Entre o insuportável da recusa e o excesso da orexia: a ética da oralidade e as queixas alimentares na clínica psicanalítica com crianças.
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1 Entre o insuportável da recusa e o excesso da orexia: a ética da oralidade e as queixas alimentares na clínica psicanalítica com crianças. Dione de Medeiros Lula Zavaroni Renata de Leles Rodrigues Ana Luiza Henriques Samarcos A clínica psicanalítica com crianças é cenário de queixas relacionadas ao malestar vivido em torno da amamentação e da alimentação por pais e crianças. É comum o relato de pais que falam de seu sofrimento e preocupação diante da recusa de seus filhos em aceitarem a alimentação. Como é mencionado, por exemplo, no "Caso Raquel" (Rabelo e Zavaroni, 2010), uma menina de 8 anos que é trazida para atendimento porque recusava vários tipos de alimentos. Com relação aos primeiros momentos da alimentação, a mãe lembra, com muito sofrimento e tristeza, que não conseguiu amamentar a filha durante o primeiro mês de vida. Ao longo do atendimento de Raquel e das sessões com os pais, outros elementos associados à recusa começam a surgir. Os pais afirmam que Raquel é muito tímida e que possui dificuldade de relacionar-se com outras crianças. Por outro lado, outros pais trazem queixas relacionadas ao desconforto diante da recusa dos filhos em aderirem a uma dieta prescrita. Aqui, é o caso de Aline (Nunes e Zavaroni, 2010) que nos ilustra outro lado das queixas alimentares na infância: o excesso da ingestão alimentar e a recusa de seu controle. Aline é uma menina de 8 anos com um quadro de obesidade. Várias dietas foram prescritas, sem muito sucesso, segundo a mãe, principalmente, pela recusa da criança em aderir às dietas propostas. Sua mãe a trouxe para atendimento psicológico porque se preocupa com a obesidade da filha, que já gerou um alto nível de colesterol e outros problemas de saúde. Outras queixas foram mencionadas, como os ciúmes exagerados de Aline em relação à mãe e os incessantes pedidos da presença materna feitos pela criança. Nas sessões de escuta da mãe aparecem dificuldades maternas em estabelecer limites à filha. Além disso, a mãe relata medo de que a filha, futuramente, sofra bullying por ser negra e obesa. Junto a estas falas, aparecem conteúdos relacionados a atitudes superprotetoras da mãe em relação à filha. A escuta das inquietações em relação à alimentação na clínica psicanalítica com crianças nos faz pensar na particularidade de cada um destes casos. Em geral, as queixas em torno da alimentação vêm compor uma dinâmica onde o alimento entra como 1
2 elemento essencial da economia psíquica da criança, de seus cuidadores e da relação entre os sujeitos da díade ou mesmo da tríade. Inseridos em uma complexa trama psíquica e relacional, as queixas e sintomas relacionados à alimentação impõem que possamos compreender minimamente os elementos que se entrelaçam. Recalcati (2010) chama atenção para pensarmos as manifestações dos transtornos alimentares, em especial a anorexia e a bulimia, de forma não generalizadora. A crítica que este autor nos traz sobre às classificações psiquiátricas destes transtornos nos alerta para o encobrimento do sujeito e nos convoca a pensá-los a partir da singularidade do sujeito que sofre. Posição semelhante é defendida por Debray (1988), que afirma existir tantas formas de anorexia, quer seja primária ou secundária, quantos bebês por ela atingidos, e o distúrbio em si mesmo não é senão um aspecto de um quadro muito mais geral que só se esclarecerá se considerarmos os dados essenciais que contribuem para regular a economia psicossomática do bebê, de sua mãe, e até segundo o caso, de seu pai (p. 78). Na clínica psicanalítica com crianças, também é fundamental pensarmos que, embora exista certa uniformidade nas manifestações sintomáticas e nas características relacionais existentes entre as crianças que apresentam transtornos da alimentação e seus cuidadores, do ponto de vista do lugar ocupado por este sintoma na dinâmica psíquica destas crianças, é preciso pensá-lo dentro da singularidade da história e do desenvolvimento pulsional de cada uma delas. Neste sentido, podemos afirmar que, a partir da psicanálise, os transtornos alimentares não se apresentam como uma estrutura psíquica específica, mas como manifestações sintomáticas particulares (Nunes et al., 2006). Por outro lado, compreender os sintomas que se fazem em torno da alimentação requer que possamos anteriormente compreender o lugar que, para além da sobrevivência, o alimentar-se, e antes mesmo, o ser alimentado (condição por excelência do bebê) desempenha na constituição psíquica. Os momentos dedicados à alimentação do bebê ocupam um lugar privilegiado no contexto relacional do bebê com seu cuidador. Desde muito cedo, o cuidador e o bebê se põe em relação através da alimentação. Considerando que um recém-nascido faz cerca de oito sessões diárias de amamentação já do ponto de vista do tempo dedicado ao envolvimento com esta função, podemos afirmar que ser alimentado convocará maciçamente tanto o bebê como seu cuidador. 2
3 Sabemos que a função alimentar na criança é organizada a partir do adulto cuidador. Não apenas no lugar daquele que alimenta, mas o adulto que serve de suporte psíquico e estruturador para a criança. A mãe preocupada excessivamente com o ato de comer ou não comer de seu bebê poderá restringir a alimentação de expectativas reais de ingestão alimentar, fazendo com que as demandas da criança que permeiam a alimentação passem a ser encobertas pelo ato alimentar em si. Com isso, a relação de cuidado se empobrece pela ausência de posturas acolhedoras das inquietações infantis, potencializando conflitos e fazendo aparecer no comportamento alimentar sintomas de um mal-estar psíquico vivenciado pela criança. No caso da recusa em particular, alguns autores (Lacan, 1958; Fuks e Campos, 2010;) propõem que o sujeito que se nega a comer lida com sua recusa como um desejo, como uma tentativa desesperada de se sustentar diante de um outro que lhe invade e, em última instância o inviabiliza. Negar aquilo que a mãe lhe demanda ( seja um bebê perfeito ) através da oferta do alimento seria um modo de existir, de não desaparecer nas demandas imperiosas do outro. Do lado da mãe, na impossibilidade de deparar-se com um bebê real que não reafirma o bebê imaginário reparador de suas próprias impossibilidades e vivências traumáticas inconscientes, se impõe a demanda de que esse bebê lhe garanta a posição materna. Nesta via, a mãe ou seu substituto encontra-se impossibilitada de acolher as demandas postas pelo bebê, pois se encontra ela própria às voltas com demandas imperiosas. Dentro de uma compreensão relacional, no contexto da alimentação de bebês e crianças pequenas soma-se um elemento diferenciador fundamental. Durante seus primeiros anos de vida, a ação específica de alimentar a criança não pode ser realizada por ela própria. O desconforto gerado pela fome, só poderá ser aplacado a partir da ação do adulto que interpreta seu pedido e a ela dirige a ação de alimentá-la. O modo como o adulto interpreta as demandas alimentares e, em consequência, o modo como este adulto alimenta o bebê será fundamental no modo como este ato será incorporado ao repertório psíquico deste bebê. Por outro lado, estudos revelam que desde a amamentação, a criança tem um papel ativo controlando quando, como e quanto ingerir do leite materno (Drewtt, 2010). Além disso, a ação do adulto é mobilizada a partir de um "chamado" do bebê que através do seu choro, o convoca. Ou de seu silêncio, que nada demanda. Estes são aspectos fundamentais que nos fazem pensar no lugar deste bebê que muito precocemente manifesta seus desejos, demandas e angústias através da recusa ou da aceitação do alimento oferecido. Por parte do bebê, nos meandros da possibilidade de 3
4 demandar, recusar, sentir prazer ou desprazer durante ou após uma sessão alimentar, encontram-se vias importantes de sentir a si e ao outro que lhe escuta, interpreta, demanda, espera ou impõe. Será na cena alimentar que o bebê vivenciará relevantes experiências iniciais de prazer e desprazer. A alimentação, sobretudo nos momentos iniciais da constituição psíquica, perde seu estatuto puramente orgânico e ascende à condição de importante via da constituição psíquica. Freud (1950[1895]/1980; 1926[1925]/1980) nos ensina que o psiquismo subverte a função da alimentação e a transforma no campo por excelência onde o bebê encontrará os elementos essenciais da sua constituição psíquica e, de modo mais radical, de sua humanização. Em seu trabalho "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905) afirma que ao longo de nossa existência permaneceremos na busca da revivência da experiência primeira de satisfação e afirma: a primeira e mais vital das atividades da criança - mamar no seio materno (ou em seus substitutos) - há de tê-la familiarizado com esse prazer. (...) A princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apoia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. (...) A necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se então da necessidade de absorção de alimento (p. 186). A partir de Freud, podemos compreender que a "queixa alimentar" sustenta uma demanda que se instala para além da sobrevivência e dos ditos de uma dieta e de um corpo saudável, apontando para uma ética do desejo e do prazer, que se sustenta nos meandros do percurso pulsional da vida psíquica da criança e de seus pais. Neste mesmo trabalho, Freud (1905) aponta que o semblante de saciação do bebê após a amamentação " persiste como protótipo da expressão da satisfação sexual na vida ulterior" (p. 186). O que acrescentamos às observações freudianas é que o êxtase pela saciedade não se dá apenas do lado do bebê, mas também do lado materno que reatualiza na amamentação do seu bebê suas experiências inconscientes de prazer e desprazer vividas em sua própria relação com o seio materno. Acolher o bebê ou a criança em sua aceitação ou recusa, exigirá da mãe que elementos de sua própria sexualidade possam ser (re)colocados em cena. Assim, será no emaranhado de um corpo pulsional que a função alimentar irá se constituir. Lá, onde Freud (1915) introduziu a noção de um processo limítrofe que se 4
5 situa entre o físico e o psíquico. É exatamente nesta condição limítrofe que situamos a alimentação do bebê. Assim, a partir do conceito de pulsão em Freud, situamos a compreensão das questões que envolvem a alimentação na infância como um processo e como uma função limite. Limite entre a mãe e o seu bebê real e o bebê imaginário, entre a mãe e o bebê que ela foi, entre o bebê e o alimento. Limite entre o corpo materno e o corpo do bebê, entre a fome e o desejo de ambos. Limite ainda entre o dentro e o fora que o bebê constitui a partir da incorporação do leite e do amor em forma de leite (Zavaroni, Viana e Ammaniti, 2011). A função de incorporação do alimento sustenta gradativamente o processo de diferenciação do bebê de sua mãe. Possibilitar que este processo se efetive passa necessariamente pela disponibilidade da mãe de vivenciar esse processo de diferenciação entre ela e seu bebê. Diferenciação que será em úlitma instância mediada por um corpo que será gradativamente afastado de si no percurso que a criança fará da amamentação à alimentação autônoma. Embora a recusa e a falta de apetite sejam muitas vezes colocadas em oposição ao excesso e à orexia, ambas as posições apontam para aspectos pulsionais onde a necessidade cedeu lugar ao desejo, ou como falta/recusa ou como excesso/incorporação de um objeto/alimento/amor. No centro desta dinâmica estão elementos complexos da constitução psíquica da criança e da revivência inconsciente de experiências precoces desta mãe. Para Melanie Klein (1952) a relação de prazer do bebê será muito mais significativa com quem oferece a comida do que com a comida em sim. Além disso, de acordo com a autora, o mamar é a primeira experiência de satisfação do bebê depois do trauma do nascimento, ajudando a superá-lo e gerando confiança e segurança no bebê. Klein irá afirmar que a base de patologias como a obesidade e a anorexia, encontram-se nesse estágio de vida. Segundo ela, se o seio bom demora muito a aparecer e o bebê se relaciona intensamente com o seio mau, duas coisas podem acontecer: ou ocorre o aumento da voracidade e dos impulsos destrutivos, de forma que quando o seio bom aparece o bebê mama mais do que precisa pois não sente segurança de que esse seio voltará; ou ocorre a desistência e com isso a inibição da voracidade, de forma que quando o seio bom aparece o bebê não está mais ávido por mamar. Na clínica, é frequente a associação entre a imagem da boa mãe e o êxito na alimentação do bebê. Esse mesmo aspecto desponta como um relato fundamental nos primeiros dados da pesquisa "Os transtornos alimentares na Infância: fatores de risco, 5
6 prevenção e clínica" 1. Em muitos casos, a possibilidade de amamentar ou alimentar adequadamente o bebê ocupa na mãe a referência materna por excelência, e por estar estreitamente relacionada à sobrevivência física do bebê, mobiliza, muitas vezes, as fantasias inconscientes de destruição e aniquilamento da criança, gerando na mãe angústias impensáveis que a impedem de perceber e de interpretar as demandas de amor do bebê, para além dos seus ciclos de fome e saciedade. A clínica nos mostra que um bebê que não come coloca em cena elementos do narcisismo materno, fazendo a mãe questionar-se sobre sua capacidade de cuidar de seu bebê e de fazê-lo saudável. Esse era um dos elementos trazidos pela mãe de Raquel, no caso acima mencionado, sempre que em sessão ela retomava a história da impossibilidade de amamentar sua filha no primeiro mês de vida. Winnicott (1988) irá falar da importância do lugar materno na sustentação do desenvolvimento emocional da criança sobretudo através dos conceitos da mãe suficientemente boa e da preocupação materna primária. Este autor sublinha que, desde a gravidez, a mulher desenvolve um estado identificatório com seu bebê que a permitirá construir saberes de proteção ao mesmo. Segundo Winnicott, quando a mãe não é suficientemente boa, o bebê é forçado a uma falsa existência e podem ocorrer sintomas de irritabilidade generalizada e distúrbios de alimentação. A relação funciona como um espelho, o bebê se vê naquilo que a mãe vê. Com isso, eles (mãe e bebê) nascem juntos. Para este autor, é a partir da amamentação que se estabelece o padrão da capacidade da criança de relacionar-se com o mundo. O início da relação objetal revelase no início da alimentação, ou seja, a maneira como o bebê relaciona-se com o mundo real baseia-se na maneira como as coisas iniciam-se e no padrão que se instaura gradualmente ao decorrer da alimentação (Winnicott, 1968 [1967]). Na clínica, o resgate desta história inicial do bebê e dele com seus adultos cuidadores são fundamentais para a compreensão dos sintomas que se enlaçaram ao redor da alimentação. Neste contexto, a escuta da criança e de seus cuidadores é essencial na construção que viabilizará o desvendamento dos sintomas da alimentação que só poderão ser compreendidos a partir de sua inserção nos tempos de origem do 1 Pesquisa em desenvolvimento no Laboratório de Psicanálise dos Processos de Subjetivação/Departamento de Psicologia Clínica/Unviersidade de Brasília, sob a Coordenação da Psicóloga Dra. Dione Zavaroni, Pesquisadoracolavoradora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura (UnB), e que tem como foco a interação da criança e seu cuidador no contexto da alimentação. 6
7 sujeito quando sua fome se associou ao prazer e ao desejo que a subverteu e tornou possível seu processo de humanização. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS American Psychiatric Association (2000). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-IV-TR), 4th Ed, Text Revised, Washington, DC. Debray, R. (1988). Bebês/Mães em revolta. Porto Alegre: Artes Médicas. Drewtt, R. (2010). Psicologia nutricional da infância. Curitiba: Ippex. Freud, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, vol. VII. Freud, S. (1915). Os instintos e suas vicissitudes. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, vol. XIV. Freud, S. (1924). A dissolução do complexo de édipo. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974, vol. XIX. Freud, S. (1950 [1895]) Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, v. 1, p Freud, S.(1926[1925]). Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas completas de S. Freud. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, v.20, pp Fuks, B.B. e Campos, T.S.P. (2010). Anorexia: da urgência de uma nova prática clínica. Tempo psicanalítico. Rio de Janeiro, v.42.1, p Klein, M. (1952). Algumas conclusões teóricas sobre a vida emocional do bebê. In: Klein, M.; Heiman, P.; Isaacs, S.; Rivieri, J. Os Progressos da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, Lacan, J. (1958/1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos (pp ). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Neves, G. N.; Zavaroni, D. M. L. (2010). Atendimento de orientação psicanalítica em um caso de obesidade infantil. Trabalho apresentado na Rio International Eating 7
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