Algumas perguntas frequentes sobre tipografia, respondidas por Priscila Farias [atualizado em março / 2001]

Transcrição

1 Algumas perguntas frequentes sobre tipografia, respondidas por Priscila Farias [atualizado em março / 2001] 1. Breve biografia: Priscila Farias (nascida em São Paulo, 1964) é designer gráfica formada pela FAAP (1985) e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP (1998), onde desenvolve atualmente sua pesquisa de doutorado. Morou em Florença (Itália) durante três anos (de 1985 a 1988), onde trabalhou no escritório de design gráfico Grafitti, e fundou o grupo e galeria de arte multimídia 'Pat Pat Recorder '. Voltando ao Brasil, passou a fazer parte da equipe editorial responsável pela revista de quadrinhos 'Animal', e publicou suas HQs em diversas revistas, como a 'Chiclete com Banana', 'Monga', 'Lucifer' e 'Brazilian Heavy Metal'. Atua como designer gráfico, principalmente nas áreas de design editorial e design tipográfico. É autora do livro "Tipografia Digital: o impacto das novas tecnologias" (Rio de Janeiro : 2AB, 1998), e de diversos artigos sobre tipografia publicados nas revistas Design Gráfico, Boletim ADG, Tupigrafia, e em anais de congressos. Suas fontes digitais são distribuídas pela fundição norte-americana [T-26]. Foi membro da diretoria da ADG (Associação dos Designers Gráficos), onde hoje coordena a Comissão de Design e Tecnologia. Esta comissão foi responsável pelo primeiro evento de tipografia digital no Brasil, o 3º Simpósio de Design e Tecnologia: Tipografia Digital, realizado em Quando e por que você começou a trabalhar com tipografia digital? Eu me interesso por tipografia desde pequena (até hoje guardo um catálogo de fotoletras da década de 70, que era do meu pai), e por tipografia digital desde que operei um computador pela primeira vez. Isso foi em 1986, quando eu morava na Itália -- um amigo meu tinha um Comodore e uma impressora matricial, com os quais produzíamos convites, fanzines e catálogos para a nossa galeria de arte, chamada Pat Pat Recorder, e freqüentemente desenhávamos letras em bitmap (nunca geramos uma fonte completa, porém). Em 1995 eu comecei minha pesquisa de mestrado, sobre tipografia. No mesmo ano comprei o programa Fontographer, e produzi minhas primeiras fontes digitais. A primeira fonte que criei chamava-se 'Dangi', e fazia parte do projeto de identidade para um restaurante, desenvolvido pelo escritório de design Mattar Design, de São Paulo. A segunda chama-se Priscript. Como o nome sugere, é baseada em minha própria letra de mão, mais especificamente a letra que uso para legendar histórias em quadrinhos. Desde então, tenho alternado projetos sob encomenda para clientes (como a Mattar Design, The Walt Disney Company Brasil, Instituto Mackenzie e Editora Globo) com projetos mais pessoais ou experimentais. Estes últimos são distribuídos pela [T-26]. 3. Como você define tipografia? Defino tipografia como "o conjunto de práticas subjacentes à criação e utilização de símbolos visíveis relacionados aos caracteres ortográficos (letras) e para-ortográficos (números, sinais de pontuação, etc.) para fins de reprodução, independente do modo como

2 foram criados ou reproduzidos." Esta definição está nas páginas do meu livro, "Tipografia Digital". 4. Quais os fatores primordiais na criação de um novo tipo? Conhecimento da linguagem tipográfica e domínio das técnicas de produção e execução. E boas idéias, é claro. 5. Você acha que a legibilidade continua a ter um papel importante no desenvolvimento de novos tipos? A legibilidade sempre será um fator a ser levado em consideração, embora em alguns tipos de trabalhos (sinalização de aeroportos ou estradas, por exemplo) ela seja um fator mais relevante do que em outros (um editorial de moda, por exemplo). 6. Você acha que a tipografia pode ser considerada como "Arte"? Depende um pouco da sua definição de "Arte", mas, de um modo geral, qualquer trabalho de design experimental pode ficar muito próximo ou mesmo ultrapassar a fronteira entre design e arte. 7. Como você desenvolve uma nova fonte, faz alguns rabiscos, ou faz diretamente no computador? Depende muito do tipo de trabalho, mas geralmente faço pelo menos alguns rabiscos antes de passar para o computador. 8. Quais os programas que você utiliza para desenvolver as sua fontes? Utilizo os softwares Illustrator (para definição dos contornos), Fontographer (para edição de bitmaps, atribuição de valores de espaçamento e kerning, e geração de fontes), Style Merger e ResEdit (para criar famílias de fontes). Eventualmente, utilizo também o Streamline para transformar imagens desenhadas em papel em curvas digitais. 9. De todas as suas criações, qual a fonte que você mais gostou de criar? A Cryptocomix. 10. Você já desenvolveu algum alfabeto institucional?

3 Estou desenvolvendo um, para o Mackenzie, em parceria com a Mattar Design. 11. Conhece alguns designers que "só" desenvolvem alfabetos Institucionais? Quais? Não. 12. Como você vê esse boom de tipógrafos digitais que ocorreu nesta década? O crescente interesse pela tipografia nas últimas duas décadas foi em grande medida incentivado pelo desenvolvimento das tecnologias digitais. A prática da tipografia pode ser dividida em etapas que vão da criação à utilização de tipos, passando por sua produção e distribuição. Estas duas últimas sempre estiveram nas mãos de grandes empresas especializadas devido à complexidade das tecnologias envolvidas nos processos de produção a quente (tipos moveis, linotipo) e a frio (fotoletras, fotocomposição, caracteres transferíveis). Por um lado, isso fazia com que a utilização de tipos ficasse limitada aos catálogos e restrições técnicas oferecidas pelas gráficas e empresas de fotocomposição. Por outro, limitava o campo da criação ou design de tipos a poucos especialistas. As tecnologias digitais possibilitaram a fusão destas etapas. Em prática, qualquer pessoa com um computador, os softwares certos, uma conexão para a Internet, e um tanto de paciência, pode criar, produzir e distribuir suas próprias fontes. No que se refere ao uso da tipografia, isto se reflete em um extraordinário aumento tanto na quantidade de fontes disponíveis quanto na facilidade de aquisição e uso das mesmas. Mas tudo isso não significa, necessariamente, um aumento geral na qualidade do que é produzido -- a qualidade ainda depende da sensibilidade e responsabilidade de cada designer. 13. Qual a importância da tipografia na profissão do designer? Enorme. Basta lembrar que o termo graphic designer foi utilizado pela primeira vez por um tipógrafo (o norte-americano William Addison Dwiggins) para definir seu campo de atuação. E também que são raras as ocasiões onde desenvolvemos trabalhos que não incluem textos, palavras, ou ao menos uma ou duas letras (ou números, ou símbolos). Isso não quer dizer que todo designer gráfico deva ou mesmo possa ser um grande designer de tipos. Mas com certeza todo bom designer gráfico deve ter uma grande sensibilidade para escolhas tipográficas. Em uma época onde podemos escolher entre milhares de fontes, e ainda temos a possibilidade de ajusta-las para nossos projetos, não existem desculpas para escolhas mal feitas. 14. E necessário anos de estudo para se criar uma família de tipos ou qualquer um está possibilitado a criar uma?

4 As ferramentas necessárias hoje estão disponíveis para qualquer um. Isso significa que qualquer pessoa que aprenda o básico do Fontographer pode gerar um arquivo digital que funciona como uma fonte. Exatamente por este motivo, o que vai diferenciar um arquivodefontequalquerdeumaboafonteéabagagemculturaleasensibilidade de quem está desenhando esta fonte. Um bom conhecimento de história da tipografia e familiaridade com as convenções da linguagem tipográfica são imprescindíveis para a criação de uma boa fonte de texto, e bastante importantes mesmo para a criação de uma fonte mais excêntrica. 15. Qual a receita para a execução de uma boa família de tipos? :-) Se existisse uma receita, provavelmente já existiria um software que criaria automaticamente boas famílias de tipos. O maior problema não é tanto definir o que é uma família de tipos, mas o que é boa. 16. Quais as fontes de pesquisa e inspiração para se criar uma fonte? Isso depende muito do tipo do trabalho. É difícil dizer o que é uma fonte de inspiração -- pode ser tanto uma letra vista na rua ou em um livro quanto algo que não tem nenhuma ligação óbvia com a tipografia. Acredito que a característica mais interessante do que chamamos de inspiração está exatamente em encontramos uma ligação entre coisas que antes pareciam completamente isoladas. Fontes de pesquisa são bastante fáceis de definir uma vez que tenhamos identificado algum problema específico. Por exemplo, se quisermos desenvolver uma fonte gótica, as fontes de pesquisa serão livros sobre a história da escrita e da caligrafia, ou se possível, manuscritos originais do século XIII. 17. Uma fonte boa para impressão também é boa para Web? Por que? Não necessariamente. Isso ocorre porque, em muitas fontes digitais, existe uma incompatibilidade entre as medidas fracionárias utilizadas na definição dos contornos e do espaçamento de uma letra, e a modularidade dos pixels utilizados para a construção de qualquer imagem em uma tela de computador. Ao traduzir estas medidas em pixels (que não podem ser divididos), podem ocorrer anomalias tanto no espaçamento quanto no contorno dos caracteres. O efeito anti-alias busca exatamente minimizar uma destas anomalias -- o aspecto serrilhado dos contornos de uma imagem construída com pixels --, mas pode ser desastroso se estivermos utilizando letras em corpos pequenos. A única solução eficiente é construir os contornos a partir dos bitmaps dos caracteres. 18. O que define uma boa fonte? Acredito que podemos avaliar uma fonte segundo três aspectos: técnicos, estéticos e conceituais. Os primeiros referem-se às características técnicas da edição e formatação do

5 arquivo de fonte: o arquivo é econômico? as medidas são consistentes? o conjunto de caracteres está completo? os bitmaps foram editados?. Os aspectos estéticos são mais subjetivos, e muitas vezes relativos ao uso que desejamos fazer desta fonte. Algumas perguntas genéricas seriam: existe coerência interna entre os caracteres desta fonte? como ela se comporta em uma mancha de texto?. Ao avaliar os aspectos conceituais, devemos partir da compreensão do fato de que qualquer fonte está de alguma forma em diálogo com algum aspecto da história (mesmo que recente) da tipografia. Levando em consideração o fato de que hoje existem milhares de fontes, pergunta básica é: qual é a contribuição desta fonte para o corpo dos trabalhos tipográficos?. Uma avaliação dos aspectos conceituais deve incluir também uma questão eminentemente ética: trata-se de um trabalho original ou simplesmente de uma cópia ou apropriação indevida do trabalho de algum outro designer?. 19. Depois de uma década de experimentação, temos agora um retorno as fontes clássicas de boa leitura. Como você vê essa transição? É uma transição natural. Se observarmos a história da tipografia, veremos que sempre existiram momentos de experimentação, seguidos por momentos de retorno aos ideais clássicos de harmonia e proporção. É interessante observar que isso ocorre exatamente em um período onde o experimentalismo caótico das décadas de 80 e 90 foi incorporado à propaganda e aos veículos de comunicação de massa (especialmente aqueles destinados ao público jovem). Será que a tipografia contemporânea amadureceu e resolveu se conformar aos ideais anteriores? Ou será que esta é apenas uma reação de inconformismo à massificação de sua estética? Ou será que simplesmente estamos cansados de ver tantas fontes divertidas para títulos e nenhuma para texto que tenha um ar realmente contemporâneo? Eu adoto a terceira hipótese. 20. Quais as melhores fundições digitais e quais o melhores tipógrafos pelo seu ponto de vista? Meus catálogos de cabeceira :-) são os da [T-26], Emigre, e FontFont. Também gosto muito das fontes editadas pela Fuse. Meus tipógrafos contemporâneos favoritos são Zuzana Licko (Emigre), Luc(as) de Groot (FontFont), e Jim Marcus ([T-26]). 21. Existem bons tipógrafos no Brasil? Existem bons designers gráficos que desenham fontes (eu mesma me incluo nesta categoria), e boas fontes. Mas não bons tipógrafos em um sentido mais estrito (pessoas que se ocupam exclusivamente do design de fontes). Isso se deve, em grande parte, a problemas históricos. Não existe uma tradição tipográfica brasileira (e nem mesmo portuguesa), e conseqüentemente isso traz lacunas de formação, com significativos reflexos no mercado. Até mesmo os designers gráficos brasileiros tem dificuldades em apreciar o trabalho de um designer de tipos. Este panorama, contudo, tem mudado significativamente nos últimos anos.

6 22. Existe mercado para uma fundição digital no Brasil? Acredito que sim, desde que esta fundição ofereça fontes que possam competir (em todos aqueles aspectos que mencionei na resposta à pergunta 18) no mercado internacional. 23. O que é para você um bom trabalho tipográfico? Poderia dar exemplos? No que se refere ao design de tipos, vale a resposta que dei à pergunta 9. Alguns exemplos seriam as famílias Base, de Zuzana Licko; e Thesis de Lu(cas) de Groot; as fontes Beowolf de Just Van Rossum & Erik Van Blockland (FontFont); e Peecol de Kai Vermehr & Steffen Sauerteig (FontFont). 24. Como você vê a pirataria no mercado de tipos? Acho que o tipo mais lamentável de pirataria (e mais comum no Brasil) é a pirataria ingênua: muitas pessoas simplesmente não entendem que uma fonte é um software, sujeito às mesmas restrições em seu uso e duplicação. Acham que as fontes vem no computador, e por isso podem ser copiadas sem problemas. Isso acontece mesmo entre profissionais do design gráfico, o que é ainda mais lamentável e mais grave. 25. Você atualmente está envolvida em vários projetos de palestras e cursos envolvendo tipografia digital, como está sendo a recepção do meio? Muito boa. Sinto que existe um interesse crescente a respeito de tipografia, principalmente entre estudantes e jovens designers, o que é muito estimulante e encorajador. Espero que esta seja uma geração de designers mais tipograficamente inteligente do que a anterior. 26. Você está atualmente desenvolvendo outros projetos ligados à tipografia? Estou preparando um glossário de tipografia que será lançado em breve pela 2AB, e artigos sobre tipografia vernacular para a revista Tupigrafia. Também tenho desenvolvido projetos sob encomenda. Os últimos foram uma fonte dingbats para a revista Globo Rural, e a customização de fontes para um novo projeto de identidade do canal Cinemax desenvolvido pela produtora paulista Vetor/Lobo. Além disso, estou coordenando um novo evento de tipografia promovido pela ADG, que deverá ocorrer no segundo semestre de 2001.