo de doutrinação, que tende a influenciar, a modificar comportamentos. A persuação é, aqui no caso, consciente. Esse é o objetivo do chefe de tenda ou pai-de-santo. Convencer, através da fé, influenciar: Os médiuns têm que praticar caridade. Ajudar os que têm menos, para estar sempre evoluindo;a caridade deve ser sempre prestada, e seus problemas pessoais aqui devem ser esquecidos o que importa é a missão que cada um tem...4 O pai-de-santo confirma seu poder usando técnicas do santo. Ivonne Maggie Alves Velho em seu trabalho Guerra de Orixás, rela ciona, na análise do conflito existente, o poder do pai-de-santo / técnicas do santo com o poder e o uso de critérios de prestígios econômicos e sociais da sociedade mais ampla. O conhecimento das leis da Umbanda e a melhor manipulação das técnicas de santo instituem seu poder. A doutrina fornece-lhe o princípio que comanda a evolução espiritual: a caridade, o amor ao próximo e a abnegação são os principais fundamentais da praxis religiosa na doutrinação. A influência modifica a disposição do médium (no caso, o influenciado) a respeito de uma determinada situação presente ou futura. A modificação do comportamento assume duas formas (lembrando Claude Bremond em seu trabalho "O papel do influenciador6 ): intelectual e afetiva, na medida em que durante a doutrinação, o pai-de-santo sabe de problemas acontecidos com os médiuns, tais como doenças em sua família, injustiças sofridas na relação empre- 11
4 gado/patrão, etc. Atua sobre esses dados, informando ou confirman do notícias recebidas; ou inibe a esperança de dias melhores para os médiuns ali presentes. Considerando a relação ideológica que se estabelece entre pai-desanto e médium durante a doutrina, observamos que o médium concorda com o pai-de-santo em todas as situações. Da ia repercussão ideológica. O ideológico se fecunda na concordância e se irradia dentro e fora do terreiro. Assim é que a umbanda surge como emissor e receptor de elementos ideológicos, é um universo onde a ideologia da "perma nência" parece ser facilmente observada através do código da doutri nação. 5 Código ideológico. Doutrina: Ordem e Harmonia Sedução e magia do discurso, ingredientes mantenedores da emoção do ouvinte (médium), possibilitam a adesão. No terreiro, o estabelecido durante a doutrina é acatado sem determinações muito claras. "O santo disse, tá dito" ou "Pai-desanto disse, tá dito". As regras impostas são naturalmente de caráter normativo e/ou decorrente da natureza das coisas. O conselho apa rece através de figurações analógicas e é a base da doutrinação. Ê caso de se relacionar isso à utilização dos mitos como forma de dominação. A hierarquia inalterável do mundo, o universalismo, são alguns deles destilados através da doutrinação. Lembro-me de uma passagem de Barthes em Mitologias7: "o que o mito restitui é uma imagem natural deste real... sendo a função do mito evacuar o real..." Realmente a constatação é o traço mais comum. O acatamento das decisões, das ordens são elementos ideológicos pertinentes. Transformam-se as idéias do chefe (pai-de-santo) em idéias de todos, para se fazer um todo, de modo que o pai-de-santo, que domina no plano espiritual, também domine no plano social, político e até econômico. Sob a forma de conteúdo, é a harmonia o elemento ideológico mais forte da doutrinação da umbanda, pois ela é responsável pelo desenvolvimento do espírito e da matéria. Manutenção do equilíbrio, posto em perigo pelos conflitos, pelas "demandas", carregadas de drama e tragédia." Qualquer transgressão ao código é punida. Luís Costa Lima, em seu trabalho "As projeções do Ideológico", chama a atenção sobre o uso de qualquer discurso como meio de preservação ou legitimação do poder. Realmente a cultura, pensada como natureza, reduplica o ideológico dominante. É o caso de corro borar a idéia de que "o discurso ideológico visa à persuasão, donde ser um discurso "prático" que praticamente se coloca a questão do 12
5 poder e se caracteriza por reprimir, mesmo de maneira não voluntária ou consciente, a postulação de perguntas que pusessem em discussão os pressupostos em que são geradas, mantidas ou transformadas as crenças do senso comum..."» _ A manutenção da ordem simbólica é o instrumento de susten tação da ordem política do terreiro. Ela serve como uma forma de naturalização responsável por um consenso acerca da ordem do mundo. Assim a norma social estabelecida é apresentada como natural, impedindo-se que se coloquem certos problemas. Pela neces sidade de manter o poder, o pai-de-santo durante a doutrina recalca os questionamentos, afasta posições perigosas. Define normas, regras de conduta, o que deve ser feito ou não, o que deve ser valorizado na vida ou não, o que se deve sentir ou fazer. O código retórico da doutrinação da Umbanda, representado pelo pai-de-santo, constitui manipulação ideológica, na medida em que a doutrina tem um caráter prescritivo, regulador, normativo. 6 Conclusão parcial Minha leitura do ideológico neste código-sistema mostra, numa dupla perspectiva, como a produção de sentido liga-se ao fenômeno de reconhecimento político, e como a organização e representação das coisas se integram num mesmo processo semiológico na gramática de produção. O poder do discurso do pai-de-santo designa os efeitos desse discurso no interior do terreiro. Esses efeitos contituem novas produções de sentido. Se todo reconhecimento, como diz Verón, engendra uma produção, toda produção resulta de um sistema de reconhecimento.9 O pai-de-santo, enquanto chefe, possuidor da "gramática", recria no terreiro uma micro-sociedade, que nada mais é do que a reduplicação de uma das formas de organização políticosocial de nossa sociedade. NOTAS 1- ECO, Umberto - Tratado Geralde Semiótica, Perspectiva, São Paulo, 1980,p ORTIS, Renato - A Morte Branca do Feiticeiro Negro, Vozes, Rio de Janeiro, 1978, p LEVINTON, G.A. - Algumas Questões Gerais do Estudo do Rito Matrimonial, In: Semiótica Russa, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1979, p
6 4- Não tendo sido possível o registro da fala do "pai-de-santo", tento reconstituí-la, na medida do possível. 5-ALVES VELHO, Ivonne Maggie. Guerra de Orixá. 2a Ed. Editora Zahar, Rio de Janeiro, p BREMOND, Claude. O papel do influenciador. In: Pesquisa de Re tórica, Vozes, Rio de Janeiro, p BARTHES, Roland. Mitologias. 4aed., Difel, 1970, p COSTA LIMA, Luís. As projeções do Ideológico. In: Cadernos da PUC/RJ, p VÉRON, Eliseo. Sémiosis de 1'idéologique et du pouvoir. In: Communications, n928, p
Assim é hora de darmos um passo maior na formação espiritual do seu corpo mediúnico.
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