DRAMATURGIA EM PROCESSO
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- Ana Vitória Alves Igrejas
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1 29 DOI: /issn v5i2p29-40 Dramaturgia em processo Artigos DRAMATURGIA EM PROCESSO DRAMATURGY IN PROCESS DRAMATURGIA EN PROCESO Ana Carolina Monzon Ana Carolina Monzon Mestra em artes pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atriz e arte-educadora Espetáculo Eldorado (2008). Concepção, pesquisa e atuação: Eduardo Okamoto. Foto: Fernando Stankuns Revista aspas Vol. 5 n
2 Ana Carolina Monzon Resumo Este trabalho reflete sobre o panorama atual da dramaturgia contemporânea brasileira no que tange à crescente prática do ator autônomo no processo de criação. Para isso, utilizam-se como proposta três bases para a composição dramatúrgica, independentemente da forma ou linguagem escolhida pelo grupo de artistas: a escolha dos materiais, o processo criador inacabado e a dramaturgia do ator. A pesquisa reflete, ainda, sobre dois estilos de registro dramatúrgico: o registro do processo criador e o registro textual ou corpóreo das partituras compostas. Todos os apontamentos servem de suporte e reflexão para o caráter inacabado ou em constante processo da dramaturgia atual. Palavras-chave: Dramaturgia, Materiais, Processo criador, Registro. Abstract This work discusses the current context of Brazilian contemporary dramaturgy with respect to the increasing practice of the autonomous actor in the creative process. It is based on three proposals for dramatic composition, regardless of form or language chosen by the group: choice of materials, unfinished creative process and actor s dramaturgy. The research also discusses two styles of dramaturgy documentation: documenting the creative process and documenting the composed scores. All points approached are used as support for the unfinished or in constant process character of current dramaturgy. Keywords: Dramaturgy, Materials, Creative process, Documentation. Resumen Este trabajo reflexiona sobre el panorama actual de la dramaturgia contemporánea brasileña en relación con la creciente práctica del actor autónomo en el proceso de creación. Para eso, se utilizó tres bases para la composición dramatúrgica, independientemente de la forma o lenguaje seleccionada por el grupo de artistas: la elección de materiales, el proceso creador inacabado y la dramaturgia del actor. Además, la investigación reflexiona sobre dos estilos de registro dramatúrgico: el registro del proceso creador y el registro textual o corporal de las partituras compuestas. Todos los apuntes sirven como soporte y reflexión para el carácter inacabado o en constante proceso de la dramaturgia actual. Palavras-clave: Dramaturgia, Materiales, Proceso creador, Registro. 30 Revista aspas Vol. 5 n
3 Dramaturgia em processo Ponto de partida Este artigo parte de características do contexto teatral da dramaturgia brasileira contemporânea, permeado pelo teatro de grupo, pela dramaturgia que utiliza o texto teatral (dramático ou não dramático) como mais um elemento catalisador de materialidade cênica, por pesquisas e práticas intensas sobre o trabalho do ator sobre si e, por fim, pelo hibridismo de formas de escrituras corporais como a performance, vídeo-dança e a dança-teatro. Neste contexto sobrevive o ator contemporâneo, que busca ainda maneiras de registrar a dramaturgia composta, com ou sem a presença de um elemento que dê uma unidade ao que é levado para a cena, como a figura do dramaturgo. Para refletir sobre o assunto, procura-se traçar elementos em comum de processos criadores em teatro. Todo processo inicia-se com uma vontade de dizer alguma coisa. Esse dizer não permeia apenas o campo das palavras, mas, acima de tudo, do corpo que quer fazê-lo por meio de imagens, sons, ruídos, respiração, gestos, movimentos, ações, olhar ou do estar em relação. Para a escolha do que dizer e como dizer, o ator utiliza um ou mais estímulos, pontos de partida para a improvisação e composição de partituras cênicas, que aqui são os materiais. É construída, assim, a primeira base de um processo de composição dramatúrgica: a escolha dos materiais de criação. Em seguida, a reflexão trata da geração de traços durante o processo criador, que se baseiam nas escolhas, percursos, erros, acertos, e que surgem a partir da relação dos atores com os materiais de criação. Diz-se processo criador porque, segundo Salles (2004), uma obra de arte se atualiza a cada traço criado, e assim redimensiona a relevância que deve ser dada ao processo. Quando um processo é criador, ele mesmo cria, ele é o sujeito. Assim, trata-se de uma dramaturgia composta para ser remodelada, repensada, reatualizada, antes e depois da cena. Essa seria a segunda base da composição dramatúrgica. O terceiro aspecto em comum de processos criadores concerne à busca pela autonomia de um ator-criador-compositor, o qual esbarra na dificuldade que alguns atores encontram na composição e no registro ao final do processo criador, quando as partituras criadas atingem a cena. O termo dramatur- Revista aspas Vol. 5 n
4 Ana Carolina Monzon gia do ator, surgido a partir dos estudos de Eugênio Barba (1998) e de seu grupo Odin Teatret, trata da questão sobre o que é próprio no trabalho do ator, sobretudo quando o mesmo compõe uma dramaturgia. A expressão dramaturgia do ator refere-se a um dos níveis de organização do espetáculo ou a uma das faces do enredo dramatúrgico. [ ] Dramaturgia do ator quer dizer, acima de tudo, capacidade de construir o equivalente da complexidade que caracteriza a ação na vida. Esta construção, que é percebida como personagem, deve exercer um impacto sensorial e mental sobre o espectador. O objetivo da dramaturgia do ator é a capacidade de estimular reações afetivas. (BARBA, 1998, p. 6) Barba (1998) diz que é função do ator, e somente dele, criar e materializar ações verdadeiras, aspecto que vai além da construção da personagem. Nesse sentido, o diretor funciona como um instigador e orientador no percurso de criação de ações. Ao pesquisar mais a fundo sobre a dramaturgia do ator, encontram-se termos complementares que determinam todo o contexto teatral brasileiro: dramaturgia coletiva, colaborativa, dramaturgia do corpo. Percebe-se a força de um contexto em que atores pretendem ter mais autonomia na criação e com barreiras hierárquicas diluídas. A terceira base de processos criadores para a composição dramatúrgica seria, então, pela dramaturgia do ator ao materializar as potencialidades que emergem de sua relação com todos os materiais de criação. Por sua vez, tudo o que é materializado e vivenciado pelo corpo criador torna-se uma dramaturgia possível de ser reatualizada, seja na sala de ensaio, nas improvisações ou na cena. Inicia-se, assim, uma base sólida para a reflexão sobre a dramaturgia em processo. Materiais para a criação O termo material é utilizado como ponto de partida em processos criadores teatrais, onde tudo o que se torna elemento ou partitura de cena, ou vivência na ação de criar, é materializado pelo corpo do ator. Desse modo, é o ator que dá concretude à criação, que dá materialidade à cena. Para a composição de uma dramaturgia por um grupo de atores, podem existir infinitos materiais, às vezes vários deles em um mesmo processo criador. O 32 Revista aspas Vol. 5 n
5 Dramaturgia em processo termo materialização está associado à questão da dramaturgia do ator, em cuja prática o texto teatral tornou-se mais um elemento de criação, enquanto a dramaturgia da cena seria constituída de partituras de ações criadas em improvisações e tecidas em um espetáculo. Para compor as partituras, o ator utiliza o corpo como fonte principal de estímulos 1. Portanto, a proposta de material atrelada ao processo de criação dramatúrgica lida com um dentro e fora (espacial, corporal, sensorial) que permeia a criação. Tal visão é entendida como desencadeadora de subjetividades e possíveis zonas de relação (ator-diretor-dramaturgo-espectador) em uma completa dissolução de fronteiras. Ou seja, quando os materiais utilizados na criação perpassam todas as zonas possíveis, a dramaturgia em processo é coletiva e em constante transformação. O conceito de material é definido por Matteo Bonfitto (2006, p. 17) como qualquer elemento que adquire uma função no processo de construção da identidade do próprio objeto. Logo, não se entende por objeto apenas a construção dramatúrgica, sensorial e sígnica do corpo em ação, pois não se procura mais construir um discurso através da palavra, mas um sentido com o corpo. A questão do sentido está ligada ao não dito ou ao dizer com o corpo, uma vez que trabalha com a parte sensorial tanto do ator-criador como do espectador. Com a utilização de materiais de criação, o ritual teatral parte para uma zona de novas possibilidades, de experiências e de um acontecimento. Um acontecer não mais entre quem age e quem observa, mas de uma troca constante entre todos os participantes da ação. Dessa maneira, os materiais de criação tornam-se todos os elementos utilizados para criar ações, incluindo o corpo. Nesse sentido, o corpo não é visto apenas como instrumento de trabalho, mas como um território de passagem, de abertura, de potência, de construção de relações. É um corpo que sente, que reage, que se abre, que aceita, que diz, que materializa imagens, signos, ritmo, espaço, texto. Corpo como material dentro de uma zona de potências e que vivencia e experimenta materiais no ato de criar. Nessa direção está a questão da escolha dos materiais na construção do visível e do invisível. Seria possível estabelecer muitas relações entre estes dois conceitos 1. O termo estímulo será utilizado neste artigo como criador de zonas de possibilidades do estado de criação do ator, e não como causa e efeito. Revista aspas Vol. 5 n
6 Ana Carolina Monzon de tensão, conflito, complementação, dentro e fora, mas prefere-se estabelecer que visíveis sejam os elementos constituintes da cena, ou partituras, e invisíveis, os elementos sutis e de micropercepções da cena, registrados pelo corpo do ator, as subpartituras. Processo criador de traços A arte de criar é um gesto inacabado porque é feita de relações. Durante o processo, o artista que cria lida tanto com o diálogo interno (eu) como com o diálogo externo (outro). O que seria de um artista sem o mundo ao redor, de onde poderia extrair ideias, imagens e pensamentos? A obra é construída de um gesto para o outro. Terminada a criação, o outro influi ativamente sobre o que foi criado por meio de impressões, leituras, críticas, sensações. Mesmo que o artista não utilize esse diálogo para modificar a própria obra, em outra criação tais revelações serão levadas em conta. É como se o criar fosse um constante fluxo de experiências, pesquisas, diálogos e processos. Não são apenas partes de uma mesma obra que se complementam, mas processos vivenciados um após o outro. Uma característica forte na dramaturgia contemporânea é a busca por uma relação sensorial com o público, seja direta ou indiretamente. A dramaturgia propõe uma nova postura de seus criadores, e, dessa maneira, novos espaços de relação com o espectador são descobertos. Nessa trajetória, o espectador se interessa cada vez mais não somente pela cena que o convida a participar, mas pelos traços que surgiram ao longo do processo criador. De onde partiu a ideia da peça? Por que escolheram falar sobre isso? Quais os caminhos traçados? Toma-se emprestado neste artigo o termo traços utilizado por Josette Féral (2013) para traçar o percurso de uma genética teatral 2 ou, mais propriamente, do registro do processo criador. A autora discorre a respeito da importância do registro da criação, que há muito tempo é feito, seja para restituir as ideias do espetáculo ou para refletir sobre o fazer do artista. Porém o fator mais importante da genética teatral 2. Entendendo o uso do conceito de genética como o detalhamento do trabalho genealógico de preparação da obra. Essa análise encontra-se inserida na interface entre etapas passadas (ou o estudo sistemático de documentos) e a preservação da obra como objeto vivo percebido pelo espectador. 34 Revista aspas Vol. 5 n
7 Dramaturgia em processo é o caráter performativo da obra: A diferença maior, no entanto, é que essa observação não tem por objetivo compreender o processo da criação da obra, mas poder fazer uso de uma técnica de atuação e imitá-la quando necessário (FÉRAL, 2013, p. 568). O procedimento de observar, analisar e registrar processos criadores em teatro, segundo a autora, gera traços, que podem ser de diferentes naturezas, tal a multiplicidade de dados em torno da criação de um espetáculo. Certos traços podem ter caráter saturado quando próximos do espetáculo final, e outros continuam lacunares uma vez que configuram pistas, estímulos e inspirações a serem seguidas. Tais traços antigamente eram registrados e arquivados, pois o público não tinha acesso, e, nos últimos tempos, vê-se uma rapidez no registro e divulgação dos elementos constituintes do processo criador. Estão presentes em vídeos, textos de programas do espetáculo, fotos, notícias de jornal e entrevistas. Essa necessidade do compartilhamento de traços aproxima o espectador da obra e do processo, cujo acontecimento, em caráter performático, é composto pelo entrelaçamento de ambos. A genética teatral, por sua vez, se faz também pela escolha de quais traços estarão presentes na encenação, o que permanecerá, o que será transformado e o que será eliminado. O responsável por esse papel, segundo Féral (2013), seria o diretor ou encenador, que escolhe a partir das propostas dos atores quais caminhos serão explícitos (ou farão parte da cena) e quais serão suprimidos ou atenuados. Féral ressalta que os traços suprimidos desaparecem na cena. Levanta-se então uma questão: estariam tais traços realmente inexistentes na ação? Pensando a função do ator como um materializador do dito e não dito, e considerando que muitos traços do percurso dentro do processo criador perpassam pelo corpo, esses traços poderiam ficar registrados nas subpartituras, ou no invisível da cena. Portanto, o espectador teria acesso aos traços suprimidos da cena, muitas vezes importantes enquanto materiais de estímulo para a criação. Todo o processo de criação de traços, escolhas de percursos e relação ocorre na dramaturgia do ator.para entendê-lo melhor, não se tomam os traços do processo criador como uma linha contínua (uma das características da narrativa ficcional), mas como uma espiral. A cada traço criado, novos traços surgem, e, em um fluxo contínuo de vai e vem, onde avançam, repassam os Revista aspas Vol. 5 n
8 Ana Carolina Monzon mesmos traços e os reatualizam, e assim é criado esse movimento de espiral. Mas onde se daria o início da gênese? Esse mote inicial pode ser composto de inúmeras formas: uma ideia, um insight (intuição), uma conversa ou até mesmo quando o grupo de artistas se reúne para dar movimento aos traços criados. Figura 1 Representação gráfica do processo criador MONZON, 2015 Inicia, passa, passa de novo, revisita, escolhe, erra, marca, reescolhe, segue... (MONZON, 2015, p. 53) Seguindo o percurso sobre a questão do registro de processos criadores, percebe-se que tais apontamentos encontram-se em complementação com a questão dramatúrgica. Os caminhos e percursos traçados no processo criador e os registros feitos de maneira textual, visual, sonora ou corpórea influenciam e auxiliam notoriamente em como a dramaturgia será construída. O texto ou escritura de uma dramaturgia em processo não precisa necessariamente ser composto de maneira dialógica, mas pode estar permeado de imagens, impressões, roteiros não lineares, desenhos, sons e partituras musicais, enfim, de todos os traços surgidos durante o processo criador e escolhidos para serem compartilhados pelo grupo de artistas. Assim, a ponte entre registro do processo criador e registro dramatúrgico, seguindo a base para a dramaturgia em processo, traça o seguinte percurso, a partir dos escritos de Josette Féral: 1) O caráter inacabado da obra e da dramaturgia, com lacunas em aberto; 2) A característica performativa até mesmo da criação, em que o processo criador e o espetáculo não possuem uma linha divisória de início e fim, pois se entrecruzam; 3) Não ter mais a figura do diretor e do dramaturgo como centralizadora de escolhas, mas com a 36 Revista aspas Vol. 5 n
9 Dramaturgia em processo proposta de múltiplos colaboradores; 4) Tendência à retomada de processos criadores e de obras próprias ou de outros artistas; 5) Presença do espectador no acontecimento como parte ativa do processo criador e do espetáculo. A dramaturgia em processo Segundo Eugênio Barba (2010), a dramaturgia não se refere apenas a uma composição literária imbuída de temas, situações e contextos, propostos antes ou depois da cena. Além de tudo, trata-se de uma prática que lida com a complexidade do todo da cena e seus elementos. É como se o fazer teatral e a composição dramatúrgica não estivessem atrelados somente ao espetáculo, mas a tudo que envolve a criação. Essa dramaturgia dimensiona a questão da experiência teatral além do espetáculo e lida com a participação sensorial e de construção de sentido por parte do público, em um constante preenchimento de lacunas. Ao tratar de uma dramaturgia em processo, permeia-se um estudo sobre o processo criativo do ator e todos os elementos que utiliza na composição de uma partitura escrita com o corpo. Apesar de muitas vezes não se tratar de um processo de escrita clássica, tem como ponto de partida o ofício de composição, tessitura e montagem de espetáculos, e não necessariamente precisa ser finalizado em forma de texto, ou seja, a dramaturgia é composta mesmo sem o registro. Para entender melhor o termo mais ramificado de dramaturgia, é necessário dissociá-lo em dois conceitos: partitura e subpartitura. A partitura é composta pelo ator para fazer parte da teatralidade da cena. No seu processo de composição, o ator experimenta, questiona, improvisa, joga, reage e, por fim, faz escolhas pessoais e coletivas. É um trabalho que, apesar da figura do diretor e do dramaturgo, exige um olhar interno concomitantemente ao olhar externo. A subpartitura possui extrema importância, pois lida com um campo mais sutil, com relação ao acontecimento teatral, mas que serve de base para toda a sequência de partituras realizadas pelo ator. A subpartitura lida com o plano do invisível, porém não se encontra de maneira dissociada da partitura, ou seja, não há lugar onde começa uma e termina a outra. A subpartitura está presente em todos os níveis da criação, desde a escolha dos materiais, no Revista aspas Vol. 5 n
10 Ana Carolina Monzon início do processo, até a escolha do treinamento e técnicas de corpo e voz. É a subpartitura que fornece base para todas as improvisações dos atores e faz a ponte entre pensamento e prática, ou, ainda, entre os pontos de vista do ator, do diretor e do dramaturgo. A subpartitura se torna o fio condutor invisível que une as partituras de ações. Sem a subpartitura, as partituras tornam-se apenas gesticulações, movimentos e deslocamentos casuais. Esse fio invisível auxilia o espectador na construção de seus sentidos e significados. A dramaturgia do ator, por obter um caráter de dramaturgia orgânica ou dinâmica que orquestra os ritmos e dinamismos que afetam o espectador a nível nervoso e sensorial, trata-se de uma escritura corporal mais performática do que de uma escritura textual. O texto ou escritura construído pela dramaturgia do ator é fonte de estudo de vários teóricos. Como lida com um hibridismo de formas de expressão, relaciona-se com pensadores de teatro, performance, dança, música, dança-teatro, iluminação, sonoplastia, encenação e cenografia. Fernandes (2001) reflete sobre a questão do texto contemporâneo: Talvez o exemplo mais radical dessa dupla autonomia da escritura dramática e da escritura cênica, sejam as peças de Heiner Müller supostamente encenadas por Bob Wilson. A verdade é que as montagens de Müller por Wilson tinham pouca semelhança com o que se entende por encenar um texto dramático. O artista americano gravava a íntegra das peças do dramaturgo e as exibia ao público como trilha sonora da escritura cênica. Na realidade, o que se via no palco era a justaposição do texto do dramaturgo no espaço sonoro e do texto do encenador no espaço cênico, literatura e teatralidade justapostas para criar um sentido aberto, que cabia ao espectador completar. (FERNANDES, 2001, p. 71) O texto cênico ou escritura cênica permite mais autonomia para o ator e o diretor sobre o espetáculo ou performance. O texto, ou a dramaturgia contemporânea, ao longo de seu processo de justaposição do texto literário para o texto cênico, teve de incorporar a nova materialidade da cena. A dramaturgia do ator é resultado de um processo inaugurado no início do século XX, com Stanislavsky, Meyerhold e Grotowsky 3 questionando maneiras de como 3. Stanislavski, Meyerhold e Grotowisky criaram importantes métodos para a pesquisa e trabalho do ator, os quais servem de suporte até os dias atuais. 38 Revista aspas Vol. 5 n
11 Dramaturgia em processo o ator poderia ser menos submisso ao texto e, por sua vez, mais verdadeiro em sua função. Os mesmos encenadores já refletiam também sobre a questão dos registros de processos criadores. Apesar da preponderância da montagem de textos escritos previamente por dramaturgos renomados e da pouca existência da dramaturgia composta coletivamente, já havia o intuito de se tratar o ator como parte integrante da composição de espetáculos. Muitos registros de encenação auxiliaram na construção e composição de dramaturgia no trabalho de encenadores e de dramaturgos renomados como Bertolt Brecht, Cristopher Marlowe, Samuel Beckett, Goethe e Jean Genet. Os mesmos dramaturgos tinham a prática de registrar seus processos criadores em forma de textos, impressões, poesias, desenhos e perguntas. Tais traços eram utilizados na reescrita da dramaturgia, seja pós-espetáculo ou na sua reatualização entre uma apresentação e outra. Bertolt Brecht, na composição da dramaturgia de seus espetáculos, conseguia fazer a ponte entre registro e encenação. A cada ensaio fazia modificações no texto, e, a cada apresentação, de acordo com a contextualização do espaço de representação, efetuava atualizações no texto e na cena. Os atores de seus espetáculos tinham a função de materializar suas ideias e estimular mudanças na cena. A dramaturgia do ator aparecia mesmo de maneira mais sutil. Dessa forma, percebe-se o caráter performático da dramaturgia surgindo aos poucos desde o século XVIII e prosseguindo como uma dramaturgia em processo até os dias atuais. Considerações finais Neste artigo procurou-se refletir acerca da questão histórica da dramaturgia em processo e sua relação com a pesquisa do trabalho do ator sobre si. A escolha dos materiais, o processo criador de traços e a dramaturgia de um ator que compõe partituras e subpartituras foram as bases escolhidas para tratar da dramaturgia em questão. Propõe-se, assim, uma visão mais ramificada para a dramaturgia contemporânea, com formas distintas de registro do texto dramatúrgico. Essa questão possui como argumento a multiplicidade de materiais de criação, que Revista aspas Vol. 5 n
12 Ana Carolina Monzon perpassam o universo textual e que trabalham com o corpo como materializador da ação. Nesse sentido, amplia-se igualmente a relação entre ator e público, este último enquanto participante da ação cênica, tornando a dramaturgia um constante processo de atualizações. Referências bibliográficas BARBA, E. Um amuleto feito de memória. Revista do LUME, Campinas, n. 1, Queimar a casa: origens de um diretor. São Paulo: Perspectiva, BRECHT, B. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, BONFITTO, M. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, FÉRAL, J. A fabricação do teatro: questões e paradoxos. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Editora da UFRGS, v. 3, n. 2, p , FERNANDES, S. Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo. Sala Preta, São Paulo, v. 1, p , MARINIS, M. de. Drammaturgia Dell Attore. Coleção teatro eurasiano, n. 3, Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro, MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, MONZON, A. C. B. Dramaturgia do ator: vivências, experiências e construção de sentido a partir de diferentes materiais f. Dissertação (Mestrado em Artes) Programa de Pós-Graduação em Artes, Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, RYNGAERT, J. P. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, Recebido em 15/08/2015 Aprovado em 30/09/2015 Publicado em 21/12/ Revista aspas Vol. 5 n
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