José Reginaldo Santos Gonçalves Roberta Sampaio Guimarães Nina Pinheiro Bitar. organizadores

Tamanho: px
Começar a partir da página:

Download "José Reginaldo Santos Gonçalves Roberta Sampaio Guimarães Nina Pinheiro Bitar. organizadores"

Transcrição

1

2 José Reginaldo Santos Gonçalves Roberta Sampaio Guimarães Nina Pinheiro Bitar organizadores

3 Copyright by José Reginaldo Santos Gonçalves, Roberta Sampaio Guimarães, Nina Pinheiro Bitar et alii, 2013 Direitos desta edição reservados à MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5º andar Lapa Rio de Janeiro RJ CEP: Tel.: (21) Fax: (21) em coedição com Faperj Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Av. Erasmo Braga, 118, 6º andar Centro CEP: Rio de Janeiro RJ Tel.: (21) Fax: (21) Projeto Gráfico: Núcleo de Arte/Mauad Editora Revisão: Leticia Castello Branco Braun Agradecimento à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Faperj, pelo apoio recebido. Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. A441 A alma das coisas : patrimônio, materialidade e ressonância / [organização] José Reginaldo Santos Gonçalves, Nina Pinheiro Bitar e Roberta Sampaio Guimarães. - Rio de Janeiro : Mauad X : Faperj, Inclui bibliografia e índice ISBN Etnologia. 2. Antropologia. I. Gonçalves, José Reginaldo Santos. II. Bitar, Nina Pinheiro. III. Guimarães, Roberta Sampaio. IV. Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro. V. Título CDD: 306 CDU: 316.7

4 Sumário APRESENTAÇÃO 7 1. O SORRISO IRÔNICO DOS BUDAS: DEMOLIÇÃO E PATRIMÔNIO NO VALE SAGRADO DE BAMIYAN 19 Alberto Goyena 2. O ENCONTRO MÍTICO DE PEREIRA PASSOS COM A PEQUENA ÁFRICA: NARRATIVAS DE PASSADO E FORMAS DE HABITAR NA ZONA PORTUÁRIA CARIOCA 47 Roberta Sampaio Guimarães 3. PATRIMÔNIO E DÁDIVA: AS BAIANAS DE ACARAJÉ NO RIO DE JANEIRO 79 Nina Pinheiro Bitar 4. A VIDA OCULTA DAS PEDRAS: HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DOS OBJETOS NO CANDOMBLÉ 105 Roger Sansi 5. BANDEIRAS E MÁSCARAS: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PESSOAS E OBJETOS MATERIAIS NAS FOLIAS DE REIS 123 Daniel Bitter 6. À MESA COM OS SANTOS: A NOÇÃO DE FARTURA NAS FOLIAS DE URUCUIA (MINAS GERAIS) 155 Luzimar Paulo Pereira 7. UMA BIOGRAFIA DO KÀJRE, A MACHADINHA KRAHÔ 185 Ana Gabriela Morim de Lima 8. AS MORADAS DA CALUNGA DONA JOVENTINA: OBJETOS, PESSOAS E DEUSES NOS MARACATUS DE RECIFE 211 Clarisse Kubrusly 9. ENTRE A RODA DE BOI E O MUSEU: UM ESTUDO DA CARETA DE CAZUMBA 231 Flora Moana Van de Beuque 10. A MORADA E A CASA: MATERIALIDADE E MEMÓRIA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO FAMILIAR 267 Anelise dos Santos Gutterres SOBRE OS AUTORES 293 IMAGENS 297

5 APRESENTAÇÃO As coisas no exílio Para quem não se lembra, A alma das coisas era um antigo programa da Rádio Nacional dos anos 1950, que ia ao ar todas as quintas-feiras, em horário nobre, precisamente às oito horas da noite. Em sua apresentação, o locutor anunciava em tom solene: Contam histórias antigas que Deus nosso senhor deu alma a todas as coisas que se encontram no mundo. As coisas não falam. Se falassem ouviríamos então a alma das coisas.... Logo em seguida, sempre no mesmo tom de voz, anunciava o patrocinador do programa: Através da Rádio Nacional, a fita celulose marca Scotch tem o prazer de apresentar A alma das coisas. Não era um programa religioso, apesar da referência a Deus em sua apresentação. Durava não mais que dez minutos, e nesse espaço de tempo narravam-se histórias imaginárias cujos protagonistas eram objetos materiais cotidianos: um bule, uma árvore de natal, etc. Eram apresentados como se formassem verdadeiras sociedades de objetos, com relações de parentesco, vizinhança, amizade, inimizade e traços de personalidade; eram descritos como se fossem pessoas, com capacidade similar para sentir, pensar, agir, falar e emitir opiniões sobre seu destino e suas relações com o mundo e com o seres humanos. Correndo o risco (e já assumindo o crime) de cometer o que os historiadores chamam de anacronismo, digo que A alma das coisas talvez expressasse certa percepção imaginária do que se conhece no jargão antropológico atual como agência dos objetos. Mas esse certamente não é um tema novo. Afinal, essa percepção, de modo periférico ou central, assumindo contornos semânticos variados, parece estar presente em qualquer sociedade humana. A natureza da relação sujeito objeto, tal como a modernidade ocidental veio a concebê-la, em que os objetos servem tão somente aos propósitos e necessidades de um sujeito soberano, não é algo evidente para a maioria das sociedades existentes no planeta. O espírito das coisas dadas é um tema clássico da Antropologia,

6 e Marcel Mauss, em seu Ensaio sobre a dádiva, soube evocá-lo com sensibilidade e insights duradouros. É o próprio Mauss que, em seu Manual de Etnografia, recomenda cautela aos pesquisadores diante de objetos materiais como um vaso de barro: Frequentemente, o vaso tem uma alma; o vaso é uma pessoa (1967, p. 46). 1 São numerosas as possibilidades de conceber as formas dessa relação entre seres humanos e coisas. Os mitos, o folclore, as narrativas populares, os discursos cotidianos estão repletos de experiências que apontam nessa direção. Para nós, modernos, as coisas não falam; mas para muitas culturas e para muitos grupos em nossas próprias sociedades contemporâneas, o problema não é exatamente que as coisas não falem; é que desaprendemos os idiomas em que se expressam. Pois, se isolamos as coisas na lógica da razão prática, na condição de instrumentos estritamente utilitários ou ornamentais, nos afastamos da possibilidade de estabelecer com elas relações de comunicação. Ao atribuir-lhes uma alma, mesmo que imaginariamente, resgatamos essa possibilidade. É preciso também não esquecer que, enquanto portadoras de uma alma, de um espírito, as coisas não existem isoladamente, como se fossem entidades autônomas; elas existem efetivamente como parte de uma vasta e complexa rede de relações sociais e cósmicas, nas quais desempenham funções mediadoras fundamentais entre natureza e cultura, deuses e seres humanos, mortos e vivos, passado e presente, cosmos e sociedade, corpo e alma, etc. Essa possibilidade nunca desapareceu completamente de nosso horizonte moderno. E, nesse aspecto, Bruno Latour oportunamente nos faz lembrar uma lição clássica dos antropólogos, que, em seus estudos, assinalaram a permanência no mundo contemporâneo do chamado pensamento selvagem (Lévi-Strauss) e das formas de vida não modernas: realmente, nunca fomos modernos (Latour, 2006). Pelos menos, não no sentido de que o processo de secularização teria varrido definitivamente as modalidades do pensamento mágico, através das quais nos conectamos significativamente com a ordem cósmica e social. As coisas podem não falar como nas histórias imaginárias daquele programa radiofônico. Nesse sentido, elas parecem viver uma espécie de exílio. Mas, a exemplo dos deuses pagãos exilados pelo cristianismo e cujos rastros Heinrich Heine (2009 [1835]) encontrava no mundo moderno, é provável que a alma das coisas ainda nos afete secretamente. Sob ângulos diversos, os dez estudos reunidos neste livro nos fazem perceber os efeitos de sua humilde e poderosa presença em nossa vida individual e coletiva. 1 Très souvent le pot a une âme, le pot est une personne (Mauss, 1967, p. 46).

7 A vida social dos patrimônios É vasta a literatura antropológica recentemente dedicada à cultura material (Appadurai, 2008; Tilley et al., 2006; Henare; Holbraad; Wastell, 2007). Os antropólogos anglo-americanos usam a expressão material turn para diagnosticar a renovação do interesse por essa área de pesquisa. Um dos traços dessa nova configuração intelectual é o uso da palavra materialidade, seja no singular ou no plural (Miller, 2005). Evidentemente, quando aqui a utilizamos, não pretendemos designar um dado natural ou um atributo intrínseco aos objetos e lugares descritos e analisados. Trata-se de uma categoria e, portanto, compreensível na medida em que se possam entender os diversos contextos socioculturais em que é usada e de que forma específica. 2 Podemos ampliar essa discussão para a conhecida distinção entre patrimônios materiais e intangíveis, que deve ser entendida nos limites históricos e semânticos dos seus usos pela modernidade ocidental, sem que se possa assumir apressadamente a sua universalidade como um dado. O que pode ser percebido como universal é a relação de oposição entre esses polos (o material e o imaterial), relação essa que varia entre uma demarcação ontológica radical e uma perspectiva em que se explore a relação de simetria entre eles (Latour, 2009) ou seu entendimento através de uma antropologia reversa (Wagner, 2010). Embora resultem de pesquisas realizadas em diferentes contextos socioculturais (no meio urbano, em povoados rurais, em aldeias indígenas), os estudos aqui reunidos 3 mantêm entre si uma evidente afinidade: a descrição etnográfica minuciosa e a análise de diferentes usos de objetos materiais e formas espaciais na vida social: representações materiais de divindades, máscaras rituais, culinária religiosa, espaços urbanos, arquiteturas, casas, imagens. Eles realizam um esforço coletivo de reflexão sobre a natureza da 2 Para uma discussão critica da categoria materialidade, ver o artigo de Tim Ingold, Materials against Materiality, in Being Alive (2011, p ). 3 Os textos reunidos neste livro resultam de teses e dissertações produzidas, em sua quase totalidade, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS /da UFRJ ( e do Núcleo de Antropologia dos Objetos (Nuclao) do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS ( e, que, por sua vez, resultaram na publicação de artigos, capítulos de livro e livros (Gonçalves 2000; 2003 [1996]; 2003a; 2007: ; 2007: ; 2007: 42-63; 2005; 2007: ; 2007a; 2008; 2009a; 2009b; 2009c; 2010; 2010a; 2011; 2011a; Silva, 2007; Kubrusly, 2007; Bitter, 2008; 2010; Pereira, 2009; 2011; Paiva, 2009; Goyena 2010; Nascimento, 2010; Bitar, 2010; 2011; Guimarães, 2004; 2011; Paterman, 2008; Migliora, 2010; Miguel, 2010).

8 relevância desses objetos e espaços nos processos de produção sensível de diversas formas de autoconsciência individual e coletiva. Buscam, desse modo, desvendar o seu papel na vida cotidiana de diferentes segmentos socioculturais e, sobretudo, descobrir de que modo nos ajudam a nos tornar o que somos. Esses estudos descrevem e analisam os usos, deslocamentos, transformações e destruição desses itens, mostrando como esse processo repercute de modo eficaz na experiência corporal e no pensamento de indivíduos e coletividades. Revelam, assim, o quanto somos dependentes, como coletividades e indivíduos, desses processos de produção, circulação, consumo e destruição de objetos materiais e espaços que usamos e frequentamos em nosso dia a dia. Dependentes não apenas quando os consideramos do ponto de vista estritamente utilitário; nem apenas quando os consideramos emblemas de nossas identidades; mas sobretudo dependentes na medida em que neles reconhecemos poderes de agência (Gell, 1998), cujo efeito consiste precisamente na constituição sensível de nossas formas de autoconsciência. Em cada um desses estudos perpassam, explicita ou implicitamente, os usos diversos da categoria patrimônio, explorando suas concepções nativas. Eles mostram que aquilo que poderíamos designar a vida social dos patrimônios inclui necessariamente as diversas formas de recepção e usos de objetos e espaços, assim como seus efeitos sobre aqueles que os classificam na vida cotidiana. Podemos qualificar essas formas de recepção por intermédio da noção de ressonância, de Stephen Greenblatt. 4 No entanto, podemos ir além da estimulante proposição desse autor e qualificarmos a própria noção de ressonância, mostrando seus diferentes significados. 5 A partir dessa perspectiva, é possível perguntar: de que formas os lugares, edificações e objetos materiais oficialmente reconhecidos como patrimônio podem ser experimentados por seus usuários no cotidiano? Como uma espécie de herança exemplar transmitida pelo passado? Como um instrumento de reconstrução presente de suas identidades individuais e coletivas? Como algo a ser negado e destruído (uma espécie de ressonância negativa)? 4 Segundo o historiador Stephen Greenblatt: Por ressonância quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o espectador, o representante (1991, p Tradução de José Reginaldo Santos Gonçalves) 5 Um exemplo brilhante desse procedimento pode ser encontrado em um texto de Antonio Candido, no qual, ao analisar a relação entre textos literários, descreve diferentes formas de ressonância de um texto em outro, ora na forma de inspiração, ora da forma de citação (Candido, 2004).

9 É notório que, nas últimas décadas, a categoria patrimônio vem circulando intensamente em diferentes meios sociais e acadêmicos, podendo evidentemente assumir significados bastante variados. No entanto, é possível, numa perspectiva mais ambiciosa, perceber uma dimensão estrutural nos usos dessa categoria, dimensão talvez presente, sempre de modos diferenciados, em quaisquer formas de vida sociocultural. Essa dimensão consiste no poder de mediação exercido pelos chamados patrimônios. Sejam eles classificados, como é o caso dos contextos ocidentais contemporâneos, como materiais ou imateriais, sua existência se justifica pelo exercício dessas mediações entre diversos domínios sociais e cosmológicos (Gonçalves, 2007). É curioso que, no Ocidente contemporâneo, quando se fala mais e mais de patrimônio imaterial ou intangível, torna-se flagrante a materialidade dos patrimônios. Afinal, como separar a materialidade e a imaterialidade de uma edificação, de uma prática culinária ou de determinadas festas populares? Essa separação, que tão facilmente tomamos como natural, será mesmo de validade universal? Os estudos aqui apresentados nos mostram precisamente essa indeterminação, revelando como, em diferentes contextos socioculturais, essa e outras oposições podem ser desenhadas de formas distintas. O estudo assinado por Alberto Goyena analisa as polêmicas que acompanharam o processo de destruição, por parte dos talibãs, de duas estátuas de Buda no Afeganistão no ano de 2001 e que haviam sido classificadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como patrimônio da humanidade. A partir desse caso, ele levanta alguns questionamentos a respeito das relações entre cultura material e transmissão de identidades coletivas. E ressalta o caráter instável e indeterminado das práticas inseparáveis de conservação e destruição dos patrimônios e sua incessante ressignificação pelos atores envolvidos nesses processos. As narrativas de passado e as formas de habitar que entraram em choque durante o processo de construção de um sítio histórico de origem portuguesa no Morro da Conceição, Zona Portuária do Rio de Janeiro, é o tema do artigo de Roberta Sampaio Guimarães. A autora analisa como, durante esse processo ocorrido entre os anos de 1998 e 2000, planejadores urbanos da prefeitura deslocaram diversos sobrados, logradouros e modos de vida de seu contexto polissêmico cotidiano e os reordenaram discursivamente através da categoria patrimônio, colocando diversos outros itens como margens do sítio histórico imaginado. Como efeito dessa ação, é demonstrado que gerou-se não apenas a afirmação de diferentes memórias e identidades, mas também novos processos políticos, sociais e estéticos, como a criação na

10 região de um memorial e um circuito histórico e arqueológico dedicado à herança africana. O artigo de Nina Pinheiro Bitar aborda a relação entre pessoas e determinado tipo de comida, o acarajé, através da análise do processo de registro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do ofício das baianas de acarajé e a posterior reapropriação nativa de tal política pública. E o faz problematizando a noção de patrimônio, entendendo-a não apenas em termos jurídicos, mas em sua formulação cotidiana por tais baianas no contexto da cidade do Rio de Janeiro. Focalizando o sistema culinário envolvido no ofício, a autora então explora a hipótese de que os objetos materiais não atendem apenas a funções utilitárias; e nem são apenas suportes identitários; mas mediadores e constituidores da vida social, não existindo separadamente dos sujeitos. No artigo seguinte, Roger Sansi analisa, no contexto das religiões afro- -brasileiras, as relações entre iniciados e cultura material. Explora especificamente suas relações com determinado tipo de objeto que, de certo modo, é inseparável do corpo dos iniciados: as pedras ocultas nos terreiros, os otã. Para tanto, explica como essa pedra incorporou diversos e por vezes contraditórios valores dos objetos do candomblé, na Bahia do século XX: desde armas de feitiçaria e sintomas de patologia racial até peças de arte erudita. E tece considerações mais gerais com relação ao papel das noções de historicidade e materialidade como instrumentos fundamentais para entender a vida e a agência desse objeto. No artigo de Daniel Bitter são apresentados a produção e os usos sociais e simbólicos das bandeiras dos santos e das máscaras no contexto do empreendimento festivo das Folias de Reis no Rio de Janeiro. O autor demonstra como tais objetos rituais envolvem amplas teias de reciprocidades sociais através do estabelecimento de um intenso campo de interações e agenciamentos: seja no caso da bandeira, considerada detentora de poderes supramundanos, trazendo bênçãos e graças a quem a recebe em sua casa; seja no caso da máscara, portadora de significados moralmente negativos ao ser usada pelo personagem do palhaço, tipo marcadamente liminar, cômico e ambíguo. Por serem simultaneamente objetivos e subjetivos, materiais e imateriais, o autor mostra como tais objetos caracterizam-se por uma profunda ambivalência, sendo capazes de realizar mediações entre os domínios natural, social e cósmico. O estudo de Luzimar Paulo Pereira nos mostra o papel central da comensalidade nas Folias de Reis em Urucuia, Minas Gerais. Ressalta os momentos

11 das refeições coletivas da festa como etapas primordiais do sistema ritual para saudar os Santos Reis Magos. Através de uma descrição densa das etapas do evento alimentar, o analisa de modo inseparável de relações sociais e simbólicas estruturais da folia. Em especial, o autor destaca a fartura de comida, segundo os devotos, como um dos critérios fundamentais para o sucesso de uma festividade. Demonstra como a relação de dívida e dádiva estabelecida entre os foliões, imperadores e divindades obedece uma sequência ritual que não apenas demarca relações hierárquicas, mas constitui tais relações. O artigo de Ana Gabriela Morim de Lima nos oferece uma diferente perspectiva sobre os objetos etnográficos colecionados por museus. Propõe a análise do caso de um machado cerimonial, o Kajré, guardado no Museu Paulista, e que em 1986 foi reapropriado pela comunidade indígena Krahô. Além de descrever o processo político de repatriamento de tal objeto, a autora faz uma análise dos diferentes mitos de origem que possibilitam múltiplas ressignificações do mesmo objeto. A autora demonstra que tal objeto passa a ser símbolo também de identidade indígena perante a sociedade de brancos e recebe diversas ressignificações. Já o artigo de Clarisse Kubrusly analisa uma série de narrativas biográficas sobre a boneca Joventina, personagem importante dos maracatus do Recife. Nesse caso, tal objeto aparece como mediador de uma série de controvérsias entre o Museu do Homem do Nordeste, maracatus e a antropóloga Katarina Real. A autora explora as negociações de posse dessa boneca pelos maracatus e as diferentes narrativas sobre as origens e usos desse objeto. A partir da boneca Joventina e da experiência de Katarina Real com os maracatus, a autora ilumina diferentes imaginários sobre o que significa um objeto como este no museu. Aponta, assim, a característica fragmentada da biografia de tal objeto, que se mistura com as biografias de pessoas, grupos e instituições. Um outro ponto de vista é oferecido por Flora Moana van de Beuque em seu estudo de objetos utilizados no bumba meu boi do Maranhão, explorando a ideia da circulação de uma máscara: a careta de cazumba. A autora descreve e analisa de que forma tal máscara é classificada neste contexto festivo, focalizando as relações sociais e simbólicas envolvidas. Dentre tais relações, destaca o papel central de um artesão responsável pela confecção da careta de cazumba e de sua trajetória de vida. Assim, propõe o entendimento da máscara e de seu produtor inseridos também em outros contextos que não os festivos, como nos museus. Revela que, através do deslocamento do contexto da festa para o museus, esse objeto e o artesão ou artista popular são diferentemente classificados e ressignificados.

12 O artigo de Anelise dos Santos Gutterres nos desloca para eventos cotidianos. Explora como a biografia de uma casa pode nos levar a pensar as relações de parentesco e projetos de vida. A autora dialoga com duas interlocutoras da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, que relatam as transformações de espaços a partir de suas histórias de vida. Através das narrativas de mudanças de casa, dos espaços da casa e de objetos guardados, aborda a visão de mundo constituída por suas interlocutoras. A autora observa, assim, os esforços simbólicos de controlar a transformação, implícitos no ato de guardar ou não guardar objetos materiais ligados à vida familiar. Rio de Janeiro, verão de 2013 José Reginaldo Santos Gonçalves Roberta Sampaio Guimarães Nina Pinheiro Bitar Bibliografia APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, BITAR, Nina Pinheiro. Agora que somos patrimônio: um estudo sobre as baianas de acarajé no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, Baianas de Acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Aeroplano, BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas Folias de Reis. Rio de Janeiro: 7 Letras/Iphan/Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, A bandeira e a máscara: um estudo sobre a circulação de objetos rituais nas Folias de Reis. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, CANDIDO, Antonio. Ressonâncias. In: CANDIDO, Antonio. O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p GELL, Alfred. Art and Agency: an Anthropological Theory. Londres/Nova York: Oxford/Clarendon Press, 1998.

13 GOYENA, Alberto. Memórias de uma cidade paralela: o Rio Antigo nas montagens de uma confraria. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, IFCS, PPGSA, GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A fome e o paladar: a antropologia nativa de Luis da Câmara Cascudo. In: Antropologia dos Objetos: coleções, museus e Patrimônios. Rio de Janeiro: IPHAN/IBRAM/MINC, 2007, p A magia dos objetos: museus, memória e história. In: PRIORI, Ângelo (org.). História, memória e patrimônio. Maringá: EdUEM, 2009a.. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. BIB, Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 60, p. 7-26, São Paulo, 2. semestre 2005c.. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan/Ibran/Minc, 2007b.. Apresentação. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos (org.). A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX. Textos de James Clifford. 1. reimp. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003d.. A retórica da perda: discurso nacionalista e patrimônio cultural no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003b [1996].. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos patrimônios culturais. In: Antropologia dos Objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: IPHAN/IBRAM/MINC, 2007, p Coleções, museus e teorias antropológicas: reflexões sobre conhecimento etnográfico e visualidade. In: Antropologia dos Objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: IPHAN/IBRAM/MINC, 2007, p Cotidiano, corpo e experiência: reflexões sobre a etnografia de Luis da Câmara Cascudo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 28, p , Rio de Janeiro, Iphan, Culturas populares: patrimônio e autenticidade. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz (orgs.). Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p Franz Boas e o conceito de cultura plural: antropólogo rompeu com visão evolucionista dominante no século XIX. O Globo, Prosa e Verso, p. 3, [2005e].. Luis da Câmara Cascudo e o estudo das culturas populares no Brasil. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz (orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Cia. das Letras, 2009, p

14 . Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como gênero de discurso In: Antropologia dos Objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: IPHAN/IBRAM/MINC, 2007, p O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHA- GAS, Mario (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010, p Os limites do patrimônio. In: LIMA FILHO, Manuel Ferreira; ECKERT, Cornélia; BELTRÃO, Jane Felipe (orgs.). Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Associação Brasileira de Antropologia/Nova Letra, 2007, p Os museus e a cidade. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010a, p Os museus e a representação do Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 31, p , Rio de Janeiro, Iphan, 2005d.. Os patrimônios e o tempo. Ciência Hoje, Revista de Divulgação Científica da SBPC. Suplemento Trimestral. v. 1, p. 1-2, Rio de Janeiro, 2010f.. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimônios. Horizontes Antropológicos 11 (23), UFRGS, PPGAS, jan.-jun. 2005a.. (org.). A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX. Textos de James Clifford. 1. reimp. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003c. GONÇALVES, José Reginaldo Santos; CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro (orgs.). As festas e os dias: etnografia, ritual e cultura. Rio de Janeiro: Contracapa, ;. Cultura, festas e patrimônio. In: MARTINS, C. e DUARTE, L. F. D. Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Antropologia. São Paulo: Anpocs, ;. Introdução. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos; CAVAL- CANTI, Maria Laura Viveiros de Castro (orgs.). As festas e os dias: etnografia, ritual e cultura. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009a. GONÇALVES, José Reginaldo Santos; CONTINS, Marcia. A escassez e a fartura: categorias cosmológicas e subjetividade entre Imigrantes açorianos no Rio de Janeiro. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos; CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro (orgs.). As festas e os dias: etnografia, ritual e análise cultural. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009b, p ;. Entre o divino e os homens: a arte nas festas do divino espírito santo. Horizontes Antropológicos, ano 14, n. 29, p , Porto Alegre, jan.-jun

15 GREENBLATT, Stephen. Ressonance and Wonder. In: KARP, Ivan; LAVINE, Steven D. (orgs.). Exhibiting Cultures: the Poetics and Politics of Museums Display. Washington D.C.: Smithsonian Institution Press, 1991, p GUIMARÃES, Roberta Sampaio. A moradia como patrimônio cultural: discursos oficiais e reapropriações locais. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2004, 108p.. A utopia da Pequena África: os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca. Tese de Doutorado em Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2011, 225p. HEINE, Heinrich. Os deuses no exílio (seleção e org. SUZUKI, Márcio; KAWA- NO, Marta). São Paulo: Iluminuras, 2009 [1835]. HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari (orgs.). Thinking Through Things: Theorizing Artefacts Ethnographically. Londres: Routledge, INGOLD, Tim. Against Materiality. In: INGOLD, Tim. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. Londres/Nova York: Routledge, 2011, p KUBRUSLY, Clarisse Quintanilha. A experiência etnográfica de Katarina Real: colecionando maracatus. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, LATOUR, Bruno. Nunca fomos modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34, Sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris: La Découverte, MAUSS, Marcel. Manuel d Ethnographie. Paris: Payot, MIGLIORA, Amanda. Patrimônio cultural e espaço: um estudo sobre a arquitetura Mbya-Guarani numa área urbana de Niterói. Rio de Janeiro. Projeto aprovado pela Faperj, MIGUEL, Francisco. Patrimônio cultural e arquitetura popular em Rio das Pedras. Rio de Janeiro. Projeto aprovado pela Faperj, MILLER, Daniel (org.). Materiality. Durham: Duke University Press, NASCIMENTO, Ana Carolina Carvalho de Almeida. O sexto sentido do pesquisador: a experiência etnográfica de Edson Carneiro. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, PAIVA, Andréa Lucia da Silva. Os fios do trançado: um estudo antropológico sobre práticas e representações religiosas. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2009.

16 PEREIRA, Luzimar Paulo. Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre as Folias em Urucuia, Minas Gerais. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre as Folias em Urucuia, Minas Gerais. Rio de Janeiro: 7 Letras, TILLEY, Chris; KEANE, Webb; KÜCHLER, Susanne et al. (orgs.). Handbook of Material Culture. Londres: Sage, WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

17 1. O SORRISO IRÔNICO DOS BUDAS: DEMOLIÇÃO E PATRIMÔNIO NO VALE SAGRADO DE BAMIYAN Alberto Goyena Começo por um incidente ocorrido na Praça Beauboug. 1 No segundo dia de abril de 2001, um edifício dos arquitetos modernistas Renzo Piano e Richard Rogers amanheceu portando um chamativo cartaz de 28 x 10 metros. Via-se, em parte da fachada do Centro Georges Pompidou de Arte e Cultura, uma figura humana com ares de divindade oriental. Mais de um pedestre que lá estivesse teria reconhecido a imagem de um antigo príncipe asiático nascido no sopé dos Himalaias por volta do século V a.c. Pertencente ao clã dos Gautama e descendente de uma família da casta dos guerreiros, lá estava a figura de Sidarta, homem reconhecido por ter recebido, em vida, o título de Buda. 2 1 Tive a oportunidade de apresentar versões preliminares deste artigo durante a 28. Reunião Brasileira de Antropologia, em grupo de trabalho coordenado pelos professores Renata de Castro Menezes e Ronaldo de Almeida, a quem agradeço pelos comentários e sugestões. Sou igualmente grato aos professores José Reginaldo Gonçalves, Marcia Contins, Edlaine de Campos Gomes e Roberta Sampaio Guimarães por suas considerações e críticas no marco do Seminário de Pesquisas Deslocamentos, espaços e patrimônios, organizado em agosto de 2011 na Unirio, onde apresentei um primeiro esboço deste trabalho. Foram também muito instigantes e profícuos os debates em torno deste tema com os colegas do Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (Laares) do PPGSA da UFRJ. 2 Segundo a enciclopédia Eastern Definitions de religiões do Oriente, Buda é um título, assim como, por exemplo, o de presidente. Ele é dado, sob a perspectiva propriamente budista, às encarnações de um arquétipo que se manifesta no mundo em diferentes períodos, através de personalidades diversas, cujas particularidades individuais não devem ser, de modo algum, levadas em consideração (Rice, 1986, p. 76). O estudioso de religiões orientais Edward Rice comenta que discussões a respeito da existência histórica de Sidarta foram amplamente travadas pela historiografia moderna, apresentando razões suficientes para não ser mais colocada em questão. Os longos debates envolvendo as datas precisas de seu nascimento e morte, acrescenta Rice, perdem qualquer importância considerando-se que Sidarta teria, em vida, recebido o título de Buda.

18 Tratava-se, mais especificamente, de uma gravura ou melhor, de uma reprodução ampliada de uma gravura do final do século XIX 3 em que o Buda é representado em rara posição corporal: em pé. Não havia, contudo, nesse centro parisiense de arte e cultura, como seria talvez de se esperar, nenhuma exposição propriamente dita da qual o cartaz fosse referência. Em outras palavras, não estavam aqueles pedestres, apenas e como de costume, diante de um instrumento museográfico de divulgação. Segundo relatado em nota do jornal francês Libération e na revista La Vie, a exposição desse cartaz na fachada principal do edifício fora uma demonstração pública contra um episódio ocorrido algumas semanas antes, no vale de Bamiyan, no atual Afeganistão. Idealizada pelo presidente do Centro Georges Pompidou e financiada pelo diretor da empresa Yves Saint-Laurent, a imagem em questão estava lá para ser vista, afirmou o periódico francês, como um cartaz de manifestação política. A imagem ficará dois meses exposta. É um gesto de protesto contra o fanatismo e o ódio às diferenças. Ele é também um sinal de esperança já que, apesar de destruídos, os budas de Bamiyan não deixarão de fazer parte do patrimônio imaterial da humanidade. (Cazenave, 2001, p. 9) Naquela manhã, as duas estátuas que dão propósito a este artigo acabavam de ser metralhadas, bombardeadas e dinamitadas, deixando à mostra apenas fragmentos e estilhaços em um nicho vazio. Com efeito, desde que o regime talibã assumiu o poder no Afeganistão, no final da década de 1990, um grande acervo material, incluindo duas estátuas do Buda esculpidas em um penhasco, foi alvo de investidas bélico-religiosas, primeiro verbais, logo concretas. Segundo líderes do governo talibã, esses objetos atentavam contra os preceitos islâmicos por serem peças de idolatria, devendo, assim, ser totalmente destruídos. Como é que nós vamos nos justificar, na hora do último julgamento, por termos deixado essas impurezas em solo Afegão? foi com essa pergunta do ministro talibã da Informação que os grandes jornais internacionais tornaram públicas as supostas motivações do regime (cf. Le Monde, apud Pierre Centlivres, 2002, p. 75). 3 Embora seu autor seja desconhecido, essa gravura permaneceu muitas décadas guardada no acervo do Museu Britânico, em Londres. Acredita-se que a gravura tenha sido entalhada durante as missões artísticas financiadas pela coroa britânica no período histórico denominado The Great Game, quando os impérios Russo e Britânico disputavam a supremacia no que hoje é o Afeganistão (Rathje, 2004).

19 Em janeiro de 2001, quando a província separatista de Bamiyan foi retomada pela terceira vez, o líder do governo talibã, o mulá Mohammed Omar, assinou um decreto que, além de formalizar as ameaças verbais, gerou mobilização de diversos meios de comunicação, organismos internacionais, governos nacionais e instituições artísticas e culturais. Também na imprensa brasileira ressoaram as incriminações internacionais, e a decisão talibã foi noticiada como um ultrajante gesto de vandalismo, um exemplo de fundamentalismo que incentiva a intolerância religiosa, até mesmo qualificada de maluquice. 4 O atentado havia muito anunciado a essas estátuas, que nos anos 1970 haviam sido decretadas patrimônio mundial da humanidade 5 ocorreu ao longo de mais de vinte dias, em março de O gesto iconoclasta, no entanto, não foi conduzido na surdina. Ao que tudo indica, não bastava dinamitar as estátuas de um dia para o outro e sem prévio aviso. Quis-se propagar a cena, assinar a obra e registrar a intervenção. E lá estiveram, para cumprir esse propósito, as câmeras da emissora televisiva Al Jazeera, cujas imagens logo seriam divulgadas em grandes canais internacionais. Pretendeu-se, como veremos, adotar uma postura de afronta. Mas contra quem? Que argumentos poderiam legitimar uma intervenção como essa? Se as estátuas sobreviveram a tantos diferentes regimes igualmente iconoclastas, por que haveriam os talibãs de temer, mais que os outros, esse julgamento final? 4 Segundo a revista Época: Na quinta-feira, ignorando protestos do mundo todo, os soldados começaram a destruir o que o Talibã classifica de falsos deuses. Os alvos constituem um acervo artístico de mais de dois mil anos, síntese de culturas do Oriente e do Ocidente. [...] Ao anunciar a campanha de demolição, o ministro da Informação do Talibã, Qudratullah Jamal, disse que as tropas agiam em vários locais, inclusive em Bamiyan e na capital afegã, Cabul. Até o fim da semana não havia informações sobre o total de monumentos pulverizados pelo vandalismo estatal (Vandalismo religioso, Época, 27/05/2010). Ver também: Dias, 2001; Taleban mantém ordem de destruir estátuas, Estadão. com, ; e Ramos, Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley publicado no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em:

20 Figura 1.1. Nota publicada no jornal Libération, 2 de abril de 2001, p. 39 Das estátuas retiradas de seu pedestal Posto que se trata aqui de um esforço para qualificar uma demolição, notemos logo de início que o verbete demolitio do dicionário Félix Gaffiot (2000), traz uma definição para o verbo que se perdeu no uso corrente do português. Em latim, é apenas em seu sentido figurado que demolir é sinônimo de destruir, como aponta o verbete: demolitio, onis, f. (demolior), 1. ação de descender uma estátua de seu pedestal, retirar do nicho. 2. [fig.] destruir, reverter. Em sintonia com essa definição introdutória, o episódio que passo agora a comentar pode ser tido como uma demolição no sentido mais estrito da palavra. Será a partir desse caso que levantarei alguns questionamentos a respeito das relações entre cultura material e transmissão de identidades coletivas. Se é verdade que há hoje, como destaca Derek Gillman, uma

21 larga aceitação de que é um dever passar as expressões materiais que nos vieram do passado para as gerações seguintes (Gillman 2010, p. 16), veremos que, mediado por instituições nacionais e internacionais do patrimônio, esse dever pode colidir frontalmente contra algumas sólidas barreiras culturais. Segundo foi possível acompanhar através de informações divulgadas nos meios de comunicação que noticiaram essa operação, a intervenção se iniciou com disparos oriundos de armamento antiaéreo. Como os danos causados às estátuas por esse instrumento não teriam sido suficientes para retirá-las de seu pedestal, na etapa seguinte os responsáveis empregaram uma nova estratégia. Alocaram minas antitanque na base das estátuas, a fim de que elas estivessem enfraquecidas quando chegasse o momento de metralhá-las novamente. Mas, de modo um tanto alegórico, podemos dizer, as estátuas se empenharam em resistir. Soldados especializados tiveram então de ser içados ao penhasco para instalar dinamite em diversos orifícios abertos nas pedras da construção escultórica. 6 Por fim, ainda teria sido lançado contra as estátuas um míssil de alto calibre. Só então o mulá Mohamed Omar deu-se, por satisfeito. Em artigo que retomaremos mais adiante, o etnólogo Pierre Centlivres esclarece que a operação transcorreu em sintonia com os preceitos islâmicos para rituais sacrificais. Nesse sentido, acompanhou-se a demolição das estátuas com um sacrifício expiatório envolvendo a degola de cem vacas através do país, cuja carne teria sido distribuída aos mais necessitados (Centlivres, 2001). Quando o duplo sacrifício foi dado por concluído (o das estátuas e o das vacas), o ministro talibã da Informação, Qudratullah Jamal, comentou a intervenção ao jornal Daily Times. Este trabalho de destruição não é tão simples quanto as pessoas podem acreditar. Não foi possível demolir essas estátuas derrubando-as ou escavando em seu relevo. Tivemos de empreender um trabalho custoso e complexo, já que as estátuas tinham sido entalhadas em uma falésia e estavam firmemente atreladas à montanha. (Hasan, Daily Times, 19 de março de 2006) 6 Na versão do jornalista afegão Farhad Peikar, o exercito teria contado com a colaboração dos habitantes locais: Não foram apenas as estátuas que eles destruíram, mas todo o vilarejo, povoado pela minoria xiita hazara. Essa gente foi torturada. Os Talibãs não se deram por satisfeitos apenas em destruir os Budas, eles fizeram com que os moradores os ajudassem, mesmo contra a vontade. Eles tiveram de escalar as estátuas, pendurados em cordas, abrindo buracos na rocha para colocar dinamite. Quem não o fizesse, seria preso. [...] O povo de Bamiyan não se esquece dessas atrocidades e odeia os Talibãs (Peikar apud Carranca, Afeganistão dez anos sem os Budas de Bamiyan, 01/03/2011).

22 As impressões do ministro Jamal são deveras surpreendentes. Falam-nos das propriedades materiais das estátuas, de sua solidez e qualidade construtiva, mas sob um prisma negativo. Para quem esperava algum pedido de desculpas, o registro no qual o ministro comentou a intervenção não terá parecido nada apropriado. Mas seu comentário chama a atenção para uma característica central das estátuas, quer seja, sua relação com outro objeto, uma sorte de pedestal. As estátuas do Buda estavam esculpidas e fundiam- -se, precisamente, com uma montanha que lhes dava suporte. De fato, se colocarmos o gesto iconoclasta em suspensão, abandonando, mesmo que provisoriamente, a necessidade de produzir um julgamento sobre a demolição dos Budas de Bamiyan, será possível encontrar, nas diversas declarações a seu respeito, indicações sobre as particularidades materiais dos objetos em questão. Como veremos mais adiante, há certamente muito que aprender sobre as coisas ao incorporarmos aos conhecimentos e interpretações de historiadores, arqueólogos e estudiosos das belas artes as percepções e saberes daqueles que as demoliram. A demolição, assim como a construção e a restauração, tem mesmo seus vocabulários próprios e parece- -me central levá-los em consideração ao empreendermos um estudo sobre objetos. Como escreveu o antropólogo Tim Ingold, o foco na Antropologia, Arqueologia e nos estudos sobre cultura material tendeu a privilegiar a materialidade dos objetos em detrimento dos materiais e suas propriedades (Ingold, 2011, p. 15). Aprenderíamos também sobre as coisas, postula o antropólogo, se tratássemos mais [...] diretamente dos materiais, acompanhando-os em seus deslocamentos, em suas fusões com outros objetos e em seus processos de solidificação e dissolução. Processos esses que constituem a formação de coisas mais ou menos duráveis. (Ingold, 2011, p. 16) Antes de prosseguir, voltemos ao cartaz na Praça Beaubourg para perceber uma contradição central. Quero dizer com isso que, para além da decisão do regime talibã e da indignação dos diretores do Centro Pompidou, havia um problema muito anterior envolvendo a escolha do pedestal apropriado para as estátuas quando de sua construção. Notemos, pois, a volumosa cascata de imagens e materiais que pesavam sobre aquele cartaz: na matéria de jornal reproduzida acima foi impressa uma fotografia contendo a imagem de um cartaz que era, por sua vez, a ampliação de uma das cópias de uma gravura. Vimos que se tratava de uma gravura do século XIX, onde um gravurista havia tido por modelo uma estátua esculpi-

23 da em um relevo calcário. Desdobrando mais uma etapa, lembremos que a estátua representava uma das encarnações de um arquétipo. Quão irônico ou paradoxal não será mesmo perceber que esse homem, essa encarnação do Buda reproduzida em pedra, madeira, lâmina de cartaz e em papel de jornal proferiu, como escrito no Digha Nikaya, 7 a seguinte recomendação sagrada a seus fiéis: Apenas nos cintilantes reflexos sobre a água quero eu ver a minha imagem reproduzida. 8 Da chegada dos Budas ao Afeganistão Segundo Deborah Klimburg-Salter (2011), historiadora da arte asiática, uma série de estátuas do Buda foi entalhada durante a dinastia Tang da China, no século VI d.c., nas falésias de arenito que circundam Bamiyan, cidade localizada no centro de um vale que separa as cadeias montanhosas do Hindukush e do Kuh-i-Baba. Durante esse período, a China havia logrado a reunificação entre os territórios do norte e do sul, atingindo a maior expansão territorial de sua história e chegando até o Mar Cáspio, na Ásia Central. A cidade de Bamiyan, situada a cerca de três mil metros acima do nível do mar, foi fundada em um vale por onde passava a lendária Rota da Seda. Bamiyan era um lugar de pouso para comerciantes, viajantes e peregrinos que transitavam entre a China e o Império Romano. Durante cinco séculos, foi importante referência para o budismo, sendo eleita por seus monges um dos mais importantes centros de oração e práticas cerimoniais da cultura budista pancontinental. As numerosas cavernas e aberturas naturais no penhasco teriam servido, escreve ainda a historiadora, de hospedaria para forasteiros, de esconderijo para infratores, de depósito de mercadorias e mesmo de cômodos para os monges da região 9 (Klimburg-Salter, 2011). 7 O Digha Nikaya é uma das escrituras budistas e quer dizer coleção dos longos discursos (Rice, Eastern Definitions). 8 A questão da reprodutibilidade da imagem do Buda é assunto longamente discutido. Segundo o arqueólogo W. L. Rathje (2004), imagens do Buda só foram feitas quatrocentos anos depois da morte de Sidarta Gautama. Ainda assim, diz ele, as imagens eram criadas apenas para relembrar aos seguidores sua própria natureza budista inata. 9 Segundo Rathje (2004), algumas dessas cavernas estão ocupadas hoje por refugiados da guerra no Afeganistão. No artigo de Centlivres (2002), diz-se que guardavam armas, serviam de depósito para várias coisas, moradia e esconderijo.

24 Peregrinos chineses, como o celebrado monge Xuan-Zang relata Derek Gillman (2010), historiador de arte especializado em estudos chineses, deslocavam-se até Bamiyan para meditar diante dessas estátuas colossais que chegavam a medir em torno de 60 metros de altura. Muito embora a data precisa de sua construção seja desconhecida e alvo de disputas, Xuan- -Zang é apontado como um dos primeiros a testemunhar, por escrito e no século VII d.c., a existência de tais obras, que observou quando se dirigiu à região em busca de cópias dos Sutras originais do ensinamento budista, perdidos na China. Figura 1.2. Ilustração mostrando a aparência dos Budas de Bamiyan no final do século X. As partes avariadas em períodos posteriores foram aqui ressaltadas em azul. Ilustração: Anna Thereza Menezes

25 Gillman relata também que essas representações escultóricas do Buda haviam sido concebidas e entalhadas sem rosto e sem mãos. Diferentemente do que se pensava quando as estátuas se tornaram alvo do interesse da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) o que resultou em seu tombamento oficial, para Gillman, as estátuas de Bamiyan não foram desfiguradas nem amputadas por terceiros, posteriormente a seu entalhe. Essas estátuas foram pensadas assim, sustenta o autor. O que, contudo, não significa que os Budas não tivessem expressão facial e gestual. Seguindo uma periodicidade ritual, monges budistas confeccionavam máscaras e luvas de cobre, que forjavam e dispunham nas secções do rosto e das mãos das estátuas (Gillman, 2010, p. 19). Atribuíam assim, ao Buda, feições e gestos diferenciados em função de calendários e preceitos próprios. Às estátuas, por sua vez, imprimiam uma destacada ilusão de movimento e transformação, o que remetia justamente à ideia de imagem refletida no curso das águas. Contornado desse modo o problema de sua representação, um Buda que surge já desfigurado parece mesmo pôr em xeque qualquer tentativa de demolição: o gesto iconoclasta já havia sido, pois, incorporado em sua própria construção. Seu entalhe, comenta o arqueólogo americano William Rathje, fora altamente custoso para a época, estando muito acima dos padrões escultóricos da região. Podendo ser vistas a quilômetros de distância, reluzindo os raios solares no cobre de suas máscaras e luvas, mediam precisamente 37 e 55 metros de altura. O maior dos Budas, que teria portado tecidos vermelhos, representaria Vairocana (ou luz que brilha através do universo ) e o menor, de vestes brancas, representaria o próprio Sidarta. Segundo esse arqueólogo, as estátuas eram ainda símbolos centrais para o budismo mahayana, que enfatizava a habilidade de todos, e não apenas dos monges, de alcançar a iluminação (Rathje, 2004). A opinião de Gillman e Rathje não é, contudo, aceita por todos os arqueólogos voltados para pesquisas nessa região. Para Finbarr Flood, professor de belas artes na Universidade de Nova York e especialista em iconoclasmo islâmico, 10 é igualmente possível que as estátuas tenham sido desfiguradas 10 É importante frisar o contexto político em que Barry Flood escreveu seu artigo. Publicado em 2002, logo após os atentados contra as torres gêmeas e no contexto de ondas de anti-islamismo, o autor enfatiza a importância de perceber essa ação como tendo sido conduzida por certos atores em determinados contextos históricos. Em resposta à percepção difundida em jornais e colunas de opinião americanas, Flood busca comparar esse momento a outros momentos iconoclastas. Nesse sentido a concepção de uma resposta monolítica ou patologicamente muçulmana à imagem deve ser substituída por uma que leve em consideração os diferentes modos de práticas culturais e suas variações (Flood, 2002).

26 ou mutiladas por ordem de uma linhagem específica de sultões medievais. Flood explica que durante os governos dos seguidores de Mahmud al-ghazni, uma série de imagens foi alvo dos mais variados tipos de iconoclasmo (Flood, 2002). Figura 1.3. Ilustração do Vale de Bamiyan com os nichos esculpidos para as estátuas do Buda. Ilustração: Anna Thereza Menezes Embora não chegue a negar a possibilidade de que os budas tenham sido representados já sem rosto nas falésias da cadeia montanhosa, Barry Flood pondera que a prática do desfiguramento era muito comum no século XII, sendo realizada por iconoclastas muçulmanos, mas também por cristãos e judeus. Especialista em formas, técnicas e práticas medievais de neutralização de imagens, os estudos desse pesquisador nos despertam para a grande complexidade material presente em ações desse gênero. Não se pode, escreve Flood, considerar todas as demolições por igual. Há, historicamente, quem tenha quebrado o nariz de uma estátua para que ela não pudesse respirar; quem tenha furado seus olhos com uma faca para que o objeto não pudesse ver; quem tenha traçado uma linha preta sobre o pescoço das imagens figurativas para indicar que não estavam animadas; ou quem tenha arrancado seus dedos com alicates para infligir alguma punição nesse tipo de representações figurativas. Investigar as técnicas que determinados povos empregaram para demolir imagens é, paralelamente, perceber algo a respeito dos modos através dos

27 quais essas pessoas interagiram com tais objetos. Nas suas técnicas de demolição, o demolidor se comunica com um objeto e suas formas. Analisar as particularidades dessa interação é ler o modo segundo o qual um determinado grupo concebeu aquilo que um objeto é ou aquilo que poderia estar fazendo. Cada uma dessas empreitadas se insere em contextos cosmológicos diferenciados, apresentando importantes correlações com as ferramentas e regras presentes nos rituais e intervenções aplicados também sobre os corpos das pessoas. Enterros, julgamentos, nascimentos ou casamentos são marcados assim não só por transformações em corpos, mas também em objetos. Nos países e épocas em que se arrancavam, com alicates oficiais, as mãos ou dedos de infratores, encontrar uma estátua assim mutilada não é, pois, um dado menor. Da ocupação islâmica Com a chegada e o estabelecimento de tribos islâmicas no Afeganistão no início do século XI, as fronteiras chinesas na Ásia Central recuaram para o oriente, as rotas comerciais e os sistemas tributários foram remanejados e os monges budistas, forçados a deixar o vale de Bamiyan. Embora a confecção periódica de máscara e luvas para as estátuas tenha sido doravante abandonada, as estátuas em si não foram percebidas como uma grande ameaça para o vitorioso sultão Mahmud al-ghazni. Ele teria, inclusive, encomendado ao sábio muçulmano medieval al-biruni um tratado sobre elas. Com o crescente avanço do islã no oriente, era importante para o sultão conhecer bem as práticas culturais dos povos da Índia e China. Aos olhos de Mahmud al-ghazni, estudar a relação desses povos com seus objetos era uma estratégia de guerra. Para conquistá-los, era central saber, em sua percepção, como neutralizar suas linga (do árabe, estátuas que incorporam divindades ) (Flood, 2002). Preservar os budas era assim, para o sultão, duplamente importante. Se por um lado as estátuas eram vistas como armas, por outro eram também troféus de guerra, reféns exibidos em plena rota da seda (Flood, 2002; Klimburg-Salter, 2011). Não obstante, mesmo que o sultão al-ghazni não tenha ordenado a demolição das estátuas sagradas, ele era, sim, escreve Barry Flood, um reconhecido iconoclasta. Transformou templos budistas em mesquitas e palácios por meio da decapitação ou recontextualização de todas as figuras humanas e animais presentes. Conta-se também que, em vez de desperdiçar esforços

28 de destruição, ele teria arquitetado estratégias de negociação de peças figurativas com mercadores europeus, asiáticos e até mesmo com comerciantes muçulmanos que, de diversos modos, puderam fazer uso de seus materiais. A partir de certo momento, contudo, sua relação teria começado a levantar suspeitas e, escreve Flood, o sultão teria passado a ganhar a injuriosa fama de negociador de imagens. Foi necessário fazer prova do contrário. Em 1025 Mahmud al-ghazni invadiu a cidade de Somnath [no Paquistão] e saqueou seus principais templos. Segundo contam algumas lendas, os monges brâmanes ofereceram generosas quantias como pagamento pelo resgate das estátuas do templo. Mahmud recusou a oferta, repudiando a visão popular de que ele era um negociador de imagens [image broker] e afirmando-se como um negador de imagens [image breaker]. (Flood, 2002) Segundo as pesquisas do arqueólogo, na prática, conquanto não ocupassem os recintos sagrados de casas e palácios, as estátuas figurativas pré- -islâmicas foram, sim, empregadas na ornamentação de exteriores, jardins ou áreas ditas impuras, como os salões de exposição de relíquias de guerra. Existe até uma categoria árabe de classificação de objetos, a ruh, que descreve um objeto neutralizado ou cuja alma fora retirada em função da disposição na qual o objeto é apresentado. Colocados de cabeça para baixo, no chão sem tapete ou de acordo com uma composição expositiva que denotasse claramente sua condição de estátua despida de poderes (estátua pisoteada), os objetos da iconografia pré-islâmica encontrados pelos muçulmanos em Bamiyan quando de sua ocupação continuaram a encher, ainda segundo o arqueólogo Barry Flood, os novos palácios públicos e privados de vários sultanatos. De fato, até mesmo os tecidos com motivos figurativos encontrados pelos muçulmanos em Bamiyan foram transformados em ruh, mediante seu corte e recostura. Serviram assim de almofada de chão ou tapete de áreas impuras das residências islâmicas. Recontextualizados, os objetos impuros puderam assim se infiltrar, de formas lícitas e ilícitas, na cultura pós-budista de Bamiyan. Um investimento considerável de energia e de recursos se fez presente tanto na destruição de templos budistas e hinduístas quanto em sua conversão em mesquitas, reutilizando os elementos arquitetônicos dos primeiros. Nesse sentido, os determinantes do iconoclasmo não são apenas políticos ou religiosos, mas também econômicos. O processo iconoclasta podia ser, no contexto islâmico medieval, altamente demorado, calculado e burocratizado. (Flood, 2002)

29 Ao menos do ponto de vista de suas práticas sociais, notamos que os iconoclastas muçulmanos da linhagem de Mahmud al-ghazni não eram nem tão avessos à iconofilia nem tão iconofóbicos assim. Em outras palavras, com graus variantes de receio, colecionavam imagens figurativas eles também. Tudo dependia de uma questão de contextos, do espaço preciso em que se situavam segundo as categorias classificatórias nativas. Já do ponto de vista teológico, as prescrições dos religiosos eram, realmente, mais rígidas. Ainda assim, como escreve o antropólogo Jean-François Clément pesquisador das sociedades magrebinas os quatro califas pelos sunitas considerados os companheiros do profeta, muito embora condenassem a criação de imagens de Deus, respeitavam aquilo que denominavam pela categoria tesouro do passado. Em seu artigo The Empty Niche of the Bamiyan Buddha, Clément (2002) destaca que a teologia muçulmana fora sempre, de forma geral, crítica a representações humanas de divindades, por percebê-las como rivais de Deus. Em diversas passagens dos Hadiths (palavras dos profetas), diz ele, vê-se a figura divina desafiando os humanos criadores de formas a soprar uma alma em suas criações. O pesquisador pondera, contudo, que são apenas algumas linhagens mais radicais na sucessão de sultões que veem, em sua leitura dos Hadiths, uma necessidade concreta de promover empreitadas destrutivas. Historicamente, sunitas e xiitas circunscreveram a questão iconoclasta aos atos de criar e adorar. Os objetos e as imagens em si foram percebidos, ao longo dos diversos sultanatos, como meros tesouros antigos ou coisas de outros povos certamente ignorantes que valia mais não provocar em demasia... Afirma o autor: As teologias muçulmanas muito raramente mostraram interesse nas imagens como tais durante o seu desenvolvimento. Em contrapartida, comentaram extensivamente sobre a situação daqueles que são enfrentados a imagens. Ao longo de sua história, eles questionaram o observador e não o objeto em si. (Clément, 2002) Recapitulando alguns argumentos levantados até aqui, percebemos que, ao tratar da demolição de estátuas, tanto o pedestal quanto o lugar preciso e contexto social em que uma estátua se encontra são fatores indispensáveis a levar em consideração. A ação de demolir não deve, pois, ser reduzida apenas a um mero destruir. Trata-se recorrentemente de uma nova disposição, em outro pedestal, de outro modo. Aprofundar-se na gramática da demolição e salientar suas nuanças e complexidades é compreender que, mais que destruir, demolir pode e deve ser entendido como um ato de demoção, deslocamento ou recontextualização em dado espaço regrado.

30 O gesto iconoclasta supõe assim uma série de conhecimentos sobre os objetos mediados por regras e práticas sociais que vão de seu valor de troca a seu valor de uso e, poderíamos agregar, de seu valor estratégico bélico a seu valor expositivo. Como objeto-refém, objeto neutralizado, objeto do passado ou objeto pisoteado (ruh ou linga), as recontextualizações são também formas de destruição. Com essas considerações em mente, voltemos para o mês de março de Estratégias teológicas e narrativas políticas A presença das estátuas no Afeganistão era vista pelos talibãs como uma impureza. Mas não só isso, era uma impureza da qual o regime deveria se livrar. Desse modo, passados mais de oito séculos desde a primeira ocupação islâmica, e após uma guerra civil que resultou na tomada do poder pelo regime talibã, seu líder, o mulá Mohammed Omar, assinou, em 26 de fevereiro de 2001, um decreto ordenando a eliminação de toda iconografia e arquitetura não islâmica em solo afegão, evento noticiado em manchete do jornal francês Le Monde no início de março daquele ano. Observemos o texto do decreto: Em virtude da fatwa de estudiosos afegãos proeminentes e do veredicto da Suprema Corte Afegã, foi decidido destruir todas as estátuas/ ídolos presentes nas diferentes partes do país. Isso porque esses ídolos foram deuses dos infiéis, que os adoraram, e esses são respeitados até hoje e talvez possam se tornar deuses novamente. O verdadeiro Deus é somente Alá, e todos os outros falsos deuses devem ser removidos. (Flood, 2002, grifos nossos) Fazendo eco ao conceito cunhado por Bruno Latour de iconoclash, Jean- -François Clément e Pierre Centlivres comentam o documento sinalizando um paradoxo. Ao postular a ameaça de que os deuses poderão voltar, os talibãs estariam fazendo prova de fé, como se acreditassem, eles também, em algum poder proveniente dessas estátuas. Se, como declarou Qudratullah Jamal para justificar o gesto, as estátuas não são grande coisa: são apenas objetos feitos de barro e pedra (Bearak, 2001), perguntam-se os pesquisadores, por que temê-las? Quem é, no fim das contas, o verdadeiro iconoclasta? Aquele que destrói, aquele que negocia ou aquele que nega, logo de início, o pressuposto segundo o qual os objetos podem estar animados? Talvez, ao se empenhar em destruir os budas, os talibãs se colocam, ainda que o neguem, do lado daqueles que creem na possibilidade de

31 que os objetos sejam coisas vivas. E isso não parece estar em sintonia com os sagrados preceitos. Menos de dez dias depois da divulgação do decreto do mulá Omar, a Unesco enviou uma delegação de diplomatas para o Afeganistão. 11 Um dos documentos centrais no conjunto de escritos sobre o caso das estátuas de Bamiyan é o relatório do embaixador francês Pierre Lafrance, publicado na revista Critique Internationale (2001). Diplomado nas línguas árabe e persa, o embaixador atuou em importantes negociações na região e serviu em vários países muçulmanos, incluindo o Paquistão, o Irã e o próprio Afeganistão, no período de 1973 a Seu papel na querela sobre os budas foi de fato destacado. Em março de 2001, ele foi o emissário escolhido pela Unesco para a missão diplomática que tentaria salvar as estátuas. Nas oito páginas do documento, Lafrance narra os bastidores de uma complexa teia de argumentações e personagens que resultou no fracasso da missão. De alguma maneira, o relatório é um pedido de desculpas. Mas a quem? Quem era o proprietário das estátuas? O diplomata abre o texto declarando que a decisão do regime fora recebida com grande surpresa. Embora houvesse comentários de que Cabul estaria enrijecendo suas interpretações do Corão, o regime parecia saber que as estátuas já não eram, há quase um milênio, mais do que vestígios arqueológicos (Lafrance, 2001). O embaixador explica também que o regime havia, até pouco antes de iniciar o processo de demolição, anunciado seu interesse pelo patrimônio histórico de seu país e dado prova disso (Lafrance, 2001), já que os museus de Cabul permaneceram abertos ao longo dos anos de 1999 e Motivos ligados à política das relações internacionais, afirma o diplomata, teriam disparado a engrenagem que resultou no que chamou de une catastrophe!. Em outras palavras, o embaixador acredita que as razões centrais devam ser extraídas e esse é justamente seu campo das rela- 11 O Embaixador francês da Unesco não foi o único diplomata a sentar com líderes talibãs para tratar das estátuas. Também autoridades chinesas, japonesas, indianas, tailandesas e cingalesas se empenharam na sua preservação. Considerando que os budas eram seus, propuseram ainda algumas soluções que mencionaremos rapidamente. Uma delegação de parlamentares japoneses, por exemplo, ofereceu ajuda humanitária e compensações financeiras. Representantes da Tailândia e do Sri Lanka propuseram que os budas fossem cobertos com cimento e areia. O material e a mão de obra seriam, até, enviados por esses países. Os budas ficariam assim cobertos por um véu de cimento na esperança de que, passada a soberania do regime talibã no Afeganistão, se pudesse retirar o emplastro. Da China, teriam vindo ainda ofertas de compra e translado das estátuas, com a retirada de pedra por pedra, que seriam posteriormente reencaixadas em lugar a ser definido. Falharam também essas missões. Talvez o mulá Omar não quisesse mesmo ser associado a um negociador de imagens.

32 ções do Afeganistão com a Organização das Nações Unidas (ONU) e com a Organização das Conferências Islâmicas (OCI). 12 No dia primeiro de março de 2001, Lafrance foi enviado primeiramente ao Paquistão no intuito de tentar conversar com pessoas que pudessem exercer influência sobre os autores do decreto talibã. O Paquistão alberga uma das sedes do Conselho de ulemás (teólogos muçulmanos especializados em leis e religião), instância hierarquicamente superior ao título de mulá. Segundo Lafrance, os ulemás teriam dado seu inteiro apoio à causa do diplomata, justificando a postura talibã sob um prisma teológico: acreditavam que toda a questão girava em torno da interpretação que o regime talibã fazia da Charia, 13 especificamente no mandamento que regula a proibição da adoração. Apontavam então para uma antiga divergência entre sultanatos mais ou menos ligados aos preceitos do anteriormente citado sultão Mahmud al- -Ghazni. Por outro lado, mostraram-se preocupados com as retaliações que a demolição dos budas poderia instigar nos países orientais de minorias islâmicas. Há séculos, de fato, budistas e sobretudo hinduístas se veem em uma histórica vendetta com muçulmanos, em que mesquitas são destruídas para vingar saques feitos em templos, que por sua vez teriam sido impulsionados por depredações em mesquitas... (Flood, 2002). Percebido assim, em maior extensão histórica, o episódio de Bamiyan começa a ganhar contornos que o tornam menos arbitrário do que se poderia imaginar. Seria pois a demolição conduzida pelos Talibãs uma resposta a alguma mesquita vandalizada na Índia? Casos não faltariam, ao menos para justificar uma empreitada tal. Por outra parte, segundos os ulemás do Paquistão, o poder político e religioso do regime talibã sobre o Afeganistão começava a escapar de seu con- 12 Em dezembro daquele ano de 2000, ele relembra, o Conselho de Segurança da ONU negou plenos direitos ao regime talibã e não lhe permitiu que ocupasse a cadeira do Afeganistão na Assembleia Geral da ONU. Embora o regime controlasse mais de 90% do território nacional afegão, quem estava naquele lugar, na cadeira do Conselho de Segurança, ainda era o presidente deposto pelos talibãs, Burhanuddin Rabbani. Com o intuito de reverter a opinião internacional a seu respeito, semanas antes da efetiva demolição, o regime talibã havia mandado um emissário a Paris para tratar da questão. Relata Lafrance: O ministro da Saúde Afegão veio a Paris pedir para que a condição do talibã fosse normalizada. Eu mesmo o recebi. Ele afirmou que o regime tinha interesses pacíficos e sublinhou a importância da ajuda às populações nos campos de refugiados. Falou também dos interesses do regime pela proteção do patrimônio afegão e insistiu em que a extradição de Osama Bin Laden fosse tratada como questão sui generis, devendo ser discutida independentemente das outras. [...] Como imaginar que eles tomariam uma iniciativa que iria declaradamente tão de encontro à opinião pública, já que, aparentemente, esforçavam-se bastante para saná-la? (Lafrance, 2001) 13 O código de leis do islamismo.

33 trole e os talibãs estariam supondo que uma afronta dessas dimensões traria a força necessária para renovar-lhes a legitimidade política. Dito de outro modo, um tanto jocosamente, é como se os ulemás estivessem acusando o líder talibã de querer ser mais muçulmano que os muçulmanos. Como podemos supor, o embaixador foi mandado para essa missão porque a demolição em questão era, da perspectiva da Unesco, uma agressão a seu patrimônio da humanidade e não, ou não apenas, uma afronta à legitimidade político-religiosa dos ulemás paquistaneses. Ainda assim, Lafrance preferiu, talvez para que não houvesse mal-entendidos entre ele e o regime talibã, arquitetar uma estratégia política de negociação que recorresse aos argumentos teológicos. A Unesco e o Embaixador apostaram então no poder de influência desse corpo de sábios muçulmanos sobre o mulá Omar. Logo após o encontro de Islamabad com os líderes religiosos paquistaneses, Lafrance declarou estar convencido da estratégia diplomática que empregaria na escala seguinte daquela viagem, Candaar. Era preciso chegar ao Afeganistão, escreveu, com bons argumentos teológicos para impedir o massacre das estátuas. Quando chegou a Candaar, cidade afegã situada a mais de quatrocentos quilômetros de Bamiyan, para o esperado encontro com o mulá Mohammed Omar, Lafrance fora informado de que o mulá não estava mais recebendo delegações de não muçulmanos e que só excepcionalmente se reuniria com muçulmanos de nacionalidade outra que não a afegã. Assim sendo, a negociação teve de ser travada com o ministro de Relações Exteriores do regime, que transmitiria o ponto de vista de Mohamed Omar e colheria, do diplomata, as proposições da Unesco. Como planejado, os representantes versaram argumentos teológicos, ou melhor, debateram a respeito da procedência, ou não, da demolição das estátuas segundo os sagrados preceitos islâmicos. Eis aqui, segundo relatado pelo próprio embaixador, uma síntese dos argumentos apresentados por ele na recepção de Candaar: 1. O budismo é, justamente, o contrário de uma idolatria. As estátuas, em si mesmas, não são objetos de culto, mas apenas uma recordação da virtude de um ensinamento, de uma lei, de um saber; qualificá-las como ídolos seria insultar o budismo; 2. Os vestígios do Afeganistão antigo se tornaram puros objetos de pesquisa científica. É contrário aos preceitos islâmicos entravar o trabalho dos sábios de todas as disciplinas; 3. Os dirigentes mais consagrados do mundo muçulmano respeitaram, desde a fundação do Islã, esses vestígios;

34 4. Os vestígios foram sempre considerados uma Ibra em árabe, uma lição de fé para os fiéis. O papel das Ibras é benéfico para a tradição islâmica. (Lafrance, 2001) Meu interlocutor, escreveu ainda o diplomata, esforçou-se para responder a essas considerações, ponto por ponto. Contudo, diz ele, o ministro talibã se evadia as discussões teológicas e buscava enfatizar argumentos humanitários, insistindo, pois, em que já não havia mais budistas no país e que, do contrário, as estátuas seriam preservadas, posto que há que se permitir o exercício da fé de outrem... e quanto à leitura da Charia, o Afeganistão tem seu próprio corpo de sábios e o assunto será tratado internamente (Lafrance, 2001). Enquanto o embaixador buscava levar o tom da discussão para argumentos teológicos, o ministro talibã insistia em uma justificativa que passava pela sua visão sobre o que seriam valores democráticos e de representação. Dois dias depois desse encontro, para alívio da Unesco, o xeique egípcio Youssouf Al Qardhaoui, membro e líder do Conselho de Ulemás, anunciou a esperada posição final da Organização da Conferência Islâmica sobre o assunto: contrária à demolição. Se a missão diplomática parecia dar sinais de grande êxito, uma inesperada reviravolta ainda estava por vir. Colocando-se no lugar de mais sábio e mais piedoso do que os companheiros do profeta, e dos califas bem dirigidos que haviam respeitado os vestígios históricos, os talibãs estão manifestando orgulho ímpar [...] Essa vontade destrutiva é contrária aos princípios da Charia. (Lafrance, 2001, grifos nossos) Da perspectiva local: os hazara Na leitura do etnólogo Pierre Centlivres (2002), os emissários da Unesco trataram com o regime talibã a partir de uma perspectiva demasiadamente clerical. Nesse sentido, é como se tivessem embarcado em uma duvidosa necessidade de fazer compreender aos talibãs as distinções, tanto práticas quanto teóricas, entre idolatria e exemplaridade, ídolo e ícone, admiração e culto. Por outra parte, o etnólogo sublinha a importância de considerar a opinião dos habitantes do vale, os hazara. O autor relata que, entre os habitantes locais, não se sabia ao certo o que ou quem, no fim das contas, as estátuas

35 representavam. Pensava-se, adianta Centlivres, que eram as figuras de um homem e de uma mulher, provindas de antigas lendas muçulmanas. A ideia segundo a qual os budas são diferenciados sexualmente existe há muito na tradição afegã. Os viajantes europeus do século XIX já havia notado que, para a população local, uma das duas estátuas apresentava atributos femininos. Os habitantes de Bamiyan de fato afirmaram que os budas formavam um casal; o mais alto sendo um homem e o outro uma mulher, chamados por vezes de Lât e Manât. (Centlivres, 2008) Convivendo há séculos com esses objetos, existem certamente entre os povos hazara importantes vozes a incluir ao debate. Em artigo que dedicou à querela sobre os budas de Bamiyan, o arqueólogo William Rathje nos traz outro dado sobre a maneira como esses povos se apropriaram, historicamente, das estátuas. Segundo afirma, expedições arqueológicas conduzidas na região, já em meados do século XIX, tinham identificado a presença de pedras extraídas das estátuas do Buda nas habitações locais. Estreitamente relacionados com suas casas, Lât e Manât e não os budas Vairocana e Sidarta eram importantes símbolos da identidade hazara. Além do mais, acrescenta o arqueólogo, não se pode esquecer que, na época, Bamiyan era uma base de oposição ao regime talibã. O presidente deposto do Afeganistão, Burhanuddin Rabbani, era justamente considerado o principal líder hazara. É mesmo razoável supor que, após tantos anos de convívio com essas estátuas colossais às portas de suas casas, os hazara tenham incorporado, de um modo ou de outro, tais imagens à iconografia local, atribuindo-lhes novos sentidos e significados. Como pude comprovar, ao ler os documentos e registros da Unesco sobre o tombamento das estátuas, 14 há reproduções do Buda em selos e cartões-postais afegãos desde antes dos anos As estátuas estavam mesmo presentes no imaginário local como símbolos políticos do país não só regionais, mas também nacionais. Selos comemorativos atestam igualmente a importância internacional que as estátuas ocupavam nos roteiros oficiais veiculados pela Organização Mundial do Turismo (OMT). Assim posicionado no mapa dos grandes sítios históricos mundiais a se visitar, o vale de Bamiyan gerava mais do que importantes recursos comerciais para os hazara. 14 Informação e documentação oficial a respeito da destruição das estátuas de Buda em Bamyan podem ser encontradas no artigo Cultural Landscape and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley publicado no site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco (Disponível em en/list/208/).

36 Nesse sentido podemos entender a demolição de outro modo, como forma de humilhar não os budistas, não os ulemás, não a Unesco, mas os povos hazara, para quem as estátuas eram símbolos de identidade reivindicados por forças rebeldes para o estabelecimento de um sonhado Hazaristão. A importância de objetos tidos como símbolos de identidade é, de fato, questão muito presente em estudos sobre o estabelecimento da ideia de nação a partir de objetos tornados patrimônios. As narrativas nacionais sobre o patrimônio cultural estão estruturalmente articuladas por essa oposição entre transitoriedade e permanência, sendo que as práticas de resgate, restauração e preservação incidem sobre objetos que podem ser pensados como análogos a ruínas, quando não se constituem literalmente em ruínas. Como tais, esses objetos estão sempre em processo de desaparecimento, ao mesmo tempo que provocando uma permanente reconstrução. Esse interminável jogo entre desaparecimento e construção é que move as narrativas nacionais sobre patrimônio cultural em sua busca por autenticidade e redenção. (Gonçalves, 2002, p. 28) Percebemos então que, dinamitando as estátuas, os talibãs cortavam importantes receitas para o Hazaristão vindas da indústria do turismo, mas que também mostravam sua força simbólica e presença na região, e ainda, quase colateralmente, obrigavam a ONU que por mais de um ano negara os pedidos de ajuda aos refugiados no país a rever suas posições humanitárias na região. Não me parece razoável que o Japão tenha enviado uma delegação de parlamentares para oferecer ajuda humanitária em troca do translado das estátuas para outro país. Como bem escreveu o jornalista Hebah Abdalla no dia 2 de março: Não houve espanto internacional ou acusações de ultraje quando oficiais das Nações Unidas anunciaram que mais de 260 pessoas haviam morrido em campos de refugiados no norte do Afeganistão, onde mais de 110 mil pessoas vivem em condições de miséria. Talvez o único consolo em tudo isso é que esses refugiados nunca saberão o quanto o mundo se preocupou por duas estátuas e o quão pouco se interessou por eles. (Rathje, 2004) Se é verdade que havia hazaras em campos de refugiados, também havia aqueles que, exilados na Europa, apoiaram as iniciativas de instituições museológicas suíças para a criação de um Museu do Afeganistão no Exílio, na cidade de Bubendorf. Em tramitação desde muito antes do decreto do mulá

37 Omar, essa proposta se desmanchou por obra de mais uma ironia desse caso. A proposta para um museu no exílio colidia, justamente, contra a Convenção de 1970 da Unesco que versa sobre a importância de manter o objeto patrimonial em seu contexto original. Como explica Derek Gillman, inúmeras disputas como as que envolveram organizações patrimoniais da Grécia e o Museu Britânico no caso dos mármores do Parthenon teriam levado a Unesco a ditar regras e mecanismos de controle às exportações de bens desse gênero. Sem documentos para poder entrar na Suíça, essas peças pra não falar nos refugiados eram reféns, no país que as condenava, das leis internacionais sobre a propriedade de bens culturais. O Museu do Afeganistão no Exílio foi derrotado em suas tentativas de salvar as estátuas, paradoxalmente, por trâmites burocráticos e tecnicalidades que impediram a entrada de artefatos afegãos em território suíço: a Convenção de 1970 da Unesco relativa às Medidas a Adotar para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação e a Transferência Ilícitas da Propriedade de Bens Culturais. Em março de 2007, as pouco mais de 14 mil peças levadas para a Suíça tiveram de ser devolvidas ao Afeganistão e depositadas no Museu Nacional de Cabul, onde acabaram sendo destruídas. (Gillman, 2010, p. 12) Para Gillman, que além de pesquisador de arte oriental é também o presidente da Fundação Norte-Americana Barnes de Belas Artes, o caso é exemplar para um problema que se faz cada vez mais presente entre instituições internacionais do patrimônio. Trata-se dos limites de uma ideia de patrimônio da humanidade. O autor acredita que apelar à categoria pode ser politicamente eficaz para evitar a destruição de certos bens materiais, mas expõe problemas decorrentes de reivindicações dissonantes quanto aos contornos e às definições de outra ideia fundamental, a de propriedade. O patrimônio afegão compreende o patrimônio de todos aqueles que em algum momento ocuparam esse território? Ou apenas o patrimônio de quem habita esse espaço no presente? Ou o patrimônio de alguns entre aqueles que o habitam? Está claro que os talibãs não consideraram que os budas pudessem fazer parte de seu patrimônio. De fato, tibetanos, budistas e japoneses poderiam pensar, o que é razoável, que os budas eram sobretudo parte de suas culturas. Assim, levanta-se a questão sobre o grau em que o patrimônio de outras pessoas é também parte do próprio. (Gillman, 2010, p. 24)

38 Figura 1.4. Nicho vazio nas falésias de Bamiyan. Ilustração: Anna Thereza Menezes Da perspectiva budista: considerações finais O episódio que, aos olhos da Unesco, foi considerado uma catástrofe patrimonial teve múltiplas e labirínticas causas envolvendo, fundamentalmente, distintas concepções culturais a respeito das propriedades que um objeto é capaz de portar. Espero ter levantado até aqui razões suficientes para percebermos mais nuanças na entranhada rede de disputas implicadas no caso dos budas de Bamiyan e para considerarmos sua demolição de outros modos. Muito embora tenha pesado sobre o regime talibã uma forte acusação de vandalismo, fanatismo e ódio às diferenças, o acompanhamento mais detalhado dessa trama de acontecimentos, que remonta a vários séculos na história do vale sagrado, nos mostra quão diversas e mesmo contraditórias são as concepções que se podem ter da ideia de patrimônio. Segundo suas diferentes perspectivas, tipos e graus de envolvimento, observamos que cada

39 um dos atores imbricados nessa longa querela se referiu a um conjunto próprio na série de camadas de significado que pesavam, e ainda pesam, sobre essas duas estátuas. A intenção de demoli-las, assim como a de preservá-las, mostrou-se, pois, uma disputa muito mais antiga do que poderia parecer. Intenções essas que estão, como se viu, inseridas no seio da construção mesma de representações do Buda. Nesse sentido, ao abrir parte do leque de mitos, contos e relatos históricos que pesam sobre a biografia das estátuas, pudemos percebê-las ligadas a uma lógica própria, imersas em um processo constante de transformações intercedidas por ações e retaliações, negociações complexas e resultados provisórios. Contudo, resta-nos ainda saber o que ao menos alguns budistas teriam a dizer sobre tudo isso. Dez anos depois do ocorrido, em janeiro de 2011, quando o caso dos budas já era para muitos um capítulo encerrado, tive a oportunidade de visitar o templo budista de Borobodur, localizado em uma província separatista da ilha de Java, na Indonésia. País hoje de grande maioria islâmica, a Indonésia foi ocupada, entre os séculos VII e XIV especificamente em Java por reinos hindus e budistas, em cuja região obras e templos ainda se fazem muito presentes. Borobodur encontra-se aos pés de um vulcão, o Merapi, em uma zona altamente sísmica. As pedras do templo foram extraídas das camadas superficiais da rocha que se forma por arrefecimento do magma expelido pelo Merapi. Diversas vezes destruído por terremotos e em seguida reconstruído, Borobodur está hoje tombado como patrimônio da humanidade. Nas paredes externas dessa construção piramidal, cuja planta é uma mandala, o visitante encontra formas esculpidas em baixo relevo que vão, com a progressiva subida em espiral, tornando-se cada vez menos ornamentadas. As complexas e elaboradas talhas em rocha vulcânica dos andares inferiores, que retratam diversos episódios de viagens, encontros e ensinamentos do Buda, vão dando lugar às formas cada vez mais abstratas e às linhas retas e simples dos níveis superiores. Ao chegar no último andar, o visitante encontra-se em uma superfície circular pontuada por sete esculturas do Buda em posição de lótus. No centro desse espaço repousa uma cúpula vazada em forma de sino. Esperava eu encontrar nesse cimo um altar, com certa imagem do Buda meditando, talvez deitado, talvez em pé... Lá não havia, contudo, absolutamente nada. Nem roubado, nem tombado, negociado, negado ou demolido, o espaço vazio é precisamente o ensinamento mais sagrado de um templo dedicado a transmitir uma mensagem: o desapego aos bens materiais.

40 Figura 1.5. Planta do Templo de Borobodur, Indonésia. Ilustração: Anna Thereza Menezes Em uma pequena escola de música a poucos quilômetros do templo, empreendi uma longa conversa com um monge budista a respeito de minha incursão a Borobodur. Contou-me que quando vira nas manchetes dos jornais indonésios que o regime talibã havia dinamitado as estátuas de Bamiyan, pôs-se a organizar festividades... Autor.: Como? Vocês comemoraram a destruição das estátuas? Monge Ridwan: Claro! Nós somos budistas! Nosso maior patrimônio é a prática do desapego. Você esteve no templo e deve ter visto que no ponto mais alto há um sino, vazio, é o nada. [...] Nossos problemas são justamente as memórias que ressoam em nós. Quando experimento memórias que trazem problemas, tenho de fazer uma escolha: posso permanecer amarrado ao problema ou posso me libertar. Esse é o caminho da transmutação. É quando você restaura sua mente, enviando-a a seu estado original, ao zero, ao nada. É a liberdade: quando estamos livres das memórias, somos infinitos. (Borobodur, janeiro de 2011)

41 Engana-se quem pensa que, com a demolição dos budas, as falésias de Bamiyan deixaram de fazer parte das listas do patrimônio da humanidade. Demovidas as estátuas, pôde-se ver o que havia por trás delas. Não sem espanto, funcionários da Unesco que viajaram para o vale à procura dos fragmentos e estilhaços de pedra calcária na esperança de recompor o gigantesco quebra-cabeça, se depararam com cavernas até então desconhecidas, repletas de pinturas, entalhes e afrescos dos monges budistas que as ocuparam anteriormente ao início da construção das estátuas. Uma missão arqueológica está hoje trabalhando nessas cavidades onde foram encontradas também inscrições de mercadores romanos quando dos primórdios do estabelecimento da rota da seda. 15 Se construir ou preservar não são tarefas simples, tampouco o é demolir. Vimos aqui que essa atividade pode se revelar altamente regrada, hierarquizada e burocratizada. Proceder à retirada de uma estátua de seu pedestal é, se não conhecer profundamente um objeto escultórico, abrir novos campos para sua investigação. Muito embora a intenção aqui nunca tenha sido a de defender ou encorajar indistintamente a prática da demolição desconsiderando a relevância de práticas e políticas patrimoniais, quis apenas, por um lado, sugerir, mediante a apresentação de um caso tão labiríntico quanto emaranhado e contraditório, que os processos de demolição podem estar fortemente impregnados com uma surpreendente capacidade de desvelar novas histórias e novos objetos que ficaram presos ou esquecidos dentro, por trás ou entre os elementos de uma construção. Talvez haja também o que aprender sobre as coisas, quebrando-as. Por fim, se a demolição de patrimônios culturais costuma ser vista sob enfoques melancólicos, como se de esquecimentos e perdas irreparáveis se tratasse sempre, creio que se colocarmos o imperativo de um julgamento moral em suspensão será possível, ao olhar de perto para os detalhes de uma intervenção da sorte, além de encontrar valiosas indicações sobre as particularidades materiais dos objetos em questão, ampliar os debates e definições a respeito dos chamados patrimônios culturais. Não é para todos e em toda parte que a transmissão de uma identidade cultural se faz por meio da preservação de bens materiais. A demolição, assim como a construção e a restauração, tem mesmo seu vocabulário e gramática próprios e parece-me 15 Ver: G. Toubekis et al. Preservation and Management of the Unesco World Heritage Site of Bamiyan: Laser Scan Documentation and Virtual Reconstruction of the Destroyed Buddha Figures and the Archaeological Remains, Disponível em: KYOTO/185-2.pdf.

42 central levá-los em consideração ao empreendermos um estudo sobre a alma das coisas. Afinal, é também demolindo que lembramos e, preservando, que esquecemos. Em sintonia com autores como Tim Ingold (2011), Dario Gamboni (2006) e Bruno Latour (2002), ressalto por último a importância de considerar os objetos segundo uma perspectiva em que prevaleça um fluxo contínuo de imagens, em que nada comece ou termine bruscamente em momentos mensuráveis, em que as coisas sejam percebidas em seu indefectível movimento, sempre em contínua construção ou, se se preferir, é claro, desconstrução e decomposição. Do alto de sua mais remota heterotopia, em sua eterna ausência e irrepresentabilidade, fugidio e esporádico nos cintilantes reflexos sobre as águas, ao Buda restará quiçá, diante de todo esse mal-entendido patrimonial, um tanto ironicamente, sorrir. Referências bibliográficas BEARAK, Barry. Over World Protests, Taliban Are Destroying Ancient Buddhas. The New York Times, 4 de março de Disponível em: nytimes.com/2001/03/04/world/over-world-protests-taliban-are-destroying- -ancient-buddhas.html?pagewanted=all&src=pm CARRANCA, Adriana. Afeganistão: dez anos sem os Budas de Bamiyan. Pelo Mundo. O Estado de S. Paulo, 01/03/2011. Disponível em: com.br/adriana-carranca/afeganistao-dez-anos-sem-os-budas-de-bamiyan/ -budas-de-bamiyan/. CAZENAVE, Agnès. Bouddhas à Beaubourg. La Vie, n. 2901, Le Monde, Disponível em: CENTLIVRES, Pierre. Life, Death, and Eternity of the Buddhas in Afghanistan. In: LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (orgs.). Iconoclash: Beyond the Image War in Science, Religion and Art. Massachusetts: The MIT Press, 2002, p The Controversy Over the Buddhas of Bamiyan. South Asia Multidisciplinary Academic Journal, n. 2, ed. especial, 2008.

43 CLÉMENT, Jean-François. The Empty Niche of the Bamiyan Buddha. In: LA- TOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (orgs.). Iconoclash: Beyond the Image War in Science, Religion and Art. Massachusetts: The MIT Press, 2002, p CULTURAL LANDSCAPE and Archaeological Remains of the Bamiyan Valley. Site da Convenção do Patrimônio Mundial, Unesco e World Heritage Convention. Disponível em: DIAS, Cristiano. Vandalismo dos fanáticos: milícia do Taliban decide destruir relíquias históricas e apagar todo o rico passado pré-islâmico do Afeganistão. Veja On-Line, n , FLOOD, Finbarr Barry. Between Cult and Culture: Bamiyan, Islamic Iconoclasm, and the Museum. The Art Bulletin 84 (4), p , dez FRODON, Jean-Michel. The War of Images, or the Bamiyan Paradox. In: LA- TOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (orgs.). Iconoclash: Beyond the Image War in Science, Religion and Art. Massachusetts: The MIT Press, 2002, p GAFFIOT, Félix. Le Grand Gaffiot: dictionnaire latin-français. Nova. ed. rev. e aum. Paris: Hachette, GAMBONI, Dario. Preservation and Destruction, Oblivion and Memory. In: MCCLANAN, Anne L; JOHNSON, Jeffrey (orgs.). Negating the Image: Case Studies in Iconoclasm. Londres: Ashgate, 2006, p GILLMAN, Derek. The Idea of Cultural Heritage. Cambridge: Cambridge University Press, GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Coleção Museu, Memória e Cidadania. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Iphan, Departamento de Museus e Centros Culturais, A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, HASAN, Khalil. Swiss documentary on Afghanistan: Pakistani, Saudi engineers helped destroy Buddha. The Daily Times, 19 de março de Disponível em: ry_ _pg7_38 INGOLD, Tim. Being Alive: Essays on Movement, Knowledge and Description. Londres/Nova York: Routledge, KLIMBURG-SALTER, Deborah. Before Tomorrow: Excavating the Past, Building the Future in Afghanistan. Orientations 42 (6), set.-out LAFRANCE, Pierre. Comment les bouddhas de Bamiyan n ont pas été sauvés. Critique Internationale 3 (12), p , Paris, Presse de Sciences-Po, 2001.

44 LATOUR, Bruno. What is Iconoclash? Or Is There a World Beyond the Image War? In: LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (orgs.). Iconoclash: Beyond the Image War in Science, Religion and Art. Massachusetts: The MIT Press, 2002, p MASI, Bruno. Manifestation: SOS Bouddhas. Libération, , p. 39 RAMOS, Cristiano. Vandalismo: uma história de destruição. Revista Continente, RATHJE, William Laurens. Archaeological Terrorism: What s Behind the Assassination of Two Colossal Buddhas? Discover Archaeology, reportagem especial, RICE, Edward. Eastern Definitions. Londres: Oxford University Press, TALEBAN mantém ordem de destruir estátuas. Estadão.com, Disponível em: p23351.htm. TOUBEKIS, Giorgios et al. Preservation and Management of the Unesco World Heritage Site of Bamiyan: Laser Scan Documentation and Virtual Reconstruction of the Destroyed Buddha Figures and the Archaeological Remains. Disponível em: VANDALISMO religioso. Revista Época,

45 2. O ENCONTRO MÍTICO DE PEREIRA PASSOS COM A PEQUENA ÁFRICA: 1 NARRATIVAS DE PASSADO E FORMAS DE HABITAR NA ZONA PORTUÁRIA CARIOCA Roberta Sampaio Guimarães Em 2009, a aprovação do Rio de Janeiro como uma das cidades brasileiras integrantes do circuito da Copa do Mundo de 2014 e como sede dos Jogos Olímpicos de 2016 provocou o substancial aumento de investimentos em projetos urbanísticos pelos governos municipal, estadual e federal. Um conjunto deles foi especialmente idealizado pela Prefeitura para os bairros portuários e recebeu o nome de Porto Maravilha Operação Urbana Consorciada da Área de Especial Interesse Urbanístico da Região Portuária do Rio de Janeiro. 2 Com esse plano, foram iniciadas diversas transformações na região, como a construção de redes de água, esgoto e drenagem, coleta seletiva de lixo, incremento da iluminação pública, alteração das vias de tráfego e apoio à construção de dois museus. 3 1 Este artigo foi elaborado a partir de trabalho de campo desenvolvido entre os anos de 2007 e 2009, baseado em observação participante, entrevistas, consulta a arquivos públicos, produção fotográfica e filmográfica de eventos e espaços, leitura de bibliografia especializada e análise de produtos midiáticos. Os resultados dessa pesquisa foram publicados pelo PPGSA/IFCS da UFRJ, na tese de Doutorado A utopia da Pequena África: os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca (Guimarães, 2011). Em 2011, essa pesquisa foi ampliada durante o projeto A patrimonialização da cidade: espaço, memória e urbanismo na Zona Portuária do Rio de Janeiro (Pós-Doutorado Junior/CNPq, PPGSA/IFCS da UFRJ). Agradeço aos comentários e sugestões feitos ao artigo por José Reginaldo Santos Gonçalves, João Paulo Macedo e Castro e Nina Pinheiro Bitar. 2 O Porto Maravilha foi viabilizado juridicamente através da Lei Municipal 101/2009. As informações fornecidas no artigo sobre esse plano foram retiradas de seu site oficial: 3 Estão em fase de construção o Museu de Arte do Rio de Janeiro, na Praça Mauá, e o Museu do Amanhã, no Píer Mauá, ambos em parceria com a Fundação Roberto Marinho.

46 Em março de 2011, diante dos olhos espantados da mídia, a Prefeitura divulgou ainda uma descoberta realizada durante as obras urbanísticas: o encontro por arqueólogos do Museu Nacional de lajes de pedra do antigo Cais do Valongo. Por ele, escravos africanos haviam aportado na cidade entre os anos de 1750 e Posteriormente, o espaço foi remodelado pelo projeto arquitetônico de Grandjean de Montigny e ganhou a denominação Cais da Imperatriz. Após as escavações, os objetos desenterrados (búzios, miçangas, cachimbos, anéis, cristais, etc.) passaram então por um tratamento patrimonial, com a realização de ações de salvaguarda pelos planejadores urbanos em conjunto com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Além da preservação desses objetos, a Prefeitura também reordenou urbanisticamente o espaço onde existira o cais, exibindo seus vestígios materiais em um memorial. E o integrou ao subprojeto Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, que objetivava sinalizar e divulgar determinados pontos da Zona Portuária associados à memória da diáspora africana : a Pedra do Sal, o Jardim Suspenso do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos, o Centro Cultural José Bonifácio e o Largo do Depósito (atual Praça dos Estivadores). Apesar do tom eufórico que esses vestígios materiais receberam da imprensa, o encontro dos planejadores urbanos municipais com a memória afro-brasileira dos bairros portuários não era inédito nem fortuito. Do ponto de vista dos eventos recentes da região, a patrimonialização do cais portava ambiguidades em sua interpretação, pois podia ser compreendida como uma tentativa tanto de afirmar como de negar ou acomodar simbolicamente as formas de habitar de alguns grupos sociais que haviam protagonizado conflitos na região desde 2001 (ano em que foi divulgado o Porto do Rio Plano de Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro, plano urbanístico que antecedeu e criou as diretrizes do Porto Maravilha). Já do ponto de vista das narrativas míticas 4 sobre o passado da região, podia ser 4 Considero narrativas míticas de passado as que presentificam eventos tidos como históricos e que buscam reconstituir uma noção singular de totalidade social, adotando a sugestão de Lévi-Strauss de que, quanto ao que diz respeito às representações míticas, é menos interessante questionar-se sua origem do que a atitude das pessoas diante de seus próprios mitos. Deles, existem sempre versões diferentes. Ora, não escolhemos entre essas versões, não fazemos sua crítica, não decretamos que uma delas seja verdadeira ou mais verdadeira do que a outra: aceitamo-las simultaneamente, e não ficamos perturbados com suas divergências. Investigações feitas em diversas partes do mundo confirmam a generalidade dessa atitude mental (Lévi-Strauss; Eribon, 2005, p. 199).

47 ainda compreendida como a busca por produzir uma nova versão, talvez redentora em sua opção política e estética pela monumentalidade, das cíclicas interações entre os planejadores da cidade e aqueles que se autoidentificavam como afrodescendentes. Assim, este artigo traz como tema narrativas de passado e formas de habitar que entraram em choque durante a última década na Zona Portuária carioca. E o faz à luz de dados etnográficos coletados entre os anos de 2007 e 2009 em um espaço portuário que havia se tornado foco obsessivo de ordenamento urbano dos planejadores municipais: o sítio histórico de origem portuguesa do Morro da Conceição. Os projetos de urbanização para esse morro, assim como para os demais espaços da região, haviam sido concebidos pelos planejadores municipais do Instituto Pereira Passos (IPP). Criado em 1998, o instituto homenageava em seu nome o engenheiro civil e prefeito da cidade que realizou diversas obras nos bairros portuários e do Centro entre 1903 e 1906, que ficaram conhecidas como Reforma Pereira Passos. Suas concepções foram diretamente influenciadas pelo plano de urbanização implantado pelo prefeito parisiense Georges Haussmann entre 1853 e 1870, autointituladas modernizadoras, embelezadoras e saneadoras. Mas, para alcançar tal modelo de urbanidade, encampou a demolição de inúmeros cortiços, a construção do porto moderno e a vacinação compulsória da população, o que foi apontado por diversos autores como uma reforma desejosa de higienizar física e moralmente espaços e habitantes (Abreu, 2006; Lamarão, 1991; Carvalho, 2001; Sevcenko, 2010; e Challoub, 1996). 5 O imaginário retomado pelo planejamento urbano da Prefeitura aludia assim a tal modelo e seus ideais de progresso e civilidade, embora fosse uma versão presentificada desse passado de Pereira Passos. No entanto, no desejo de moldar espaços e habitantes, esses planejadores provocaram desestabilizações locais, como as que pesquisei no Morro da Conceição. Nele, os espaços não eram únicos, mas heterotópicos (Foucault, 2006), abarcando diversos grupos e indivíduos cujos posicionamentos refletiam e designavam uns aos outros, movimentando sistemas específicos de espacialidade e temporalidade que, muitas vezes, se sobrepunham. Assim, as memórias e formas de habitar concebidas pelos planejadores se distinguiam de outras tantas, e cada pedra ou sobrado por eles modificado 5 Sobre a atuação de Haussmann em Paris, ver Bradbury e McFarlane (1989). Sobre suas influências na Reforma Pereira Passos, ver Benchimol (1990).

48 era capaz de mobilizar diferentes subjetividades, contranarrativas e conflitos. Como efeito de seus imaginários e intervenções, emergiram então no morro outros imaginários a eles associados e contrapostos. Dois espaços localizados em sua base foram particularmente entendidos por parte dos habitantes como marcos da memória afro-brasileira. Um deles era o antigo Mercado do Valongo, contíguo ao Cais do Valongo e onde havia funcionado um ponto de engorda e venda de escravos até o século XIX, posteriormente destruído por Pereira Passos para a construção do Jardim Suspenso do Valongo. O outro era a Pedra do Sal, formação rochosa que havia sido ocupada residencial e religiosamente por africanos e baianos até o início do século XX. No início do século XXI, integrantes do bloco carnavalesco Afoxé Filhos de Gandhi e da Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal se posicionaram então como herdeiros desses espaços para se afirmar diante das modificações espaciais e sociais que estavam sendo implantadas direta ou indiretamente pelas obras da Prefeitura. E, a partir da categoria nativa Pequena África, ambos operaram uma narrativa de passado totalmente distinta da que estava até aquele momento sendo organizada pelos planejadores, pautada em um ideal afrodescendente que valorizava a sociabilidade do samba, do trabalho portuário e do candomblé e as formas de habitar onde diversos núcleos familiares cooperavam cotidianamente entre si. Ao apresentar nesse artigo as narrativas e práticas sociais dos planejadores urbanos municipais e desses herdeiros da Pequena África sobre o Morro da Conceição, busco então explorar a hipótese de que todo processo de imaginação de um sítio histórico, seja ele de origem portuguesa ou de origem africana, passa por uma ação colecionadora e exibicionária, em que determinados bens, logradouros e modos de vida são deslocados de seus contextos polissêmicos e idealizados como autênticas representações de um passado e forma de habitar; mas que, justamente por serem materializações de imaginários, são sempre passíveis de afetar a autoconsciência dos habitantes da cidade, gerando não apenas a afirmação de diferentes memórias e identidades como também novos processos políticos, sociais e estéticos, como a criação em 2011 do Memorial do Cais do Valongo e do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana.

49 A construção social de um patrimônio do urbanismo carioca Desde a década de 1990, a conjugação de práticas de urbanização de amplos espaços das cidades brasileiras com as de valorização de seu patrimônio tem sido abordada nos estudos de cientistas sociais (entre eles, Arantes, 2000; Magnani, 2002; Guimarães, 2004; Frúgoli; Andrade; Peixoto, 2006; Leite, 2007; Gonçalves, 2007; e Eckert, 2010). Tais estudos apontam que, assumindo a forma discursiva de áreas de interesse histórico, paisagístico e cultural ou de sítios históricos, a criação desses espaços destinados à exibição da alteridade incentiva sua mercantilização turística, valorização imobiliária e/ou gentrificação. 6 Na cidade do Rio de Janeiro, um dos espaços que mais recebeu projetos de urbanização e patrimonialização nos últimos anos foi a Zona Portuária. Buscando compreender como estavam sendo concebidos esses projetos, realizei entrevistas com três planejadores que haviam idealizado o Porto do Rio. 7 A principal ação citada por eles para demarcar suas atuações na região foi a decretação municipal, em 1988, da Área de Proteção Ambiental Sagas, acrônimo dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Tal área havia modificado o status jurídico de diversos espaços e de cerca de 2 mil bens, então classificados como tombados, preservados ou tutelados. 8 Os efeitos do Sagas, no entanto, não se limitaram à alteração das relações patrimo- 6 Utilizado pela primeira vez em 1963 por Ruth Glass em seu estudo sobre os bairros operários ou populares desvalorizados no centro de Londres, o termo gentrification foi desde então conceituado como o processo de investimento, reabilitação e apropriação de moradias desses bairros pelas camadas médias assalariadas (Bidou-Zachariasen, 2006). Há, na literatura brasileira que utiliza o conceito, duas traduções mais correntes: gentrificação e enobrecimento. 7 O plano urbanístico Porto do Rio foi assinado em 2001 por quatro representantes do poder municipal. Entre eles, três concederam entrevistas para a minha pesquisa no segundo semestre de 2008: Alfredo Sirkis, que assinou o plano como Secretário Municipal de Urbanismo e presidente do Instituto Pereira Passos; Augusto Ivan Pinheiro, como Diretor de Urbanismo; e Nina Rabha como Gerente de Urbanismo. Desde 1993, no entanto, eles já haviam assumido funções administrativas estratégicas na Prefeitura carioca: Alfredo Sirkis era então responsável pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente; Augusto Ivan Pinheiro, pela Subprefeitura do Centro; e Nina Rabha, pela I Região Administrativa, que abarcava todos os bairros portuários. 8 Do ponto de vista legal, os bens tombados pelas Áreas de Proteção Ambiental não podem ser demolidos nem sofrer alterações que os descaracterizem, seja na parte externa ou interna do imóvel; já os bens preservados não podem ser demolidos nem sofrer alterações nas características originais de fachada, telhado ou volumetria, sendo permitida a realização de obras no seu interior desde que sigam as condições preestabelecidas pelo órgão patrimonial regulador; e os bens tutelados podem ser modificados ou demolidos, mas estão sujeitos a restrições do órgão de tutela, como seguir as características e o gabarito dos prédios vizinhos que estejam tombados ou preservados.

50 niais vigentes na região, se estendendo nos anos subsequentes ao conjunto de suas relações urbanísticas, econômicas, morais, sociais e estéticas. No início da gestão do prefeito César Maia ( ), suas classificações passaram a ser utilizadas para propagar a necessidade de segmentar as medidas de revitalização urbana da Zona Portuária, com orientações específicas para as formas de exploração econômica e de ordenamento de seus espaços. Segundo relato de Nina Rabha, planejadora que assumiu a direção da I Região Administrativa (bairros portuários) entre os anos de 1993 e 2000, três linhas de intervenção foram desenvolvidas na região. Nos morros da Conceição, da Saúde, do Livramento e do Pinto, considerados de alto valor histórico, paisagístico e cultural e onde ficaram localizados todos os bens patrimonializados pelo Sagas, foram incentivados o turismo e a atração residencial da classe média. Em suas áreas planas circundantes, foram implantados diversos mecanismos de disciplinamento de usos: a retirada de moradias construídas embaixo de viadutos; a criação ou reforma de praças e largos para que se tornassem pontos urbanos de referência; a restrição espacial de vendedores ambulantes, etc. 9 Foram realizadas ainda ações para a recuperação física das casas de arquitetura colonial, divididas em medidas de identificação de vazios e imóveis arruinados para serem reabilitados para uso residencial, como no caso do projeto Reabilitação de Cortiços, 10 e de construção de novas 9 No Morro da Conceição, por exemplo, o Largo da Prainha foi reformado pela Prefeitura em Localizado em sua base, na rua Sacadura Cabral, antes da reforma o largo era utilizado como estacionamento de carros. Depois, nele foi criado um calçamento elevado, que o dividiu fisicamente da via de tráfego. Nessa elevação foram instalados postes de iluminação, árvores, bancos de madeira e um grande jarrão em ferro como adorno central. Houve ainda a preocupação com sua ambiência, tendo sido realizada a pintura de todas as fachadas do casario frontal (Rabha, 1994). 10 Entre 1996 e 1998, a Secretaria Municipal de Habitação adquiriu alguns imóveis para a realização de contratos de ocupação, dentro do projeto Reabilitação de Cortiços. Os alvos foram os imóveis que poderiam ser usados como habitação coletiva, com cômodos residenciais que variavam entre 11 e 20 m² e banheiros e cozinhas de uso coletivo. A continuação do projeto recebeu o apoio da Caixa Econômica Federal, que criou, em 2000, o Programa de Reabilitação de Sítios Históricos, buscando incentivar a reinserção do uso habitacional nos centros históricos das cidades brasileiras e estabelecendo como público-alvo, para o recebimento de financiamento, famílias que possuíssem renda familiar superior a três salários mínimos. Em 1997, foi idealizado, mas não implementado, um projeto da Prefeitura em parceria com o empresariado da construção civil e com linhas de crédito da Caixa Econômica Federal denominado Enseada da Gamboa. Projetado para ocupar um terreno da Rede Ferroviária Federal de 160 mil m², sua proposta era criar espaços para unidades habitacionais, distribuídas em edificações de uso misto. Esse terreno, no entanto, foi posteriormente destinado para a construção da Vila Olímpica da Gamboa e da Cidade do Samba (Barandier, 2006).

51 unidades residenciais, como no Projeto Habitacional da Saúde. 11 O Sagas, porém, pode ser mais bem compreendido quando observados também os espaços contíguos aos patrimonializados, que foram excluídos da ação preservacionista. O Morro da Providência, embora tenha sido incluído na área tutelada da Gamboa, não teve bens individualmente preservados como os demais morros. E nenhum espaço ou bem do bairro portuário do Caju foi preservado. Para eles, no entanto, foram em seguida idealizadas intervenções urbanísticas específicas, como o programa Favela-Bairro, 12 imediatamente implantado no Caju e com extensão prevista ao Morro da Providência, considerado mais difícil de intervir por ser extenso e populoso. Por sua vez, os 3,5 quilômetros da orla da baía de Guanabara correspondentes a esses bairros, onde estavam instalados galpões, armazéns e ramais ferroviários pertencentes à retroárea portuária parcialmente desativada, também foram excluídos da medida preservacionista, abarcando a terceira linha de intervenção: a exploração imobiliária de seus amplos terrenos. 13 Assim, ao classificar bens e logradouros como preservados e não preservados, o Sagas demarcou as fronteiras de uma nova modalidade de intervenção para a Zona Portuária. Pois, operando distinções como histórico e não histórico, ou culturais e não culturais, tal medida patrimonial 11 Esse projeto foi desenvolvido entre 1996 e 2001 pela Secretaria Municipal de Habitação em parceria com a Caixa Econômica Federal. Nele, foram criadas 150 unidades habitacionais, com 54 m² em média e dois quartos. Em sua maior parte, essas unidades foram ocupadas por funcionários públicos com renda familiar em torno de dez salários mínimos (Barandier, 2006). 12 Segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro, o programa Favela-Bairro foi iniciado em 1994, com a coordenação da Secretaria Municipal de Habitação e o financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Seu objetivo era integrar a favela à cidade, através da implantação de infraestrutura urbana, serviços, equipamentos públicos e políticas sociais nas localidades selecionadas. Informações disponíveis em: 13 No entanto, os projetos da Prefeitura, como a Cidade Oceânica Centro Internacional da Água e do Mar, idealizada em 1994, encontraram a insuficiência da reserva patrimonial necessária para a criação de um fundo imobiliário. Buscando suprir essa deficiência, a Prefeitura negociou diretamente com os ministérios da Agricultura e da Fazenda para que os imóveis federais da região fossem transferidos para o domínio municipal. E foi oferecida à iniciativa privada a possibilidade de exploração dos novos equipamentos e espaços urbanos que fossem por ela financiados. Como analisa Rose Compans (1998), em 1995 a Prefeitura criou o Plano Estratégico do Rio de Janeiro para viabilizar a realização de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada e procurou se aliar à Associação Comercial do Rio de Janeiro, à Federação das Indústrias do Rio de Janeiro e à autarquia federal Companhia Docas. Mas as medidas de cooperação iniciadas com a Docas, que possuía o direito de estabelecer contratos de arrendamento para a exploração de 500 mil m² de instalações portuárias, foram interrompidas pelas divergências entre suas concepções urbanísticas, fazendo que cada instituição elaborasse seus próprios projetos e tentasse agregar em torno deles os investidores privados.

52 indicou quais espaços e bens deveriam ser considerados inalienáveis e quais, em contrapartida, estavam sendo alienados, fosse para sua transformação ou para sua venda. 14 Na percepção de Nina Rabha, compartilhada também pelos demais idealizadores do Porto do Rio, tais medidas de revitalização urbana seriam necessárias por causa do processo de abandono e decadência do núcleo histórico da cidade, composto pelos bairros portuários e do Centro. Em sua interpretação, nesse processo teria ocorrido uma progressiva expansão da malha urbana carioca, acarretando o surgimento de bairros de classe média e alta distanciados desse núcleo, e sua desocupação por famílias em ascensão social, tendo como consequência os usos de seus antigos imóveis como moradia coletiva e sua falta de conservação física. Para ela, tal quadro teria feito que a população residente ou atraída para esses bairros passasse a conviver, ou mesmo a conformar o submundo de uma zona perigosa. Na verdade você tem uma zona antiga, com imóveis antigos, porque são imóveis abandonados, as pessoas vão em busca de outras coisas, em geral são ocupados por moradias coletivas, que é a maneira que você tem de ganhar mais dinheiro com os imóveis antigos. A população entra em um processo de decadência muito grande e a partir daí, enfim, você tem o submundo se aproveitando também ou até emergindo dessa situação. Então viram zonas muito perigosas. A Escola [de Chicago] estudou várias situações no mundo e no geral as intervenções de renovação urbana quase todas se apoiavam nessa teoria. No Rio não dá para fazer um anel concêntrico [ondas de ocupação territorial socialmente categorizáveis, partindo dos bairros centrais em direção à periferia] direitinho, metade do círculo é rompido pela Baía de Guanabara, mas era possível você aplicar, de todo um pedaço que ia da Glória até a área do porto, uma metade de circunferência rodeando o Centro. (Nina Rabha, entrevista concedida à autora em 2008) A caracterização socioespacial da Zona Portuária carioca feita pela planejadora havia se baseado, portanto, no conceito de zona degradada elaborado por Robert Park no âmbito da Escola de Chicago dos anos Em sua definição, tal conceito compreendia a cidade a partir de duas dimensões cons- 14 Como sugerido por Annette Weiner (1992), em oposição ao bem alienável, um bem inalienável é entendido como parte da herança de determinado grupo ou indivíduo, que não deve ser trocado, vendido ou extinto, já que sua perda desencadearia uma mudança de status e posição social de seu proprietário perante sua rede de relações.

53 titutivas uma organização física e uma ordem moral e buscava circunscrever bairros residenciais marcados pela homogeneidade e pela significativa articulação entre sociabilidade e vizinhança. 15 Mas, na narrativa da planejadora e na prática das intervenções propostas pela Prefeitura na região, esse conceito desconsiderava a composição social dos bairros portuários e centrais, e utilizava forte carga normativa, conduzindo à conclusão de que havia aspectos sociais negativos na Zona Portuária e maus usos de seus espaços. Nas observações realizadas durante minha pesquisa sobre as práticas dos usuários desses espaços e suas formas de narrá-los, no entanto, era evidente a variedade de classificações, cosmologias e formas de habitar que neles coexistia. Assim, para alguns como parte dos planejadores urbanos, comerciantes, agentes de segurança pública e representantes da Igreja Católica, tais espaços eram percebidos como fisicamente degradados e possuidores de habitações insalubres, vazias ou invadidas, além de socialmente marginalizados ou criminosos por causa de sua associação com a prostituição e o tráfico de drogas. Mas, para outros como a maioria de seus moradores e dos envolvidos com movimentos sociais e recreativos, esses mesmos espaços eram quase sempre percebidos a partir de nuanças valorativas pautadas por relações afetivas e de vizinhança. Tal diversidade de percepções ressaltava o caráter criativo desses espaços, já que eles eram capazes de ser inventados, assim como de inventar subjetivamente seus múltiplos habitantes (Wagner, 1981). Não eram, portanto, espaços moldáveis a partir somente de ideais urbanísticos. Embora tais ideais tivessem um grande poder de agência, havia outros imaginários também capazes de produzir diferentes classificações, interpretações de passado e narrativas de tradição, demarcando fronteiras identitárias e territoriais próprias. 15 Como observado por Heitor Frúgoli (2007), uma das críticas posteriores feitas à tal espacialização do social proposta por Robert Park foi que ela estaria embasada na ideia de ecologia humana, cuja polêmica inspiração darwinista oriunda das ciências naturais colocava como analiticamente central a competição entre indivíduos pela sobrevivência e pelo espaço. Entretanto, essa interpretação ecológica buscava responder a uma literatura eugenista e antiurbana da época e esteve presente apenas na gênese da teoria de estrutura urbana da Escola de Chicago, tendo os resultados das suas próprias pesquisas empíricas interpelado as concepções teórico-conceituais ecológicas.

54 Os projetos urbanísticos para o Morro da Conceição e seus efeitos locais Elevação geográfica de dimensões modestas, encravada na fronteira entre a Saúde e o Centro da cidade, entre 2007 e 2009 o Morro da Conceição apresentava em sua base vias amplas, um intenso trânsito de carros, ônibus, vans e pessoas e o predomínio de sobrados de dois ou três andares ocupados pelo pequeno comércio (pastelarias, lojas de sucos, bares, restaurantes, lojas de materiais e serviços para escritório, depósitos de bebidas, oficinas, etc.). Já o acesso às suas partes médias e altas era possibilitado por vias estreitas, em sua maioria de paralelepípedos ou pedras portuguesas, e caracterizado pela ausência de transporte coletivo e tráfego de apenas poucos carros e motos. Ocupacionalmente, todos os imóveis dessas partes médias e altas eram sobrados utilizados de forma residencial, com exceção de três pequenos bares de propriedade de moradores e de edificações amplas, mas horizontalizadas, pertencentes ao Exército, à Igreja Católica e à Universidade. 16 Juntos, esses aspectos materiais produziam sensorialmente a diminuição dos ruídos e a desaceleração do ritmo fisiológico, conduzindo à sensação de passagem para um outro tempo e espaço da cidade. Mas essa sensação não resultava de um esquecimento daquela ilha urbana pelas ações governamentais, como diversas vezes escutei de habitantes e especialistas em planejamento urbano como explicação para a suposta manutenção das características físicas das vias e sobrados das partes médias e altas do morro ao longo dos anos. A pesquisa que realizei apontou que tal espacialidade havia sido contínua e ativamente construída, tanto através das práticas cotidianas de seus habitantes quanto das diversas e muitas vezes contraditórias políticas de ordenamento e gestão das sucessivas prefeituras. E que, como resultado desse processo de moldagem, o Morro da Conceição estava se consolidando como um sítio histórico de origem portuguesa na virada do século XXI. Entre 1998 e 2000, um grande projeto urbanístico da Prefeitura foi realizado no morro e reforçava justamente esse imaginário que apresentava seus espaços como cristalizados e de passado português : o Programa de Recuperação Orientada (ProRio), conjunto de estudos e ações patrimo- 16 No topo do morro havia a 6. Divisão Cartográfica do Exército ocupando as instalações do antigo Palácio Episcopal e da Fortaleza da Conceição, e o Departamento de astronomia da UFRJ, instalado no Observatório do Valongo. Mais próximo à base, havia uma igreja e duas escolas dirigidas pela Venerável Ordem Terceira de São Francisco.

55 niais, arquitetônicos e urbanísticos elaborado em associação com o governo francês. 17 Suas propostas e resultados foram logo em seguida difundidos pelo livro Morro da Conceição: da memória o futuro, 18 em que explicavam que o objetivo do programa era criar diretrizes de gestão do espaço construído e da paisagem para que fossem valorizados o patrimônio urbanístico, paisagístico e arquitetônico de setores da cidade em processo de degradação que tenham especificidades destacáveis (Sigaud; Pinho, 2000, p. 13). Em seu relato, Nina Rabha apontou que havia ainda entre os idealizadores do programa outra motivação para a intervenção, que era a percepção da existência de inúmeras semelhanças entre o morro e o bairro lisboeta de Alfama. Era muito igual, tanto a arquitetura parecida quanto o conteúdo social original. É da mesma área dos ocupantes de Alfama e isso não sou eu que digo, é o diretor de Reabilitação Urbana de Lisboa, o Felipe Lopes. Eu conheci o Felipe em um seminário em Santos, fiquei louca com o que ele mostrou em Alfama, achei que tinha tudo a ver com o Morro da Conceição. Fui a Alfama, fotografei ladeira, casa, pórtico, os miradouros, que é como eles chamam aqueles larguinhos lá em Portugal, no morro, para a população mais velha tomar sol, criança brincar e tal. E voltei e fiz ângulos iguaizinhos no Morro da Conceição. Então era um conjunto de slides que mostrava um lugar em Alfama e as semelhanças e ausências de tratamento, que tipicamente é só uma ausência de tratamento, seja do espaço público, seja do espaço privado. As casas aqui estão decadentes, as casas lá estão todas conservadas. A ladeira aqui não tem nem corrimão e lá tem aquele corrimão bonito, de designer e tal, tudo pavimentado, não tem água escorrendo pela pedra, não tem esgoto clandestino. Então era um trabalho que visava entrar no morro e dotar a área inteira de qualificação. (Nina Rabha, entrevista concedida à autora em 2008) 17 Classificado como cooperação técnica, no ProRio o governo francês disponibilizou, através dos Ministérios do Equipamento, da Cultura e das Relações Exteriores, consultores, técnicos e especialistas em patrimônio e reabilitação. 18 O livro foi escrito por Márcia Frota Sigaud e Claudia Maria Madureira Pinho e baseado nos estudos da então diretora do IPP, Ana Luiza Petrik Magalhães, e da gerente de Urbanismo, Nina Rabha. Sua elaborada produção editorial incluiu encadernação de capa dura, impressão colorida, papel couché, diversas ilustrações, fotografias, mapas, desenhos e transparências. Tal produção indicava que seus idealizadores visavam alcançar um público de alto poder aquisitivo e mais amplo do que o formado pelos especialistas do Urbanismo e Arquitetura.

56 A comparação do morro com Alfama havia feito, assim, que suas supostas ausências ficassem ressaltadas, e não suas características e contextos sociais concretos. Mas, entre as afirmações de que faltavam conservação dos imóveis, equipamentos como corrimão, boa pavimentação e rede de abastecimento e esgoto, Nina Rabha havia também identificado algumas semelhanças : a arquitetura e o conteúdo social original. Ou seja, a planejadora havia indicado que a fonte simbólica para a construção do sítio histórico do morro não estava calcada no presente, mas na idealização de um passado comum entre as duas localidades. Assim, no livro que divulgava os dois anos de execução do ProRio, o casario, os logradouros e a população do Morro da Conceição foram organizados através dessa lógica que afirmava ser seu passado caracterizado por construções e moradores provenientes de Lisboa, presença que seria visível também nas igrejas, fortificações, armazéns, mercado de escravos, pequenos aterros e trapiches da Zona Portuária. Na narrativa construída pelos planejadores, apenas depois da expansão urbana, no final do século XIX, outros grupos sociais haveriam contribuído com suas heranças, como os escravos recém- -libertos, os imigrantes europeus e a classe trabalhadora em geral. E tanto o final do passado da região quanto do morro foram delimitados nessa narrativa pelas obras de urbanização realizadas pelo prefeito Pereira Passos na virada do século XX. Os planejadores então postularam que teria havido uma diferença nas formas de ocupação de seus espaços: a área aterrada da orla da baía da Guanabara teria se transformado continuamente depois da construção do porto moderno, com seus galpões, armazéns, fábricas e ramais ferroviários, configurando um espaço funcional voltado para as atividades portuárias, industriais e comerciais; e os morros teriam se configurado como espaços cristalizados fisicamente e foco de resistência residencial. Assim, foi sugerido um movimento de oposição entre tais espaços: no transcorrer de todo o século XX, a área aterrada teria se mantido em constante mudança e os morros, em constante permanência. Se, porém, as informações fornecidas sobre as áreas aterradas e os morros pararam nessa virada de século, determinados eventos ligados aos projetos urbanísticos e patrimoniais subsequentes à Reforma Pereira Passos foram detalhados na narrativa do livro com o auxílio de mapas. Foram mostradas as classificações da Zona Portuária e do Morro da Conceição instituídas pelos planos Agache (1930), Doxiadis (1965), Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro (1977) e Diretor (1992). Especificamente sobre o morro, foram citados ainda os tombamentos individuais realizados pelo Iphan em

57 1938, como a Fortaleza da Conceição, a Igreja de São Francisco da Prainha, o Palácio Episcopal e o Jardim Suspenso do Valongo, bem como assinalados os tombamentos da Pedra do Sal pelo governo estadual em 1987 e de um cortiço e um sobrado pela Prefeitura em Ou seja, com a idealização do passado português, a citação detalhada dos planos urbanísticos e patrimoniais implantados no último século e a não abordagem das dinâmicas sociais e culturais locais, foi posta como central nessa narrativa a atuação dos próprios planejadores urbanos na região e no morro e seus imaginários, como se apenas os eventos a eles ligados possuíssem historicidade. Mesmo nessa narrativa que enfatizava as noções de tempo, espaço e urbanidade dos planejadores municipais, não foi, no entanto, apresentada uma reflexão sobre como as diferentes intervenções governamentais dialogavam entre si e quais os efeitos sociais provocados sobre os espaços portuários e seus habitantes. A área aterrada do porto, por exemplo, além de aspectos funcionais, econômicos e utilitários, tinha produzido vínculos afetivos e sociais, como os dos movimentos sindicais e empresariais. A progressiva transferência das atividades portuárias para outros espaços da cidade e do estado resultou no uso, por escolas de samba, de vários galpões desativados. E os diversos terrenos e edifícios públicos abandonados ao longo dos anos também haviam sido informalmente ocupados por grupos familiares e vendedores ambulantes de atuação local. 19 Da mesma forma, as diferentes e sucessivas políticas urbanísticas e patrimoniais incidentes na região produziram relações dialéticas entre suas áreas elevadas, planas e aterradas. No trabalho de campo que desenvolvi no Morro da Conceição, pude observar os desdobramentos sociais causados pelo incentivo às atividades portuárias na divisão de seus sobrados em casas de cômodos para abrigar operários e funcionários da Marinha e na presença de migrantes brasileiros e estrangeiros que visavam trabalhar no Centro da cidade ou no porto; bem como a concentração dos usos residenciais em suas partes médias e elevadas e de sua base como área limítrofe de desenvolvimento de atividades industriais, de negócios e do pequeno comércio, divisões também impostas por planos urbanísticos. 19 Além das observações realizados no trabalho de campo, encontrei em levantamento bibliográfico diversas pesquisas que abordavam a ocupação dos bairros portuários pela população negra (Karacsh, 2000; Arantes, 2005; Pereira, 2007) e as narrativas de seus habitantes sobre trabalho, moradia e recreação (Thiesen; Barros; Santana, 2005).

58 Figuras 2.1 e 2.2. Largo da Prainha (à esquerda, 2007) e rua do Acre (à direita, 2009), base do morro. Fotografias da autora Figuras 2.3 e 2.4. Ladeira João Homem (à esquerda) e Largo da Santa (à direita), parte alta do morro. Fotografias da autora, 2007 No referente à produção das memórias do morro, as primeiras políticas patrimoniais haviam difundido durante anos o imaginário que associava seus espaços exclusivamente a um passado português, católico, militar e urbanístico/arquitetônico. 20 E, posteriormente, sua classificação como área de pre- 20 Vale ressaltar que a valorização de tais memórias fez parte de um contexto nacional mais amplo, em que as políticas patrimoniais do Iphan desempenharam uma função específica. Como apontam Gonçalves (1996) e Fonseca (2005), no período de fundação do Iphan, em 1937, o Estado tinha como um de seus objetivos fortalecer a ideia de nação como espaço social e culturalmente coeso. Seus investimentos voltaram-se então para a homogeneização do sistema educativo e a criação de símbolos totalizantes, com as práticas de patrimonialização ganhando importante função na produção de um sentimento de unidade patriótica e na recusa do que era entendido como particularismos regionais. Essa concepção fundadora de patrimônio nacional foi encampada pelo primeiro diretor do Iphan, o arquiteto Rodrigo Melo Franco de Andrade, e se tornou dominante no instituto até o final da década de Nesse período, as políticas de preservação focaram o chamado patrimônio de pedra e cal, e os tombamentos de bens edificados buscaram valorizar os considerados aspectos singulares e tradicionais da nação: igrejas católicas, edificações militares e prédios de órgãos públicos.

59 servação ambiental e paisagística e consequente tutela patrimonial também havia garantido, pelo menos em parte, a dita cristalização física de seus sobrados e logradouros, viabilizando e legitimando a própria proposta de realização do ProRio. O ProRio e seu sistema de autenticidade sobre espaços e habitantes Como indicava o título do livro Morro da Conceição: da memória o futuro, porém, as narrativas dos planejadores do ProRio não estavam exatamente interessadas em produzir uma reflexão sobre o passado do morro. A principal preocupação do programa parecia ser o estabelecimento, no tempo presente, de conexões entre o passado que eles haviam imaginado sobre o morro e o que seria de seu futuro. Assim, logo após a seleção desses eventos tidos como históricos, foram apresentadas as pesquisas arquitetônica, socioeconômica, fundiária, arqueológica e de organização comunitária que haviam sido desenvolvidas no âmbito do programa e que buscavam identificar os aspectos construtivos do espaço e as características de seus habitantes. Nos dados fornecidos, os planejadores apontaram que no morro habitavam cerca de 2 mil pessoas e que 48% dos domicílios eram ocupados por inquilinos, 27,4% por proprietários e os domicílios restantes estavam fechados, vagos ou vagos em reforma. A pesquisa fundiária identificou ainda que os imóveis pertenciam a particulares e a instituições religiosas e governamentais, 21 mas que havia sido mais difícil delimitar os tamanhos dos lotes entre os proprietários particulares, por causa do que consideraram ser uma constante indefinição entre área pública e privada. O que para os planejadores era uma indefinição, no entanto, para muitos dos habitantes do morro era apenas outra forma de conceber seus espaços, onde a oposição público e privado não era tão significativa ou se encontrava fundida a outras lógicas de classificação. Na observação que realizei dos usos das partes médias e elevadas do morro, por exemplo, percebi serem correntes os conflitos e constrangimentos provocados pela circulação de pessoas de fora em alguns logradouros que, embora classificados pela Prefeitura 21 Entre as instituições religiosas, a que possuía o maior número de propriedades era a católica Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência e, entre as instituições governamentais, a com maior propriedade no morro era a União Federal, por causa dos extensos territórios do Observatório do Valongo da UFRJ, da Fortaleza da Conceição e do antigo Palácio Episcopal.

60 como vias públicas, eram utilizados como extensões das moradias para atividades recreativas ou domésticas. Essa característica dos usos era produzida e reforçada ainda pelos aspectos físicos e construtivos dessas próprias partes do morro, que possuíam ruas onde eram pouco nítidas as separações entre as fachadas dos sobrados, as estreitas calçadas e o pequeno espaço de tráfego dos carros, fazendo que moradores, pedestres e os poucos motoristas se observassem cotidianamente. A pesquisa de prospecção arqueológica foi a única que não se ateve apenas ao estudo e planejamento de ações, resultando em uma intervenção direta dos planejadores do ProRio na materialidade do morro. Foi então eleito por eles o Jardim Suspenso do Valongo, espaço onde percebiam haver um abandono físico e social causado pelo soterramento de entulho e lixo, invasão de vegetação, danificação por vandalismo e frequência de mendigos e desocupados. Figuras 2.5 e 2.6. Jardim Suspenso do Valongo, sete anos após o fim do ProRio. Fotografias da autora, 2007 Após a intervenção, o jardim foi considerado retornado ao seu estado original. No entanto, esse termo dizia respeito unicamente a uma concepção dos planejadores urbanos, excluindo outras percepções sobre o mesmo espaço. Isso porque o passado do jardim remetia à atuação da Prefeitura, por ter sido uma das construções embelezadoras da gestão de Pereira Passos. Mas também remetia às narrativas de passado de uma parte dos habitantes do morro, que considerava o espaço significativo por ter abrigado o antigo comércio de escravos africanos. Naquele momento de concepção das ações do ProRio, no entanto, a ausência dessa memória afro-brasileira não havia sido uma falta de conhecimento dos planejadores da Prefeitura sobre o seu passado escravista, e sim a

61 materialização de um processo seletivo de memórias. Pois, ao apresentar no livro suas proposições de ordenamento do morro, eles construíram narrativamente um contraponto à ocupação considerada positiva de seus espaços por instituições religiosas, militares e governamentais: afirmaram que, apesar da instalação de instituições prestigiadas, o morro teria sido obrigado a conviver com equipamentos indesejados, como o mercado de escravos e as atividades de exploração de pedreiras, comerciais, portuárias e ligadas aos estaleiros, fundições, serralherias e ferrarias. E que tais atividades teriam atraído uma população e suas formas de habitar também percebidas como inadequadas: operários fabris e trabalhadores portuários que se abrigavam em casas de cômodo e cortiços. Assim, foi partindo de um sistema valorativo específico que os planejadores construíram suas noções de autenticidade, em que evocaram a ideia de que haveria determinados espaços e habitantes portadores de uma ligação supostamente verdadeira e genuína com o morro, em detrimento de outros conjunturais. Ou seja, eles postularam haver uma autenticidade imanente ao próprio Morro da Conceição, que uniria narrativas de passado, formas construtivas e determinadas identidades. 22 E, partindo dessa idealização, identificaram o que e quem deveria ser preservado, em contraste com o que e quem deveria ser modificado ou disciplinado. Os planejadores denominaram então de áreas sem uso ou de uso precário os espaços que seriam o foco prioritário de atuação dos projetos de transformação urbana. Também identificaram as áreas utilizadas para lazer, os pontos de visadas panorâmicas do morro, os elementos da paisagem natural e os perfis das vias com a intenção de definir novos parâmetros urbanísticos. E, com essas classificações, agiram de maneira própria sobre tais espaços, visando, entre outros efeitos, ordenar as noções de público e privado e produzir formas construtivas consideradas atraentes para a habitação de famílias de classe média e para a visitação turística. Mas essas classificações não correspondiam às tantas outras classificações que seus habitantes possuíam. Em tal diversidade de percepções, por exemplo, muitos dos espaços entendidos pelos planejadores como arruinados, precários, sem uso, invadidos ou insalubres eram considera- 22 Existe uma ampla literatura sobre o uso corrente do termo autenticidade que problematiza a ideia de verdade, de genuinidade, intimidade por ele evocado (Benjamim, 1994; MacCannel, 1976; Handler, 1985; Gonçalves, 1988; Clifford, 1994). Seja se referindo a objetos de arte, experiências turísticas ou a bens culturais que compõem os chamados patrimônios nacionais, muitos estudiosos questionam a utilização dessa noção como algo imanente ao próprio objeto de estudo.

62 dos por parte dos habitantes experiências habitacionais positivas de moradia de famílias ligadas ao porto e ao comércio pequeno ou informal. Os mesmos sobrados podiam ser ainda narrados de forma ainda mais negativa por outros habitantes, que os denominavam cabeças de porco, terrenos baldios, pontos de prostituição e drogas e abrigos de mendigos. Assim, pautados por seus próprios sistemas valorativos, os planejadores propuseram haver uma relação entre o estado de conservação física dos imóveis e o perfil socioeconômico de seus habitantes. E defenderam a criação de um monitoramento da atuação do mercado imobiliário após a implantação do ProRio, para que fosse garantida a manutenção de seus ocupantes originais, identificados na pesquisa sobre a organização comunitária. Nessa pesquisa, espaços e habitantes foram ordenados em cinco segmentos das dinâmicas socioespaciais. A primeira categoria ocuparia o eixo cume morro e seria composta predominantemente por proprietários de imóveis, moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhóis, que possuiriam uma relação afetiva intensa com o espaço. A segunda categoria ocuparia o flanco norte do morro, composto predominantemente por locatários, moradores recentes, migrantes nordestinos em sua grande maioria que possuiriam uma relação meramente conjuntural com o espaço. E a terceira categoria social foi identificada como ocupante do sopé comercial e seria composta por comerciantes instalados na base do morro, sem necessidade de transitar por seu interior, de frequentar seus espaços nem de compartilhar das mesmas expectativas dos moradores do morro. Nas palavras dos próprios planejadores: A população estimada do morro é de 2 mil habitantes. Aí estão incluídos os moradores antigos, muitos descendentes de portugueses e espanhóis, que tradicionalmente estiveram ligados às atividades portuárias e cuja relação afetiva com a área é intensa, traduzindo-se numa forte identidade socioespacial. No entanto, a área vem sofrendo marcante processo de degradação, físico e social, dada a proximidade com a Zona Portuária e todas as implicações que ela acarreta. Com isso, a população original vem sendo substituída por migrantes de outros estados do país. Aqueles que têm condições e desprendimento para abandonar a área, o fazem. Os moradores recentes, migrantes nordestinos em sua grande maioria (35% segundo pesquisa socioeconômica), têm uma relação com o morro meramente conjuntural. Eles se instalam aí por sua proxi-

63 midade com o mercado de trabalho, pelos baixos preços do mercado imobiliário e pelo conforto proporcionado pela disponibilidade da infraestrutura urbana. Há ainda a categoria dos comerciantes, que estão principalmente instalados na base do morro, cujos trajetos não implicam a necessidade de transitar por seu interior, de frequentar seus espaços nem de compartilhar das mesmas expectativas. Esta categoria está muito mais voltada para as relações com a cidade do que com o próprio morro. Essas são basicamente as três grandes categorias sociais identificadas no morro. Os moradores antigos, geralmente ocupando as residências no cume do morro, são os próprios proprietários e não tem grande afinidade com os moradores mais recentes, estes estabelecidos, sobretudo, na vertente norte do morro, e são, em grande parte, locatários. Grande parte da tensão social existente no morro, portanto, gira em torno dessas duas categorias, de suas aspirações, suas identidades, de seus valores, que acabam por gerar uma certa relação de hostilidade entre ambas as partes. Apesar dessa fragmentação visível nas relações de vizinhança, existe um tecido social pronto para interagir toda vez que o equilíbrio interno dessas relações for ameaçado. Como em todo o projeto, este também introduz elementos novos que geram um certo desconforto nas relações internas e demandam tempo para se acomodar. (Sigaud; Pinho, 2000, p. 58) A classificação dos planejadores sobre a comunidade do morro foi baseada, portanto, em uma gradação entre os que eram percebidos como autênticos/ puros/ genuínos, até os percebidos como inautênticos/ impuros/ conjunturais. E pautada principalmente pelo tempo de moradia, relação econômica com o imóvel, local de origem e tipo de uso do espaço, a partir dos dualismos morador antigo x morador recente, proprietário x locatário, português e espanhol x nordestino, morador x comerciante. Mas havia também localmente uma ampla possibilidade de classificações identitárias que essa segmentação não contemplava. No cotidiano do morro, uma mesma pessoa poderia ter sua identidade definida de acordo com seu local de moradia, afinidades religiosas, atuação profissional, frequência de determinado bar, estado civil, time de futebol, etc. Assim, por exemplo, um morador, além de ser recente, locatário e nordestino, também se identificava e/ou era identificado pelos demais moradores como elite da parte

64 alta, filho de católicos, arquiteto, frequentador do bar do Sérgio, separado e botafoguense. 23 A importância de tais demarcadores identitários oscilava entre os diferentes contextos de interação e os deslocamentos desse morador, estivesse ele na pracinha brincando com sua filha, realizando uma visita guiada com turistas pelas ruas do morro, assistindo a um jogo de futebol no bar do Geraldo, negociando o aluguel com o senhorio, etc. Além dessas classificações dos planejadores sobre os moradores do morro, que forneciam uma falsa percepção de estabilidade e rigidez identitária, chamava também atenção que os habitantes do flanco sudeste, setor onde estava localizado o Jardim Suspenso do Valongo e a Ladeira Pedro Antônio, não tivessem sido por eles descritos ou citados. Eram, no entanto, esses espaços que haviam sido classificados como de grande potencial para as operações de reabilitação, por ter a maior quantidade de imóveis vazios, vazios em reforma, fechados, invadidos, insalubres e com risco estrutural. A não identificação desses habitantes na pesquisa produzia, assim, a percepção indireta de que eram inexistentes. O que a análise do livro de divulgação dos resultados dos dois anos de ProRio demonstrou, portanto, foi que os planejadores, ao vincular determinados atributos sociais, morais, estéticos e urbanísticos aos diferentes espaços e habitantes do Morro da Conceição, buscaram inventar o tal sítio histórico de origem portuguesa e legitimar seus próprios ideais de revitalização urbana. Segundo eles, através desse sítio histórico os habitantes da cidade teriam acesso a uma memória ímpar, que seria portada pelos objetos, logradouros e modos de vida por eles classificados como autênticos e como possuidores de propriedades mediadoras com as experiências do passado. 24 No entanto, ao proceder dessa forma, os planejadores também lograram produzir, como efeito no presente, uma identificação de quais espaços e habitantes deveriam ser preservados, disciplinados e transformados. 23 Essa descrição é dedicada a Antonio Agenor Barbosa, morador da rua Jogo da Bola, que me abrigou em sua casa durante os seis meses iniciais de trabalho de campo no morro e que foi um interlocutor fundamental para as primeiras compreensões sobre seus espaços e habitantes. 24 Para uma discussão sobre a função mediadora dos objetos, coleções e patrimônios, ver Pomian (1982) e Stewart (1984).

65 Da imaginação urbanística de um sítio histórico ao retorno da Pequena África Através da criação de uma narrativa de passado histórico português, da valorização de intervenções urbanísticas e preservacionistas governamentais e da proposição de um novo tratamento construtivo para sobrados e logradouros, o ProRio buscou, como dito anteriormente, incentivar a valorização imobiliária e o desenvolvimento turístico do Morro da Conceição. Mas, como desde seu nascimento a noção de turismo está vinculada à construção de complexos exibicionários da diversidade cultural (Kirshenblatt-Gimblett, 1998), em que o turista busca por uma experiência diferente da que vivencia em seu cotidiano, os espaços destinados a esse fim precisaram ser ancorados em uma narrativa específica, como a organizada sobre o passado do morro e sua ocupação social e construtiva de origem portuguesa. Assim, apesar de as ações propostas pelo programa não terem sido plenamente executadas, tanto por sofrerem adaptações em sua gestão quanto por terem deparado com resistências locais, elas produziram a difusão de um imaginário próprio: o do sítio histórico do morro. E produziram, consequentemente, a suposta necessidade de planejar, ordenar e disciplinar determinados modos de vida e formas de habitar considerados inadequados, para que a idealização desse espaço fosse agenciada e assegurada. O controle do submundo e da zona perigosa, que Nina Rabha e demais planejadores municipais atuantes na Zona Portuária postularam ter sido a motivação das intervenções urbanísticas, ganhou então uma forma material. E, discursivamente, os legitimou como os técnicos capazes de civilizar os habitantes e convertê-los ao que consideravam uma urbanidade positiva, como havia desejado um século antes o prefeito Pereira Passos. Mas, como o morro era socialmente múltiplo, as ações dos planejadores municipais provocaram a movimentação de inúmeras memórias e identidades locais excluídas das narrativas de passado do ProRio. Durante meu trabalho de campo, não por coincidência encontrei a noção de patrimônio operada de forma mais organizada, principalmente pelos habitantes que não haviam sido contemplados na organização comunitária identificada pelos planejadores municipais, e para cujos espaços estavam sendo concebidas as principais ações urbanísticas. Nesse processo tanto de formação de grupos quanto de autoconsciência do que seria uma tradição e identidade singulares, tais habitantes passaram a protagonizar conflitos em busca de reconhecimento social e de acesso ou permanência em relação aos espaços do morro.

66 A categoria nativa de Pequena África foi uma das narrativas de passado, que mobilizou diferentes interpretações e demandas em torno do que seria no presente a memória da ocupação pelos negros e pelo povo do santo de diversos espaços não só do morro, mas de toda a Zona Portuária. Alguns movimentos sociais de moradores sem teto, por exemplo, acionaram símbolos da escravidão para reivindicar uma política habitacional popular. 25 Um centro de memória e pesquisa sobre o tráfico de escravos, o Instituto Pretos Novos, foi também criado em um sobrado da Gamboa após seus proprietários descobrirem a existência de um cemitério de africanos enterrados a poucos palmos do piso. E a escola de música Instituto Batucadas Brasileiras se instalou em um sobrado na Praça dos Estivadores, buscando promover e articular grupos de música percussiva do Atlântico Negro, noção que aludia à rota de países envolvidos na escravidão africana. E, no Morro da Conceição, dois grupos narraram especificamente o passado escravista da região, movimentando a noção de Pequena África: a Comunidade de Remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal e o grupo carnavalesco Afoxé Filhos de Gandhi. Figuras 2.7 e 2.8. Pedra do Sal (à esquerda, 2007) e sede do Afoxé Filhos de Gandhi (à direita, 2008). Fotografias da autora 25 Surgiram então três ocupações de moradores sem teto trazendo em seus nomes referências ao movimento abolicionista brasileiro: a Ocupação Chiquinha Gonzaga, criada em julho de 2004 em um prédio na rua Barão de São Felix, pertencente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); a Ocupação Zumbi dos Palmares, surgida em abril de 2005 em um edifício do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), na avenida Venezuela; e a Ocupação Quilombo das Guerreiras, realizada em outubro de 2006 em um prédio da Companhia Docas, na avenida Francisco Bicalho.

67 O primeiro grupo havia se formado em decorrência de um conflito habitacional entre moradores de alguns sobrados na base do morro e dirigentes da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (VOT), entidade católica proprietária dos imóveis. Em 2001, mesmo ano de divulgação do plano urbanístico Porto do Rio, tal entidade começou um processo de retomada de posse de diversos imóveis, alegando desejar expandir os projetos assistenciais e educacionais que possuíam na região. E nos quatro anos que se seguiram, mais de trinta famílias que eram inquilinas ou moravam informalmente em sobrados do morro com a anuência da entidade, tiveram seus aluguéis reajustados a preço de mercado, foram realocadas para outros imóveis ou despejadas. Nos casos em que houve a contestação dos moradores das medidas que estavam sendo tomadas pela VOT, a entidade movimentou processos judiciais em que as categorias acusatórias de invasores e inadimplentes foram acionadas para justificar a mobilização de força policial de desocupação. Duas das famílias que estavam entre os citados nas ações de despejo, no entanto, já moravam havia muitos anos na Zona Portuária e atuavam no Movimento Negro Unificado. Com vínculos afetivos de longa data estabelecidos na vizinhança e também vínculos políticos em órgãos governamentais federais e regionais, elas conseguiram agrupar outras três famílias do morro para resistir aos despejos. Em comum, todas essas famílias eram de praticantes do candomblé e haviam interpretado as medidas da VOT como um rompimento por parte de seus administradores das relações filantrópicas até então estabelecidas. Como forma de paralisar os despejos, no final do ano de 2005 essas cinco famílias acionaram o artigo 68 do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios da Constituição Federal e solicitaram à Fundação Cultural Palmares (FCP), órgão do governo federal, o reconhecimento de dezenas de imóveis na base do morro como território étnico do Quilombo da Pedra do Sal. Em sua aplicabilidade, 26 esse artigo qualificava como comunidade quilombola passível de receber o título de um território de uso coletivo pelo Estado os grupos que se autoatribuíam como étnico-raciais, que possuíam trajetória histórica própria, relações territoriais específicas e uma ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. 27 A autoatribuição das famílias do morro como grupo étnico-racial fez então que a FCP emitisse uma certidão de reconhecimento e iniciasse o 26 A aplicabilidade do artigo foi definida apenas em 2003, através do Decreto Para uma sistematização sobre a elaboração e aplicação desse artigo, ver Arruti (2006).

68 processo de regularização fundiária no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No centro da argumentação do pedido de titulação do território, foi apresentada a necessidade de salvaguarda da Pedra do Sal por seus legítimos herdeiros, em uma referência ao seu tombamento como monumento histórico e religioso afro-brasileiro em 1987 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). Assim, vinte anos depois, esse tombamento patrimonial tornou-se, junto com a presentificação da noção de Pequena África, um mecanismo simbólico central na formação do Quilombo da Pedra do Sal. Mas, como dito anteriormente, a maior parte dos imóveis da base do morro apresentavam um uso comercial. Assim, nas proximidades da Pedra do Sal, além de sobrados usados como moradia por famílias com diferentes autopercepções identitárias, havia também os que eram voltados para serviços diversos, como restaurante, bar, oficina de reciclagem de papel, depósito de bebidas, etc. Tal multiplicidade de usos tornava esse espaço extremamente polifônico e fazia, portanto, que o território étnico tivesse de ser sensível e ciclicamente produzido pelas famílias pleiteantes. Alguns demarcadores temporais foram então vinculados por essas famílias à Pedra do Sal, através da elaboração de um calendário ritual que produzisse a suspensão provisória de seus usos cotidianos e potencializasse simbolicamente suas autoconsciências como famílias pertencentes a um grupo e território étnico-racial. Tais eventos festivos passaram a operar, portanto, como ritos de calendário (Van Gennep, 1960), por meio dos quais era inaugurado um tempo concentrado de circulação intensa de pessoas e suas trocas de dádivas com orixás, mortos, humanos e não humanos. Foram escolhidas para ser comemoradas com grandes festividades as datas de São Jorge (23 de abril), da Consciência Negra (20 de novembro) e do Samba (2 de dezembro). Nessas comemorações algumas ações rituais específicas eram realizadas, como a lavagem da Pedra do Sal por praticantes do candomblé, com especial participação do Afoxé Filhos de Gandhi; a oferta de comida de santo para os falecidos e notórios sambistas, portuários e filhos de santo que no passado frequentaram a pedra; a distribuição para os convidados de comidas associadas aos hábitos alimentares dos escravos, como feijoada ou frango com quiabo; e a apresentação de grupos cuja base musical eram os instrumentos percussivos. Em torno dessas festividades, além do envolvimento de amigos e vizinhos, se congregavam integrantes do movimento social em prol da moradia popular, do movimento negro, intelectuais, agentes do Estado e jornalistas,

69 presenças consideradas importantes na legitimação do pleito étnico. Nessas comemorações, no entanto, não eram afirmados apenas os aspectos jurídicos e políticos do patrimônio da Pedra do Sal; sua eficácia era principalmente baseada em noções identitárias e religiosas, a partir do pertencimento dos pleiteantes aos afrodescendentes e ao povo do santo. O outro grupo social que articulou no morro a noção de Pequena África foi o composto pelos integrantes do Afoxé Filhos de Gandhi, bloco carnavalesco que se organizava socialmente através de sua diretoria e de seus desfilantes. No cotidiano, eram quase todos trabalhadores do setor de serviços, como taxistas, funcionários públicos, professores, inspetores escolares, merendeiras, faxineiras, músicos, enfermeiras, donas de casa e aposentados. A diretoria era composta por cerca de quinze pessoas que se responsabilizavam pela manutenção dos preceitos religiosos do candomblé e pela presença do grupo em eventos organizados por institutos, órgãos públicos ou movimentos sociais para a valorização e o reconhecimento da cultura negra e dos cultos afros. E os desfilantes eram todos aqueles que trajavam a fantasia do Gandhi durante o Carnaval e cujas unidades sociais de participação eram as casas de candomblé, onde se identificavam como ialorixás, babalorixás, ekedis, ogans e iaôs. Para realizar seus ensaios carnavalescos e reuniões, a diretoria do Gandhi havia se apossado desde 1997 de um sobrado vazio pertencente ao governo estadual e localizado na rua Camerino, ao lado do alto muro do Jardim Suspenso do Valongo. Apesar de a sede estar localizada na Zona Portuária, quase todos os seus frequentadores moravam na Baixada Fluminense ou nos subúrbios da cidade. Mas a localização da sede de ensaios em espaços da região central ou portuária era considerada, desde a fundação do grupo em 1951, 28 essencial para aglutinar os participantes das diferentes casas de candomblé e criar o coletivo mais amplo do povo do santo, em que os vínculos locais dos bairros se dissipavam. As constantes iniciativas de retomada de posse do sobrado pelo governo estadual e sua classificação como ruína pelos planejadores urbanos da pre- 28 O mito de origem do Afoxé Filhos de Gandhi narrado por seus atuais e antigos integrantes remetia à fundação, em 1949, do Ijexá Filhos de Gandhy por estivadores de Salvador. O grupo carioca havia surgido dois anos depois, em 1951, por iniciativa dos baianos Milton Sapateiro e Rubens Sapateiro, que trabalhavam juntos no Palácio do Alumínio, estrutura metálica armada na Central do Brasil. Eles e outros ofereciam nesse espaço trabalhos manuais como de pintor, pedreiro, marceneiro, carpinteiro, ferramenteiro, chapeleiro e ourives. Assim, no pequeno grupo de homens que formou o primeiro desfile carnavalesco do afoxé carioca, poucos eram estivadores e nem todos eram baianos: o forte elo que os unia era serem filhos de santo.

70 feitura fizeram, no entanto, que os integrantes do Gandhi não conseguissem regularizar juridicamente a sede e reformá-la. Assim, entre os anos de 2008 e 2009, essas ainda eram as principais preocupações de sua diretoria, que passou a organizar eventos políticos em sua sede e articular uma narrativa que associava a importância de todo o espaço do entorno à sua energia, já que ali tinha funcionado o mercado de escravos do Valongo e, defronte, havia sido fundado o primeiro sindicato do país, o dos estivadores. O Gandhi então elaborou o projeto Centro de Cidadania Afoxé Filhos de Gandhi, com o apoio de outro grupo que se considerava herdeiro da Pequena África, o Instituto Batucadas Brasileiras, instalado em frente à sede do grupo, na Praça dos Estivadores. Tal projeto, que não chegou a ser implantado, previa a reforma do sobrado, ações voltadas para a geração de trabalho para a população local e a divulgação do Gandhi como patrimônio imaterial carioca. Nessa proposta de patrimonialização, havia a intenção de criar um centro de memória com um acervo sobre o grupo; instalar um memorial sobre a abolição na Praça dos Estivadores, composto por painéis com imagens e textos sobre a contribuição das etnias negras na formação da sociedade brasileira, e por uma concha acústica para a apresentação de shows de música; e instalar ainda um monumento nessa praça, comemorativo ao trabalho portuário. Em todas essas ações, era defendida a criação de símbolos positivos que se sobrepusessem ao que consideravam ser uma memória negativa dos tempos da escravidão. Assim, através de formas particulares, tanto o Quilombo da Pedra do Sal quanto o Afoxé Filhos de Gandhi se posicionaram contra as propostas urbanísticas da Prefeitura para o Morro da Conceição e a Zona Portuária no início do século XXI, movimentando um imaginário próprio em torno da noção de Pequena África. As famílias pleitearam o reconhecimento de um território étnico, argumentando a existência de um patrimônio negro e exigindo uma reparação não apenas simbólica, mas territorial, do que interpretaram como sendo eventos traumáticos ligados à escravidão. E o bloco carnavalesco interpretou esses mesmos eventos a partir de um patrimônio do santo e buscou a redenção da memória escravista através de sua monumentalização e musealização. Mas, em comum, ambos narravam a região e o morro como intrinsecamente relacionados ao candomblé, onde uma pedra, a esquina de uma rua ou um morador sem teto eram inseridos em uma hierarquia pautada por valores mágicos. * * *

71 Com os dados levantados na pesquisa, foi possível observar que as ações disciplinadoras das políticas urbanísticas são capazes, entre tantos efeitos, de produzir ou presentificar narrativas de memória e de formar uma autoconsciência dos habitantes em relação aos espaços da cidade. Pois, passando a se diferenciar subjetivamente em relação às experiências vivenciadas por outros grupos e indivíduos, eles iniciam a construção ativa de uma identidade capaz de ser afirmada e valorizada perante as outras, produzindo a emergência na esfera pública de suas demandas de reconhecimento social. Assim, o que os desdobramentos do processo de imaginação do Morro da Conceição como sítio histórico de origem portuguesa apontaram foi para o fato de que nem todos os espaços e memórias urbanas podem ser ideologicamente construídos e economicamente viabilizados pelas políticas governamentais. Pois, quando se trata do passado de objetos, espaços e pessoas, diferentes e desestabilizadoras lógicas podem ser movimentadas, como a da Pequena África, trazendo à tona memórias sempre passíveis de ser recontadas como a versão não exibida da patrimonialização da cidade. Os eventos recentes em torno da criação do Memorial do Cais do Valongo e do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, com o reconhecimento e oficialização pela Prefeitura dos marcos espaciais que os grupos que se contrapunham até então a seus projetos urbanísticos relacionavam à noção de Pequena África, apontam no entanto para as ambiguidades inerentes a todos os processos de produção e valorização de memória. Segundo o material de divulgação desse projeto especial pelos planejadores do Porto Maravilha: Nas últimas décadas, em particular, após o início das obras do Porto Maravilha, estudos e escavações arqueológicas trouxeram à tona a importância histórica e cultural da Região Portuária do Rio de Janeiro para a compreensão do processo da Diáspora Africana e da formação da sociedade brasileira. Achados arqueológicos motivaram a criação, pelo Decreto Municipal , de 29 de novembro de 2011, do Grupo de Trabalho Curatorial do Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana, para construir coletivamente diretrizes para implementação de políticas de valorização da memória e proteção deste patrimônio cultural. Cada um dos pontos indicados pelo decreto remete a uma dimensão da vida dos africanos e seus descendentes na Região Portuária. O Cais do Valongo e da Imperatriz representam a chegada e o comércio de

72 africanos. O Cemitério dos Pretos Novos mostra o tratamento indigno dado aos restos mortais dos povos trazidos do continente africano. O Largo do Depósito era área de venda de africanos escravizados. O Jardim do Valongo simboliza a história oficial que buscou apagar traços do tráfico negreiro. Ao seu redor, havia casas de engorda e um vasto comércio de itens relacionados à escravidão. A Pedra do Sal era ponto de resistência, celebração e encontro. E, finalmente, a antiga escola da Freguesia de Santa Rita, o Centro Cultural José Bonifácio, o maior centro de referência da cultura negra da América Latina, remete à educação e à cultura como instrumentos de libertação em nossos dias. Esses marcos receberão sinalização oficial de ponto do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana e atenção especial do Porto Maravilha Cultural. O Grupo de Trabalho do Circuito estabeleceu, além da sinalização, ações para ampliar o conhecimento desta parte da história da Diáspora Africana. A proposta prevê visitas guiadas, publicações e atividades de divulgação. [...] Hoje o Cais é candidato ao título de Patrimônio Histórico da Humanidade, reconhecimento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). 29 Algumas perguntas ficam, assim, em aberto para posterior pesquisa e análise. Essa afirmação e redenção da memória da escravidão trouxe o reconhecimento social daqueles habitantes que, poucos anos antes da descoberta do Cais do Valongo, se colocavam como herdeiros da Pequena África? Ou a lógica das políticas de patrimônio e urbanização manteve apartados passado e presente, produzindo apenas mais uma forma de ordenar e disciplinar os espaços da cidade com suas visitas guiadas, publicações e atividades de divulgação? Ou, como provoca Huyssen (2000), a monumentalização das memórias traumáticas não traria embutida um processo ativo de esquecimento dessas mesmas memórias? Sem uma pesquisa etnográfica sobre os atuais conflitos sociais na Zona Portuária decorrentes de sua urbanização, não é possível responder com segurança a nenhuma dessas questões. Permanece assim uma dúvida interpretativa se o memorial então construído pelo Porto Maravilha estaria criando, ou destruindo, um ícone escravista. Pois, como sugere Latour (2008), o iconoclash inerente à criação de tais ícones portaria a ideia de um choque sucessivo entre imagens, o que traria em si uma hesitação. Ou seja, a necessidade de 29 Disponível em: Acesso em: set

73 uma investigação pormenorizada para descobrir o que a recente monumentalização da memória da escravidão apresentaria de destruição, construção, subversão, entretenimento, acomodação, etc. das interações sociais entre os planejadores urbanos da Prefeitura e aqueles habitantes que se autoatribuem uma identidade afro-brasileira. Referências bibliográficas ABREU, Maurício. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos, ARANTES, Antonio Augusto. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas/São Paulo: Unicamp/Imprensa Oficial, ARANTES, Érika Bastos. O porto negro: cultura e trabalho no Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX. Dissertação de História. Campinas: Unicamp, ARRUTI, José Maurício Andion. Mocambo: Antropologia e história do processo de formação quilombola. São Paulo: Edusc, BARANDIER, Henrique. Projeto urbano no Rio de Janeiro e as propostas para a área central nos anos In: SILVA, Raquel Coutinho Marques da (org.). A cidade pelo avesso: desafios do urbanismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Viana & Mosley/Prourb, 2006, p BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte, BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Coleção Obras Escolhidas, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine. Introdução. In: BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine (org.). De volta à cidade: dos processos de gentrificação às políticas de revitalização dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006, p BRADBURY, Malcolm; MCFARLANE, James. Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

74 CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia da Letras, CLIFFORD, James. Colecionando arte e cultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 23, p , Rio de Janeiro, Iphan, COMPANS, Rose. Parceria público-privado na renovação urbana da Zona Portuária do Rio de Janeiro. Cadernos Ippur/UFRJ, ano 1, n. 1, p , Rio de Janeiro, ECKERT, Cornélia. Cidade e política: nas trilhas de uma Antropologia da e na cidade no Brasil. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias (org.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Antropologia. São Paulo: Anpocs/Instituto Ciência Hoje/ Bacarolla/Discurso, 2010, p FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Iphan, FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: ditos e escritos, v. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, FRÚGOLI, Heitor. Sociabilidade urbana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, FRÚGOLI, Heitor; ANDRADE, Luciana Teixeira; PEIXOTO, Fernanda Arêas (orgs.). As cidades e seus agentes: práticas e representações. Belo Horizonte: PUC Minas/Edusp, GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Iphan, Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos patrimônios culturais. Estudos Históricos 1 (2), p , Rio de Janeiro, Os limites do patrimônio. In: LIMA FILHO, Manuel Ferreira; ECKERT, Cornélia; BELTRÃO, Jane Felipe (orgs.). Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Associação Brasileira de Antropologia/Nova Letra, GRUMBACH, Cristiana (roteiro e dir.). Morro da Conceição..., Brasil, 86 min, digital, 16X9, cor, estéreo 2.0. Rio de Janeiro: Crisis Produtivas, GUIMARÃES, Roberta Sampaio. A moradia como patrimônio cultural: discursos oficiais e reapropriações locais. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2004, 108p.. A utopia da Pequena África: os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca. Tese de Doutorado em Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2011, 225p.

75 . Representações, apresentações e presentificações do Morro da Conceição: uma reflexão sobre cinema, patrimônio e projetos urbanísticos. In: GON- ÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (orgs.). Devires imagéticos: a etnografia, o outro e as imagens. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2009, p HANDLER, Richard. On Having a Culture. In: STOCKING, George (org.). Objects and Others: Essays on Museums and Material Culture. Madison: The Winconsin University Press, 1985, p HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: Arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, KARACSH, Mary. A vida dos escravos na cidade do Rio de Janeiro ( ). São Paulo: Companhia das Letras, KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Destination Museum. In: KIRSHEN- BLATT-GIMBLETT, Barbara. Destination Culture: Tourism, Museums, and Heritage. Berkeley: University of California Press, LAMARÃO, Sergio. Dos trapiches ao porto: um estudo sobre a Zona Portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Biblioteca Carioca, LATOUR, Bruno. O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagens? Horizontes Antropológicos, ano 14, n. 29, Porto Alegre, UFRGS, LEITE, Rogério Proença. Usos e contrausos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Unicamp/UFS, LÉVI-STRAUSS, Claude; ERIBON, Didier. De perto e de longe. São Paulo: Cosac Naify, MAcCANNEL, Dean. Staged Authenticity. In: The Tourist: a New Theory of the Leisure Class. Nova York: Scocken, 1976, p MAGNANI, José Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais 17 (49), p , São Paulo, PCRJ, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Porto do Rio: Plano de Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PCRJ/ SMU/IPP, PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond/Iphan, POMIAN, Krzystof. Entre o visível e o invisível: teoria geral das coleções. Verbete Coleção. In: RUGGIERO, R. Enciclopédia Einaudi, 1: Memória-história. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982.

76 RABHA, Nina. Entre ontem e amanhã, acontecer hoje. Cadernos do Patrimônio Cultural, ns. 4-5, p , Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, DGPC, SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo: Cosac Naify, SIGAUD, Márcia Frota; PINHO, Claudia Maria Madureira. Morro da Conceição: da memória o futuro. Rio de Janeiro: Sextante/PCRJ, STEWART, Susan. Objects of Desire. In: STEWART, Susan. On Longing: Narratives of Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, THIESEN, Icléia; BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti; SANTANA, Marco Aurélio (orgs.). Vozes do porto: memória e história oral. Rio de Janeiro: DPA/ UniRio, VAN GENNEP, Arnold. The Rites of Passage. Chicago: The University of Chicago Press, WAGNER, Roy. The Invention of Cultures. Chicago: The University of Chicago Press, WEINER, Annette. Inalienable Possessions: the Paradox of Keeping-While-Giving. Berkeley: University of California Press, 1992.

77 3. PATRIMÔNIO E DÁDIVA: AS BAIANAS DE ACARAJÉ NO RIO DE JANEIRO Nina Pinheiro Bitar A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo o conforto humano. (João do Rio, A alma encantadora das ruas) As baianas e o acarajé A antropóloga Janet Hoskings, em seu livro Biographical Objects (1998), demonstra a importância de certos objetos como constituidores e metáforas da noção de pessoa no contexto da Indonésia oriental. Segundo a autora, as histórias de vida que apreendeu foram construídas a partir da interação das pessoas com objetos específicos, que chama biographical objects, e não lhe foram dadas pelos seus interlocutores. Ela ressalta que na medida em que seus interlocutores falavam de um objeto, estavam narrando sua vida. A autora aponta que é possível examinar identidades individuais não como essências unificadas, mas como local móvel de contradições e falta de unidade, pois, no contexto analisado, certos objetos são usados para reificar características de personalidade. A partir de tal perspectiva, abordo neste artigo a relação entre pessoas e uma comida específica, chamada acarajé. São muitas as suas classificações: comida de santo, uma comida típica, um quitute baiano, um meio de sobrevivência, uma comida africana, uma comida de rua. Segundo Câmara Cascudo, o acarajé consiste em:

78 Iguaria da cozinha afro-baiana. Bolinhos feitos de massa de feijão- -fradinho temperada com cebola e sal. Depois de frito no azeite de dendê, cada bolinho é cortado ao meio e preenchido com recheio feito de camarão seco frito no azeite de dendê, cebola e gengibre ralado. (Cascudo, 2001) O acarajé é vendido nas ruas de cidades como Salvador e Rio de Janeiro e, por isso, também é associado a certas comidas de rua. Os horários de consumo são bem variados, mas geralmente é consumido no final da tarde, depois do trabalho. As pessoas, em sua maioria mulheres, que preparam e vendem a iguaria são chamadas popularmente de baianas de acarajé. Vendem a comida no denominado ponto, em torno do qual os fregueses se aglutinam de maneira específica, tornando-o local de encontro de grupos e propiciando algumas redes de relações entre os frequentadores. O presente artigo é resultado da pesquisa que desenvolvi sobre a formação sociocultural da categoria baiana de acarajé no contexto da cidade do Rio de Janeiro (Bitar, 2011). 1 Meu objetivo foi entender o processo de tornar-se baiana de acarajé, através da descrição etnográfica do cotidiano de quatro baianas (três mulheres e, excepcionalmente, um homem), focalizando o seu sistema culinário (Gonçalves, 2002; Mahias, 1991; Verdier, 1969): acompanhamento desde a escolha dos ingredientes, o preparo, a venda e o desfazer dos restos, além participar de outros contextos informais, longe dos pontos. Tal concepção apreende a comida como parte de um conjunto social e cultural, enfatizando as relações sociais e simbólicas em que ela está inserida e nas quais desencadeia efeitos. Pode-se dizer que o sistema culinário é um dispositivo inconsciente, em que os alimentos, de certo modo, mais que serem por nós escolhidos,... nos escolhem (Gonçalves, 2002). Segundo esse autor: Na verdade não somos nós que escolhemos os alimentos; são os alimentos que nos escolhem. Isso porque, quando escolhemos um determinado alimento, já estamos operando dentro de um dado sistema culinário com seus princípios e regras inconscientes. Somos, aliás, já constituídos social e culturalmente por esse sistema. (2002, p. 9) 1 Agradeço a leitura e sugestões feitas pelo professor doutor José Reginaldo Santos Gonçalves e Roberta Sampaio Guimarães. Este artigo é fruto da dissertação defendida no PPGSA da UFRJ e sua posterior publicação no livro Baianas de acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Aeroplano, Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.

79 Outro aspecto que focalizei na pesquisa foi o fato de o ofício das baianas de acarajé ter sido registrado como patrimônio imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no ano de Minha principal indagação era: por que, em determinado momento, uma comida foi considerada patrimônio. Por um lado, procurei compreender como as baianas entendiam a recente patrimonialização de sua atividade. Por outro, analisei as recentes políticas públicas de preservação patrimonial, com o intuito de problematizar a categoria patrimônio. Percebi, ao longo da interlocução com as baianas de acarajé, que podemos ampliar o entendimento de tal categoria para além de sua formulação em termos jurídicos. O patrimônio, segundo a sugestão de Gonçalves (2003), pode ser concebido como categoria de pensamento, ampliando, assim, seus usos e significados, que não se restringem à sua denominação jurídica. A partir dessa perspectiva, podemos pensar como tal conceito pode ser elaborado em termos nativos pelos agentes em questão, as baianas de acarajé. Ao explorar a ideia do patrimônio como categoria de pensamento, busquei entender como as baianas estavam constituindo essa noção no seu dia a dia. O ponto de partida da pesquisa foi a descrição e análise da relação entre pessoas e objetos focalizando o mundo (Schuetz, 1945; Becker, 1977) das baianas de acarajé: as diferentes relações e cadeias de atores que as envolvem. É interessante observar quais são os múltiplos significados das baianas e dos seus objetos, e compreender como agem. Exploro aqui a hipótese segundo a qual os objetos materiais não atendem apenas a funções utilitárias, nem são apenas suportes identitários, mas mediadores e constituidores da vida social, não existindo separadamente dos sujeitos. Assim, penso esse mundo das baianas por meio das histórias de vida relacionadas a essa comida. Tais histórias também se misturam ao meu percurso da pesquisa, e eu sou parte delas, na medida em que foram compostas a partir de nossa interação. Percebi ainda, ao longo do trabalho de campo, que as baianas narravam suas vidas a partir de sua interação com a comida que produzem; é o marco na vida delas e a partir dessa relação constroem a narrativa sobre suas vidas. Era em relação a seu trabalho com esse produto que explicitavam os caminhos e escolhas que seguiram. Assim, essas histórias foram constituídas de uma forma específica, através da ligação das baianas com o acarajé. Ao explicar o que é esse objeto, de onde ele veio, o que significava essa comida, estavam também falando de si. Ao interagir cotidianamente com esse objeto (e com a rede de objetos articulada por eles, como os ingredientes e as roupas), estavam também formando-se como baianas de acarajé.

80 Cascudo (2001), por exemplo, descreve o traje utilizado pelas baianas de acarajé por meio da categoria baiana. Ou seja, baiana é a denominação tanto da pessoa que prepara e vende o acarajé quanto de sua roupa: 1) Indumentária que caracteriza a negra, a mestiça da capital baiana. Divulgado por meio de fotografias, desenhos, teatro e citações literárias, o traje tornou-se tradicional. A baiana usava chinelas nas pontas dos pés, pano-da-costa, saia de seda e cabeção de crivo; braço e pescoço desnudos, cheios de pulseiras e cordões de ouro; pendente da cintura, uma enorme penca de miçangas de prata. Torso branco à mouresca; bata (blusa branca engomada) em geral de algodão, às vezes de seda. Brincos de turquesa, coral, prata ou ouro. O balagandã, hoje quase desaparecido, era o principal ornamento. O traje da baiana tornou-se o mais típico como expressão brasileira. [...]. (2001, p. 39) Trata-se, portanto, de um processo tanto metafórico, em que o acarajé significa algo e representa algo, quanto metonímico (Bateson, 2000), na medida em que as baianas estão construindo a si mesmas ao fazer e vender o acarajé de determinada forma. Figura 3.1. Baiana Ciça na porta de sua casa. Fotografia: Nina Pinheiro Bitar

81 Através desse viés, o acarajé aparece como desafio no sentido de buscar entender o motivo pelo qual essa comida especificamente, e não outra qualquer, é escolhida e, com isso, qual é o valor que assume. Pode-se dizer que há uma extensa rede social e simbólica envolvendo as baianas de acarajé, em que os objetos que as constituem não podem ser separados de determinada noção de pessoa (Mauss, 2003). O acarajé não é uma comida formal, uma refeição. Ele também se diferencia do fast food, tanto no tempo de sua pré-produção, em casa, como pelo tempo de preparo para o consumo na rua. Em geral, o preparo do acarajé dura cerca de dois dias. Em casa é feita a massa de feijão-fradinho e os complementos do acarajé (vatapá, caruru, camarão seco e salada de tomate). Cada baiana tem uma receita para esses complementos, porém, o que invariavelmente aparece em todas as receitas é o azeite de dendê em grandes doses. Na esfera da rua, a massa será batida e frita, e a baiana monta o acarajé. Figuras 3.2 e 3.3. Sônia Baiana montando o acarajé. Fotografia: Nina Pinheiro Bitar O antropólogo Peter Fry 2 sublinha que num artigo de Vivaldo da Costa Lima (apud Rial, 1995) o autor faz uma a comparação da relação dos clientes com as baianas de acarajé e o comportamento usual em restaurantes, observando que, diferentemente do que ocorre nos restaurantes, na venda do acarajé quem se curva é o cliente; ao contrário do garçom uma inversão que indica quase reverência do cliente à baiana de acarajé, ao se inclinar diante dela. Também é comum os clientes abraçarem ou beijarem a mão da baiana, pedindo a sua benção. No caso de baianas ligadas à esfera das religiões afro- -brasileiras essa relação com os clientes é mais marcada. 2 Agradeço ao antropólogo Peter Fry pela sugestão de leitura do artigo em questão.

82 Algumas baianas de acarajé possuem uma relação de conselheira com seu público. Elas dão opinião quando solicitadas e muitos de seus clientes passam a ser seus amigos, compartilhando sua vida com elas. Entretanto, o acarajé também pode ser consumido de forma rápida, sem que haja necessariamente uma ligação entre o cliente e a baiana. Por meio da concepção de biografia dos objetos (Kopytoff, 1986), podemos problematizar o dualismo pelo qual as relações entre objetos e sujeitos são usualmente pensadas. Ao explorar essa ideia, inferimos que as mesmas perguntas feitas às pessoas devem ser feitas às coisas, levando em consideração que todas as biografias são parciais. Não obstante, as perguntas formuladas não são dadas, elas seguem paradigmas específicos de cada contexto e época, tornando relevantes certas questões em detrimento de outras. Pode-se ampliar essa perspectiva para a atenção às perguntas relevantes para os nativos, ou seja: quais são as perguntas que fazem para o objeto e como respondem a essas questões. Ao pensarmos a baiana de acarajé e essa comida como agentes, possuidores de uma biografia, podemos apreender seus múltiplos significados por meio do acompanhamento das redes de relações que os envolvem. As baianas de acarajé, figuras que se articulam diretamente com a venda dessa comida, revelam, assim como os consumidores, a complexa ação simbólica mediada pelo acarajé. As baianas, o patrimônio e a dádiva Ao entendermos o patrimônio como categoria de pensamento podemos compreender os contornos semânticos que ela pode assumir em contextos socioculturais específicos (Gonçalves, 2003). O processo de formação de patrimônios, segundo esse autor, pode de certo modo ser traduzido pela categoria colecionamento, o que implica a demarcação de um domínio subjetivo em oposição a um outro por meio da atividade de reunir objetos móveis e imóveis. Muitas vezes essa categoria pode ser confundida com a de propriedade. No entanto, a ideia de que a acumulação de objetos materiais em torno de um indivíduo ou de um grupo, concebendo a identidade como riqueza, não é universal (Gonçalves, 2007; Clifford, 1988). Significativas etnografias apontam que as posses também são acumuladas para serem redistribuídas ou simplesmente destruídas. Desse modo, a noção de patrimônio pode ser usada comparativamente em outras experiências socioculturais, nas quais a categoria não aparece individualizada e com fronteiras nitidamente

83 delimitadas. Em outros contextos ela assume diferentes significados, podendo não ser separada dos seus proprietários ou constituindo sua extensão moral (Gonçalves, 2007). O evento do registro do ofício das baianas de acarajé realizado em 2004 pelo Iphan pode ser entendido como parte de uma estrutura (Sahlins, 2004). Segundo o autor, há sempre uma estrutura prévia que é atualizada e reconfigurada com o acontecimento de eventos. Tais eventos, portanto, não ocorrem sem diálogo com a estrutura. Dessa forma, podemos dizer que o evento do registro do ofício das baianas de acarajé como patrimônio imaterial brasileiro é resultado de um processo de ações políticas de um órgão público, o Iphan e, sobretudo, fruto da atuação das próprias baianas de acarajé. Ou seja, o registro do ofício foi um evento gerado pelas baianas elas não foram passivas nesse processo, além de ser um resultado de políticas públicas. O registro do ofício como um patrimônio imaterial é parte de um processo mais abrangente, no qual a dimensão jurídica desse termo ganha destaque. Pode-se dizer que há, atualmente, um diálogo do Iphan com o discurso da Antropologia, ao buscar formular uma ideia de patrimônio diferenciada do chamado patrimônio de pedra e cal, os bens históricos, materiais (Gonçalves, 2002). A categoria patrimônio imaterial veio a ser adotada pela política patrimonial brasileira, e a elaboração desse conceito encontrou expressão jurídica no Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como patrimônio cultural brasileiro. A recente política do Iphan é de valorização de elementos de cultura popular, classificados como bens culturais, e não apenas aqueles bens classificados como de pedra e cal (Gonçalves, 2002). Os conceitos de patrimônio imaterial, ou patrimônio intangível, ou bem cultural de natureza imaterial 3 ressaltam a [...] importância que, nesse caso, têm os processos de criação e manutenção do conhecimento sobre o seu produto (a festa, a dança, a peça de cerâmica, por exemplo). Ou seja, procuram enfatizar que interessam mais como patrimônio o conhecimento, o processo de criação e o modelo, do que o resultado, embora este seja sua expressão indubitavelmente material. A principal crítica a essas expressões é 3 A expressão patrimônio imaterial acabou prevalecendo, em detrimento de patrimônio oral e cultura popular e tradicional.

84 que estas levam a desconsiderar o resultado da manifestação e suas condições materiais de existência. Não dão conta, portanto, de toda a complexidade do objeto que pretendem definir. (O Registro do Patrimônio Imaterial, 2000, p. 13) Há, portanto, um reconhecimento dos limites do emprego da categoria patrimônio imaterial. No processo de conceituação dessa categoria há um diálogo com conceitos antropológicos de cultura para o tratamento de seus objetos. O registro do ofício das baianas de acarajé é um exemplo desse diálogo, pois não é propriamente um registro do acarajé ou da baiana, mas de um sistema cultural que envolve a sua totalidade (Vianna, 2004). Exploro aqui a ideia de que, antes mesmo da ocorrência desse registro, a categoria patrimônio, de certa forma, já era produzida pelas baianas, embora estas não entendam a categoria exatamente do mesmo modo que os agentes do Iphan, nem circunscrevam sua compreensão a uma noção estritamente jurídica. A concepção de patrimônio formulada pelas baianas é produzida por sua autopercepção na vida cotidiana através da relação com os processos de produção e circulação do acarajé. A ideia de patrimônio imaterial utilizada pelo Iphan, um termo jurídico, diferencia-se, de certa forma, da noção de patrimônio formulada pelas baianas de acarajé. Nesse caso, as apropriações do espaço público pelas baianas exibem o modo pelo qual elas estabelecem uma relação de dádiva e contradádiva com determinadas divindades através de uma série de obrigações. Pode-se dizer que elas elaboram um sentido específico para a rua, numa espécie de sacralização. Ao analisar a forma como elas incorporaram, a partir do registro pelo Iphan, a categoria patrimônio em termos jurídicos, e como entenderam o processo de patrimonialização desse bem imaterial, podemos pensar o que vem a ser, para as baianas, o ofício das baianas de acarajé. O registro desse bem imaterial se configurou como demarcação de fronteiras entre as baianas e os seus outros : mais amplamente, com os ambulantes e, mais especificamente, no caso da cidade de Salvador, 4 com os evangélicos e o seu acarajé de Jesus. Com o surgimento do acarajé de Jesus, os evangélicos estariam descaracterizando o acarajé ao associá-lo a Jesus e à Igreja Evangélica, opondo-se à esfera religiosa do candomblé. 4 Há uma rivalidade entre as baianas de acarajé evangélicas e aquelas que são adeptas das religiões afro-brasileiras.

85 Nesse contexto de divergências religiosas, a ressignificação do acarajé, com o acarajé de Jesus, é objeto de discordância entre as baianas pertencentes às religiões afro-brasileiras, que reivindicam a origem do acarajé nos terreiros. Para elas, tornar-se patrimônio significou marcar uma alteridade, ora associando o acarajé às religiões afro-brasileiras, ora ao que entendem por tradição. No entanto, para além da demarcação de uma alteridade, é necessário considerar que esse patrimônio é incorporado em seu sistema cosmológico através de relações de dádiva e contradádiva (Mauss, 2003). O patrimônio, mais que se configurar como expressão emblemática de um grupo social ou nação, é também um processo de construção e reconstrução social e simbólica através das experiências sensíveis, individuais e coletivas. Essas concepções do patrimônio, seja como forma de expressão de uma identidade, seja como espécie de extensão da experiência, devem ser entendidas levando-se em conta o fato de as baianas se inserirem em uma complexa rede social e simbólica inseparável da esfera pública. É dentro dessa rede que se pode perguntar: como pessoas, lugares e objetos tornam-se patrimônio? Baianas de acarajé e espaço público O pedido de registro 5 do ofício das baianas de acarajé como bem imaterial foi proposto pela Associação das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos e Similares (Abam), pelo Terreiro Ilé Axé Opô Afonjá e pelo Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia (Ceao). 6 Foi inscrito no Livro dos Saberes do Patrimônio Imaterial como patrimônio cultural brasileiro em Aqui temos, como os proponentes do registro, a conjugação de uma associação civil que organiza as baianas de acarajé; um centro de estudos da Fa- 5 O pedido de abertura do processo do registro deverá ser coletivo, sendo as partes legítimas para propor: instituições governamentais de cultura federais, estaduais e municipais; sociedades e associações civis (O registro do patrimônio imaterial, p. 17). 6 O Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) é um órgão suplementar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia voltado para o estudo, a pesquisa e ação comunitária na área dos estudos afro-brasileiros e das ações afirmativas em favor das populações afro-descendentes, bem como na área dos estudos das línguas e civilizações africanas e asiáticas. Disponível em: Acesso em: jan Dados do processo: Pedido de Registro aprovado na 45. Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, em 01/12/2004. Inscrição no Livro dos Saberes em 21/12/2004.

86 culdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia; e um terreiro de candomblé tombado pelo Iphan em 2000, 8 onde o então ministro da cultura Gilberto Gil foi iniciado. Para buscar entender por que, em dado momento, registraram tal ofício, entrevistei em 2008 a presidente da Abam (Associação das Baianas de Acarajé e Mingau da Bahia), Rita, na sede da associação. Ela revelou ser a atual reivindicação das baianas de acarajé o reconhecimento dessa atividade como profissão, já que agora eram reconhecidas como patrimônio pelo Iphan. Ela afirmou que não queria mais preencher, nos formulários, o campo profissão como cozinheira, e sim como baiana de acarajé, explicando que cozinhar, eu cozinho em casa. Para Rita, a atividade da venda de acarajé está vinculada à rua e não ao espaço doméstico. Segundo Rita, para ser baiana de acarajé é necessário estar nas ruas vendendo. E essa venda deve ser também regrada: precisam vestir os trajes apropriados. Pode-se dizer que a dimensão pública e performativa da atividade das baianas de acarajé se tornou uma questão importante a ser acompanhada no cotidiano das baianas. O chamado ponto, local de venda do acarajé, é fundamental para essas baianas, e fazer o ponto revelou-se um procedimento complexo e muitas vezes malsucedido. Foi possível observar, a partir da pesquisa, que fazer o ponto envolve desde relações com a prefeitura local (para a legalização desse trabalho informal), conquista de uma clientela e relações com entidades das religiões afro-brasileiras. Assim, ser baiana de acarajé é estar vinculada à esfera pública. Baianas de acarajé no Rio de Janeiro Para explorar esse aspecto, apresentarei as baianas que participaram da pesquisa, obedecendo a sequência de meu contato com elas. A primeira baiana que conheci foi Sônia Baiana, que trabalha na Feira de Antiguidades da rua do Lavradio, no Centro do Rio de Janeiro. A baiana, que vive há mais vinte anos na cidade, 9 fez o seu ponto a partir de sua relação com o movimento 8 Pode-se dizer que o registro do ofício das baianas de acarajé faz parte de um processo mais amplo de políticas de reconhecimento de bens culturais afrodescendentes. Para uma discussão sobre os tombamentos de terreiros em Salvador, ver Gomes (2009). Consultar também Roger Sansi (2007) sobre as transformações do valor museográfico dos objetos das religiões afro-brasileiras. 9 Terei o ano de 2009 como referência temporal.

87 negro, através de cursos de capacitação da Incubadora Afro-Brasileira 10 e do projeto de Economia Solidária. 11 Assim, sua rede de relações consiste em pessoas que trabalham com a temática afro, afirmando ser uma representante, com a venda do acarajé, da culinária afro. Sônia reelabora a ideia da Economia Solidária por meio de uma concepção de trabalho pautada na cooperação dos quilombolas. Ou seja: pressupõe que haja uma ajuda mútua entre as pessoas que fazem parte da sua rede de relações. Ao perguntar-lhe sobre como começou a vender acarajé, Sônia sempre narra o início da venda associado à Economia Solidária e à Incubadora Afro-Brasileira. Explica ainda que já trabalhava com a venda de acarajé; contudo, com o suporte da incubadora, aprendeu a gerir seu negócio: gastronomia afro-brasileira. É, como afirma, contra o sistema capitalista e neoliberal, e articula a tais ideais uma atitude de cooperação entre pessoas que trabalham com atividades relacionadas à temática afro, pois para ela ser baiana de acarajé é mais do que um meio de vida, é uma forma de vida vinculada às raízes étnicas africanas. No seu site, 12 podemos ler: [...] Há 18 anos, ela saiu da Bahia e veio para o Rio de Janeiro com o objetivo de apresentar para os cariocas seu talento na gastronomia com os segredos de preparo do acarajé deixados pela avó. Mãe de dois filhos, Baiana, como gosta de ser chamada, começou a vender acarajé em Copacabana. Seu trabalho na Zona Sul fez sucesso, porém o maior lucro ia para a dona do negócio. Com isso, Sônia Baiana apostou em seu potencial e começou a vender acarajé na Praça da Telemar, Mesquita. [...] Sônia contou com o apoio da Incubadora Afro-Brasileira, que, segundo ela, investe em qualificação e inclusão social para dar certo. A Incubadora me dá base para transformar ideia em realidade. Estou feliz por mostrar na Baixada minha cultura e vender o autêntico acarajé. [...] A autêntica baiana faz questão de dizer que não é apenas uma vendedora de acarajé. Eu represento um segmento da 10 Foi criada com incentivo da Petrobrás para o desenvolvimento de trabalhos sobre a temática afro. 11 Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego: A economia solidária vem se apresentando, nos últimos anos, como inovadora alternativa de geração de trabalho e renda e uma resposta a favor da inclusão social. Compreende uma diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio justo e consumo solidário. Disponível em: oque.asp. Acesso em: 16 nov Disponível em: Acesso em: 6 maio 2009.

88 cultura Afro, que é a gastronomia. Falar que sou apenas uma vendedora de acarajé é muito pouco. O que faço é um resgate cultural, afirmou. (Baiana Ciça. Grifos da autora) Sônia relaciona a origem do acarajé à África, o que veremos mais à frente não ser o caso, em comparação com outras baianas que vinculam essa comida às religiões afro-brasileiras. O acarajé, para ela, é uma comida africana, trazida pelos escravos para o contexto da Bahia. Ao partir para o Rio de Janeiro, ela traz esse produto como uma baiana autêntica que nasceu na Bahia e que possui uma ligação com os antepassados africanos por meio do acarajé. Já Ciça, a outra baiana que conheci durante o trabalho de campo, foi indicada pela Abam, pois é associada. Por ser uma baiana que promove diversas atividades ao longo do ano, foi aquela com quem mais tive contato. Ciça mora há dez anos no Rio de Janeiro e fez seu ponto na rua do Mercado, perto da Praça XV de Novembro, também no Centro da cidade. Ao narrar como escolheu seu ponto de venda, relatou que foi levada pelos santos Cosme e Damião. 13 Eu passei ali de ônibus, quinta-feira. Eu vi do ônibus este ponto. Vinha eu e meu marido. Perguntei: Tem ponto [de ônibus] aqui?, ele disse: tem, ali. Eu falei: Desce, para quê?, respondi: eu quero ver o ponto. Ele: que ponto, menina?! Eu desci doida. Aquele prédio [Bolsa de Valores] ainda estava no chão, não tinha nada ali, tinha uns mendigos, sei lá o que foi. E eu olhando para um lado e para outro. Ele disse: o que é que você quer?, respondi: quero esse ponto, e ele: mas não tem nada aqui, o ponto está morto, falei: a gente ressuscita ele. Ele riu. Ressuscitei ou não ressuscitei? Aqui não parava quase ninguém, eu tinha quatro banquinhos. Esse prédio [da Bolsa de Valores] não tinha. Eu chegava aqui onze horas do dia, saía daqui oito horas da noite. Às vezes vendia tudo, às vezes não vendia, porque eu estava fazendo o ponto. (Baiana Ciça. Grifos da autora) Para conseguir a autorização da Prefeitura, Ciça pediu para Cosme e Damião irem na sua frente para amansar, preparar a pessoa com quem iria conversar, responsável por lhe dar a licença de trabalho na rua. Afirmou que 13 Lima (2005) analisa o culto dos santos gêmeos, através do modelo ioruba/nagô do orixá Ibêji, dos santos gêmeos, chamados também dois-dois. O autor aponta para a complexidade de classificações dos santos no candomblé, que podem ser concebidos de diversas formas, como, por exemplo, apenas um adulto o Ibêji, como um orixá padroeiro dos dois gêmeos ; podem ser duas crianças ou adultos de mesmo sexo ou diferentes, além de poder ser parte de um grupo de sete crianças: Cosme, Damião, Dou, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi.

89 conseguiu tudo o que queria, e que ainda renovou a permissão para o trabalho no local apesar das várias mudanças de governo. Por consequência, todo ano, no dia 27 de setembro, ela oferece o Caruru de Cosme (distribuição de comida) no meio da Praça XV de Novembro, na frente do seu ponto, atualizando com os santos gêmeos uma relação de reciprocidade (Mauss, 2003). Figura 3.4. Baiana Ciça e seu Caruru de Cosme, Praça XV O seu ponto revelou-se um local de encontro do povo de santo, 14 pessoas relacionadas às religiões afro-brasileiras. Ciça promove, ao longo do ano, além do cumprimento de sua promessa com Cosme e Damião, a lavagem da rua do Mercado, antes do Carnaval; o almoço de Sexta-Feira Santa, em sua casa; e o Festival de Acarajé da Baiana Ciça, no Clube Internacional de Regatas, no Centro da cidade, em outubro. O baiano de acarajé e a baiana antiga Durante o trabalho de campo vim a conhecer Jay do Acarajé. Sua posição é diferente das demais baianas estudadas, por ser um homem que trabalha como baiano de acarajé. Durante os três anos em que vive no Rio de Janeiro, não conseguiu ainda a legalização de seu ponto junto à Prefeitura. 14 A presença das tias baianas no cotidiano do Rio de Janeiro é assinalada por Velloso (1990), que sublinha que suas barracas e tabuleiros constituíam focos de sociabilidade, uma espécie de bureau de informações : Era ao redor dos tabuleiros que se sabia das coisas: lá que se construía toda uma rede de relações que informava, amparava, divertia e ampliava os contatos (1990, p. 12).

90 Provisoriamente, atua na rua Siqueira Campos, em Copacabana. Ele narra, a partir de seu blog, 15 as dificuldades para exercer suas atividades na cidade. Fugir do rapa (guardas municipais) e ter de morar nas ruas foram algumas de suas rotinas como baiano de acarajé. A sua principal queixa é a de ser tratado como um ambulante, e ter de fugir dos guardas municipais. Diferentemente das baianas incluídas na pesquisa, Jay, por ter uma situação instável, utiliza como tabuleiro uma carroça (como ele denomina), configurando uma forma de venda do produto diferente das outras baianas: é móvel, de quatro rodas e assemelha-se a uma carroça utilizada para o comércio de pipoca, tapioca ou cachorro-quente. Tal carroça possibilita a sua locomoção no caso de ser abordado pelo rapa. Finalmente, conheci Nicinha, a primeira baiana de acarajé a ter barraca na Feira Hippie de Ipanema, 16 na qual trabalha há quarenta anos. Ela foi indicada por um pai de santo que conheceu as baianas antigas do Rio, como Esmeralda, uma falecida baiana do Rio de Janeiro que é a mãe de Nicinha. Através de Nicinha, percebi que seu ponto articula uma ampla rede de parentescos entre baianas que vieram para a cidade na década de Ela revelou uma forma de fazer o ponto ligada ao processo de migração dos baianos. Nicinha, assim como sua mãe Esmeralda, é ekedi 17 de Obaluaiê, 18 que é o dono da barraca. Fazer o ponto : entre a casa e a rua Fazer o ponto de venda de acarajé significa conquistar um público, os clientes, que se tornam amigos, dispostos até a ajudar as baianas sempre que necessário. Um cliente de Ciça, por exemplo, é seu contador; um outro, seu advogado. Foi através de um cliente que ela conheceu um funcionário da Prefeitura que a ajudou a conseguir a autorização para o seu ponto. Eles são chamados de o meu povo pela baiana. Assim, para Ciça há uma confluência entre diver- 15 Disponível em: Acesso em: 25 nov Uma feira de artesanato no Rio de Janeiro. 17 Zelador dos orixás, quando eles descem nas filhas; acolita (Fonseca Junior, 1995). Todos os termos em iorubá foram consultados por esse dicionário, indicado por meus interlocutores filhos de santo. Vale ressaltar que utilizarei a nomenclatura iorubá para a denominação dos termos ligados ao candomblé. Não entrarei na discussão já traçada entre as diferenciações entre as chamadas nações de candomblé. A escolha, por mim, da terminologia iorubá foi decorrência do maior contato com interlocutores que frequentavam a barraca de Ciça e que utilizavam essa língua. 18 Obaluaiê é concebido como o orixá que traz doenças e que também as cura de uma forma geral.

91 sas relações: inicialmente com os santos Cosme e Damião, depois com a rua, com o ponto, com os clientes, com a esfera jurídica, entre outras. Mas o fator fundamental, que organiza todas as suas relações, é sua ligação com Cosme e Damião e Iansã pois muitas baianas de acarajé são filhas de Iansã. 19 Segundo Ciça: Para ser uma baiana de verdade mesmo, tem que ter muita fé em Deus. Primeiro muita fé em Deus e depois você tem que ter muito axé e acreditar muito no que você faz, no que você quer e ter muito amor para dar, porque o povo é carente. Você tem o problema que for em casa, mas na hora que você toma um banho, veste a roupa, bota a conta no pescoço e amarra o torço, você esquece o problema de casa, vai para a rua, acabou. A família você chega em casa e apanha de volta de novo. A família que você tem é essa aqui. O povo da rua é todo seu. A sua família aqui são eles. [...] Aqui você tem que dar amor, você tem que ouvir. Chega um e conta as choradeiras no seu ombro, você ouve e você não pode falar. A baiana é igual padre pior do que o padre, porque o padre, o que você fala com o padre, ele usa de sermão e ninguém sabe de quem é a história, não é? E a baiana não pode fazer isso, a baiana tem que ouvir e levar para si. A baiana não pode falar. O que você falar com uma baiana, vai morrer com ela. Porque se ela falar, não é uma baiana. A baiana tem que manter segredo, é pior do que baú: morre, mas não fala. E ela sofre muito, porque ela participa da vida de todo mundo, não pode falar nada para ninguém. Tem que morrer dentro dela. Às vezes ela tem resposta para dar, às vezes ela não pode falar nada, porque se ela falar, vai lhe aborrecer, então ela não pode se meter, ela engole, fica para si. Bota você no colo, até nina para você se calar. Acalenta, mas não pode falar nada. Eu me sinto bem com o meu papel. (Baiana Ciça. Grifos da autora) A baiana Ciça realiza todo ano um almoço da Sexta-Feira da Paixão em sua casa e convida seus clientes, especificamente os de casa, para a esfera doméstica. Nesse momento, a distinção entre clientes pessoas classificadas como da rua e os de casa aparece de modo ostensivo. Os clientes são aqueles que apenas comem o acarajé e vão embora; podem até conversar com ela, mas não possuem uma ligação com nenhuma rede de relações das pessoas da barraca, são isolados. Já os de casa conhecem a família de Ciça, 19 Ela e seus clientes explicam que Iansã é a deusa dos ventos, da tempestade, da fertilidade guerreira e dinâmica.

92 conhecem outras pessoas que também frequentam sua barraca, e geralmente ficam no ponto por mais tempo, conversando entre si e com ela. São aqueles que pedem conselhos à baiana. Na esfera dos de casa, eles podem ser distinguidos também entre os de casa e os filhos que Iansã lhe deu. O filho, além de receber conselhos, tem maior proximidade com a esfera doméstica e com a família da baiana. Entre os da rua, há também uma diferenciação entre clientes e o povo da rua meninos e moradores de rua. O povo da rua está distante de sua casa, local onde reside, mas se aproxima de sua casa de candomblé, ao associar os moradores de rua a Exu 20 e os meninos de rua a Ibêji. 21 São eles que protegem o seu trabalho e, portanto, devem ser respeitados. É para eles que Ciça oferece o Caruru de Cosme, como promessa por ter conseguido o ponto e a autorização de trabalho. É importante assinalar que há um grande respeito das baianas pelo povo da rua. Elas lhe oferecem acarajé, e o consideram os protetores de seu trabalho, diretamente associados à entidade Exu. Despachar a rua através de suas entidades protetoras é fundamental para a boa relação com o espaço público. Antes da venda, oferecem acarajés para Exu, a fim de garantir a paz no trabalho. Exu é o primeiro a comer nas religiões afro-brasileiras. Ele é concebido como uma das entidades mais poderosas, capaz de abrir ou fechar caminhos. Figura 3.5. Baiana Ciça na lavagem da rua do Mercado, Rio de Janeiro, Fotografia: Nina Pinheiro Bitar 20 Os exus são concebidos, geralmente, como entidades com a capacidade de transitar entre o mundo dos homens e dos orixás, entre os vivos e os mortos, o sagrado e o profano, entre a direita e a esquerda, entre o bem e o mal, é o comunicador dessas esferas (Negrão, 1996). 21 Ibêji e Cosme e Damião são concebidos, geralmente, como equivalentes.

93 É interessante observar que a categoria rua, nesse contexto, é pensada através das relações com entidades das religiões afro-brasileiras. Na esfera da rua, o espaço público transfigura-se numa espécie de casa, sendo domesticado através de atitudes cuidadosas em relação aos preceitos (as obrigações religiosas a serem seguidas), como o preparo dos sete pequenos bolinhos de acarajé para Iansã, uma vez que são primordiais o respeito e a aprovação de Iansã para a venda do acarajé. No caso de Ciça, a relação de dádiva com Ibêji ou Cosme e Damião, os meninos que agilizam as coisas, e com Exu, que protege a rua, é extremamente importante. Já para Nicinha, além de Iansã e Ibêji, tem de agradar também Obaluaiê, dono da barraca e de sua cabeça, pois ele é seu pai. Ela sempre coloca em sua barraca na Feira Hippie a pipoca de Obaluaiê. Desse modo, a rua aparece associada à cosmologia das religiões afro- -brasileiras, guiando a relação de tais baianas com seu trabalho, seus clientes e a rua. Pode-se dizer que há uma sacralização do espaço público, em que a comida é a essência, segundo meus interlocutores. Nesse sentido, o ponto aparece também como espécie de terreiro de rua ou, mais especificamente, casa de candomblé de rua, articulando os santos e seus filhos. O ponto A denominação do local de trabalho das baianas de acarajé como ponto também pode ser associada aos pontos de candomblé, que são as canções ou toques dos atabaques. Outra maneira de conceber o termo ponto, muito utilizada pelas baianas de acarajé, é o ponto da massa. Nesse caso, dar o ponto envolve tanto a forma de fazer a massa branca, sem os olhinhos pretos do feijão fradinho como a forma de bater, dando a textura necessária para ficar crocante e leve. Concebem também que é através dessa massa que o axé 22 da baiana será passado. A categoria ponto se mostrou fundamental nesse contexto. As baianas se referem ao ponto como o local de trabalho que, como vimos, necessita 22 Força, poder, bênção (Fonseca Junior, 1995). Segundo Cascudo: energia sagrada; força vital do orixá: força sagrada que emana da natureza; força que está em elementos da natureza que são sacrificados, como animais, plantas, sementes, etc. Também significa origem ou raiz familiar; ascendência mística; conhecimento iniciático; legitimidade; carisma; poder sacerdotal; poder. Reginaldo Prandi, Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/USP, [...] No Brasil, há uma tendência a usar a expressão axé como forma de cumprimento, votos de bons augúrios ou uma bênção (Cascudo, 2001).

94 de uma série de fatores para o fazer : relações com o comércio em torno, com os clientes, com o povo de rua e com as entidades. A escolha do ponto pelas baianas nas esquinas também está relacionada a Exu, entidade ligada às encruzilhadas, um local de poder e de perigo (Douglas, 1976), em que as baianas fazem o ponto. Como dissemos, Exu é o primeiro a comer nas religiões afro-brasileiras, por ser uma entidade que faz as mediações e, portanto, é perigosa, por estar nas fronteiras (Douglas, 1976). Não por acaso, o local dessa entidade é a esquina, a intercessão entre uma rua e outra, não pertencendo a nenhuma delas, e ao mesmo tempo fazendo parte delas. Assim, fazer o ponto é, nos casos estudados, ter atenção a todas as ações necessárias para a permissão e o sucesso de sua venda. Porque não somos ambulantes : interpretações e usos do ofício pelas baianas de acarajé Em determinado nível, o registro do ofício aparece, para as baianas, como um instrumento de legitimação do seu trabalho, diferenciando-as primeiramente dos ambulantes. Ele também demarca a diferença entre as baianas de acarajé vinculadas às religiões afro-brasileiras e as evangélicas. Mas em outras ocasiões há uma preocupação das baianas de acarajé pela utilidade do registro. Na maioria dos casos, ele é acionado por elas para vencer dificuldades de legalização do ponto. Não obstante, para além de uma concepção estritamente jurídica de patrimônio, há também uma incorporação dessa noção à sua cosmologia. No caso de Jay, essa relação é ambígua, pois afirma que o registro não lhe garantiu uma condição melhor para a venda. Entretanto, num dia em que nos encontramos, ele me deu de presente o certificado do registro do ofício das baianas de acarajé, afirmando: eu sou parte disso. Perguntei o que era o documento, ao que respondeu ser o registro do tombamento do acarajé. Ele ainda ressaltou que nunca sofreu nenhum tipo de preconceito por ser homem, já que o registro está se referindo a filhos e filhas de santo. Em seu site, podemos ler: Eu, Jay do Acarajé respeitador dessa maravilhosa cultura tombada pelo excelentíssimo Sr. ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, protegendo o direito do profissional a exercer a profissão em qualquer esquina do território brasileiro. Hoje no Rio de Janeiro, apesar dos pesares, me orgulho cada dia mais por ser baiano, por ser verdadeiro, por desempenhar essa culinária

95 com dedicação, mostrando ao público carioca e turistas essa culinária de forma interessante, distribuindo pedaços ou miniaturas do produto para degustação ou não do cliente, assim, quebrando tabus sob vários aspectos envolvendo essa culinária. Acarajé é uma comida dos Deuses, trazido da África pelos escravos. Na Bahia foi requintado com sabores e temperos afrodisíacos, passando assim a fazer parte da culinária brasileira Direcionada culinária baiana. É um quitute feito de massa de feijão-fradinho, cebola e sal, frita em azeite de dendê e servido com molho de pimenta opcional. Ela aponta que o registro do ofício das baianas de acarajé foi uma forma de destacar e valorizar esse trabalho, pautado por uma tradição ; ao conhecimento do que consiste ser baiana de acarajé, passado pelas famílias por gerações. Ao fazer parte dessa cultura tombada, está protegido, para ele, o direito do profissional de exercer o trabalho em qualquer esquina. E completa: não seria ótimo ter uma baiana em cada esquina dessa cidade? Mas a Prefeitura não concorda, o sistema não reconhece. Segundo Jay, o acarajé é uma cultura tombada e ele faz parte desse processo, mas o sistema não reconhece o direito de trabalhar em todo o território nacional, tratando-o indevidamente como ambulante. Para ele, ambulantes são aqueles que estão vendendo produtos ilegais, que têm de correr do rapa (guardas municipais). Ao não concordar com o enquadramento do sistema, faz uso do registro como a prova de que não é um ambulante. Podemos também pensar na categoria ambulante como um trabalhador sem ponto fixo, sem um referencial para a sua clientela. Ao mudar constantemente de ponto por causa da fiscalização dos guardas municipais, Jay teve sua venda afetada, já que muitos dos seus clientes ficaram sem referência de onde estaria trabalhando. Como já mostramos, fazer o ponto não é um processo simples, envolve uma série de obrigações e relações de dádiva e contradádiva com a localidade e os clientes. O ponto é fixo e é um local também sacralizado por essas baianas, tendendo, portanto, a ser estável. Temos aí um dos motivos da dificuldade de Jay em estabelecer o seu trabalho. Mesmo o sistema sabendo que tem direito sobre esse produto, que é um produto regional, que é um produto tombado, um produto resguardado pelo patrimônio brasileiro. Então o sistema sabe que tem artigos inscritos dando direito, dando respeito, mas o sistema simplesmente passa por cima e compara com um ambu-

96 lante. O ambulante, a gente passa a ficar correndo de rapa, em uma situação ilegal, como se a gente estivesse vendendo produtos ilegais e não é. E é uma situação muito feia, é uma forma muito feia de se ver o vendedor de acarajé como um ambulante, muito feio. Eu não consigo me enquadrar nessa situação, eu não consigo me conformar com essa situação. É vergonhoso para o meu trabalho. Em uma breve comparação, os índios, esses ocupam o calçadão da forma que eles acham conveniente e com todos os produtos deles, com toda a matéria-prima deles, com o direito que resguarda ele, porque ele é tombado pelo patrimônio também, federal. Então eu estava olhando semanas atrás, eles estavam tocando, comercializando um CD. O personagem do acarajé tem direito na Constituição. 23 Jay considera o acarajé um legado africano, dos escravos, que conquistou o comércio passado pelos seus antepassados e por isso foi consagrado como patrimônio, tem direito na Constituição. Acarajé é comida de deuses africanos, onde na Bahia as pessoas aperfeiçoaram esse alimento, mas não chegaram a modificar a intenção do que é acarajé. Passou a ser um dos quitutes mais comercializados em esquinas, em cantos, em lugares onde eram lembrados, onde era comercializada essas comidas [sic] pelos antepassados, pelas escravas, na verdade o acarajé, eles colocam bastante claro quem comercializava esses produtos, que eram as escravas. Quando o acarajé se transformou em um prato mais focado em termos de comercialização, então as pessoas que protegem essa culinária como consagrada como patrimônio cultural brasileiro, tiveram sempre a atenção de proteger como é exatamente esse alimento, não deixando a transformação diante do tempo, que tudo muda, perder a qualidade, além da direção do que é o acarajé. Então o acarajé é um bolinho de feijão frito em dendê, comida de Xangô e Iansã. Xangô seria o acarajé feito com característica diferente, o formato diferente do que é de Iansã. (Jay do Acarajé. Grifos da autora) Com a posse do certificado do registro, ele se baseia nele para obter informações sobre a origem do acarajé. Jay afirma: eles [Iphan] colocam bastante claro quem comercializava esses produtos, que eram as escravas. O registro aparece, para Jay, como um instrumento de reconhecimento e demarcação do que é o acarajé, circunscrevendo seu significado. Ele explica que, por ser o acarajé atualmente um produto voltado para uma comercialização, tornou-se desvinculado dessa esfera da tradição. 23 Esse trecho e os seguintes são de entrevista concedida em novembro de (Grifos da autora)

97 Para ele, foi necessária a ação de proteção dessa culinária como patrimônio cultural brasileiro. Proteger, segundo ele, é não deixar, sobretudo, que se perca a direção do que é o acarajé. Tal direção é o que ele chama de intenção do que é o acarajé, classificada por ele como uma comida de deuses africanos. Assim, para ele, o registro permite que essa direção não seja modificada. Apresenta o registro, então, como uma forma de evitar a perda. Garantiria a permanência do modo de fazer, além do sentido do acarajé. A lei que protege a baiana É possível perceber que, além de o registro do ofício das baianas de acarajé ser uma forma de reconhecimento e legitimação, as baianas reelaboram seus significados e usos conforme a cosmologia a partir da qual pensam e agem. No site de Sônia há as seguintes informações: o acarajé foi consagrado patrimônio nacional desde 1 de dezembro de 2004 por decreto do então ministro da Cultura Gilberto Gil. O samba de roda da Bahia já foi considerado também patrimônio cultural nacional. E a dica sugestiva: experimente trocar o hambúrguer por um autêntico acarajé!. Sobre o processo de registro do ofício das baianas de acarajé como bem imaterial, Sônia considera que o tombamento do acarajé ainda não teve repercussão no Rio, mas na Bahia, sim. Para ela, o fato de a baiana ser tombada não é reconhecido no contexto do Rio de Janeiro. Ela afirma, entretanto, que hoje o acarajé é patrimônio : a Prefeitura não pode agir contra as baianas. Para Sônia, o fato de o acarajé ser hoje considerado patrimônio destaca essencialmente a sua diferença em relação aos ambulantes. Por ela ser parte do movimento negro, considera que não comercializa um produto qualquer, mas uma comida ligada a uma etnicidade, e por isso não é possível qualquer pessoa ser baiana de acarajé. Ao encontrar dificuldades para a legalização do ponto, Sônia fez uso do certificado do registro do ofício das baianas de acarajé. Ela o levou para a Prefeitura local, onde solicita a legalização do seu ponto. A baiana foi informada no local que, contrariamente ao que esperava, esse registro se refere às baianas de acarajé apenas na Bahia, e não teria nenhuma validade no Rio de Janeiro. Sônia contestou: mas não foi feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional? Tem de valer em todo território nacional. Ressaltou que exige o respeito ao seu direito de trabalho, como patrimônio. Assim, afirmou que vai fazer uma cópia do certificado e pregar em sua

98 barraca. Sônia alega que não está na ilegalidade, não tem por que se preocupar, pois o acarajé foi tombado. Para ela, com a lei, passa a ter o direito de trabalhar, porque agora, o acarajé é patrimônio imaterial. 24 Ao falar do registro, Sônia utiliza tanto as expressões o acarajé foi tombado, quanto o acarajé é patrimônio imaterial. Refere-se também ao tombamento ou ao registro da baiana. Aqui, pode-se observar que há diversas concepções do que é esse patrimônio imaterial: é tanto a baiana quanto o acarajé. Também se refere a registro e tombamento como equivalentes. Assim, nesse contexto, expressa-se a problemática de definir algo como material ou imaterial, e as diferenças entre o que é registro e tombamento. Obrigações das baianas de acarajé É interessante também observar em que medida, do ponto de vista nativo, o código de santo (Maggie, 2001) é incorporado ao patrimônio. Ou seja: como esse reconhecimento é incluído em determinada cosmologia partilhada pelas baianas. Pude observar que a categoria patrimônio, para algumas baianas, acaba repercutindo para o santo por intermédio do trabalho. Para muitas delas, o fato de serem filhas de Iansã influencia a escolha em trabalhar com acarajé. As baianas recebem, de certa forma, os benefícios dados por Iansã, assim como a obrigação de agradá-la. Se as vendas de acarajé diminuem, então, fazem trabalho para Iansã, pedindo sua melhora. No caso de ter boas vendas, também é de se fazer algum trabalho em agradecimento. 25 É importante entender essa lógica da dádiva e da contradádiva entre a baiana e Iansã, ou seja, como esse trabalho está baseado em relações de troca entre pessoas e divindades. A categoria trabalho aqui assume dois sentidos: o de vender o acarajé e o sentido de agradar um santo e, nesse caso, um complementa o outro. Segundo tal lógica, o trabalho só é bem-sucedido se for consentido por Iansã; se obtiver sucesso, agrada a ela; e se as vendas não estão boas, faz-se um trabalho para que ela ajude. Segundo as baianas, o fato de, agora, a baiana ser patrimônio deveria 24 Entretanto, posteriormente, Sônia obteve autorização da Prefeitura para vender acarajé no seu ponto da rua do Lavradio, onde trabalha na Feira de Antiguidades, em outros dias da semana além do dia da feira. Foi fundamental a apresentação do registro do ofício para ela conseguir esse ponto. 25 Até mesmo em relação a minha pesquisa sobre as baianas de acarajé me aconselharam a fazer trabalhos para Iansã, já que ela permitiu que a pesquisa fosse realizada com sucesso.

99 ajudar a melhorar as condições de trabalho. Entretanto, para além de ser uma forma de ascensão, ou de melhorar seu poder aquisitivo (e não negamos a importância disso), também há uma relação de dádiva estabelecida com orixás que protegem e permitem seu trabalho. Assim, essa noção econômica não está desvinculada da relação com as entidades. Ao desempenhar bem sua função, seu trabalho como baiana de acarajé, por sua vez, articula uma vasta rede de reciprocidades com os santos, na medida em que é também agradando a eles que realizam o seu trabalho. Dessa forma, pode-se dizer que a categoria jurídica patrimônio também é incorporada ao seu sistema cosmológico. Tal noção pode ser entendida como parte mediadora do mundo das baianas de acarajé e não deve, portanto, ser considerada somente em termos jurídicos. Ou seja, o fato de as baianas, agora, serem patrimônio não significa apenas um reconhecimento identitário, como artifício para obter reconhecimento e lucro. A categoria patrimônio é construída por elas segundo sua cosmologia, que envolve desde relações com o povo da rua, com os clientes, com a esquina, com políticas públicas, até entidades e orixás, articulando uma extensa rede de trocas sociais e simbólicas. As baianas de acarajé no contexto das políticas públicas de patrimonialização nos mostram que, além de ser as protagonistas desse processo, estão interpretando e fazendo uso do ofício de forma específica, intrinsecamente vinculada a sua forma de atuar na esfera pública. Referências bibliográficas BATESON, Gregory. Uma teoria sobre brincadeira e fantasia. In: Cadernos Ipub, n. 5, p , Rio de Janeiro, UFRJ, Instituto de Psiquiatria, 2. ed., BECKER, Howard S. Mundos artísticos e tipos sociais. In: VELHO, Gilberto (org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p BITAR, Nina Pinheiro. Baianas de acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Aeroplano, CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1983.

100 . Dicionário do folclore brasileiro. 11. ed. São Paulo: Global, CLIFFORD, James. The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art. Cambridge: Harvard University Press, A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX (org. GONÇALVES, José Reginaldo Santos). 1. reimpr. Rio de Janeiro: UFRJ, CONTINS GONÇALVES, Márcia de Vasconcelos. O caso da pomba gira: reflexões sobre crime, possessão e imagem feminina. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1983, 145p.. O caso da pomba gira: reflexões sobre crime, possessão e imagem feminina. In: GOMES, Edlaine de Campos (org.). Dinâmicas contemporâneas do fenômeno religioso na sociedade brasileira. São Paulo: Ideias e Letras, DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, FALCÃO, Andréa (org.). Registro e políticas de salvaguarda para as culturas populares. Série Encontros e Estudos, n. 6. Rio de Janeiro: Funarte/Iphan/Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, FONSECA JUNIOR, Eduardo. Dicionário da cultura afro-brasileira. São Paulo: Maltese, FRY, Peter. Feijoada e soul food 25 anos depois. In: ESTERCI, Neide; FRY, Peter; GOLDEMBERG, Mirian (orgs.). Fazendo Antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, GOLDMAN, Márcio. A construção ritual da pessoa: a possessão no candomblé. Religião e Sociedade 12 (1), p , Rio de Janeiro, Campus, ago Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica. Análise Social (orgs. SARRÓ, Ramón; BLANES, Ruy) (Ed. especial Os Deuses também viajam: religião e mobilidade humana), XLIV (190), p , Lisboa, GOMES, Edlaine de Campos. Políticas culturais e religiões afro-brasileiras: memória e autenticidade em movimento. VIII Reunião de Antropologia do Mercosul, Buenos Aires, 29 set. a 2 out GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, A fome e o paladar: a Antropologia nativa de Luis da Câmara Cascudo. Estudos Históricos: Alimentação, n. 33, p , Rio de Janeiro, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV, jan.-jun A fome e o paladar: uma perspectiva antropológica. In: COORDENA- ÇÃO NACIONAL de Folclore e Cultura Popular (org.). Alimentação e cultura po-

101 pular Série Encontros e Estudos, v. 4. Rio de Janeiro: Funarte/Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2002, p Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Coleção Museu, Memória e Cidadania. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Iphan, Departamento de Museus e Centros Culturais, Coleções, museus e teorias antropológicas: reflexões sobre conhecimento etnográfico e visualidade. Cadernos de Antropologia e Imagem, n. 8, p , Rio de Janeiro, Uerj, O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHA- GAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A/Faperj/UniRio, 2003, p HOSKINGS, Janet. Biographical Objects: How Things Tell the Stories of People s Lives. Nova York/Londres: Routledge, KOPYTOFF, Igor. The Cultural Biography of Things: Commoditization as Process. In: APPADURAI, Arjun (org.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p LIMA, Vivaldo da Costa. Cosme e Damião: o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África. Salvador: Corrupio, LONDRES, Cecília et al. Celebrações e saberes da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Série Encontros e Estudos, n. 5. Rio de Janeiro: Funarte/Iphan/Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, MAGGIE, Yvonne. Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, MAHIAS, Marie-Claude. Verbete Cuisine. In: Le dictionnaire de l Ethnologie et de l Anthropologie. Paris: PUF, MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e a razão da troca nas sociedades arcaicas [1925]. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzillhada: formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: Edusp, NOGUEIRA, Maria Dina; MENDONÇA, Elizabete de Castro. Feiras e comidas: espaço e tempo em movimento. In: LONDRES, Cecília et al. Celebrações e saberes da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Série Encontros e Estudos n. 5. Rio de Janeiro: Funarte/Iphan/Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, 2004, p

102 O REGISTRO do patrimônio imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec/USP, RIO, João do (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto). A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, RIAL, Carmen. De acarajés e hamburgers e alguns comentários ao texto Por uma Antropologia da alimentação de Vivaldo da Costa Lima. Antropologia em Primeira Mão, n. 1, Florianópolis, UFSC/Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, SAHLINS, Marshall. O retorno do evento, outra vez. In: SAHLINS, Marshall. Cultura na prática. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p SCHUETZ, Alfred. Philosophy and Phenomenological Research. Philosophy and Phenomenological Research 5 (4), p , jun SANSI, Roger. De arma do fetichismo a patrimônio cultural: as transformações do valor museográfico do candomblé em Salvador da Bahia no século XX. Museus, coleções e patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: Garamond/ MinC/Iphan/Demu, VELLOSO, Mônica Pimenta. As tias baianas tomam conta do pedaço: espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro. Estudos Históricos 3 (6), p , Rio de Janeiro, Cpdoc/FGV, maio [Republicado com acréscimos In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito. Vozes femininas: gênero, mediações e práticas de escrita. Rio de Janeiro: Faperj/Casa de Rui Barbosa/7Letras, 2003.] VERDIER, Yvonne. Pour une ethnologie culinaire. L Homme, XI (1), jan.-mar VIANNA, Letícia Costa Rodrigues. O patrimônio imaterial: legislação e inventários culturais. A experiência do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular. In: Celebrações e saberes da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro, Funarte, Iphan, CNFCP, 2004.

103 4. A VIDA OCULTA DAS PEDRAS: HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DOS OBJETOS NO CANDOMBLÉ 1 Roger Sansi As pedras crescem. Essa afirmação é comum entre os pais e mães de santo do candomblé baiano, como uma confirmação empírica da eficácia material de sua prática ritual. Eles não se referem a quaisquer pedras, mas às pedras ocultas nos terreiros, as otã ou itã. Esses são os fundamentos de sua religião. Poucas pessoas podem olhar para essas pedras. Nem mesmo os iniciados. Aliás, a primeira vez que pude realmente ver uma delas, não estava em uma casa de candomblé, mas em um museu, o Museu da Cidade de Salvador, Bahia. Já tinha ido a casas de candomblé anteriormente, mas lá tive de me ajoelhar em frente aos fundamentos e só pude sentir a presença delas indiretamente, dentro de um contexto de expectativa mística, em meio a vasilhas, embrulhos, oferendas, cheiros e canções que as rodeiam. Já no museu pude olhar para ela diretamente. Era uma pedra grande, acinzentada e redonda. A etiqueta ao lado indicava ser uma pedra sagrada da religião afro-brasileira candomblé. Poder-se-ia dizer que era um objeto inteiramente comum, corriqueiro se não estivesse exposto em um museu. Alguns meses depois, voltei ao museu e a pedra não estava mais lá. Dessa vez, conversei com a equipe do museu e me apresentei como um pesquisador europeu interessado na coleção afro-basileira do museu. O assistente do diretor do museu gentilmente me contou que aquelas peças não pertenciam ao Museu da Cidade e sim ao Museu de Medicina Legal (o museu da polícia). Devido a uma denúncia feita pelo Movimento Negro, o Museu de Medicina Legal foi obrigado a retirar a coleção afro-brasileira, que estava colocada ao 1 Tradução de Isadora Contins.

104 lado de armas de homicídio, cadáveres embalsamados e fetos monstruosos. As peças foram temporariamente colocadas no Museu da Cidade, que já possuía uma grande variedade de coleções de arte desde bonecas do século XIX e pinturas acadêmicas até ex-votos. No entanto, essa foi uma solução temporária: ainda não era claro para onde a coleção seria destinada. Eu já sabia disso tudo por ter conversado com pessoas do Movimento Negro, na verdade com um grupo de antropólogos e líderes do candomblé. Eu também sabia que um dos principais argumentos deles contra o Museu de Medicina Legal era que essa coleção afro-brasileira era resultado de apreensões violentas da polícia. O que eu não sabia era que a pedra não estava mais em exibição. Então, perguntei ao assistente do diretor, que me disse que eles haviam removido a peça porque pessoas do Movimento Negro haviam reclamado especificamente disso. Eles disseram que a otã é um símbolo sagrado do candomblé, um objeto muito respeitado naquela religião e que nunca é mostrado em público. As otã são sempre ocultas. Sendo assim, o fato de o objeto estar exposto em um museu era uma grande falta de respeito ao candomblé. Foi então que ele foi retirado, escondido de novo. O que significava dizer que o objeto foi escondido? Será que ele foi levado de volta à casa de candomblé de onde veio? O assistente do diretor não sabia ao certo, mas imaginava que estava simplesmente arquivado no porão. Achei que o porão era local um tanto inadequado para uma pedra de tamanha complexidade. Essa pedra merecia mais, poderia ser o personagem principal ou agente de um artigo. Nas páginas seguintes, irei explicar como essa pedra incorporou diversos e por vezes contraditórios valores dos objetos do candomblé na Bahia do século XX; desde armas de feitiçaria, sintomas de patologia racial até peças de arte erudita. Essa discussão irá nos levar a algumas considerações mais gerais com relação ao papel das noções de historicidade e materialidade como peças-chave para entender a vida e agência desse objeto e possivelmente outros objetos também. Primeiramente, porém, devo começar descrevendo o valor da otã no candomblé: por que essas pedras são ocultadas e de que forma elas crescem. Santos, pedras e corpos Tradicionalmente, muitos iniciados do candomblé afirmam que não entraram no culto por vontade própria, mas devido a uma entidade espiritual, o santo que exigiu sua devoção (chamada de obrigação). O santo pode causar

105 aflições físicas, mentais e sociais caso as pessoas por ele escolhidas não cumpram com seus deveres. Sendo assim, elas precisam passar por uma iniciação sob os cuidados da mãe de santo, para aí se tornarem filhas de santo. O processo de iniciação é chamado literalmente de fazer o santo. Fazer o santo é um processo concreto e material, não só um ensinamento de mitos, canções e orações. Fazer o santo tem essencialmente que ver com aprender a lidar com o santo, entender suas exigências e satisfazê-las. Por esse motivo, o iniciado precisa aprender uma série de técnicas de ritual, incluindo técnicas corporais essenciais para a incorporação do santo, fazendo oferendas e construindo templos. É um processo dialético de objetificação e apropriação, em que o santo é construído, tornado real no templo e no corpo. Pode-se dizer que, através da iniciação, o santo não é construído somente no corpo e no templo, mas também na pessoa da filha de santo. O processo dura muitos anos, numa troca em que pessoa e santo ajudam a se construir, pois fazer o santo, na verdade, também é se fazer a si mesmo. No final do processo, que muitas vezes nunca acontece, o iniciado encontra total harmonia com o santo. É nesse momento que o iniciado pode se tornar ele mesmo mãe de santo e ajudar outros a fazer seus santos. De certa forma, o processo de iniciação transfere a agência do santo para o iniciado, de um momento inicial em que a pessoa é somente um paciente, subordinado ao desejo do santo, que quer possuir o corpo do iniciado, até que ele passa a conseguir controlar seu relacionamento com ele e possa ajudar outras pessoas. Nesse sentido, a iniciação pode ser visto como um processo de construção da pessoa. Segundo Goldman (1984), podemos ver o candomblé como um sistema dinâmico que constrói pessoas. Além de tentar classificar as pessoas por meio de arquétipos ou mostrar um ego reprimido, como as interpretações psicológicas de possessão costumam dizer, suas práticas ritualísticas produzem novas pessoas sociais. Se vemos a pessoa como um processo aberto, podemos pensar que os santos são elementos ativos que colaboram precisamente na construção da pessoa que está sempre em formação. Nem tudo, porém, se aprende na iniciação. Nenhum ritual, receita ou método prescritivo é suficiente para construir uma pessoa. Existem coisas que não podem ser precisamente determinadas: por exemplo, nem todas as pessoas são chamadas para fazer o santo; menos pessoas ainda são chamadas para se tornar mãe de santo. É preciso uma iniciação ortodoxa e rigorosa, mas também um dom particular, uma capacidade inata de reconhecer e se comunicar com o santo (Boyer, 1996). O candomblé não é só uma fórmula, mas uma arte.

106 Além disso, a iniciação envolve não somente o relacionamento pessoal entre santo e iniciado, mas também uma terceira entidade: a mãe de santo. Nos primeiros passos de iniciação, é preciso que a filha de santo aceite a autoridade da mãe de santo e a obedeça como ao próprio santo. Mas os iniciados com um dom particular podem aproveitar, desde o início, um relacionamento privilegiado com o seu santo. Dessa forma, eles sobem rapidamente os degraus do poder ritualístico, gerando conflitos em relação às duas mães de santo. Conflitos entre mães e filhas não são raros; na verdade, são tão frequentes que são quase uma regra. 2 Os altares de candomblé são os assentos ou assentamentos. A palavra assento faz referência ao ato de se sentar, fixando o santo a uma coisa, transformando um evento em um objeto. A estrutura geral 3 do assento consiste numa plataforma coberta de alguidares e vasilhas, cobertas a sua volta de panos, enfeites, presentes e objetos relacionados como os santos. As vasilhas e alguidares contêm os fundamentos que personificam os santos dos iniciados. Esses objetos foram identificados como fetiches pelos pesquisadores de religiões afro-brasileiras, 4 influenciados pela literatura sobre cultos fetichistas da África Ocidental. Os fundamentos podem ser diferentes coisas, 5 mas as pedras (otã) são um dos elementos mais comuns. Cada orixá tem otã e fundamentos particulares. Os assentos de Oxum e Iemanjá, por exemplo, são conchas e pedras encontradas nas águas, já que esses são os elementos desses orixás, a água doce e a água salgada, com nuanças que correspondem às cores desses orixás (amarelo ou ouro para Oxum, branco ou prata para Iemanjá). 2 A presença de conflito ritualístico no candomblé foi documentada na década de 1970 no excelente Guerra de Orixá (1972) de Yvonne Maggie. No entanto, poucos autores seguiram essa linha de pesquisa, preferindo focalizar nos procedimentos (supostamente) normais de reprodução de casas de candomblé. Mas na verdade pode-se argumentar que conflito ritualístico está no centro da força dinâmica do candomblé, o que o torna não só uma sobrevivência folclórica, mas uma religião crescente e em expansão. 3 Esse modelo de assento é muito geral e não reflete a diversidade das casas (templos) que encontramos nas práticas do candomblé. Mas ele corresponde ao modelo de prática ritualística que foi imposto nas últimas décadas nagô ketu e sua estrutura de iniciação. Já que o propósito desse artigo não é discutir a variação e inovação em assentos do candomblé, não insistirei nessa questão. Para mais informações sobre a variedade de assentos, veja Sansi (2007). 4 O primeiro autor a usar o termo especificamente foi Nina Rodrigues, em 1906 (Rodrigues, 1988 [1906]). Ruth Landes (1947) ainda usava os termos fetiche e fetichismo na década de 1940, mas ele foi abandonado depois por causa das conotações negativas que os termos adquiriram. 5 Por exemplo, em um assento de Iansã: além disso, os otã lá são búzios, ides (pulseiras), colheres de madeira, os chifres e rabo de um boi, obi e orobó (frutas secas africanas) em números específicos que são segredo e não devo revelar.

107 As pedras de Xangô caíram do céu, já que Xangô é o deus do trovão. 6 É importante notar que a otã tem de ser encontrada. Um de meus informantes principais, uma mãe de santo, comentou comigo, rindo, sobre como outra mãe de santo de São Paulo perguntou para ela onde ela havia comprado as lindas pedras que ela possuía. Ela respondeu: um orixá é encontrado, não comprado. Em outro momento, ela me contou como encontrou seu Exú, por acaso. Depois de uma forte chuva, a casa de sua irmã desabou. Passando do lado, ela escutou uma voz fraca vindo das ruínas. Ninguém mais tinha ouvido. Ela parou e começou a olhar debaixo das ruínas enquanto a voz ficava mais clara e alta, pedindo que ela a tirasse dali de dentro. Finalmente, encontrou uma pedra estranha, com a forma de uma caveira de bode. Ela a levou para casa e colocou a pedra na posição do assento do Exú, atrás da porta de ingresso do barracão. Essa história conta algo básico sobre a otã e os fundamentos em geral: as pedras não são compradas ou feitas, mas encontradas, porque elas querem ser encontradas. É interessante assinalar esse fato com relação a viajantes europeus na África Ocidental tecendo considerações sobre o absurdo dos fetiches. Um dos pontos no qual eles insistiam, com desprezo, era que os africanos adoravam a primeira coisa que encontravam em seu caminho (Pietz, 1985). No caso do candomblé, certamente existe o elemento do hasard objectif, acaso objetivo, para usar a expressão surrealista, em que é a pedra que está pedindo para ser encontrada. Há reconhecimento da agência personificada nas pedras antes de sua consagração, apesar de essa agência só ser reconhecível no momento certo e pela pessoa certa ela aparece como dom do objeto para essa pessoa. Esse é um ponto básico e retornarei a ele mais tarde, na conclusão. Na medida em que essas pedras são encontradas, elas passam por um ritual de consagração, em que são assentadas nos altares. Lá elas serão lavadas ritualmente 7 e alimentadas com oferendas e sacrifícios, haverá pessoas rezando e implorando por ajuda sobre elas, sempre com atitude de extremo respeito e submissão. Elas nunca devem ser olhadas diretamente, são escondidas em quartos escuros, dentro de vasilhas cobertas de panos. O assento não é a imagem, mas a casa do orixá; uma casa assentada, fixada, permanentemente, idealmente por toda a vida do iniciado. 6 De acordo com Santos, muitas das pedras que encontramos em casas de Xangô na África são préhistóricas, em forma de machado, que, de acordo com a crença popular, caem junto com o relâmpago e permanecem enterradas na terra (Santos, 1967, p. 88). 7 A limpeza dessas pedras é feita com materiais diferentes, dependendo do orixá: mel, sangue, óleo de palma, mas especialmente água e amassi, que é água com folhas sagradas (ver Binnon-Crossard, 1970).

108 O assento fica escondido e coberto, e sua vida é um mistério latente, um sopro abafado; fechado em um alguidar, envolto em um pano e trancado em um quarto que só a mãe de santo pode ousar abrir. As camadas e camadas de invisibilidade do assento são construídas precisamente para intensificar sua força, como argumenta David Brown (2003, p. 247), multiplicando os poderes de sua presença ao torná-lo perceptível apenas indiretamente. De certa forma, uma exibição muito evidente é evitada para que haja certo degrau de intimidade do assento e um segredo, indispensável para a continuidade de sua força misteriosa. Essa força eventualmente irá explodir no corpo humano, por meio de possessão. A intimidade do assento só é desafiada em oferendas e sacrifícios. As oferendas despertam a força viva do templo, o axé para ligar os canais espirituais que trazem os santos para os corpos dos iniciados, culminando no ritual público de incorporação. Na dança, o espírito toma conta do corpo do devoto. O relacionamento entre o assento e o corpo do iniciado tem nuanças sutis. Thompson (1993) já discutiu como cabaças e outros potes usados em rituais iorubá são vistos como análogos da cabeça. 8 Na verdade, é para o santo entrar dentro da cabeça do iniciado, no ori, um órgão que o acolhe. O ritual de iniciação inclui as importantes cerimônias de raspar e dar de comer à cabeça. 9 Pode-se dizer que a cabeça e o corpo, em geral, são representados pelo ori como os assentos representam o otã. 10 Acredito que a analogia do corpo/ori e assento/otã é extremamente importante, já que são os dois estados opostos em que o santo se apresenta. É no assento que o santo senta no corpo humano que ele dança. O santo é alimentado no assento em segredo. Mas quando o santo é incorporado pelo iniciado, ele se mostra em público, e oferece uma festa com comida e bebida para os convidados. No assento, o santo é escondido, isolado e ocultado. Dentro do corpo do iniciado, o santo é público, vibrante e triunfante. 8 Na África, os potes dos assentos também podem ser cabaças. A cabaça, o pote, é um recipiente do orixá que representa a cabeça, ori. Thompson nos fala de certos restos arqueológicos, demonstrando que as famosas cabeças esculpidas de Ife podem ter sido altares, e mais tarde foram substituídas por cabaças e recipientes: a crença de que a cabeça e outros avatares de axé e iwà podem convocar o espírito a um altar, para ser concretizado por devotos de possessão, está implícita nos santuários de hoje. 9 Apesar de o ritual raspado normalmente ser associado à tradição ritualística dominante, Ketu, nem todas as nações do candomblé o celebram, preferindo, em vez disso, batizar o iniciado. De qualquer forma, existe uma ideia clara de que a cabeça precisa ser alimentada ritualmente e purificada. 10 A perceptiva discussão sobre idolatria através da analogia do interno e externo no livro de Gell, Art and Agency (1998, p ), pode ser perfeitamente aplicada nesse caso.

109 Ao longo do tempo o assento acumula os restos dessa vida de troca ritualística: oferendas, presentes de flores, perfumes, imagens, panos e roupas usadas em danças, incorporando uma biografia espiritual e pessoal. 11 É dito, e de forma bastante literal, que pedras crescem. E por que não devemos aceitar isso? A constante troca ritual cria um relacionamento altamente determinado e determinante entre assento e iniciado, a ponto de a otã se tornar quase um órgão exterior do corpo dela, parte de sua pessoa distribuída (Gell, 1998). Os assentos são organizados em ordem hierárquica: o alguidar central corresponde à mãe de santo. Os outros às vezes ao redor, às vezes abaixo desse pote central pertencem às filhas de santo. Eles são todos relacionados pelo parentesco ritual: o assento de cada iniciado é para o assento da mãe de santo, mesmo que a iniciada é para a mãe de santo, mãe para filha. Nem sempre, entretanto, a prática segue a teoria, e até as melhores famílias têm suas brigas. Quando as filhas de santo brigam com a mãe de santo, normalmente elas tentam sair de casa, 12 mas isso não é algo fácil, porque os assentos delas estão lá, sob o controle da mãe de santo, que é dona da casa e cuida delas ela é zeladora dos santos. Para saírem de casa de vez é preciso retirar seus assentos, e muitas vezes só podem fazer isso longe da mãe da santo, que consideraria isso um roubo já que parte de seu poder ritualístico, seu axé, também envolve esses assentos. Poderíamos dizer que ela considera esses assentos parte de sua pessoa distribuída. Sendo assim, é comum que o cordão umbilical que une mãe e filha, através de seus assentos, só seja cortado através da violência e do roubo Com relação aos santuários da santeria, os tronos, David Brown afirma que o trono incorpora uma biografia emergente espiritual e pessoal em que os próprios objetos, que são preparados e entregues pelos mais velhos do ritual, colegas, amigos ou afilhados, têm suas próprias histórias e biografias (Kopytoff, 1986). Resumindo, o trono se torna tanto o foco de um processo ritualístico cíclico um ciclo de vida sagrado quanto o foco estético e emocional para a produção e troca de objetos (Brown, 1996, p. 93). 12 As filhas de santo não moram necessariamente na casa de candomblé, mas precisam passar alguns períodos lá durante a iniciação. A literatura sobre o candomblé costuma idealizar a imagem do terreiro, a casa de candomblé onde os iniciados moram em comunidade (Bastide, 1978 [1960]). A realidade é mais complexa quando consideramos os padrões de habitação, em geral das classes mais baixas na Bahia, onde há alta mobilidade, e a criação de famílias de mulheres que ficam em uma casa ou grupo de casas não é restrita a casas de candomblé. Por outro lado, essas familias são altamente voláteis, pois sempre há pessoas novas entrando ou saindo do grupo. 13 A reprodução ritualística das mães de santo também pode seguir termos convencionais ou estabelecidos através de um ritual chamado deka, em que a filha de santo recebe os instrumentos do ritual para iniciar outras pessoas. Na verdade, o sucesso de uma tradição ritualística dentro do candomblé, a nação Nagô-Ketu, indiscutivelmente se distancia da apropriação desse método de reprodução ritualística (Sansi, 2007).

110 Na medida em que possam pegar os seus assentos, as filhas de santo podem reconstruir um templo em suas próprias casas e se tornar mães de santo por si próprias. Quando a filha de santo morre, ocorre um ritual especial não só para enterrar seu corpo mas para resolver o que é preciso ser feito com o assento. Na maioria das vezes, o santo aceita ir embora junto com o corpo e os alguidares são quebrados, mas às vezes ele se recusa a sair de seu assento e permanece na casa, pedindo para que os outros iniciados tomem conta dele. Nesses eventos, às vezes, imagens assombradas do santo e da pessoa que morreu aparecem de forma estranhas. 14 No candomblé, a vida das pessoas e das pedras estão intimamente ligadas além do formulismo ritualístico. Esse é um ponto importante a lembrar quando considerarmos as interpretações e transformações no valor desses objetos para além das casas de candomblé, como veremos mais adiante. Armas de feitiçaria e obras de arte Voltemos agora à nossa pedra aquela escondida no porão do museu. Como disse, essa otã, em particular, pertencia a coleção do Museu de Antropologia de Medicina Legal. Não sabemos ao certo a origem da pedra. Resta- -nos imaginar, olhando para a história da coleção em que ela permanece desde as últimas décadas. Esse museu herdou a coleção de objetos que Raymundo Nina Rodrigues começou a expor, na Faculdade de Medicina, no início do século XX. Rodrigues foi o fundador de Medicina legal na Bahia. Naquela época, a Faculdade de Medicina era a única instituição de educação superior no estado, e patrimônio das elites locais. Não é de estranhar que muitos alunos e professores de Medicina tivessem interesse em assuntos de ordem pública. A Medicina legal parecia corresponder a esse interesse, como forma estendida da Criminologia, com aspirações a se tornar uma Ciência Social totalizante baseada no positivismo e no racismo científico (Corrêa, 1983). 14 Isso aconteceu com um de meus informantes que, infelizmente morreu. O santo dessa pessoa, Omulu, se recusou a sair de seu assento, e os outros iniciados tiveram de zelar por ele e alimentálo. Quando não querem muito gastar seu tempo com isso e se esforçar, o fantasma de Omulu ou a própria pessoa, isso não é claro aparece em sonhos para os iniciados, reclamando de sua preguiça. E, quando as ofertas acabam, alguns tem visões de Omulu dançando.

111 Rodrigues foi o primeiro etnógrafo de candomblé. Na época, o candomblé era publicamente desprezado como superstição e privadamente temido e considerado feitiçaria pelas elites locais (Maggie, 1992; Rio, 1951 [1904]). Rodrigues foi o primeiro a olhar o candomblé cientificamente, descrevendo os rituais de possessão não como feitiçaria mas como manifestações de doenças mentais. Ele colecionava objetos relacionados ao candomblé como instrumentos de pesquisa. Como cientista, Rodrigues tentava não olhar para esses objetos somente como instrumentos de feitiçaria e provas de crime, como a polícia ou os jornalistas de seu tempo, e sim como sintomas de patologia. Ele estava até pronto para admitir que eram formas de arte, uma arte primitiva produzida por uma raça inferior, mas ainda assim arte (Rodrigues, 1988 [1906]). Na verdade, Rodrigues, por seu trabalho etnográfico, mantinha uma boa relação com os pais de santo do candomblé. Ele se tornou padrinho (ogan) de uma das casas mais importantes de candomblé, o Gantois. A coleção de Nina Rodrigues, no entanto, juntou objetos que para nós, hoje, podem parecer incomensuráveis ou simplesmente monstruosos. Além dos objetos de análise racial, como instrumentos de candomblé, ele possuía peças de interesse para especialistas em autópsia, como uma coleção de cadáveres, de moscas e objetos de análise frenológica, como cabeças de criminosos famosos. 15 Para Rodrigues, todos esses objetos eram elementos de pesquisa médica, sintomas de doença e degeneração racial. A coleção foi herdada pelos sucessores de Rodrigues na Faculdade de Medicina Legal. Naquela época, quando a repressão ao candomblé crescia, é possível que o museu tivesse começado a receber objetos de culto, apreendidos pela polícia junto com coleções de armas de homicídio e outras provas de crime. Em 1926, Estácio de Lima herdou a direção do museu e manteve esse cargo até o momento em que a instituição foi fechada formalmente, em 1967, para ser renovada (Lima, 1979). Nesse período de cinquenta anos, as atitudes das elites brasileiras e baiana com relação ao candomblé haviam mudado. Desde o final da década de 1940, uma nova elite intelectual de escritores, artistas e antropólogos enfaticamente rejeitaram o racismo da Escola de Medicina, valorizando a cultura afro-brasileira da Bahia. A nova Universidade Federal da Bahia (Ufba) abriu um Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) que olhava para as culturas africanas de uma perspectiva antropológica moderna. O Ceao treinou acade- 15 Uma das cabeças encontradas na coleção pertencia ao famoso profeta Antonio Conselheiro, líder da revolta de Canudos. Mais tarde, as cabeças do bandido Lampião e de seu bando também foram incluídas.

112 micamente algumas importantes figuras das casas de candomblé da Bahia, transformando os nativos em antropólogos. Ao mesmo tempo, antropólogos, escritores e artistas se tornavam iniciados em casa de candomblé. O resultado foi o surgimento de uma classe de intelectuais praticantes do candomblé e até mesmo pais de santo (Sansi, 2007). No início da década de 1970, o Ceao projetou o Museu Afro-Brasileiro com premissas completamente diferentes das do Museu de Criminologia. Seria um museu moderno, composto de coleções de natureza etnológica e artística sobre culturas africanas e sobre os principais setores de influência africana sobre a vida e a cultura do Brasil. 16 Além disso, o museu também deveria ser um incentivo à criação artística com conteúdo afro-brasileiro, através de bolsas ou prêmios de literatura, música, artes visuais, cinema, teatro e dança. 17 O projeto do Museu Afro-Brasileiro chocou as elites mais velhas e conservadoras de discípulos de Nina Rodrigues, particularmente porque, segundo o projeto, o museu ocuparia o antigo prédio da Escola de Medicina no centro de Salvador. O professor de Medicina Raymundo de Almeida Gouveia declarou que era uma ideia estranha e ruim colocar o Museu Afro-Brasileiro na primeira faculdade de Medicina brasileira. 18 Ele argumentou que haveria verdadeira profanação, sobretudo se amanhã, como será possível, o Museu do Negro servir de abrigo às práticas do candomblé, hoje já sofisticado e adulterado por aproveitadores e improvisados etnólogos. 19 Esse penoso debate entre médicos e antropólogos culturais continuou até a abertura do Museu Afro-Brasileiro em Aliás, a reabertura do Museu de Medicina Legal em 1976, chamado dessa vez de Museu Estácio de Lima, precisa ser colocada no contexto desse confronto cultural. Em agosto de 1996, um grupo de intelectuais, artistas e casas de candomblé, 20 organizados como Sociedades de Proteção e Defesa de Cultos 16 Constituição e manutenção de um Museu Afro-Brasileiro, composto de coleções de natureza etnológica e artística sobre as culturas africanas e sobre os principais setores de influência africana na vida e na cultura do Brasil. Termos de Convênio Ministério das Relações Exteriores/Ministério da Educação/Ufba/Prefeitura Municipal de Salvador, apud Santos (2000, p. 128). 17 Ponto (i) da primeira cláusula do Convenio: O incentivo à criação artística de temática afro-brasileira, mediante subvenções ou concursos de natureza literária, musical, teatro e dança. 18 IBHM conta instalação de Museu na ex-faculdade de Medicina. Tribuna da Bahia, 08/08/ Considero que haverá verdadeira profanação sobretudo se amanhã, como será possível, o Museu do Negro servirá de abrigo às práticas do candomblé, hoje já sofisticado e adulterado por aproveitadores e improvisados etnólogos. Tribuna da Bahia, 08/08/ As casas de Opo Afonjá, Cobre, Casa Branca, Bate Folha, Bogum e Alaketu.

113 Afro-Brasileiros, decidiu processar o museu por ameaça à moral pública. 21 Durante o julgamento, a promotoria tentou argumentar que belas criações de arte sagrada negra não deveriam ser exibidas com um discurso ideológico racista e perverso, em que essas obras de arte negra sagradas são expostas como objetos de interesse criminológico e patológico. Retoricamente, eles perguntaram que valor educacional esses objetos poderiam ter como documentação da civilização negra quando mostrados junto com armas criminais e aberrações da natureza. Ainda, esses objetos eram mantidos de forma inapropriada, sem considerações aos procedimentos museográficos. Em meio a essa discussão, a promotoria pediu que os objetos fossem levados para outra instituição e expostos com mais dignidade, tendo em mente que não existe nenhuma referência clara com relação à origem e significado desses objetos, e que a maioria deles foi colecionada durante um período de repressão policial ao candomblé. O que os representantes das casas de candomblé estavam pedindo, no fim das contas, era precisamente que o material de cultura do candomblé fosse reconhecido em pé de igualdade com a arte ocidental. Eles não estavam exigindo que os objetos retornassem para as casas de candomblé; queriam que os objetos fossem reconhecidos como arte sagrada e expostos em museus de arte junto com as obras de arte históricas e contemporâneas, e não em um museu policial. Em outras palavras, eles reconheciam os museus como instituições apropriadas para guardar esses objetos: mas no museu apropriado e da forma certa. Um dos problemas-chave surgidos nesse caso foi: de onde esses objetos vêm realmente? Será que eles são mesmo resultado de saques policiais? Essa é uma das perguntas que a diretora do Museu de Medicina Legal buscou negar em sua resposta ao requerimento. Primeiramente, ela argumentou que mesmo que alguns objetos tivessem uma conotação religiosa, isso não significa serem necessariamente sagrados. Depois alegou que essas coleções não vieram da polícia, foram dadas a Nina Rodrigues e a Estácio de Lima ou foram compradas por eles. Esses argumentos poderiam ser parcialmente verdadeiros. Tanto Nina Rodrigues quanto Estácio de Lima eram ogan ou padrinhos no Gantois, e é muito possível que algumas das peças expostas no museu tivessem sido, na verdade, compradas por Estácio de Lima. Não é difícil, porém, pensar que os objetos do candomblé apreendidos pela policia, assim como outros materiais como armas homicidas, também 21 Ameaça para moral pública, Processo , 09/10/1996. Nos próximos parágrafos, não poderei citá-lo diretamente, para respeitar os requerimentos dos autores do processo.

114 acabariam no museu. As expedições da polícia às casas de candomblé estão bem documentadas na imprensa da década de 1920 e 1930 (Lu hning, 1996). Esses jornais mencionam roubos de objetos de candomblé e definem tais objetos como arsenais de feitiçaria 22 ou apetrechos bélicos. 23 Os jornais também mencionam, com frequência, o envio desses objetos apreendidos ao Instituto Histórico e Geográfico. 24 A coleção de Nina Rodrigues não é mencionada, mas parece plausível pensar que um museu dedicado à Criminologia também receberia esses arsenais de feitiçaria. Infelizmente, os arquivos do museu não foram preservados: eles se queimaram misteriosamente há alguns anos. Um dos casos que demonstram a origem policial de alguns dos objetos na ação foi a pedra otã. Os reclamantes argumentaram que um praticante do candomblé jamais entregaria um pedra consagrada a ninguém. Além disso, afirmaram que a exibição de tal pedra é um sacrilégio e que seu comércio é proibido. Seria o equivalente a vender o Espírito Santo seria uma profanação. Em outras palavras, os reclamantes argumentaram que a otã não só tinha conotações religiosas, mas era realmente sagrada. Ela não poderia ser vendida ou dada a Nina Rodrigues ou Lima, já que uma pedra considerada sagrada nunca poderia ser vendida ou dada. Os representantes das casas de candomblé e do museu chegaram a um acordo final antes de irem para o tribunal e foi decidido que a coleção seria temporariamente colocada no Museu da Cidade. Esse museu, que basicamente abriga coleções artísticas e históricas, é reconhecido pelo Movimento Negro como um lugar correto para expor esses objetos, com exceção de um caso: a otã. A otã não pode ser exposta em local público. Diferentemente dos outros objetos, não é uma obra de arte, não é um artefato, e seu poder imanente deve ser respeitado a pedra deve ser escondida e não pode nem ser vista. De certa forma, mesmo se os representantes do candomblé assumissem os valores culturais que o museu representa e tivessem se apropriado deles, ainda há alguns objetos não ligados a essas considerações do museu. Esse não é um caso isolado; por exemplo, o antropólogo Raul Lody fez um catálogo da coleção do Instituto Histórico com fotos de todos os objetos nela contidos (Lody, 1985). Ele mencionou a otã presente naquela coleção, mas 22 Arsenais de Feitiçaria. A Tarde, 20/5/ Apetrechos bélicos. A Tarde, 03/10/ Veja A Tarde, 20/5/1920; e A Tarde 19/4/1934. O delegado Frederico Senna já convidou o secretário perpétuo daquela instituição para escolher o que lhe serve dentre os troços de Pai Crescencio, entre os quais muitas reminiscências do africanismo (A Tarde, 12/11/1926).

115 não tirou fotos. Pode ser relevante mencionar que Lody não é só antropólogo, mas também do candomblé. 25 Conclusões: a vida oculta das pedras Por que a otã foi parar no porão? Só podemos especular. Por um lado, as pessoas do Movimento Negro poderiam dessacralizar o objeto e deixá-lo em exposição no museu como símbolo de repressão ao candomblé. Mas parece que eles acharam mais importante seu valor religioso. Por outro lado, eles poderiam ter mandado a pedra de volta para a casa de candomblé e reincorporá-la à prática ritualística. Se o valor da pedra foi resultado do fato de ela ser sagrada, como foi dito no tribunal, não deve ser difícil fazer um ritual de purificação ou sacralização. Mas não foi isso o que aconteceu. Por quê? Talvez porque não seja tão simples. A sacralização de uma pedra só pode acontecer quando o elo com o iniciado dela for claramente rompido. Por exemplo, em caso de morte do iniciado, o oráculo dirá se o santo quer ou não deixar o assento. Mas o que fazer quando não se sabe de quem é a pedra? O valor da otã não está relacionado somente ao resultado de um ritual genérico de consagração, mas à sua história particular. E aquela pedra tem uma história longa e complicada; os traços de sua origem foram perdidos. Quais agências podem ainda estar presentes na pedra? Não sabemos. As complexidades do valor da otã não foram mencionadas no tribunal entre as pessoas do candomblé. Pode ser porque acreditar na agência da pedra soaria como algo muito irracional, muito fetichista. Talvez seja algo que eles mesmos não se deem conta, já que acreditam que ainda precisam evitar acusações de fetichismo e feitiçaria. E provavelmente estão certos. Essa é uma das contradições da situação contemporânea da cultura afro- -brasileira na Bahia. Ao apresentar o candomblé como cultura afro-brasileira, a aliança entre intelectuais e líderes do candomblé se propôs a valorizar os objetos do candomblé como símbolos culturais, representações visuais a ser exibidas em museus e outros locais como obras de arte. Isso pode ser visto como uma forma de sincretismo entre os valores do candomblé e os valores da alta cultura institucional (Sansi, 2007). Mas esse sincretismo tem seus limites. Existem objetos que não podem ser exibidos em museus porque não podem ser vistos, dessa forma contradizendo o valor central de 25 Lody é um ogã na casa de Ilê Axé Opô Afonjá.

116 visibilidade em objetos da alta cultura. Então a pedra é retirada do armário, escondida mais uma vez, mas de forma diferente do que era na casa de candomblé, num estado de indeterminação. Nesse artigo, observei o processo histórico pela perspectiva de um objeto. Ao ver os diferentes valores que foram atribuídos à pedra desde um abrigo divino, a arma de feitiçaria, a obra de arte, busquei explicar alguns dos conflitos, mudanças e contradições nos sistemas de valor, os torneios de valor, segundo os termos de Appadurai (1986), que aconteceram na Bahia no século XX. No entanto, existem elementos nessa história que fogem do discurso sobre valor, ou melhor, um discurso sobre a contingência social dos valores atribuídos às coisas, dependendo do contexto, cultura, etc. Parece que essas coisas, ou pelo menos essa coisa, não são somente suportes de valores ou significados que podem ser rapidamente substituídos quando uma forma de dominação ou uma cultura se sobrepõe a outra. Como Miller claramente argumentou (1987), não podemos reduzir objetificação a reificação. Particularmente, no final da história, quando a pedra é retirada do museu, as pessoas do movimento negro ficam em uma situação um pouco desconfortável, já que é preciso deixar a pedra numa espécie de limbo, porque ela não pode ser nem uma coisa nem outra, obra de arte ou pedra de altar mais uma vez: ela não pode simplesmente incorporar um valor ou outro. Acredito que essa não é só uma questão de hibridismo ou superposição de valores. Existe algo mais fundamental: o fato de que a pedra, apesar de seu valor, existe como coisa. Mesmo se ela for escondida, ela ainda está lá, em algum lugar, assentada, testemunha muda e imóvel de sua própria história, não só como sinal de assuntos humanos. Isso não é só para dizer que as coisas têm uma agência, mas que esse poder não é só resultado de atos de consagração humana, em que mentes humanas colocam sua agência nas coisas intencionalmente, como diria Alfred Gell (1998). Em alguns casos, parece que a agência das coisas não vem dos humanos, e sim de sua presença nos eventos. Vem de sua irredutível materialidade, como afirma Pietz em relação ao fetiche (Pietz, 1985). Para Pietz, a vida e o valor do fetiche, tal como descritos nos espaços de troca da África Ocidental por viajantes europeus, não podem ser entendidos apenas como extensão da pessoa dos humanos: são também o resultado de sua historicidade e de sua territorialidade. Por um lado, a irredutível materialidade do fetiche, que não é só um símbolo ou ícone de uma divindade mas uma entidade autocontida com uma força ativa, introduz a questão da posição do objeto no espaço e no tempo, como objeto territorializado (Pietz, 1985, p. 12). A vida do fetiche é condicionada por restrições no espaço

117 e no tempo: sua inabilidade em mover-se fisicamente o torna estritamente dependente de seus humanos associados; sua inscrição num lugar concreto e específico como um templo, onde é protegido. A reflexão sobre essa territorialização ou materialidade, como também a poderíamos chamar, pode trazer à tona o que Gell (1998) definiria como uma teoria externalista da agência, em que a agência é reconhecida através de prática social independentemente do fato de que vem de uma mente interna realmente existente. Mas, indo um pouco além de Gell, eu diria que essa abordagem externalista para a agência pressupõe a noção de uma mente externa. De fato, não acho que precisamos falar sobre mentes, menos ainda sobre psicologia intencional pressuposta para falar sobre agência. Em certos casos, a agência das coisas não deriva da abdução de uma mente, a atribuição de pensamento, mas da prova de sua presença física e sua relação dialética com o corpo humano. Não é porque eles têm uma mente, mas porque elas têm um corpo, e esse corpo é radicalmente diferente do corpo humano, que as coisas são agentes de forma radicalmente diferente dos humanos. No caso do candomblé, corpos humanos dançam enquanto pedras sentam. O corpo dançante do devoto é, na verdade, a verdadeira imagem pública do orixá, mas é efêmero, enquanto o assento é sua presença silenciosa, escondida e constante. Voltando à questão sobre o fetiche: Pietz observa que o fetiche é sempre uma fixação significante de um evento singular; acima de tudo ele é um objeto histórico, a forma material e força durável de um evento que não se repete (Pietz, 1985, p. 12). A historicidade radical do fetiche, que surge de um evento único, é o que mais perturbou Hegel e o que o convenceu a colocar a África fora da História. 26 O que Hegel interpretou como capricho ou escolha arbitrária é de fato o reconhecimento dos valores singulares gerados pelos eventos. Esses novos valores, como diz Latour (2001), não podem ser reduzidos à lista de elementos que fazem parte do evento antes de ele acontecer. Através do evento, os atores sociais envolvidos gagnent en definition, nas palavras de Latour (2001, p. 131); eles são modificados e mais definidos como pessoas sociais, poderíamos dizer, uns em relação aos outros. Encontrar um fetiche é um evento imprevisível: um acontecimento único, no qual as pessoas encontram algo imprevisto por elas reconhecido como fazendo parte delas, algo que se torna personificado, apropriado, que se adiciona à pessoa. 26 Na Filosofia da História, Hegel observou que faltava aos africanos o princípio que acompanha todas as nossas ideias: a categoria de universalidade. Essa ausência é refletida no culto ao fetiche, mera criação que expressa a escolha arbitrária de seu criador (apud Pietz, 1985, p. 7).

118 Pietz explica esse ponto maravilhosamente, fazendo referência a Michel Leiris e à noção surrealista do objet trouvé, [..] momentos de crise de um encontro singular e de uma troca indefinível entre a vida própria e aquela do mundo, que ficam marcados nas coisas e nos lugares, enquanto memórias pessoais que retêm um poder peculiar de mobilizar-nos profundamente. (Pietz, 1985, p. 12) 27 Essa é precisamente a questão da otã. Por que afinal a otã não pode ser vista? Porque o assento da otã marca um evento singular. Uma otã não é simplesmente feita por um ritual de consagração, mas, antes disso, ela é resultado de um evento único, em que o sacerdote do candomblé, pessoa que possui um dom, reconhece o santo na pedra. Esse ato de reconhecimento é uma visão original e fundadora. Ao esconder a pedra, consagrá-la, a mãe de santo tenta fixar esse evento para que ninguém mais possa, por sua vez, se apropriar da otã. A mãe de santo tenta controlar a historicidade potencial da pedra ao controlar sua territorialização num relacionamento complexo, em que não é muito claro quem serve quem, quem é o senhor e quem é o escravo; mas, no processo, tanto o santo quanto o sacerdote do candomblé crescem como pessoas. No entanto, na medida em que essa historicidade fica assim fora de controle, como em nosso caso, quando a pedra já passou por tanta coisa, o que as mães de santo podem fazer? Elas não podem facilmente se apropriar dela de novo. Como no caso do fetiche, a historicidade e a materialidade da otã não são irredutíveis aos atos de consagração ou atribuição de valor de qualquer espécie. O valor da otã não é só atribuído arbitrariamente, e não pode ser simplesmente subtraído pelos humanos. A densa e complicada história da otã do Museu Estácio de Lima não pode ser rapidamente destruída e sua presença material não pode ser facilmente apagada. Talvez seja precisamente nessa historicidade e materialidade, nessa presença obstinada, em que podemos encontrar às vezes a agência das coisas, que sua resistência seja reduzida à condição de símbolos ou valores, ou substitutos de nossa pessoalidade. 27 Não há dúvida de que ideias surrealistas sobre o objeto e destino são ambíguas, mas ainda assim extremamente evocativas. Se colocarmos de lado conotações estritamente psicanalíticas, podemos apreciar como as noções surrealistas de objet trouvé e hasard objectif capturam a natureza reveladora dos eventos cotidianos, em que o resultado nunca é só a soma de seus termos. Esses eventos marcam um antes e um depois numa história pessoal (ou geral), já que trazem à tona algo que não era claro antes talvez porque era reprimido ou escondido.

119 Agradecimentos Não teria sido possível escrever esse artigo sem a ajuda do professor Ordep Serra, da Ufba, e de Mãe Madalena de Oxóssi. Esse artigo é dedicado a eles. Referências bibliográficas APPADURAI, Arjun. Commodities and the Politics of Value. In: APPADURAI, Arjun (org.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p BASTIDE, Roger. The African Religions of Brazil. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978 [1960]. BINNON-CROSSARD, Gisèle. Contribution a l étude des Candomblés au Brésil: le Candomblé Angola. Tese de Doutorado. Paris: Université de Paris, FLSH, BOYER, Véronique. Le don et l initiation. L Homme, n. 138, p. 7-24, BROWN, David. Altar Making and Gift Exchange. In: LINDSAY, Arthur (org.). Santería Esthetics in Contemporary Latin American Art. Washington D.C.: Smithsonian Institution Press, Santería Enthroned: Art, Ritual, and Innovation in an Afro-Cuban Religion. Chicago: The University of Chicago Press, 2003). CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Tese de Doutoramento. São Paulo: USP, GELL, Alfred. Art and Agency: an Anthropological Theory. Londres/Nova York: Oxford/Clarendon Press, GOLDMAN, Márcio. A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGAS-MN, IBHM CONTA instalação de Museu na ex-faculdade de Medicina. Tribuna da Bahia, 08/08/1974. KOPYTOFF, Igor. The Cultural Biography of Things: Commoditisation as a Process. In: APPADURAI, Arjun (org.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p LANDES, Ruth. City of Women. Nova York: Macmillan Press, LATOUR, Bruno. L Espoir de Pandore. Paris: La Découverte, LIMA, Estácio de. Velho e Novo Nina. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1979.

120 LODY, Raul. Um documento do candomblé na cidade de Salvador. Rio de Janeiro: Funarte, LÜHNING, Ângela. Acabe com este Santo, Pedrito vem aí...: mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano entre 1920 e Revista USP, n. 28, p , dez.-fev., MAGGIE, Yvonne. Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Zahar, Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, MILLER, Daniel. Material Culture and Mass Consumption. Londres: Blackwell, PIETZ, William. The Problem of the Fetish, I. RES, Anthropology and Esthetics, n. 9, p. 5-17, primavera RIO, João do (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto). As religiões no Rio. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1951 [1904]. RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988 [1906]. SANSI, Roger. Fetishes and Monuments: Afro-Brazilian Art and Culture in the 20 th Century. Oxford: Berghahn, SANTOS, Deoscredes Maximiliano dos (Mestre Didi). West African Sacred Art and Ritual in Brazil: a Comparative Study. Ibadan: University of Ibadan (Nigeria), Manuscrito. SANTOS, Jocelio Telles dos. O poder da cultura e a cultura no poder: a disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil. Tese de Doutorado (inédita). São Paulo: USP, SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão social no Brasil São Paulo: Companhia das Letras, THOMPSON, Robert Farris. Face of the Gods: Arts and Altars from Africa and the Americas. Nova York: Museum for African Art, Outras fontes Jornal A Tarde (Bahia) Jornal Tribuna da Bahia Processo n , 9/10/96, Tribunal de Justiça Civil da Bahia.

121 5. BANDEIRAS E MÁSCARAS: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE PESSOAS E OBJETOS MATERIAIS NAS FOLIAS DE REIS Daniel Bitter 1 Introdução Um grupo de cantores e tocadores ricamente paramentados com impecáveis e reluzentes uniformes ruma morro acima pelas estreitas vielas do morro da Candelária, numa de suas muitas peregrinações devocionais. A bandeira, luminosa e sublime, segue à frente dos peregrinos, graciosamente empunhada pela bandeireira, abrindo caminho e anunciando publicamente o tempo das festas dedicadas aos santos Reis Magos. Tempo de alegria, fartura, de renovação das benesses divinas e dos laços sociais e cósmicos. Tempo também de pagamento de promessas por graças alcançadas, de obrigações rituais, de trabalho dedicado aos santos, da retribuição de bens materiais e simbólicos e do estabelecimento de hierarquias, honrarias, prestígio e reputação entre as pessoas. Um estado de forte exaltação contagia a todos: foliões de Reis, moradores, vizinhos, homens, mulheres, crianças, jovens e idosos. Uma verdadeira algazarra toma conta da localidade e a paisagem sonora é, então, dominada pelos intensos e vibrantes toques percussivos que ensejam uma marcha militar. Os palhaços, com suas máscaras grotescas e monstruosas e vestes multicoloridas de chitão, seguem saltitantes atrás do grupo, vociferando interjeições características que os tornam ainda mais assustadores e eficazes guardiões da bandeira e do grupo de foliões. Alardes entusiasmados e gritos de crianças misturam-se ao som das tevês, que projetam, através das janelas e portas, sua irremediável presença. A certa altura, o 1 Sou grato pelas considerações feitas a esse trabalho durante um seminário de discussões conduzido pelos organizadores deste volume em abril de Esta pesquisa contou com o apoio financeiro da Faperj.

122 mestre Hevalcy Ferreira da Silva para diante da porta de uma casa, enxuga o suor do rosto com sua toalha cerimonial e, com o sinal de seu apito, indica que é hora de silenciar. O mestre, agora tomado por forte tensão, novamente sopra o apito de metal pendurado no pescoço por uma corrente de prata e, do alto de sua autoridade, dá partida para o início da cantoria de uma toada de chegada. O som da bateria torna-se menos presente e já se podem ouvir a sanfona e os instrumentos de cordas dedilhadas ressoarem no ambiente. O mestre profere versos rimados de caráter religioso e o coro de vozes os repete de forma extremamente solene. A porta de madeira envelhecida pela pátina do tempo se abre e os residentes, tomados por intensa emoção, vêm receber a folia. Uma senhora de idade avançada e cambaleante se aproxima da bandeira. Os versos cantados por foliões anunciam a chegada e recepção da bandeira, enquanto a bandeireira transfere o objeto de maior valor ritual e simbólico para foliões e devotos para as mãos da dona da casa. Tudo se passa como numa cena rigorosamente coreografada, em que cada mínimo gesto tem um sentido profundo e revelador. A bandeira é beijada, demoradamente reverenciada e finalmente entronizada na casa, seguida dos demais foliões, à exceção dos palhaços, que permanecem do lado de fora. A partir de agora, nada será como antes. A entrada da bandeira e dos foliões na moradia de familiares e vizinhos protagoniza uma experiência radicalmente transformadora e significativa. * * * Venho realizando trabalho de campo e observações etnográficas em torno das festividades dos Reis Magos em diversas localidades do estado do Rio de Janeiro desde 2004, concentrando-me no morro da Candelária, uma das sub-regiões do Complexo da Mangueira, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Nessa localidade, tenho acompanhado as ações cotidianas e rituais dos integrantes da Folia de Reis Sagrada Família em interação com uma ampla comunidade de devotos. Convidado pelo mestre da folia para integrar o grupo como tocador, passei a realizar minhas observações na qualidade de participante, no período de 2005 a 2007, o que produziu uma significativa mudança nas relações estabelecidas com meus interlocutores, bem como na percepção do contexto. Neste texto apresento algumas explorações em torno do universo ritual e festivo de foliões e devotos, particularmente sobre o lugar que alguns objetos materiais ocupam nesses sistemas de trocas de dons (Mauss, 2003). Apresento observações etnográficas não apenas relativas à circulação dos objetos na vida social, mas também sua circulação cósmica, a forma que podem

123 assumir de dons e contradons, promessas e sacrifícios. O foco de análise está na circulação e nas mediações sociais e simbólicas da bandeira e da máscara entre foliões de Reis e uma ampla rede de pessoas. A bandeira pode ser sumariamente descrita como um suporte sobre o qual são ostentadas imagens de santos católicos e representações pictóricas de narrativas bíblicas, como os Reis Magos e a Sagrada Família. Considera-se que ela seja detentora de poderes especiais, sendo capaz de trazer bênçãos e graças, proteção e benesses materiais. A máscara, por sua vez, é usada por um personagem das folias, comumente chamado de palhaço. Trata-se de um tipo marcadamente liminar, cômico e ambíguo, e sua máscara, de aparência grotesca, opera significativas transformações, o que se revela no fato de o palhaço ter de retirá-la do rosto e revelar sua identidade em certos momentos do ritual. A máscara revela-se indissociável de seu proprietário, assumindo significados moralmente negativos em contraste com a bandeira. Podemos dizer, seguindo a sugestão de Roy Wagner (2010), que a máscara inventa o palhaço, que a ela são atribuídas, do ponto de vista nativo, determinadas qualidades de poderes (o que equivale a nos referirmos aos seus poderes de agência), o mesmo valendo para a bandeira. Nesse sentido, esses objetos não são apenas suportes materiais de um processo social ou ritual. De certo modo, eles produzem, desencadeiam esses processos. Vale ressaltar que, embora esses objetos se apresentem de forma contrastiva, ambos compartilham a propriedade de ser fortemente associados ao corpo, às pessoas que os manipulam coletivamente. São objetos que se aproximam pela capacidade de realizar mediações, bem como de produzir efeitos sobre as pessoas, revelando-se ambivalentes; simultaneamente materiais e imateriais, objetivos e subjetivos. Nesse sentido, os objetos são adotados como um ponto de vista para olhar o mundo de uma ampla rede de pessoas e entidades espirituais, constituindo-se como uma estratégia metodológica e teórica. As preocupações que movem esse estudo se inscrevem, portanto, num renovado interesse pela análise dos objetos materiais, considerando seu relevante potencial analítico. Festejando os Reis na Candelária, Complexo da Mangueira A Candelária, uma das sub-regiões do Complexo da Mangueira, formou- -se por volta dos anos 1940, quando a área foi ocupada principalmente por famílias migrantes da zona da Mata de Minas Gerais e do interior do estado do Rio de Janeiro. Hoje abriga cerca de 3 mil habitantes. Parte desse contingente veio integrar a força de trabalho de uma fábrica de cerâmica instalada

124 no local. Foram os migrantes mineiros e de certas áreas rurais do estado do Rio de Janeiro que atualizaram a memória dos ritos e das festas dedicadas aos santos Reis Magos, bem como o compromisso selado com esses santos. Na Candelária, um modo particular de socialidade se desenvolve, em meio a parentes que vivem como vizinhos, por um lado, e vizinhos que vivem como parentes, por outro. Nesse quadro, as festas de Reis parecem assumir significativa importância no fortalecimento de laços e pertencimentos sociais, bem como na criação de novas relações (Pereira, 2011) em um contexto marcado por intensos processos migratórios. As Folias de Reis são manifestações populares difundidas em grande parte do território brasileiro, apresentando inúmeras variantes e denominações. Trata-se de grupos de cantores e tocadores que realizam visitas às casas de familiares e amigos, distribuindo bênçãos em troca de ofertas destinadas à realização de uma grande festa em louvor aos Reis Magos do Oriente: Melquior, Baltazar e Gaspar. As visitas rituais, denominadas jornadas, inspiradas nas peregrinações míticas dos Magos, acionam uma ampla circulação de bens materiais e simbólicos: bênçãos, graças, visitas, refeições, dinheiro, favores, cantos religiosos, divertimento, etc. Em verdade, não apenas bens e ações considerados moralmente positivos circulam entre as pessoas e divindades, mas também os negativos, envolvendo rivalidades, vinganças e conflitos, sinalizando os aspectos agonísticos do ritual festivo. A literatura referente aos estudos folclóricos associa fortemente essas festividades, marcadas pelo signo da solidariedade, ao mundo rural, de onde teriam se originado. Nessa perspectiva, as Folias de Reis estabelecidas nas grandes cidades apontariam para formas residuais de um modo de vida tradicional, centrado nas trocas de dons e numa solidariedade mecânica (Durkheim, 2010). Nesse estudo, argumento que essas festividades não são sobrevivências em meio a um contexto metropolitano fragmentário onde, supostamente, predominariam relações sociais mais impessoais e individualistas. Contrariamente, proponho que as sociabilidades assentadas em princípios morais de reciprocidade convivem com as trocas mais impessoais dominantes no âmbito do mercado e da relação entre o Estado e os indivíduos. Essas festividades, entretanto, são acontecimentos de vital importância para se formularem os preceitos morais e religiosos compartilhados pelas pessoas que nelas se engajam, renovando e transformando os próprios vínculos sociais e permitindo o restabelecimento de hierarquias fundamentais. Argumento igualmente que, embora as folias tenham em seu horizonte a produção de uma communitas festiva (Turner, 1974), com sua consequente dissolução de

125 diferenças sociais, esses rituais se configuram como processos muito conflituosos, podendo envolver intensas disputas pessoais por poder e prestígio. As Folias de Reis são frequentemente originadas em decorrência do pagamento de promessas por graças alcançadas, inscrevendo-se no quadro interativo das trocas de dom, teorizadas originalmente por Mauss (2003). O autor teria descoberto uma regra social básica, assentada na tríplice obrigação de dar, receber e retribuir. A categoria promessa parece ocupar um lugar importante nas relações de comprometimento e de trocas, por meio das quais se estabelecem laços fundamentais entre foliões e santos. Chamo, entretanto, a atenção para o fato de que esses sistemas de troca são empreendimentos que guardam certa dimensão de perigo e incerteza. Como bem notou Caillé (2002), o dom é precisamente o gesto que se realiza no quadro da aposta e, portanto, do risco e da incerteza. Ao se estabelecerem vínculos com divindades e antepassados, lidam-se com forças incontroláveis, com expectativas de uma possível retribuição, num espaço de tempo. Tal como observou Bourdieu (1996), há um intervalo temporal entre o dom e o contradom que torna ainda mais saliente a ambiguidade da lógica das trocas, apoiada simultaneamente numa generosidade incondicional e num caráter impositivo e custoso. O paradoxo do dom não se restringe às trocas com entidades espirituais, ela é intrínseca às ações que cercam os processos de criação de vínculos sociais entre as pessoas. O mestre da folia muitas vezes assume um compromisso individual com os santos, mas depende do auxílio dos demais foliões para cumprir a promessa de realizar o circuito ritual da folia pelo período de sete anos, conforme os fundamentos religiosos da festa. É ele quem detém o conhecimento ritual necessário para conduzir o grupo, assumindo muitas vezes a responsabilidade por suas condições materiais. Sua posição, entretanto, é sustentada por meio de alianças e depende de uma delicada negociação em meio a uma estrutura organizacional fortemente hierarquizada. O mestre vê-se frequentemente envolvido em situações de conflito e disputas em torno de notoriedade, reputação e poder dentro de seu próprio grupo, mas principalmente em relação a outros grupos. Esses aspectos revestem os rituais de um forte caráter agonístico. 2 Além do mestre, a folia conta ainda com contramestre, 2 A rivalidade entre diferentes grupos é uma constante, o que pode envolver a manipulação de atos mágico-religiosos, aos quais os foliões referem-se como bruxaria. Certa vez, fora do ciclo ritual, notei no mestre Hevalcy um estranho comportamento, tropeçando, esbarrando e derrubando coisas pelo caminho, com frequência. Perguntei a ele o que se passava e ele respondeu: Tem alguma coisa atuando sobre mim, e é Folia de Reis. Tem alguém querendo me prejudicar, derrubar. Desde que eu

126 bandeireiro, cantores, tocadores e palhaços em sua estrutura organizacional. São homens e mulheres de idades muito diferenciadas que ocupam uma diversidade de atividades na vida cotidiana: estudantes, porteiros, empregadas domésticas, técnicos, pedreiros, cozinheiras, etc. As crianças ocasionalmente também fazem parte desses rituais, o que aponta para certa vitalidade das formas de reprodução e continuidade dessas práticas. A Folia Sagrada Família, comportando aproximadamente 15 a 20 componentes, empreende um longo circuito de visitações às casas de devotos. As jornadas realizam-se a partir do dia 25 de dezembro até o dia 20 de janeiro, preferencialmente nos fins de semana, e constituem um importante período de ritos preparatórios para a chamada festa de arremate. A cada jornada diária chegam-se a visitar cerca de oito a dez casas, o que totaliza, ao final de todo um ciclo de jornadas, aproximadamente 45 visitas, envolvendo diretamente cerca de 160 pessoas. Essas visitas são também realizadas fora da Candelária, em regiões mais distantes, como o Morro Chapéu Mangueira, no Leme, ou a Vila Cruzeiro, na Penha, o que revela uma ampla rede de relações sociais, não restritas à localidade da Candelária. Finalmente o circuito de visitações é encerrado com a promoção da festa de arremate, uma grande e ostentosa cerimônia celebrada em agradecimento pela receptividade e pelos donativos ofertados, que passam então de sua acumulação à sua redistribuição cerimonial, marcando o fim do ciclo ritual e o retorno das pessoas à vida ordinária. O circuito ritual da Folia de Reis Conforme observei em inúmeras ocasiões, as jornadas se iniciam com a reunião dos foliões na sede da folia, onde se encontram a bandeira, os uniformes e os instrumentos. A retirada da bandeira do altar pelo bandeireiro, auxiliado pelo mestre e na presença dos demais foliões, é um acontecimento ímpar que obedece a uma série de ações rituais, incluindo o canto de versos, preces e acendimento de velas. A bandeira mantém-se guardada, ao longo do ano, no interior de um altar, privado, cuidadosamente preparado para esse fim, na sede da folia. O altar é, por sua vez, ornamentado com lâmpadas coloridas, imagens, fitas, etc., o completei sete anos, de lá pra cá tem sido assim, barreira atrás de barreira. Mesmo os mestres mais velhos me invejam pelo que eu consegui fazer em tão pouco tempo. O que me faz continuar é ver como as pessoas alcançam graças.

127 que vem acentuar sua sacralidade e sua eficácia. 3 Figura 5.1. Preparativos rituais diante do altar da bandeira na sede da Folia Sagrada Família. Morro da Candelária, Mangueira. Fotografia: Daniel Bitter O início e o término das jornadas parecem ser particularmente importantes, pois se caracterizam como ritos de passagem (Van Gennep, 1978), visando realizar a transposição entre tempos-espaços diferenciados. Os ritos dedicados à retirada da bandeira do altar marcam a passagem do tempo-espaço cotidiano para o tempo-espaço mito-mágico dos Reis Magos, e visam também conferir proteção espiritual aos componentes do grupo, que agora se engajam num empreendimento considerado perigoso. 4 É também nesse momento que se realizam ritos especialmente dedicados aos palhaços, pois se crê precisarem de mais proteção que os demais, por serem associados a representações negativas. Durante esses rituais os palhaços retiram sua máscaras, aproximam-se de joelhos do altar e acendem velas colocadas no chão, para seus anjos da 3 Podemos sugerir que o altar se configura como uma espécie de coleção de objetos (Pomian, 1997). Os objetos que compõem essa coleção, seus significados e trajetórias seriam do maior interesse etnográfico, não sendo possível, entretanto, explorá-los nos limites desse texto. 4 As jornadas são fases liminares, vistas em relação às ações cotidianas. Foliões consideram que inúmeros perigos ameaçam a integridade do grupo e comprometem o êxito de sua missão.

128 guarda. 5 Esses procedimentos realizam-se ao som dos toques e cantos executados pelos foliões, e a própria bandeira tem um papel proeminente nesse processo. A música 6 ocupa lugar central nesses rituais, propiciando formas de interação entre foliões, devotos e demais participantes, uma vez que precisa ser performada coletivamente, exigindo conhecimentos específicos. O mestre procede à leitura de uma prece invocando proteção para os foliões e auxílio para o cumprimento de sua missão. Em seguida, dá partida aos versos rimados (profecias), repetidos pelo coro de vozes anunciando os gestos que a bandeireira e os foliões devem realizar sincronicamente. Foliões fazem um recuo de costas em direção à rua, de modo a permanecer sempre de frente para a bandeira, que é a última a sair. Observa-se uma relação hierárquica entre a bandeira e os foliões, uma vez que aquela inspira grande respeito e reverência. Todo esse acontecimento é acompanhado por uma assistência que, em última instância, participa do ritual. Amigos, parentes e vizinhos reúnem-se na sede e a partida da folia em jornada suscita uma emoção semelhante à que se verifica entre pessoas que se separam em razão de uma longa viagem. A imagem da jornada, portanto, designa precisamente uma viagem, aquela que os Reis Magos teriam feito para adorar o menino Deus, guiados por uma estrela divina. Retirada a bandeira da sede, ela entra em circulação pelas vias públicas da localidade em direção às casas de familiares, amigos e vizinhos, retornando sempre para o altar no fim de cada jornada diária, que costuma durar mais de 12 horas, atravessando a madrugada, a manhã e parte da tarde. Na medida em que a bandeira deixa o altar e entra em circulação, ela ganha uma dimensão pública, quando é exibida aos olhos dos transeuntes e pode ser tocada pelas pessoas. Nesse espaço-tempo especial, a bandeira parece desencadear sensivelmente uma autoconsciência individual e coletiva de natureza hierárquica. Afinal, nem todos podem ter o privilégio de seu contato. Apenas alguns são, por assim dizer, visitados pelos Reis Magos. Os deslocamentos realizados pela folia em sua localidade, e nas demais, revela um mapa das relações sociais estabelecidas entre foliões e devotos, indicando quais são as casas e seus residentes mais importantes a serem visitados e a qualidade 5 Enquanto as velas acesas para a bandeira localizam-se num plano elevado, as dos palhaços permanecem sempre no plano inferior. Essa topografia parece ser relevante ao indicar aspectos relacionados à ordem cosmológica de foliões. 6 Apresenta-se de forma bastante solene, em ritmo quaternário, relativamente lenta, cadenciada e marcada pela pulsação característica das bandas militares. Os instrumentos utilizados são sanfona, violão, viola, cavaquinho e instrumentos de percussão, como caixa, bumbo, tarol e triângulo.

129 das relações estabelecidas. O roteiro de visitação é traçado com antecedência pelo mestre por meio de negociações diretas, mas pode ser alterado ao longo das jornadas em função de imprevistos ou dificuldades enfrentadas, como a chuva ou a necessidade de visitar uma pessoa muito enferma, por exemplo. A folia realiza uma sequência básica de ações durante a visita a uma casa, envolvendo chegada, distribuição de bênçãos, refeição, brincadeira do palhaço, agradecimento e despedida, configurando-se como um processo ritual (Turner, 1974) que se desenrola no espaço e no tempo. Na porta da casa de um devoto, a bandeira é transferida para as mãos de um dos familiares que vem receber a folia. Todos os gestos e movimentos corporais envolvendo a manipulação da bandeira costumam ser comedidos, em contraste com os gestos bem mais acentuados dos palhaços. A bandeira é muitas vezes louvada e beijada pelos residentes, que é geralmente mantida nas mãos enquanto se desenrola a cantoria no interior da casa onde os familiares estão reunidos para receber bênçãos. Chamo a atenção para a ideia de que a entrada da bandeira, dos foliões e de sua música transforma o interior da casa. A realidade é ressignificada e reenquadrada por meio da performace ritual. A casa, que a essa altura também pode ser considerada um objeto ritual, parece converter-se no próprio espaço mítico onde os Reis Magos teriam encontrado a Sacra Família. Como a bandeira e a máscara, a casa também realiza mediações importantes. A presença dos Reis Magos e sua ação são, nesse contexto, sentidas e celebradas entre os residentes e foliões, como uma realidade concreta e não como uma realidade imaginada. Figura 5.2. Devota oferecendo donativos à bandeira. Morro da Candelária, Mangueira. Fotografia: Daniel Bitter

130 Na madrugada do dia 25 de dezembro de 2005, noite de Natal, registrei a seguinte sequência de versos declamados pelo mestre, na entrada de uma das casas visitadas: Encontrei a porta aberta. É sinal de alegria./já pegou nossa bandeira. Recebeu nossa folia./bendito louvado seja nesta hora de alegria./eu peço licença a Deus pra rezar a profecia./um raio brilhou no Oriente. Surgiu a estrela guia/anunciando à humanidade que o menino Deus nascia./nasceu num berço de pobre, numa grande estrebaria./numa pobre manjedoura aonde o gado dormia./os pastores quando souberam partiram para Belém./À procura de um menino que nasceu pro nosso bem./os três Reis do Oriente hoje vêm lhe visitar./vêm buscar suas ofertas pro seu dia festejar. Noto que ao dizer os três Reis do Oriente hoje vêm lhe visitar, a folia anuncia a chegada dos Magos, como que presentificados através da bandeira, da música e de todo o aparato ritual que a envolve. 7 Os versos rimados e as músicas que os acompanham solenizam as trocas. Um silvo de apito do mestre marca o final da cantoria, e assim todos podem descansar e compartilhar uma breve refeição no intervalo que antecede a apresentação dos palhaços. Os residentes, nesse momento, tornam-se os principais protagonistas do ritual, envolvendo-se com o preparo e a oferta de alimentos, tais como bolo, sanduíches e bebidas. A oferta de comida e bebida é um gesto muito valorizado entre foliões, mas há casos em que ela não ocorre, quando, por exemplo, a folia chega a uma casa de surpresa. Nessa fase, a bandeira é então posicionada numa cadeira, mesa ou mesmo apoiada numa cama. Costuma ser alvo de muitos contatos corporais entre residentes de uma casa. O mestre frequentemente retira fitas de seda coloridas da bandeira e as oferece a alguns residentes, ocorrendo igualmente o inverso, quando os residentes oferecem fitas à bandeira, sob a forma de agradecimento pelas graças alcançadas. Também costuma-se levar a bandeira aos cômodos mais recônditos e íntimos da casa. 8 Tal gesto parece destinar-se a sacralizá-los, purificá-los 7 O curso da cantoria ritual é, muitas vezes, determinado pela presença de certos objetos no interior da casa. A presença de uma bíblia, presépio ou imagens de divindades, por exemplo, pode levar o mestre a reverenciá-los por meio de versos diretamente a eles relacionados. 8 Pereira (2011) chamou a atenção para esse ponto, entre foliões de Urucuia, Minas Gerais, observando que naquele contexto, muitas vezes, apenas a bandeira tem o privilégio de ter acesso aos cômodos mais íntimos de uma casa. O autor salienta que um dos sentidos da circulação da bandeira pode estar em distinguir o mundo íntimo da casa e seus lugares mais públicos (p. 247).

131 ou afastar maus espíritos. Nesse sentido, a casa é alvo de uma significativa transformação nesse momento, quando se colocam em evidência dimensões fortemente morais (DaMatta, 1994). É, afinal, na casa que se tecem significativas teias sociais, o que justifica a importância dos ritos nela executados e a ela dedicados. Enquanto essas ações se desenvolvem no interior da casa, os palhaços permanecem do lado de fora, assustando as crianças e passantes na rua com suas máscaras grotescas, aguardando o momento de sua exibição lúdica, a que chamam de brincadeira. Sua performance se desenrola quase sempre na rua ou no quintal, mas pode também se realizar ocasionalmente no interior da residência, em razão da exiguidade de espaço. 9 Nesse caso, sua entrada na casa é feita gradualmente e requer insistentes pedidos de licença feitos ao residente que recebe a folia. Muitas vezes a bandeira é retirada do espaço onde o palhaço irá realizar sua apresentação. Outras vezes, ela é apenas coberta com um pano, o que indica que a visibilidade desse objeto é uma via privilegiada para a manifestação de seus poderes. Ainda assim, a presença da bandeira e sua proximidade são aspectos que garantem sua eficácia, visto que os palhaços não devem se aproximar demasiadamente dela, a não ser que estejam sem suas máscaras, como também não devem afastar-se muito, pois necessitam de sua proteção. 10 A razão desse perigo potencial e desses interditos pode ser encontrada em exegeses mitológicas a partir das quais o palhaço é percebido como uma representação negativa, como o Diabo ou Herodes, o rei da Judeia, ou ainda seus soldados, que teriam perseguido o menino Jesus para matá-lo. Há também quem os associe a Exu, o que evidencia o forte trânsito de foliões entre cultos afro-brasileiros e religiões mediúnicas, particularmente no estado do Rio de Janeiro. Com sugeri anteriormente, o palhaço é um personagem ambivalente, e se por um lado ele representa o mal, por outro está sujeito a uma conversão simbólica, ritual e religiosa. 9 O crescimento da população da Candelária e das demais favelas cariocas tem tornado o espaço cada vez mais exíguo, levando os quintais e outras áreas de mediação com a rua, que outrora assumia grande importância, a se reduzir drasticamente. 10 A bandeira, assim, demarca um campo de forças em torno de si. Noto ainda que ao longo dos deslocamentos espaciais da bandeira, nenhum folião deve ultrapassá-la.

132 Figura 5.3. Palhaço Guerreiro executando sua performance. Morro da Candelária, Mangueira. Fotografia de Daniel Bitter O palhaço declama versos de memória ou de improviso, de acordo com as circunstâncias do momento. Seu caráter é fortemente cômico, tendo muitas vezes o público, mas principalmente o próprio dono da casa como alvo de suas brincadeiras. Seu jogo está em divertir os espectadores e conseguir tirar proveito do dinheiro ofertado pela assistência, que é jogado ao chão. Os ganhos, assim, dependem de uma negociação permanente entre palhaço e público, na qual trocam-se versos ou bailados por dinheiro. Vale aqui ressaltar que, em contraste com os donativos ofertados à bandeira, integralmente destinados a custear a festa, esse dinheiro é em geral de usufruto próprio. Em muitos sentidos, o palhaço representa e dramatiza a contraface dos dons positivos, aproximando-se possivelmente de um tipo específico de dom agonístico. No final da apresentação dos palhaços, os foliões se reúnem novamente no interior da casa para cantar os agradecimentos pela receptividade e pelos donativos. É nesse momento que os residentes costumam fazer ofertas em dinheiro à bandeira. As notas são fixadas no véu ou nas fitas pela bandeireira e são ostentadas publicamente, sendo retiradas e guardadas somente no retorno da folia à sede. Aqui a bandeira realiza uma de suas muitas mediações, nesse caso, operando uma espécie de purificação do dinheiro recebido.

133 Figura 5.4. Detalhe da bandeira exibindo o dinheiro ofertado por devotos. Fotografia: Daniel Bitter Versos de despedida anunciam que a bandeira continuará sua jornada, e mais uma vez gestos e cantos rituais são realizados para que a bandeira seja devolvida à bandeireira, na saída do grupo. No final de muitos dias de árduas jornadas, os foliões devem se despedir da bandeira para que ela retorne a seu altar e volte a circular no próximo ano. Na Candelária, o ritual de entrega da bandeira se realiza na casa do mestre, em meio a uma intensa emoção, diante do altar, onde foliões e palhaços são chamados nominalmente, através dos cantos, a se despedir dela. Nessa condição, Figura 5.5. Folião no ritual de entrega da cada um, por sua vez, aproxima-se da bandeira. Fotografia: Daniel Bitter bandeira, retira o chapéu coroado e se ajoelha para beijá-la. Em seguida, a bandeireira benze o folião, passando a bandeira sobre sua cabeça. Os palhaços são os últimos a se despedir: se aproximam da bandeira de joelhos e sem suas máscaras.

134 A benção dos palhaços assume aspectos particulares: eles se deitam de bruços no chão e a bandeireira pousa a bandeira sobre suas costas, realizando um movimento em forma de cruz. Para os foliões esse gesto é a expressão do pedido de perdão que os palhaços devem à bandeira. Trata-se, afinal, de um ritual de transformação religiosa. O palhaço, em princípio associado ao mal, está sujeito a uma inversão simbólica, e daí decorre sua acentuada ambivalência e eficácia como operador ritual. Nessa nova condição, os palhaços juntam-se aos foliões como adoradores dos Magos. A bandeira, seus usos, mediações e sentidos A bandeira constitui-se de um suporte, em geral de aparência muito atraente, destinado a ostentar imagens relacionadas aos Reis Magos, à Sagrada Família, a São Sebastião e a outros santos. As imagens são cobertas com numerosas fitas coloridas, enfeites natalinos, flores, espelhos e um véu protetor. A bandeira é deslocada ao longo dos cortejos realizados pelas Folias de Reis, sempre conduzida pelo bandeireiro, envolvendo saberes específicos e gestos altamente codificados, na forma de técnicas do corpo (Mauss, 2003). De acordo com minhas observações, a bandeira parece realizar inúmeras mediações, e é isso que parece lhe conferir certos poderes, na perspectiva de foliões e devotos. De muitas formas, a bandeira liga esferas e domínios tais como passado e presente, vivos e mortos, homens e mulheres, casa e rua, homens e deuses e assim por diante (Pomian, 1997; Pereira, 2004; Contins; Gonçalves, 2009). Um exemplo etnográfico que gostaria de expor parece evidenciar o papel mediador central que a bandeira desempenha, não apenas entre as pessoas e suas divindades, mas também entre elas e seus antepassados. A folia seguia sua jornada no morro da Candelária quando um folião solicitou ao mestre que a bandeira fosse entronizada em sua própria casa, justificando seu pedido pelo fato de sua mãe ter falecido havia poucas semanas (Bitter, 2010). Apenas o mestre, a bandeireira e o referido folião entraram na casa, que se encontrava vazia, permanecendo os demais do lado de fora. Como de costume, a bandeira entrou na frente e, no mais absoluto silêncio, a bandeireira iniciou um benzimento da casa, realizando um movimento de aproximação da bandeira aos cantos de cada cômodo, desenhando linhas diagonais invisíveis e formando um sinal de cruz. Após esse longo ritual, o folião residente ofertou uma imagem emoldurada de Nossa Senhora ao

135 mestre em retribuição pela visita e os serviços religiosos. 11 O que parece evidenciar-se nesse caso é que há uma conexão direta entre o lugar e o espírito da falecida. Segundo a sugestão de R. Hertz (1990), os espíritos não se descolam do mundo dos vivos com tanta facilidade e, portanto, os ritos vêm ajudar a conduzir o espírito do morto para um lugar adequado, de modo a que não se venham produzir novos malefícios para os vivos. Como sugeri anteriormente, a bandeira é intensamente tocada em certos momentos do ritual. O contato corporal com a bandeira é pensado como forma direta de obtenção de benefícios de natureza supramundana. Além disso, a bandeira é o ponto focal de uma ampla circulação de outros objetos como fitas de seda, 12 santinhos, crucifixos, fotografias e dinheiro. Esses objetos são oferecidos por devotos aos santos, ou então são ofertados pelos santos aos devotos. Nesse último caso, o mestre protagoniza um ato ritual de retirada de alguns desses objetos da bandeira em oferecimento aos devotos. Bilhetes, pedidos e mensagens são também comumente endereçados aos santos através da bandeira. Todas estas coisas são certificados da presença divina na vida diária das pessoas, na medida em que são oferecidas em pagamento de promessas. Estão ali para serem exibidas publicamente, reiterando e validando a influência dos santos sobre o mundo. (Bitter, 2010, p. 157) O poder e eficácia agentiva da bandeira constitui-se e revela-se, do ponto de vista nativo, através das narrativas ontológicas a ela referidas. A origem da bandeira é frequentemente mencionada a partir de exegeses nativas como tendo sido costurada por Maria e oferecida aos Reis Magos para que seguissem viagem sob proteção divina, e estes, por sua vez, a teriam dado aos homens. Desse modo, a bandeira e a folia são entendidos como dons divinos dos Magos do Oriente, intermediários entre Deus e os homens. Eis uma das versões do mito de origem da bandeira e da Folia de Reis. A bandeira, assim, 11 Considerando que boa parte das ações das folias de reis são dominadas pela presença da música ou de preces, é notável, como nesse evento, em particular, que o ritual seja conduzido silenciosamente, salientando ainda mais o poder e a eficácia da bandeira. 12 As fitas coloridas são classificadas de acordo com um sistema cromático que as associa a determinados santos do panteão católico ou iorubá. Vale ressaltar que a relação de devoção ou de identificação com determinados santos envolve subjetividades e particularidades. Renata de Castro Menezes (2004), num interessante e cuidadoso trabalho, investiga as nuanças dessa relação, que, por falta de espaço, não posso aqui aprofundar. Ressalto, contudo, que a bandeira pode mediar a relação de um devoto com um santo ou um orixá específico, não se restringindo necessariamente aos Reis Magos.

136 é vista como sendo de origem supramundana. Por outro lado, ela é feita pelos homens, reproduzida no tempo presente, por meio de conhecimentos e, sobretudo, do fundamento. 13 Nesse sistema de ideias, a bandeira é também percebida como herança transmitida por antepassados, os primeiros homens que a receberam das mãos dos Magos (Godelier, 2001). Mauss havia notado, a propósito dos objetos preciosos que circulam entre os Kwakiutl, que: O conjunto dessas coisas constitui o legado mágico; este é geralmente idêntico tanto ao doador quanto ao recipiendário, e também ao espírito que dotou o clã desses talismãs, ou ao herói fundador do clã a quem o espírito os deu. Em todo caso, o conjunto dessas coisas é sempre, em todas as tribos, de origem espiritual e de natureza espiritual. (2003, p. 255) Num certo sentido, as coisas fabricadas pelos homens, que mantêm vínculos divinos, tendem a ter sua humanidade apagada, esquecida. De qualquer modo, o passado imaginário das origens é sempre presentificado através dessas formas materiais que se ligam ao fundamento. Como finalmente sugere Godelier, e nos faz recordar, os objetos sagrados [...] se apresentam como fabricados diretamente pelos deuses e pelos espíritos, ou pelos homens sob indicação dos deuses ou dos espíritos, mas em qualquer caso os poderes neles presentes não foram fabricados pelos homens. São dons dos deuses ou dos ancestrais, dons de poderes presentes doravante no objeto. (2001, p. 206) Bandeiras são adquiridas ou construídas e, de acordo com foliões, podem ser herdadas de antepassados ou mesmo das próprias divindades. É assim que, por exemplo, a bandeira, assim como a folia, é transferida pelas mãos de um velho mestre em vias de encerrar suas atividades devido à idade avançada. Chamo a atenção também para o fato de a transferência da bandeira de um mestre a outro poder envolver certos procedimentos rituais, uma vez que esses objetos são vistos como extensões de seus proprietários ou mesmo como propriedades dos santos como sugere Mauss, os deuses são os ver- 13 Categoria de pensamento central no contexto das Folias de Reis, fundamento diz respeito a um conjunto de práticas e saberes considerados primordiais e oriundos de um espaço-tempo imaginário que se torna copresente através de procedimentos rituais. Designa a razão última da circulação da bandeira, da festa, das dádivas e até mesmo do palhaço. É por meio desse conceito que se opera o controle de todas as atividades do grupo envolvido, especialmente em sua dimensão moral (Pereira, 2004; Bitter, 2010). Pode-se dizer, por fim, que a bandeira é a materialização do fundamento.

137 dadeiros proprietários de tudo o que existe (2003). Um folião da Mangueira relatou-me que, certa vez, um membro de outra folia tomou a bandeira e os instrumentos de uma folia parada, sem autorização e sem passar pelos rituais exigidos. Em sua primeira visita a uma casa, ele teria ficado mudo e caído no chão. Esse acontecimento foi interpretado pelos meus interlocutores como consequência de uma falta ritual cometida pelo folião, uma vez que consideram-se as divindades não apenas benfazejas, mas também punitivas. Construídas ou herdadas, bandeiras podem passar por rituais de consagração, ser benzidas, receber nomes, cuidados especiais, véus e flores; e é também esse conjunto de ações que as individualiza e as torna eficazes entre os homens comuns. Um aspecto que merece ser comentado é o fato de as imagens pintadas ou fixadas na bandeira serem cobertas por numerosas fitas e um véu, que as invisibilizam parcialmente. Considerei plausível a explicação de um informante, sugerindo que esse procedimento era uma forma de proteger os santos da ação malévola dos palhaços. A distância entre a bandeira e o palhaço inclui também o registro da visibilidade. 14 Bandeiras costumam ter uma vida longa, e, em alguns casos, podem mesmo ser centenárias. Em contraste com a máscara do palhaço, muito mais efêmera, a bandeira enraíza-se no tempo, é feita para perdurar e esse é um dos aspectos que polarizam tais objetos e seus significados. Ainda assim, as bandeiras são perecíveis, e de tempos em tempos precisam ser reformadas ou mesmo substituídas, o que só pode ser feito à luz do fundamento. O mestre da Folia Sagrada Família, auxiliado pela bandeireira, faz anualmente uma reforma na bandeira, quando ela é desmontada e realiza-se a troca de certas partes, como as fitas e o véu. Em 2010, quando voltei a fazer trabalho de campo na Mangueira, tive a rara oportunidade de acompanhar esse procedimento e registrar fotograficamente suas várias etapas, fora do ciclo festivo. A bandeireira Eliane Cristina da Silva iniciou o procedimento retirando o véu da bandeira. Em seguida procedeu à retirada das flores, fitas de seda, imagens e demais partes, depositando-as cuidadosamente numa sacola. No final, restou retirar a capa contendo a imagem pintada dos Reis Magos, que envolve a estrutura de ma- 14 Aqui, talvez seja conveniente sugerir que a representação negativa encarnada pela figura malévola do diabo não foi, de modo algum, excluída do imaginário cristão. Ao contrário, ela está fortemente presente e exerce uma função de reforçar, por contraste, o Bem, como uma graça suprema (Nogueira, 1986, p. 79). O autor nota que os esforços da Igreja em manter as consciências sob controle quanto à distinção entre o Bem o e Mal acabaram por revestir o último de uma importância e de um poder grandioso, associados a certo prazer estético.

138 deira. Ao começar a tirar a capa da bandeira, como quem tirasse o vestido de uma mulher, Eliane encontrou dificuldades em fazê-lo, notando que esta encontrava-se muito justa. Diante disso ela acrescentou jocosamente: Ué, não me lembrava que esta capa estava tão apertada assim. Acho que essa bandeira engordou uns quilinhos. Esses comentários evidenciam um aspecto notável para o qual venho chamando a atenção ao longo deste texto: a bandeira é tratada como uma pessoa, e, ao que tudo indica, do gênero feminino. No final do processo de desmonte, restou apenas uma estrutura de madeira, o esqueleto da bandeira, que, segundo meus interlocutores, não deve se tornar público. 15 Na ocasião o mestre Élcio comentou que faria uma reforma na estrutura, reforçando-a. Ele observou também que a capa em tecido contendo a estampa pintada (a roupa da bandeira) deve ser cuidadosamente lavada e, antes de vestir novamente a estrutura de madeira, deve ser entregue a um padre para ser benzida. 16 Seria necessário aprofundar esse ponto para sugerir análises mais conclusivas, mas tudo indica que o desmonte da bandeira já é uma transformação simbólica, uma dessacralização. Tive a forte impressão de que a estrutura de madeira foi tratada como um objeto qualquer destituído dos poderes normalmente conferidos à bandeira, e aqui faço menção à semelhança com o caso de uma bandeira descartada pelo mestre da Folia Belém do Norte, que apresento logo a seguir. Torna-se relevante também ressaltar que, segundo o mestre Hevalcy, não se devem reaproveitar materiais na manutenção da bandeira. As fitas de seda coloridas, por exemplo, são sempre adquiridas novas no comércio, em embalagens rigorosamente invioladas. A explicação para esse cuidado me foi dada com as seguintes palavras: se já foi usado, trás o suor da pessoa e as fitas têm de estar fechadas, sem o risco de alguém ter tocado ou usado. Como se pode notar, introduz-se aqui o tema da impureza e dos seus malefícios contagiosos (Douglas, 1976). Esses aspectos fazem lembrar de perto as descrições que Malinowski faz com relação aos procedimentos ri- 15 Há inúmeras narrativas etnográficas que mencionam o problema da publicização da nudez das imagens sagradas. João Vasconcelos relata inúmeros casos relativos a festas e romarias portuguesas, nos quais a nudez de uma imagem de roca pode ser considerada um fato chocante. O autor revela também que frequentemente a preparação de certas imagens para uma procissão é uma atividade que deve ser exclusivamente realizada por certas mulheres em âmbito privado (1998). 16 As Folias de Reis se constituem de modo relativamente autônomo em relação à Igreja Católica, mas ocasionalmente certos pontos de contato podem ser verificados, às vezes envolvendo conflitos.

139 tuais envolvidos na construção de canoas trobriandesas, e mesmo a tabus referentes a canoas já construídas. Escreve o autor: [...] qualquer tipo de profanação decorrente do contato de alguma substância impura com o tronco escavado da canoa pode fazer que ela se torne vagarosa e inadequada; se alguém caminhar por cima do tronco de uma canoa, ou nele ficar de pé, o resultado será igualmente desastroso. (1976, p. 118) Por outro lado, materiais diversos são livremente reaproveitados na confecção das fardas de foliões e palhaços, bem como nas máscaras destes últimos. Todos esses procedimentos rituais e o fundamento que os atravessa garantem a validação dos poderes e significados atribuídos às bandeiras, permitindo, enfim, sua permanência e continuidade no tempo. Uma bandeira pode, contudo, também ser descartada ou substituída de modo surpreendente a qualquer um que considere que são os atributos intrínsecos aos objetos que os tornam eficazes. Um exemplo aqui pode ser elucidativo. O mestre da Folia Estrela Belém do Norte de São Fidélis, Rio de Janeiro, confeccionou uma nova bandeira para o grupo. Solicitei a ele que me mostrasse a antiga bandeira, e para minha surpresa ela havia sido depositada sem qualquer cuidado especial junto a outros objetos velhos, sujos e empoeirados no fundo de uma garagem. Essa nova condição da bandeira revela que ela, agora, é apenas uma carcaça, inteiramente desvinculada do sistema vivo de trocas e mediações em que estivera inscrita. A bandeira foi deliberadamente descartada e algumas de suas partes foram aproveitadas na confecção da nova bandeira, por sua vez reinvestida de poderes. 17 O que isso parece nos revelar é que há uma dinâmica própria das associações simbólicas por meio das quais a realidade é objetificada numa forma reconhecível; nesse caso em particular, o conhecimento a que se denomina fundamento, pelo qual esses mesmos objetos são produzidos, parece ocupar um lugar central. Esforço-me, entretanto, por não reificar nem os objetos nem o conhecimento, evitando representá-los como entidades cristalizadas e estabilizadas no tempo e no espaço. Trata-se mais de elementos de um processo dialético entre invenção e convenção, envolvendo interdependência e contradição (Wagner, 2010). De acordo com esse autor, aliás, essa dialética é o cerne de todas as culturas humanas (2010, 17 No contexto de uma coleção museológica, uma bandeira ou outros objetos tenderiam possivelmente a ser alvo de obsessivo processo de preservação material. Esse contraste parece aqui muito revelador dos muitos sentidos que os objetos podem guardar, de acordo com enquadramento em que estão inscritos.

140 p. 96). 18 Chamo, portanto, a atenção para as interações entre sujeitos e objetos e para o modo como são pensadas e acionadas por foliões e devotos. A ideia fundamental aqui é que sujeitos não se configuram independentemente dos objetos, assim como o pensamento e a ação não se desenvolvem fora da materialidade. A transmissão de certos conhecimentos e ideias não prescinde da presença material dos objetos, para que sirvam de mediadores sensíveis. Muito ainda se poderia tratar a respeito da bandeira, de seus usos e significados. Entretanto, estaríamos muito limitados, caso não nos remetêssemos com mais atenção à relação que esta estabelece com a máscara, objeto sobre o qual passamos a nos deter. A máscara e sua liminaridade Ao sinal do toque acelerado da sanfona e dos instrumentos de percussão, uma extensa roda de espectadores se forma, aguardando ansiosamente a entrada do palhaço, personagem mascarado da Folia de Reis. O palhaço pede licença ao dono da casa para iniciar sua apresentação espetacular, a que todos chamam de brincadeira, na qual esse personagem de aparência e gestos assustadores declama versos rimados e cômicos conhecidos como as chulas, como os seguintes: Quem é bom já nasce feito Eu tento fazer o que pode Me dá licença meu povo que eu tô dentro do pagode você vai me dar os dois real eu posso falar do seu bigode? Eu gostei do seu bigode, meu filho porque ele é uma coisa correta Tem duas curvas no meio tem outra curva na reta Você parece que engoliu Três guidões de bicicleta Palhaço Criolo (José Vicente) 18 Como sugere ainda o autor, As associações simbólicas que as pessoas compartilham, sua moralidade, cultura, gramática, costumes ou tradições, são tão dependentes de contínua reinvenção quanto as idiossincrasias, detalhes e cacoetes que elas percebem em si mesmas e no mundo que as cerca (Wagner, 2010, p. 94).

141 Como observei anteriormente, o contraste entre as ações dos palhaços e dos foliões é muito marcante. Enquanto a atitude dos foliões se caracteriza pela formalidade, os palhaços parecem estar mais ligados à dimensão lúdica, criativa e transgressora da folia. Há, nas folias, um forte contraste entre palhaços e foliões, como também entre máscara e bandeira, reforçada por outros contrastes simbólicos correlatos, como o existente entre rua e casa, sério e cômico, etc. De fato, a atitude dos palhaços é, em muitos aspectos, oposta à dos foliões, como já havia sido notado por Brandão (1977). Esses contrastes acabam por produzir um equilíbrio entre os elementos lúdicos e formais. Tais oposições, no entanto, parecem ser relativas, complementares, podendo ainda ser intercambiadas, conforme indico mais adiante. Como sugeri anteriormente, a figura negativa do diabo e seus congêneres, encarnada pelo palhaço, não está ausente da cosmologia de foliões e devotos, exercendo um papel fundamental ao salientar, por contraste, o domínio do Bem (Nogueira, 1986). O palhaço pode ser caracterizado como um ser liminar, transicional, marginal, vivendo de sua própria indefinição. Como propõe Turner, na sua definição do liminar, Não estamos diante de contradições estruturais quando discutimos a liminaridade, mas diante do que é essencialmente não estruturado (do que está ao mesmo tempo, desestruturado e preestruturado) (2005, p. 142). As personas liminares são dotadas de uma invisibilidade estrutural e, no caso dos palhaços, ela é acentuada pelo uso da máscara. Isso os torna desobrigados a cumprir certas normas sociais, o que os coloca em estreita relação com os poderes não sociais ou associais da vida e da morte. Como escreve, They are dead to the social world, but alive to the asocial world 19 (Turner, 1982, p. 27). Os palhaços, entretanto, estão não apenas ligados às noções de perigo e desordem, mas podem ser vistos também como portadores de ideias não oficiais que apontam para uma ordem diferenciada do mundo. Nessa visão cosmológica, predominam a heterogeneidade, a aproximação de esferas e dimensões díspares e normalmente separadas e o rompimento de certas convenções (Bakhtin, 1993, p. 30). A ambiguidade, em certos contextos, é interpretada como uma fonte constante de perigos, ameaçando a ordem e sua estabilidade. Regras relacionadas à poluição, por exemplo, estão fortemente associadas a coisas e situações ambíguas, de acordo com Douglas (1976). Essa ambiguidade não é fonte apenas de perigos e contágios, mas também de poder e de criatividade. 19 Eles estão mortos para o mundo social, mas vivos para o mundo associal. (Tradução do autor)

142 Como sinaliza Turner, as situações liminares são particularmente propícias à emergência de novos padrões, modelos, símbolos e paradigmas, que por sua vez são como que entronizados no centro da arena de domínios econômicos e políticos, fornecendo aspirações, incentivos, modelos estruturais, etc. (Turner, 1982, p. 28). Tal criatividade se expressa também em formas lúdicas, no jogo, na dissolução da oposição entre trabalho e lazer, entre outras oposições. Nessa perspectiva, Valeri (1994) propõe que a categoria rito se confunde, assim, com jogo e arte, nas quais também se introduzem comportamentos lúdicos e estéticos similares. O autor escreve [...] o que é especificamente ritual, ou pelo menos é um dos seus aspectos fundamentais, não passa de uma variante particular numa família de fenômenos em que cabem também o jogo e a arte. (1994, p. 354) Por encontrarem-se num estado de liminaridade e lidarem concretamente com forças perigosas, os palhaços devem realizar inúmeras preparações rituais antes de se vestir e usar suas máscaras. Observei o palhaço conhecido como Guerreiro, por exemplo, passar sua farda ainda dobrada entre suas pernas diversas vezes, realizando um movimento em forma de oito em torno de seus pés. Tal procedimento visa à proteção contra ações malfazejas que dizem ser comuns em situações em que palhaços de diferentes folias se encontram, suscitando conflitos, ameaças e rivalidades. 20 É relevante observar que se fardar e assumir o papel de palhaço é um ato realizado de forma ritualizada e, portanto, de modo bem marcado, como um rito de passagem. Essas fronteiras formais, contudo, não contrariam a ideia de que experimentar o papel de palhaço não se esgota ou não se limita à sua concretização ritual. O que parece se evidenciar é que essa prática se articula aos demais papéis assumidos pelo sujeito nos mais diversos contextos. Assumir o papel de palhaço é um ato que produz reflexos na vida diária do indivíduo que se dedica a essa prática. Vale notar que o exercício da função de palhaço se estende a um conjunto de práticas, tais como criar e memorizar versos e confeccionar máscaras. Todas essas práticas se ligam diretamente às ações rituais do palhaço de modo extensivo e contribuem para a construção de uma concepção singular de pessoa. Constitui-se, assim, um self, que em grande medida tem na função de palhaço seu eixo organizador, a partir do qual se percebe e se experimenta subjetivamente uma identidade pessoal, heterogênea e complexa. 20 Guerreiro relatou-me que no dia anterior havia ido a uma igreja para realizar preces e acendido velas para o seu anjo da guarda, em sua casa.

143 Também contribui para caracterizar a ambiguidade e ambivalência desse personagem a noção de que o palhaço, mais que qualquer outro, necessita da proteção da bandeira, de seus poderes divinos. Se por um lado está impedido de aproximar-se da bandeira, por outro não pode distanciar-se demais. Segundo o palhaço Gigante, essa distância não deve ultrapassar 50 metros, sob o risco de se perder a proteção da bandeira. No relato do mestre Hevalcy e de muitos foliões, palhaços desaparecem ou são severamente castigados quando se afastam da bandeira e do grupo. Esses relatos apontam para o fato de que os objetos são eficazes, produzindo efeitos sobre os indivíduos e suas relações. Lembro que o palhaço é um símbolo dominante, sujeito a inversões entre seus polos de significação, e isso está diretamente ligado à presença ou ausência da máscara nas diversas fases dos rituais. Conforme mencionei, o palhaço é normalmente associado a representações negativas, como os soldados de Herodes que teriam perseguido o menino Jesus. Entretanto, sugeri que durante os rituais há um momento em particular no qual os palhaços devem retirar as máscaras e passar por um rito de conversão simbólica. Trata-se de uma performance acompanhada de um comentário moralizante, visando confirmar determinada concepção de ordem cosmológica. 21 O conjunto de ações rituais produz mudanças simbólicas com reflexos na experiência concreta dos sujeitos. Essas ações se desenvolvem na forma de um processo ritual e incluem retirar a máscara, ajoelhar-se, realizar determinado deslocamento espacial, prostrar-se diante da bandeira, beijá-la. Acrescento que todos esses gestos estão inseridos num contexto ritual mais amplo, envolvendo muitos outros elementos como música, palavras, sentimentos obrigatórios e presença da audiência. A máscara, portanto, mostra-se eficaz ao produzir transformações, e no contexto da performance do palhaço parece efetuar um intercâmbio entre personalidades, criando efetivamente um outro, um duplo, através de processos miméticos. 22 Poderíamos também sugerir que, se por um lado a aparência grotesca e monstruosa da máscara refere-se simbolicamente a seres maléficos e à sua presença, por outro ela parece funcionar como uma 21 Há também outras ocasiões nas quais o palhaço deve retirar a máscara. Por exemplo, quando declama versos de conteúdo moral ou religioso. Nessa condição o palhaço pode declamar versos diante da bandeira, como se estivesse diante de um presépio. Na maior parte dos casos, contudo, o palhaço se apresenta mascarado, exigindo certos cuidados para evitar demasiada proximidade com a bandeira e com os demais foliões. Os palhaços costumam também comer separadamente durantes as refeições cerimoniais. 22 Sobre os usos e significados das máscaras e dos palhaços, ver também Wagner Chaves (2008).

144 espécie de amuleto contra essas mesmas potências negativas. Parece haver uma correlação ambivalente entre a expressão de medo que a máscara induz e a expressão oposta de agressão (Napier, 1986). A máscara, desse modo, funciona tal qual um talismã, assim como no caso das carrancas monstruosas de embarcações, objetos que visam a afastar maus espíritos. O caráter profundamente ambíguo das máscaras é o que as torna fascinantes e eficazes. Isso se dá precisamente porque a máscara produz uma ilusão, um disfarce, operando na esfera das aparências, das convenções e no modo como são interpretadas. A percepção do paradoxo está, de certo modo, relacionada com a aceitação de que coisas devem parecer o que não são. 23 Como sugere Napier: Our ability to accept this ambiguity is also fundamental to our recognition and signification of change. [...] Our awareness of change is, thus, essential for resolving the ambiguity that is basic to paradox. 24 (1986, p. 1) Figura 5.6. Palhaço Trinca-Ferro. Morro da Candelária, Mangueira. Fotografia: Daniel Bitter 23 Essa ideia tem uma notável ressonância nas reflexões de Bateson (1972) sobre a atividade metacomunicativa em processos de interação. O autor observou que as mensagens linguísticas são contextualizadas através de um enquadramento psicológico, de modo a complementar o processo denotativo. A distinção entre o que está sendo comunicado através das ações envolvidas numa luta ou num jogo (play) se dão através desses sinais metacomunicativos. Bateson observa, entretanto, que os enquadramentos (frames) são flexíveis, permitindo, por exemplo, a passagem do jogo à luta. 24 Nossa capacidade de aceitar essa ambiguidade é também fundamental para o nosso reconhecimento e para o sentido da mudança. [...] Nossa tomada de consciência da mudança é, portanto, essencial para resolver a ambiguidade que é básica ao paradoxo. (Tradução do autor)

145 A máscara, portanto, associada a outros elementos, é responsável por produzir uma transformação radical da pessoa, num jogo que envolve simultaneamente revelar e ocultar. A caracterização formal do palhaço abre caminho para a construção de um personagem, no sentido teatral da palavra, não se limitando a ela. A primeira forma de conhecimento do personagem é através de sua aparência. Essa mudança visual é acompanhada de alterações no timbre e na entonação da voz, nos gestos e no andar. A ideia de personagem performático aparece de forma viva para os palhaços quando eles se percebem diferentes ao estar fardados e mascarados. Ocultos pela máscara, sentem-se mais à vontade para declamar versos debochados sem que sejam reconhecidos. 25 Como bem notou Mauss (2003), tanto a máscara como o nome são elementos usados para a personificação em numerosas sociedades. O autor revela também que a máscara, entendida como imagem superposta, está de fato na origem da noção de pessoa. A categoria pessoa vem, muito provavelmente, de persona, que significa máscara que dá voz ao ator. Historicamente, a origem da palavra se encontra na Roma antiga, em que as máscaras eram utilizadas nos rituais fúnebres e nos enterros, sinalizando a importância do morto. Entretanto, é preciso enfatizar que a ideia de pessoa para Mauss, como a que se constrói entre os palhaços, não se esgota na noção de um personagem teatral pura e simplesmente. Em todo caso, o sentido pleno da máscara só pode ser alcançado quando vestido e posto em movimento por uma pessoa, um brincante. Aliás, é preciso acrescentar que quase sempre as máscaras estão associadas a uma indumentária, denominada farda, que geralmente cobre inteiramente o corpo. Tudo isso indica serem a máscara e a indumentária uma extensão do corpo. Esses objetos são vistos como indissociáveis de seus proprietários e de seus corpos. As máscaras são pessoais e evita-se que sejam transferidas a outros. São verdadeiramente dramáticos os relatos de casos nos quais utilizam-se indevidamente os pertences de outro palhaço. Por essa razão os palhaços, mas também os foliões, devem ser extremamente cuidadosos com seus objetos rituais (instrumentos, chapéus, máscaras, toalhas), uma vez que podem ser apropriados indevidamente por foliões de outros grupos e usados como mediadores privilegiados para ações mágico-religiosas. Como me informou o mestre Hevalcy, uma pequena distração pode levar alguém a cortar fitas da máscara ou dos instrumentos para uso em feitiços, com possibilidade de 25 Van de Beuque (2010) percebeu esse aspecto entre os cazumbas, personagens mascarados do bumba meu boi maranhense. Nesse trabalho, a autora examina os usos, a produção e a circulação da careta de cazumba, uma máscara usada por esse personagem.

146 produzir efeitos desastrosos contra os foliões. Conforme venho gradualmente mostrando ao longo do texto, os rituais festivos das Folias de Reis são empreendimentos perigosos e arriscados e essa dimensão é particularmente visível na atuação dos palhaços. Tenho chamado a atenção para o fato de que tais objetos são cercados de regras, prescrições ou interdições. No caso da máscara, trata-se de um objeto a ser evitado, pois produz contágios e poluições a quem deliberadamente os toca. Contrastivamente, a bandeira é alvo de intensos contatos corporais. A farda e a máscara são, por outro lado, indissociáveis de seus proprietários, meios eficazes para a realização de procedimentos mágico-religiosos, e por essa razão devem ser cuidadosamente resguardados. São objetos impuros, visto serem como que margens corporais, sujeitos a produzir contaminação desencadeada pelas ações humanas. Nessa perspectiva, todos esses objetos fortemente ligados à experiência e ao corpo tendem a ser vistos como extensões morais e sociais de seus usuários. Nesse sentido, vale ainda acrescentar que quando um palhaço vem a falecer, frequentemente sua farda e máscara são considerados despojos, que precisam ser eliminados adequadamente. Isso é feito por familiares, que costumam mergulhá-los num rio para que a água os leve, sem deixar nenhum rastro de sua presença. As máscaras usadas por palhaços de Folias de Reis apresentam-se com inúmeras variantes. Utilizam materiais de origem animal, como couro de diversos tipos (especialmente de capivara, preguiça, quati, tamanduá), crinas e presas, assim como materiais industriais, espuma, espelhos, EVA, etc. 26 Ressalto que, ao contrário da bandeira, as máscaras e as fardas dos palhaços são frequentemente confeccionadas com materiais reaproveitados. Esse aspecto aponta para outra característica da materialidade da máscara, que se diferencia acentuadamente em relação à da bandeira. A máscara tende a ser efêmera, enquanto a bandeira é alvo de certos cuidados que a torna, muitas vezes, objeto de longa duração. Não há, portanto, uma preocupação tão acentuada com a perenidade das máscaras e com sua transmissão. 26 Os materiais de origem animal têm sido rapidamente substituídos pelos industriais em função das leis de proteção. Os dados etnográficos não me permitiram extrair conclusões sobre a significação desses materiais. Em diversas ocasiões obtive informações de que a escolha e o emprego desses materiais se dava pelo critério da disponibilidade.

147 Figura 5.7. Palhaço Pimentinha em ação. Candelária, Complexo da Mangueira. Fotografia: Daniel Bitter Em sua diversidade de formas, materiais e estilos, as máscaras têm em comum a aparência grotesca, disforme e monstruosa. São simultaneamente assustadoras e cômicas. Essas características se evidenciam no exagero formal e deformidade de certas partes como boca, dentes, nariz, olhos e orelhas. Há uma ênfase caricata nessas partes, nos seus orifícios, os sinais visíveis da mediação do corpo com o mundo, ou do corpo individual com o corpo coletivo (Douglas, 1976). Para a autora, os orifícios simbolizam os pontos de maior vulnerabilidade, por onde são expulsas as matérias marginais. Como notei anteriormente, a máscara e a farda do palhaço são consideradas margens corporais por estar em contato direto com o corpo, com sua personalidade, e são tidas, portanto, como fonte de poluição e de magia. Tudo isso indica que esses objetos, além de funcionar efetivamente como extensão de seus usuários, também os constituem como pessoas.

148 Considerações finais Procurei mostrar ao longo desse texto como os objetos adquirem sentidos diversos em seu contexto, mediando e criando relações entre pessoas e entidades espirituais. Explorei a relação que as pessoas estabelecem com as coisas, mas também como os objetos se articulam num sistema de significados que tem relação direta com as ações humanas. A bandeira, a máscara e, extensivamente, a casa parecem desempenhar um papel fundamental nos rituais de Folias de Reis, e a análise de seus usos e significados aponta, afinal, para o modo como foliões dão curso às trocas de dons dentro de uma ordem cosmológica particular. Observei a materialidade específica desses objetos e as relações de visibilidade e distância espacial que entre eles se estabelecem, chegando a um paradoxo: a máscara e a bandeira são ritualmente incompatíveis; entretanto, elas e as pessoas que as manipulam devem manter um vínculo regulado por determinada distância. Ambos os objetos exercem uma ação de proteção mútua, reforçando, por contraste, seus atributos morais negativos ou positivos, respectivamente. Entretanto, esse vínculo não parece ser simétrico. A bandeira assume uma posição central, hierarquicamente superior. É ela que segue à frente, conduzida pela bandeireira, e se constitui em foco de múltiplas interações. O paradoxo está precisamente numa ambígua relação que envolve simultaneamente distância e proximidade entre esses objetos e os personagens rituais que os manipulam. Um dos aspectos notáveis na caracterização do palhaço é que este deve ser um profundo conhecedor dos fundamentos da Folia de Reis. Deve deter tanto conhecimento quanto o mestre, tendo o poder de substituí-lo numa eventualidade, exigindo-se, nesse caso, que o uniforme seja trocado. Aqui mais uma vez revela-se a capacidade de reversibilidade simbólica do palhaço. Para finalizar este texto, gostaria de expor um último caso etnográfico narrado pelo palhaço Malagueta, que aponta para a complexa trama que se estabelece entre o palhaço, sua máscara e a bandeira. Eu era paralitico e com 8 anos foi a primeira vez que a Folia de Reis chegou na minha casa, no Espírito Santo. Eu com medo [...] corri pra de baixo da tarimba [...] e fiquei lá escondido. [...] quando deu o intervalo que eles foram me procurar, cadê? [...] Aí depois me acharam, me trouxeram e me colocaram numa cadeira. O mestre [da folia], botou a bandeira em cima de mim. Aquilo me arrepiou e eu fiquei tremendo. Ele rezou, no final, uma partida que dizia que Jesus chegou a um templo e que encontrou um paralitico e disse pra ele: Levanta e anda em nome de Jesus.

149 E aí me estalou os ossos. E ainda por cima, ele, um homem muito velhinho... E aí eu fiquei olhando pra ele e fiquei espantado, porque ele disse: Levanta e anda em nome de Jesus. E eu, como criança, pensei assim: Bom falou pra eu levantar e andar, eu vou levantar e andar. Foi quando eu botei a mão no banco e comecei a puxar o corpo. Aí eu levantei. Foi um milagre de uma bandeira sagrada. E quem brincava de palhaço nesta folia era o meu padrinho que eu não sabia. [...] A minha mãe era tão devota que quando ela viu a graça ela disse: Agradeço ao meu Deus e os três Reis do Oriente pela graça alcançada no dia de hoje. O meu filho está entregue à sua bandeira. Faça do meu filho o que vocês quiserem. E aí o paralítico começou em 1958 a pular de palhaço... eu brinquei aqui no Rio de Janeiro em muitas Folias de Reis e sempre fui vitorioso. (Palhaço Malagueta Jorge Antonio Severino, em depoimento ao autor) A narrativa apresentada coloca em foco a centralidade da relação entre mito e rito em meio aos foliões. Ressalto o fato de a mãe de Malagueta ter oferecido seu filho na forma de um dom para a bandeira, para os Magos. Malagueta tornou-se um palhaço, desafiando sua condição física, e investiu- -se da missão de proteger a bandeira, tornando-se também um mestre dos palhaços. 27 O que parece mais ou menos evidente a partir dos fatos etnográficos aqui expostos é que esses objetos produzem uma diversidade de pessoas e relações e parecem estar ligados a uma moralidade das ações. A necessidade de agrupar e separar adequadamente as coisas parece refletir também uma percepção do cosmos na qual as forças tanto benéficas quanto as maléficas lhe são igualmente inerentes e perigosas. Através dos ritos e de sua sistemática articulam-se formas de autoconhecimento em que se inscrevem dimensões objetivas e subjetivas da cultura. Como procurei mostrar também, esses rituais festivos são ocasiões excepcionais em que os indivíduos formulam sua noção de pessoa e conduzem suas ações práticas e políticas mais estritas, estabelecendo vínculos sociais informados por noções de hierarquia, honra, prestígio e reputação. Os casos aqui apresentados apontam, afinal, para a força e o poder que a bandeira e a máscara têm de agir sobre as pessoas e transformar o mundo. 27 Normalmente há mais de um palhaço numa folia, e ocasionalmente é necessária a função de mestre dos palhaços para organizar suas ações.

150 Referências bibliográficas Appadurai, Arjun (org.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/UNB, BATESON, Gregory. A Theory of Play and Phantasy. In: BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Londres/São Francisco/Scranton/Toronto: Chandler, BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas Folias de Reis. Rio de Janeiro: 7 Letras/Iphan/Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A folia de reis de Mossâmedes. Rio de Janeiro: Funarte, Sacerdotes de viola: rituais religiosos do catolicismo popular em São Paulo e Minas Gerais. Petrópolis: Vozes, BOURDIEU, Pierre. Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom. Mana 2 (2), p. 7-20, Rio de Janeiro, out CAILLÉ, Allain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, CHAVES, Wagner. Máscara, performance e mímesis: práticas rituais e significado dos palhaços nas folias de santos reis. Textos Escolhidos de Arte e Cultura Populares 5 (1), Rio de Janeiro, Uerj, CONTINS, Márcia; GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A escassez e a fartura: categorias cosmológicas e subjetividade nas festas do Divino Espírito Santo entre imigrantes açorianos no Rio de Janeiro. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; GONÇALVES, José Reginaldo Santos (orgs.). Ritos e sociabilidades festivas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009, p DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Paulus, Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

151 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A/Faperj/UniRio, 2003, p Teorias antropológicas e objetos materiais. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan/Garamond, 2007, p HERTZ, Robert. La muerte y la mano derecha. Madri: Alianza Universidad, MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e a razão da troca nas sociedades arcaicas [1925]. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p MENEZES, Renata de Castro. A dinâmica do sagrado: rituais, sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, NAPIER, A. David. Masks, Transformation, and Paradox. Berkeley: University of California Press, NEEDHAN, Rodney. Forword. In: NAPIER, A. David. Masks, Transformation, and Paradox. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, NOGUEIRA, Carlos R. F. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, PEREIRA, Luzimar Paulo. Os andarilhos dos Santos Reis: um estudo etnográfico sobre Folia de Reis e bairro rural. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Rio de Janeiro: UFRRJ, Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre as folias em Urucuia, Minas Gerais. Rio de Janeiro: 7 Letras, POMIAN, Krzysztof. Entre o visível e o invisível: teoria geral das coleções. Verbete Coleção. In: RUGGIERO, R. Enciclopédia Einaudi, 1: Memória-história. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1997, p TURNER, Victor. Floresta dos símbolos. Niterói: EdUFF, From Ritual to Theather. Nova York: PAJ Publications, O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, VALERI, Valério. Rito. In: Enciclopédia Einaudi 30. Religião-rito. Imprensa Nacional Casa da Moeda, VAN DE BEUQUE, Flora Moana Mascelani. Entre a roda de boi e o museu: um estudo da careta de cazumba. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2010.

152 VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis, Vozes, VASCONCELOS, João. Romarias I: um inventário dos santuários de Portugal. Lisboa: Olhapim, WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, WEINER, Annette. Inalienable Possessions: the Paradox of Keeping-While-Giving. Berkeley: University of California Press, 1992.

153 6. À MESA COM OS SANTOS: A NOÇÃO DE FARTURA NAS FOLIAS DE URUCUIA (MINAS GERAIS) Luzimar Paulo Pereira Augusto 1 comentava em voz alta, para que todos os que estavam perto pudessem ouvir: festa assim não dá, não. Ficar regulando comida não pode, não. Festa não tem que regular, não! O reclamante parecia ter sua razão. Capitão de folia havia quase vinte anos, ele sabia que nessas festas as refeições desempenham, ao lado de todo um conjunto de espaços e objetos culinários (talheres, pratos, mesas, cozinhas, barracões, etc.), um papel fundamental. Não há festa de santo sem comida, assim como não há boa festa de santo sem comida em fartura distribuída a todos os seus participantes. Nas folias, oferecer e receber alimentos são maneiras de se posicionar num extenso mundo relacional que vincula os homens entre si e entre eles e seus santos de devoção. Nessas situações, o nome, a reputação e a devoção de cada um dos participantes dos festejos sempre estarão em jogo. Naquele abril de 2007, Augusto prestava serviços religiosos junto com seu grupo de cantadores e tocadores a uma folia em homenagem a São José, patrocinada pelos imperadores João e Ana, de Urucuia, Minas Gerais. Suas queixas se voltavam contra o excessivo zelo dos donos da festa na hora de distribuir os alimentos durante o encerramento dos festejos. A comida oferecida era pouca e de difícil acesso, ainda que a festa fosse pequena, dada a quantidade de pessoas que a ela compareciam. Minutos antes, como eu mesmo presenciara, o dono da casa se justificava dizendo que as suas condições econômicas não eram das melhores e que para a festa vingar, ele e 1 Todos os nomes apresentados nesta introdução são fictícios.

154 sua esposa precisariam agir com parcimônia. Senão, completava, chega na hora da janta não sobra comida pra ninguém. Os argumentos não pareciam convencer a maioria dos convidados. Ao meu lado, um cantador que ouvia atentamente as desculpas do imperador comentava baixinho: se não tem condição, por que que faz a festa, então?. João e Ana poderiam responder à pergunta do convidado argumentando que eles não tinham efetivamente escolha. Eles eram, então, aquilo que se poderia definir em Urucuia como imperadores permanentes (Pereira, 2011). Entra ano e sai ano, o casal realizava suas festas em nome de São José, a quem dedicavam devoção eterna de vida inteira, na linguagem dos urucuianos. Nessa condição, João e Ana não podiam esperar melhores condições para a produção dos seus festejos. Eles não poderiam deixar a festa para o ano que vem, nem para o mês que vem. A obrigação de um imperador permanente que deseja manter intacto esse seu prestígio é a de realizar suas folias todos os anos. Esse prestígio não faltava ao casal. Quando cheguei pela primeira vez em Urucuia, em 2005, os festejos organizados por João e sua esposa foram reiteradamente citados por diversos devotos da cidade como um dos mais importantes e conhecidos do município. Eles tinham sua fama. A folia em homenagem a São José patrocinada pelo casal era suficientemente importante do ponto de vista dos meus interlocutores para ser apresentada como referência a ser indicada a alguém de fora que deseja conhecer o universo urucuiano das festividades. Há, então, um certo risco em ser considerado imperador permanente em Urucuia. Fonte de prestígio para seus imperadores, as festas cobravam para sua continuidade compromissos constantes e esforços anuais. E nada garantiria de antemão o sucesso dos empreendimentos. Em 2007, era a primeira vez que assistia à Folia de São José patrocinada pelo casal João e Ana. Antes disso, nunca tinha ouvido reclamações a respeito da festa e dos seus organizadores (reclamar das folias é uma atividade comum entre os urucuianos, como viria a perceber depois). Talvez os convidados tivessem sido mais compreensivos com esses imperadores nos anos anteriores. Nunca pude saber disso. No entanto, o descontentamento que eu testemunhava parecia ter algumas justificativas, que vale a pena destacar. A festa que acompanhei em 2007 tinha um componente novo, que complicava ainda mais as coisas para o casal de imperadores. Os foliões estavam efetivamente com fome naquele dia. Durante toda a madrugada que antecedeu a festa de encerramento da Folia de São José, os cantadores e tocadores circularam pela localidade rural em que viviam nossos imperadores. Foram cerca de 12 visitas, realizadas entre as 8 da noite e 6 da manhã. Por problemas que

155 eu não soube avaliar corretamente quais eram não naquele momento, nenhuma das casas visitadas parecia preparada para receber os foliões. Alguns moradores, de fato, revelavam-se surpresos quando percebiam que o grupo de cantadores batia na porta de suas residências no meio da noite. Eu tentava me informar sobre esse fato aparentemente excepcional. Um folião me dizia que o imperador estava brigado com seus vizinhos, que, em troca, descontaram sua insatisfação nos viajantes no que ele completava, censurando: São José não tem a ver com a briga deles; nem a gente, né? Outro folião dizia que a insatisfação dos moradores era resultado do erro de planejamento do velho imperador. O descontentamento dos seus vizinhos se deu porque, semanas antes da folia começar, ele havia deixado saber a todos os habitantes da localidade do bairro que a jornada da folia priorizaria o pequeno centro urbano de Urucuia. A comunidade à qual ele estava vinculado ficaria de fora. Segundo fiquei sabendo depois, os moradores da localidade rural se sentiram desprestigiados, porque acreditavam que a opção pelo giro na cidade fora tomada por interesses bastante condenáveis: o imperador, pensavam eles, esperava arrecadar mais esmolas (dinheiro, alimentos, etc.), mais do que deveria receber na localidade. Daí a resposta negativa durante as visitas. Havia uma última versão que tentava explicar o que acontecera: a ideia de realizar as visitas na cidade foi do capitão Augusto Teles, o que justificaria a resposta nada amistosa dos moradores aos seus foliões. Seja qual for a razão e todas as razões apontavam para conflitos reais ou fictícios entre imperadores, capitão e moradores, o certo é que os cantadores ficaram sem comer ao longo da jornada. Como escrevi noutro lugar, uma visita de folia implica sempre oferecer agrados diversos aos cantadores (Pereira, 2004; 2011). A comida, nesses momentos, deve ser abundante e bem distribuída: farofas de carne de gado ou de frango, cachaças, café, biscoitos. Come-se muito numa folia. E ninguém pode ficar sem comer. Durante os anos de 2001 e 2002, por exemplo, ao fazer as pesquisas que redundaram na minha etnografia de Mestrado, eu mesmo engordei quase 5 quilos depois dos trabalhos. A fartura, como se diz, deve ser a tônica das festividades. Naquela noite de abril de 2007, entretanto, o que se viu foi outra coisa: a escassez. As discussões, desculpas e julgamentos que testemunhei na casa dos imperadores na manhã da festa de encerramento da Folia de São José eram consequência inevitável de uma sucessão de eventos que levaram a fome e a escassez a um universo que deve ser vivido como regalo e fartura. Não que isso seja incomum. Fazer folias em Urucuia é uma atividade arriscada justamente por isso. No final, alguma coisa pode não dar certo.

156 Como resultado, a festa do casal João e Ana redundou fraca. Durante os dias que se seguiram à sua realização, ouvi diversos comentários desabonadores a seus realizadores. Alguém mais exagerado previu o fim do império de São José do casal. Não é possível prever isso, claro. Mas o comentário indicava algo importante: o risco de uma festa é sua continuidade. Nada é eterno no mundo das folias urucuianas. Como resultado complementar, o capitão Augusto Teles ainda planejou e executou uma resposta à comunidade que ele julgava ter recebido a ele e a seus foliões tão mal naquela noite de abril: numa folia realizada meses depois, ele deliberadamente excluiu a localidade do roteiro das suas visitações. Se eles não quiseram receber antes, não querem receber agora, falava. Da próxima vez, continuava Augusto, se os moradores do lugar quisessem que sua folia passasse por lá, eles que o procurassem. * * * A distribuição generalizada de alimentos em longos repastos coletivos é um traço marcante de diversos festejos populares no Brasil. Nas folias, em especial, as refeições adquirem feições verdadeiramente rituais, para demarcar a cuidadosa passagem simbólica de uma época de escassez para um período de fartura (Bitter, 2008; Pereira, 2004; 2011). Não se trata, em absoluto, de considerá-las destinadas a suprir uma exigência fisiológica supostamente universal, revelando, de acordo com uma cosmologia ocidental moderna, a imagem de uma natureza humana imperfeita, repleta de carências e necessidades materiais (Sahlins, 2007). Os banquetes coletivos, com seus cardápios e formas de preparação, seus modos à mesa e regras de distribuição, suas rezas e cantorios cerimoniais, são, na verdade, culturalmente localizados e parte inseparável de um sistema articulado de relações sociais e de significados coletivamente partilhados (Gonçalves, 2007, p. 163). Nas folias, os eventos alimentares food events, na conceituação de Mary Douglas (1999) emergem como uma espécie de idioma social e cultural, por meio do qual valores, visões de mundo e modelos de relações sociais podem ser expressos, ao mesmo tempo que contribuem para a constituição de formas de autoconsciência individuais e coletivas. Alimentar-se é, noutros termos, uma atividade necessariamente social e cultural. A escolha do cardápio, as formas de obtenção dos seus ingredientes, os processos de preparação dos alimentos, os saberes culinários envolvidos na sua produção, os modos de apresentar e servir os pratos, as técnicas

157 corporais necessárias ao seu consumo, as situações nas quais os repastos são servidos (no cotidiano ou em momentos rituais), entre outros elementos, são partes fundamentais de um sistema culinário, cujas operações fazem interagir técnicas, relações sociais e representações (Mahias, 2005). O conjunto de processos por meio dos quais os homens transformam os produtos em seu entorno em alimento e os modos pelos quais eles são consumidos articulam classificações associadas a um ordenamento simbólico do mundo, a toda uma cosmologia que vincula a pessoa, a sociedade e todo o universo. Comer, em outras palavras, assegura ao homem sua conduta e seu lugar no cosmos. No se come qualquier cosa, em cualquier lugar, em cualquier momento, com qualquiera. Toda cocina implica una dietética, corpus de conocimientos y de preceptos en los que el alimento mediatiza las relaciones del hombre com el mundo, mediante una serie de correlaciones entre estaciones, climas, tierras, enfermedades, cuerpos y temperamentos humanos, individuos y grupos sociales. (Mahias, 2005, p. 170) Neste artigo, proponho descrever e analisar o papel desempenhado pelas refeições coletivas ocorridas durante a realização das folias urucuianas. 2 Em especial, quero destacar, por meio de um material etnográfico recolhido entre os anos de 2005 e 2008, os sentidos da noção de fartura, associada às formas de produção e distribuição dos jantares servidos durante as festividades de encerramento de uma folia. 3 A entrega como são conhecidas as festividades de encerramento indica o acontecimento mais público de todo o empreendimento da folia. Realizada na casa dos imperadores, ela é a abertura máxima do espaço de sua moradia para a chegada de todo um contingente de pessoas. Resultado de um longo processo de produção, que envolve a participação de uma ampla coletividade mobilizada através das redes de auxílio mútuo e devoções religiosas, a entrega imprime sua marca aos festejos. É a partir de sua realização que os devotos avaliam todo o sucesso 2 Gostaria de agradecer a todos os promotores e participantes dos festejos urucuianos que me receberam com paciência e generosidade ao longo dos meus trabalhos de campo. Também quero agradecer aos professores José Reginaldo Santos Gonçalves, Maria Laura Viveiros de Castro, Marco Antonio Gonçalves, Marcia Contins e Renata de Castro Menezes pelos comentários estimulantes durante a defesa da minha tese de doutoramento. 3 Apesar de centrar minhas atenções nos almoços e jantares, devo dizer que há diversas outras formas de comensalidade numa folia. Além dessas refeições também encontramos, por exemplo, o café (a bebida acompanhada de biscoitos e farofas), oferecido aos seus participantes durante várias etapas das festividades.

158 da folia. Uma boa entrega, bonita, devota, cheia, alegre ou animada, é o sinal cabal de uma festa bem-sucedida; é o indício certo de que os festejos foram bons e serão lembrados por muitos anos por aqueles que tiveram o privilégio de participar deles. Pelo contrário, se é fraca, desanimada, com pouca gente ou bagunçada, muito provavelmente será usada para indicar o fracasso do empreendimento. Por isso, os imperadores e seus ajudantes trabalham na perspectiva de que tudo seja memorável. A fartura de comida, como se fala entre os devotos, é um dos critérios fundamentais para o sucesso de uma festividade. Os alimentos são parte integrante da cultura material (Gonçalves, 2007). Na medida em que circulam permanentemente na vida social, eles podem ser descritos e analisados em seus movimentos e transformações pelos mais diversos contextos sociais e simbólicos. Acompanhar o deslocamento dos objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses contextos, escreve Gonçalves, é em grande parte entender a própria dinâmica da vida social e cultural, seus conflitos, ambiguidades e paradoxos, assim como seus efeitos na subjetividade individual e coletiva (2007, p. 15). Nas folias, os alimentos constituem os homens e suas relações, na mesma medida em que são produzidos e consumidos por eles em longos circuitos de trocas cerimoniais. Nesse contexto, as refeições são fundamentais para o estabelecimento de dada comunidade de fiéis. Não se trata aqui, no entanto, de pensarmos a coletividade festiva apenas como communitas, no sentido turneriano do termo: uma forma de relação social que surge em períodos liminares como espécie de comunidade, ou mesmo uma comunhão de indivíduos iguais (Turner, 1974). As formas de distribuição e as regras de acesso aos alimentos também implicam, nesse contexto, a constituição de hierarquias e regimes de controle. Nas folias, a comunhão evoca igualmente a estrutura. Pode-se comer de diferentes modos numa festa, cada um deles articulando diversas posições sociais e religiosas no interior de uma verdadeira hierarquia cósmica e social. As festas de folia Como em outros lugares do país, o vocábulo folia também evoca, no município de Urucuia, a realização de longos deslocamentos festivos, quando grupos de cantadores e instrumentistas visitam, durante um período de tempo determinado pelo calendário religioso, as casas, as fazendas, os cemitérios e as igrejas de um território previamente estabelecido. As jornadas são

159 conhecidas como giros. Neles os grupos se deslocam para coletar, em nome de cada um dos santos para os quais os festejos são organizados e de seus principais patrocinadores, as oferendas necessárias e obrigatórias para o custeio de uma reza a ser realizada no dia dedicado à divindade homenageada. Em troca do que é recolhido dinheiro, velas, fogos de artifício, sacas de arroz, feijão, animais de criação, etc. eles distribuem bênçãos aos doadores, além de auxiliá-los no cumprimento de suas promessas e contribuindo para que almoços, jantares e bailes sejam oferecidos em suas passagens. As folias se conformam como extensos rituais de trocas sociais e simbólicas (Pereira, 2011; Brandão, 1981; Bitter, 2008; entre outros). Nelas, homens e divindades, personagens cerimoniais e pessoas comuns, vivos e mortos, famílias e indivíduos, todos, enfim, encontram-se presos a uma extensa rede pela qual bens e serviços morais, religiosos, econômicos, estéticos, entre outros, são trocados, dados, recebidos e retribuídos (Mauss, 2003). As folias podem ser descritas como formas específicas de peregrinação (Pereira, 2011; ver também Brandão, 1989; Veiga, 2002). A rigor, qualquer santo do panteão católico pode ser homenageado com a realização dos festejos. Há, no município, as Folias dos Santos Reis, as de São Sebastião, as de São José, de Bom Jesus da Lapa, de Nossa Senhora Aparecida e de Santa Luzia, citando apenas as mais importantes. Todas elas se realizam em épocas precisas, de acordo com o calendário religioso que estabelece dias específicos para cada entidade: 6 de janeiro (Santos Reis), 20 de janeiro (São Sebastião), 19 de março (São José), 10 de agosto (Bom Jesus da Lapa), 12 de outubro (Nossa Senhora Aparecida) e 13 de dezembro (Santa Luzia). Centradas na viagem cerimonial dos foliões, as peregrinações implicam a saída de um lugar familiar (a casa do imperador), a passagem por lugares distantes (o território do giro) e um retorno, final, ao mundo familiar onde tudo começou (a casa do imperador). Ao modo dos rituais de passagem descritos e analisados por Van Gennep (1978), os festejos possuiriam, então, três fases distintas e complementares, denominadas pelos seus próprios participantes, respectivamente, retirada (1), giro (2) e entrega da folia (3). Os deslocamentos ocorrem num ambiente de clara liminaridade (Turner, 2008). A retirada demarca o início das peregrinações. Realizada na casa dos seus principais produtores (os imperadores), ela se destaca pela realização de certos cerimoniais de sacralização ou separação. Os trabalhos necessários à sua produção, a execução de rezas propiciatórias, o deslocamento das pessoas à moradia dos imperadores, o uso de certos objetos entendidos como eminentemente religiosos (a bandeira, as toalhas e os instrumentos musicais retirados

160 do santuário montado na casa do imperador) e os festins de comida demarcam a passagem ao tempo extraordinário característico da viagem ritual. O giro é a viagem no seu sentido estrito, quando os foliões se deslocam, de um a 12 dias, por um amplo território. Os deslocamentos podem ser feitos a pé, com carros ou a cavalo (a preferência dos foliões de Urucuia). Como um todo, os giros representam o estado marginal por excelência, em que encontramos a própria noção de sagrado em atuação. As pessoas morais permanecem num estado de suspensão durante sua realização. Os trabalhos cotidianos são temporariamente encerrados e os participantes da folia vivem a experiência de se congregar entre si em torno de um santo devocional. A entrega é realizada na casa dos imperadores para demarcar o encerramento de todo o ciclo ritual. Ápice do empreendimento festivo, ela propõe uma grande concentração de gentes e coisas. Como saída ou rito de dessacralização, a retirada também implica o retorno ao mundo secular-cotidiano. Com rezas, cantos, festins de dança e repastos coletivos, ela prepara o retorno renovado dos indivíduos e de toda uma sociedade ao fluxo ordinário de suas existências. Na sua integralidade, uma jornada de folia engendra atividades que poderiam ser, a princípio, definidas como a repetição contínua de uma mesma série em três atos: uma preparação (os trabalhos coletivos que antecedem todas as ações rituais), uma apresentação (os cerimoniais comandados pelos foliões) e um arremate (a distribuição de comida e, às vezes, a realização de bailes ocorridos depois das apresentações) (Pereira, 2004). Verdadeiro fato social em movimento, as festividades seriam marcadas por grandes alterações espaciais, comportamentais, emocionais, fisiológicas e pelos usos de certos objetos materiais; tudo para erigir simbolicamente uma delicada e progressiva separação em prol de uma época extraordinária. Os encontros com as divindades inauguram um período de intensa vida coletiva, de gastos conspícuos de bens econômicos e da presença constante do sagrado (Pereira, 2011). Essa nova qualidade de tempo, como no caso das festas do Divino descritas e analisadas por Contins e Gonçalves (2009), tem consequências significativas sobre a vida individual e coletiva dos devotos (p. 16). As trocas são mais intensas, os espaços condensados e os encontros mais frequentes. A exemplo das variações sazoneiras na sociedade esquimó, descritas por Boas (1911) e analisadas por Mauss (2003), as festas de folia estabelecem ao longo de sua vigência uma visão distinta acerca da vida, das pessoas e das relações entre elas. O tempo dos festejos, em oposição ao tempo cotidiano, vem a ser marcado por um estado de exaltação religiosa contínua. A vida ganha um brilho diferente, e as oposições entre o alto e o

161 baixo, o passado e o presente, o nós e os outros, a casa e a rua, homens e mulheres, entre outras, são parcialmente desfeitas ou, pelo menos, momentaneamente mediadas. O banquete do encerramento No início de 2008, assisti a um festejo de folia dedicado aos santos Reis Magos na pequena comunidade da Fazenda Alegre, nas divisas dos municípios de Urucuia e Pintópolis, em Minas Gerais. A localidade era habitada por quase 25 famílias, distribuídas em pequenas e médias propriedades rurais. A Folia de Reis que acompanhei era destinada ao pagamento de uma promessa realizada por um casal de imperadores (os produtores e organizadores das festividades) em nome de um dos seus filhos, que adoecera anos antes. A festa promovida nesse ano de 2008 foi a última de um total de três que o casal deveria patrocinar como forma de saldar sua dívida com os Santos Reis Magos (a primeira fora realizada em 2006). Depois de três dias de festividades, nos quais um grupo de foliões circulou pelas moradias da localidade, um jantar oferecido aos convidados demarcava o final das atividades. A janta foi preparada na propriedade dos seus organizadores com o auxílio de diversas pessoas (mulheres e homens, parentes, vizinhos e amigos dos imperadores), distribuídas segundo claras regras de divisões de tarefas (Pereira, 2004; 2011). Na noite do dia 16 de janeiro, a comida e o local onde seria realizada a refeição estavam prontos. Da sala, os especialistas religiosos da folia (os foliões) se preparavam para dar início à alvorada. Realizado toda vez que se faz uma refeição numa folia, o cerimonial tinha o objetivo de tirar momentaneamente a bandeira do santuário dedicado aos Santos Reis Magos para levá-la, em cortejo, ao lugar onde estava montada a mesa dos foliões (onde se daria o repasto). Para realizar a alvorada, os cantadores formaram um círculo diante do local sagrado e deram início a um pequeno cortejo musicado. Depois de dar três voltas pelo cômodo onde estava o santuário, o grupo atravessou a divisória que separava a cozinha da sala e seguiu para os fundos da propriedade, onde encontrou, já preparada, a mesa dos foliões. O cortejo realizou, então, outras três voltas em torno da mesa, antes de estancar num ponto indicado pelo cerimonial. A alvorada terminou com uma saraivada de fogos de artifício do lado de fora da residência e a reza de um pai-nosso e uma ave-maria.

162 Tão logo os devotos terminaram de rezar, a bandeira dos Três Reis Magos foi afixada acima da mesa, num dos esteios do telhado do alpendre. Os donos da casa, junto com seus serventes, incitaram, então, os foliões a comer. 4 Sobre a mesa, os talheres, pratos e copos estavam cuidadosamente ordenados, para facilitar a retirada dos alimentos. Os foliões entravam pelo lado direito da mesa, de modo a realizar uma volta completa ao seu redor, após terem feito seus pratos. Os cantadores pareciam não ter problemas na hora de escolher o cardápio (uma versão potencializada e mais diversificada do que é servido no dia a dia dos urucuianos). A mesa estava completa: panelas de feijão e arroz, de carne de vaca, frango e porco, de macarrão, bandejas com verduras, batatinhas, farofa; litros e litros de pinga, água e refrigerante. Tudo era cuidadosamente colocado nos pratos. Primeiro, vinha o feijão e a farinha. Ambos os ingredientes eram misturados para que sobre eles fosse colocado o arroz. A mistura (saladas, as leguminosas, as raízes e as carnes, sempre as mais valorizadas entre os alimentos) era colocada por cima da comida. Depois de se servirem, os foliões se sentaram à mesa. Mas havia aqueles que preferiram comer com os pratos à mão, encostados numa parede ou nos bancos próximos ao local da refeição. Em vários momentos, essas atitudes eram desencorajadas pelos moradores, que tentavam de toda forma convencê-los a se sentar à mesa dos foliões. Após todos os foliões encherem seus pratos, os imperadores mandaram servir os demais convidados. O povo da festa, no entanto, não comia do mesmo alimento nem no mesmo lugar dos cantadores e seus acompanhantes. Para atendê-lo, os donos da casa construíram, no fundo do terreiro, um pequeno barracão. Diferentemente do que ocorria na mesa dos foliões, ali não eram os que chegavam que colocavam os alimentos nos pratos. Cada um dos convidados era servido por um dos ajudantes da festa, separadamente da multidão, que formava uma fila por uma pequena bancada de madeira. O cardápio destinado ao povo da festa também era menos variado do que aquele oferecido aos foliões. Em vez da diversidade encontrada na mesa dos cantadores, víamos que cada prato era servido com uma combinação de três ou quatro tipos de alimentos: o arroz, o feijão, a carne de vaca e algumas cenouras e verduras. A distinção entre foliões e povo da festa era evidente. A preeminência na hora de se servir, os lugares onde se servir e se alimentar 4 O servente é o personagem cerimonial responsável pela mesa. Além de chamar os convidados para o jantar, ele também cuida para que os pratos e talheres estejam sempre à sua disposição. Ele também é responsável para que as panelas e as tigelas estejam sempre cheias. O papel pode ser desempenhado tanto por homens como por mulheres.

163 e até o cardápio indicavam uma hierarquia entre os convidados. 5 Figura 6.1. Caminho percorrido entre a sala e a mesa dos foliões Durante a refeição, os imperadores e seus ajudantes caminhavam com satisfação por entre os convidados. A todo tempo perguntavam sobre a qualidade e a quantidade do que era oferecido e os incentivavam a comer mais. Diante da recusa de algumas pessoas, eles reforçavam a ideia de que a comida dá e sobra para todo mundo. Além disso, diziam, muito mais alimentos estavam sendo preparados na cozinha improvisada no fundo do terreiro. Ao longo do jantar, os imperadores e os serventes (geralmente familiares dos donos da casa) enchiam, de tempos em tempos, as panelas e vasilhas colocadas sobre a mesa e disponibilizadas no barracão. Ninguém poderia ficar sem comer. No final dos festejos, provavelmente, muita coisa sobraria (e de fato sobrou). Mas, segundo o próprio imperador, durante um jantar era preferível sobrar do que faltar: imagina a vergonha da gente se falta comida pro povo nessa hora?. Por volta das 11 horas da noite, o dono da festa procurou o líder dos foliões (o capitão) para que tivesse início o encerramento do jantar e fosse 5 Obviamente, poderíamos observar que o tratamento dispensado aos foliões tinha relações diretas com o trabalho que eles realizaram em nome dos imperadores: Pro folião a gente tem que ter muito agrado. Foi eles que cumpriu a promessa pra gente. Não se deve pensar, contudo, que a separação tenha conotações apenas pragmáticas. A distinção estava relacionada ao valor sagrado que separava os foliões dos demais convidados (Bitter, 2008).

164 realizada a saudação da mesa, uma espécie de ritual efetuado diante do resto da refeição e que consiste num cantorio, seguido da reza de um pai-nosso e de uma ave-maria. 6 Com a equipe de foliões novamente agrupada, o capitão pediu ao imperador que a mesa fosse arrumada para o cerimonial. As mulheres que ajudavam na cozinha da festa retiraram os potes com o resto dos alimentos, as panelas e os talheres, deixando sobre o tampo apenas uma vasilha vazia, uma garrafa com água, uma cumbuca com farinha e outra com molho de pimenta (em outros banquetes que pude observar, quando não é possível retirar todas as panelas da mesa, elas são cobertas com toalhas de modo que só se possa ver a água, a farinha e a pimenta). Os devotos dizem que nessa hora tais elementos representam a água, o pão e o vinho presentes na santa ceia ocorrida na véspera do calvário de Jesus Cristo. Uma vela acesa também foi colocada sobre a mesa, quando um dos foliões tomou a bandeira em suas mãos e os demais cantadores e tocadores se posicionavam em seu entorno. Figura 6.2. Os foliões se servem à mesa. Fotografia do autor 6 O cantorio é uma das principais atividades desempenhadas pelos foliões ao longo de suas viagens cerimoniais. Ele não parece resumir-se ao simples proferimento de versos rimados e entoados sobre a base ritmada, melódica e harmônica de uma música. Nesses contextos, o cantorio corresponde a um conceito bastante mais estendido do que a simples ideia de poesia cantada. Ainda que os versos entoados tenham alguma proeminência, eles precisam colocar em operação o movimento coordenado dos corpos em relação a um verdadeiro sistema de objetos (Pereira, 2011). Não há música separada das falas nem cantos separados de artefatos e do movimento corporal de seus participantes. Embora possa ser considerado uma espécie de rito oral, o cantorio também mantém laços estreitos de contiguidade com os rituais manuais (Mauss, 1999).

165 Com a indicação do líder dos foliões, teve início o agradecimento da mesa. Depois de cantar o bendito louvado seja que compõe o cabeçalho de todos os cantorios de folia urucuianos, o capitão começou efetivamente o ritual. A saudação era, antes de tudo, um agradecimento. Os versos que se seguiram indicavam cada um dos personagens que deveriam receber as bênçãos, emitidas como contradádivas do alimento oferecido aos convidados. Primeiro, o capitão citou a senhora dona da casa, a quem se atribui primordialmente o que foi oferecido aos foliões. Em seguida, mencionou os serventes e as cozinheiras, responsáveis, respectivamente, por servir o alimento e prepará-lo para a ocasião. Trata-se, efetivamente, de considerarmos o cantorio o termo final de uma troca de dons (Brandão, 1981), em que o alimento oferecido era retribuído através de bens morais e religiosos de grande valor para os devotos. Peço licença a senhora Vem lhe saudar Deus lhe pague a bela mesa Que vós fez com alegria Deu o pão que deu sustento O pão nosso de cada dia Deus lhe pague a bela janta Que vós deu em vosso nome Dando água a quem tem sede Dando pão a quem fome Aqui que estão todos irmãos Filho de Deus onipotente Que todos preste atenção Os foliões e os serventes Ele será recompensado Nos pés de nosso senhor [...] Deus vos salve as cozinheiras E também a bela luz Quem salva o dono da casa É quem morreu por nós na cruz (FOGOS) A saudação terminou com uma ave-maria e um pai-nosso. Durante a reza, os foliões que estavam em torno da mesa colocaram as mãos para o alto, em claro sinal de devoção. Alguns dos convidados, que estavam de fora desse primeiro círculo de fiéis, repetiram o gesto. Geograficamente, podíamos ver dois grandes círculos concêntricos que partiam da mesa. No final das orações, vivas foram dados aos santos, aos donos da festa, aos serventes, às cozinheiras, aos foliões e aos convidados.

166 Da escassez à fartura Nos banquetes festivos de uma folia, as noções de fartura e escassez evocam categorias totais (Mauss, 2003), orientando transformações importantes em direção a um tempo renovado de generosidade em que a sociedade, o cosmos e a natureza oferecem seus frutos (Contins; Gonçalves, 2009, p. 26). No discurso dos seus promotores, a preocupação com a quantidade dos alimentos preparados, apresentados e oferecidos sinaliza, com muita frequência, o sentido da graça religiosa, por meio do qual eles se sentem de alguma maneira abençoados pelas santidades. Na folia que eu faço nunca falta nada. Às vezes a gente olha pra panela e pensa que não vai dar. Fica preocupado: A gente é fraquinho. E se faltar comida pra esse povo todo, comé que fica? Tem dia que cê num dorme de preocupação. Mas chega no dia, dá e sobra. Todo mundo fica satisfeito. É aquela alegria. Isso é coisa dos Magos. É um milagre do santo. (João Canela. Caderno de campo. Urucuia, 07/01/2008) A fartura evoca, assim, o milagre divino. Desde que estejamos falando de uma ética compartilhada por agricultores camponeses, pequenos produtores rurais, trabalhadores assalariados, boias-frias e carvoeiros, pertencentes, de um jeito ou de outro, ao estrato subalterno da sociedade brasileira, mineira e urucuiana, supõe-se aqui que a distribuição abundante da comida seja um contraponto à escassez que demarcaria o cotidiano imaginário e muitas vezes real das pessoas. O sucesso de uma empreitada festiva, dessa forma, é interpretado pelos seus próprios participantes como uma concessão especial dos santos aos devotos. Uma boa festa indica aos outros, àqueles que comparecem à sua realização e àqueles que só ouvem falar dela, um sinal de distinção religiosa e social. Os conceitos de fartura e escassez, entretanto, não se resumem apenas à quantidade de alimentos oferecidos em festa. As pessoas também contam nesse processo, e as redes de reciprocidades fundadas em torno dos organizadores das festas e do santo para o qual tudo é direcionado são muito importantes. Uma folia é produzida através de diversos eixos de complementaridades. O imperador começa tudo praticamente sozinho, constituindo cuidadosamente uma pequena poupança com a qual dá início ao seu empreendimento festivo (Pereira, 2004; 2011). Nesse primeiro momento, apenas ele e seu grupo doméstico estão intrinsecamente vinculados às folias. Em seguida, no entanto, o imperador também precisa se abrir para círculos cada

167 vez mais ampliados de relações, que possam agregar seus parentes distantes, compadres, vizinhos, amigos, meros conhecidos e, às vezes, desconhecidos que por uma razão ou outra participam da produção dos festejos. A festa tende ao mundo exterior, para o qual os seus principais patrocinadores e organizadores precisam sempre se voltar. A expansão máxima da folia ocorre com o giro dos foliões, quando os cantadores e tocadores são os responsáveis por comandar o recolhimento das esmolas (Pereira, 2011; Brandão, 1981). A passagem dos foliões pelas casas dos moradores de determinado território contribui para o recolhimento de bens dotados, a princípio, de valores de uso e de troca dinheiro, frangos, leitões, gado, feijão, arroz, velas, etc., mas que, ofertados, se transformam em objetos imbuídos de alguma qualidade religiosa. As esmolas tornam-se propriedades dos santos, interditas, em certo sentido, para o uso comum e particularizado dos homens. Eu dô esmola pra São Sebastião, pra Santo Reis e não abuso eles de jeito nenhum. Porque a gente vê muita gente abusá e vê o castigo chegando. Eu já vi. Se deu tá dado e não fala mais naquilo. Se eu marcá aquele frango ali é bão, se eu dei pra Santo Reis ou pra São Sebastião é aquele ali. Não vô tirá ele, não. É bão ou é bonito, mas é aquele que eu dei. Se eu tirá ele e pô outro mais pequeno, e deixo ele, aquele leva e aquele ali dentro três, quatro dia, tá morto. Morre. Já aconteceu isso pra mim. Eu já comprei frango de Santo e eu nunca mais eu compro. Eu vô comprá, eu sei que ele morre. Não era meu, era do santo. Já aconteceu isso comigo aqui, uai. Comprei o franguinho, paguei, tratei, e quando ele pesô dois quilo e meio morreu na porta da cozinha, como daqui ali. Eu revirava, não achava [o frango morto]. E quando ele tava bichado, perdido, daí eu achei ele. Falei: Eu nunca mais eu compro. O Santo castiga a gente. (Pedro, entrevista concedida ao autor em Silvianópolis, Minas Gerais, 10/12/2002) Uma esmola se transforma na propriedade de uma divindade e não pode ser trocada, vendida ou comprada para os usos cotidianos dos homens. 7 Em nome dos santos, as coisas do dia a dia são elevadas à qualidade de objetos sagrados, partes significativas de uma coleção que serve de mediadora cósmica e social (Pomian, 1987; Clifford, 1994). Ainda que também sejam 7 O dinheiro recolhido como esmola também é parcialmente destituído do seu valor de troca. Ele só pode ser usado para cobrir os gastos festivos, sendo interdito seu uso para outros fins que não sejam os de financiar as festas.

168 acumulados em nome de um casal de imperadores, os bens nunca são de sua exclusiva propriedade. Os patrocinadores são apenas os gerenciadores dos recursos ajuntados, como os representantes legítimos das divindades. Acontecimentos terríveis podem pesar sobre aquele que toma para si o que é uma legítima propriedade das entidades sagradas. Acidentes, doenças e atraso de vida são alguns dos exemplos citados para reforçar e controlar o gerenciamento dos bens materiais acumulados. O destino do que foi recolhido para a festa do santo é a suprema publicização, é sua distribuição a todo um conjunto de convidados. Nos banquetes, contudo, não são as esmolas que são expostas. Naquele contexto, elas se apresentam como os elementos materiais da própria folia: o alimento nas panelas, os enfeites que embelezam os santuários, o barracão, etc. O que foi recolhido como donativo está concretizado na própria festa, concretamente produzida a partir do que foi oferecido aos imperadores. A passagem da esmola à festa é, então, importante, ocorrendo quando os donativos são transformados através do trabalho coordenado de homens e mulheres (Pereira, 2004; 2011). Nesse sentido, além de prezar pela quantidade de coisas recolhidas para a sua festa, os imperadores gostam de reafirmar o caráter coletivo dos empreendimentos. A conspicuidade dos banquetes não deve ser medida apenas pela quantidade de esmolas acumuladas, mas principalmente pelo conjunto de pessoas que se envolvem no processo de transformar as ofertas numa verdadeira festa de folia. Sem a mediação do trabalho não há como chegar à fartura (Contins; Gonçalves, 2009, p. 32). O reconhecimento das limitações iniciais de um imperador se transforma numa necessidade tenaz de exibir os resultados positivos das festas como evidência da capacidade diferenciada do seu organizador e produtor de unir e juntar pessoas e coisas ao seu redor. Então, essa folia minha, se não fosse por esse patrocínio, do povo dá e essa fé, é num tinha mais folia nunca. Ninguém via nunca, que nóis não aguentava fazer a festa. Aí, procê vê, o mistério que eu falo é isso aí. Hoje, a festa dá o quê? Tinha mais de 40 pessoa na festa. Até 60. Aí a noite todinha continuava essa festa, de 40 pessoa. Quando eu comecei, já tinha 80, 100, pessoa, e sempre tirava 2, 3 boi. E o imperador rebocando. Hoje, eu tô tirando dez gado, oito gado, 500, 600 reais, e vem 1000 pessoas e todo mundo come que sobra carne. Vai evoluindo toda a vida, né? Só hoje, nóis tem umas parte de 1000 pessoa na festa nossa. Acho que tinha uns 40 carro de gasolina. A festa foi ali na casa de Bastião. Eu contei uns 40 carro. Tinha ônibus. Nóis temo

169 aqui uma comissão de trabalhador, são dez pessoa pra trabalhar, pra organizar, sem ganhar um centavo. Só na boa vontade. Trabalha na maior alegria, umas cinco mulher e uns cinco homem. Vai buscar boi, outro vai buscar o arroz, onde tiver, né? (Jonas, entrevista, Chapada Gaúcha, 11/01/2005) Não falta aos discursos dos imperadores até certa conotação religiosa, na medida em que o sucesso do empreendimento é sempre mediado pelo mistério que pauta a relação entre homens e santos. As festividades precisam ser descritas como o resultado de uma devoção vivida com alegria e boa vontade. A folia emergiria como uma forma de louvação das divindades pautadas por risos, fartura de alimentos e uma disposição de espírito baseada na entrega, na conciliação e na harmonia entre os homens; tudo isso entremeado por momentos de contrição e reza. O discurso dos seus produtores reafirma a alegria da reciprocidade, através da qual o gesto de auxílio mútuo deve se pautar, sempre, pelo prazer, em si mesmo, de ajudar, de acordo com os preceitos religiosos mais fundamentais para quem vive e crê nos Santos Reis Magos, Jesus Cristo e na Virgem Maria. Não seria outro o sentido mais profundo da graça (Pitt-Rivers, 1992). A comida e a mistura O alimento oferecido aos convidados durante os banquetes de folia é uma versão potencializada do cardápio cotidiano dos almoços e jantares urucuianos. Não se observa, ali, como em outras festas religiosas brasileiras ou portuguesas, por exemplo, ingredientes especiais ofertados exclusivamente nos momentos extraordinários de um ritual. 8 Os alimentos servidos são sempre os mesmos consumidos durante os repastos cotidianos (a exceção talvez seja a carne de gado, obrigatória ao festejo e relativamente pouco consumida no dia a dia). A rigor, os almoços ou jantares se constituem em torno de uma oposição básica entre comida e mistura. O vocábulo comida evoca o dueto primordial da culinária urucuiana, sua estrutura mínima (Douglas, 1999): o arroz e o feijão. Não há almoço e janta sem a presença desses ingredientes fundamentais. Sempre consumidos como um par, os alimentos formam, na verdade, uma única entidade: a comida. Além do arroz e do 8 Veja-se, por exemplo, a sopa do divino oferecida durante as festas do Divino Espírito Santo produzidas por imigrantes açorianos no Brasil e nos Estados Unidos (Contins; Gonçalves, 2008).

170 feijão, o almoço e o jantar urucuianos também contam com a mistura. Complementar à comida, o conceito de mistura se refere a uma espécie de acompanhamento composto pelas carnes, que podem ser a carne de gado, de frango, de porco e, às vezes, de peixe (numa posição periférica, teríamos as verduras, os legumes e as raízes, notadamente a mandioca). A mistura demarca a fartura de uma refeição. Se a comida é aquilo que lhe dá existência social e cultural, as carnes e, em menor valor, as verduras, os legumes e as raízes definem a abundância do almoço ou do jantar. O sinal inequívoco da pobreza ou da carestia, para os urucuianos, é a ausência de qualquer mistura numa refeição. Segundo DaMatta (1988), a mistura emerge como um dos elementos centrais da culinária brasileira, sendo especialmente significativa no interior das sociedades camponesas (Candido, 1964). Para o autor, sua presença implica a ideia de alimentos consumidos simultaneamente, em vez de servidos um depois do outro, como pratos diferentes. O arroz, o feijão, as carnes, as verduras, os legumes e as raízes são consumidos em conjunto, nunca separados. A noção de mistura nessa formulação evocaria, então, uma oposição à ideia de fragmentação. Nesse contexto, a farinha, em primeiro plano, e a pimenta, em segundo, ganhariam destaque. Ambos surgem como elementos de mediação, como a argamassa e a tinta que unificam e dão colorido a um mesmo constructo alimentar. Poderíamos dizer que a cozinha urucuiana atualiza esse princípio da culinária relacional (DaMatta, 1988), valorizando a mistura em detrimento da separação e da individualização. Na mesa dos moradores de Urucuia, como em diversas outras regiões do Brasil, privilegia- -se, então, não [...] o prato separado (como na China e no Japão) nem a combinação de pratos separados que são fortes e descontínuos (como na França e na Inglaterra), mas, isto sim, a possibilidade de estabelecer, também pela comida, gradações e hierarquias, permitindo escolhas entre uma comida (ou prato) que é central e dada de uma vez por todas a comida principal e seus coadjuvantes ou ingredientes periféricos, que servem para juntar e misturar. (DaMatta, 1988, p ) A culinária relacional dos urucuianos parece igualmente ter um papel fundamental nos banquetes festivos das folias urucuianas. No entanto, o conceito de mistura encontrado ali é um pouco diferente daquele expresso na formulação de DaMatta. Mais do que em oposição à separação, a mistura constitui uma oposição complementar à comida para demarcar o caráter

171 ritual dos banquetes. Além de servido em grande quantidade, o repasto oferecido aos devotos é marcado pela diversidade de opções de misturas. As variedades de carnes servidas, além da presença de verduras, legumes e raízes, demarcam o caráter extraordinário dos empreendimentos festivos. De fato, o arroz e o feijão não são apenas os elementos essenciais da refeição básica dos almoços e jantares urucuianos. Eles também evocam o cotidiano, que muitas vezes é confundido com o mais trivial. 9 O destaque oferecido às misturas no cardápio festivo, nesse sentido, indica a fartura dos banquetes. Já escrevi noutro lugar que os jantares de encerramento de uma festa de folia não podem ocorrer sem a carne de gado, marca de situações extraordinárias (Pereira, 2011). Devo acrescentar, contudo, que, além dela, as outras misturas também contribuem para demarcar o tempo especial das festas, na medida em que são servidas simultaneamente aos convidados. Comer numa folia é comer ao mesmo tempo tudo o que se pode comer normalmente no dia a dia, mas em tempos espaçados, aos poucos. Na prática, a diversidade das misturas implica oferecer opções àquele que come (que pode escolher esta ou aquela carne em detrimento de outra, ou pode se servir simultaneamente das carnes de gado, frango, porco ou peixe). Nesse sentido, o idioma simbólico estruturado pela oposição entre comida e mistura também se articula ao estabelecimento de formas específicas de relações sociais. A alimentação cotidiana, realizada em família e sempre marcada por reafirmações de simplicidade ( é comida simplezinha, viu? ), se opõe à refeição festiva, permeada pela diversidade e pela grande quantidade de alimentos oferecidos. É como se as várias opções de mistura (que agrega, relaciona) abrissem espaço para a diversidade de gostos diferentes, associados a pessoas ( o gosto de cada um ), gêneros e grupos sociais distintos. A rigor, para agradar os convidados, um banquete festivo precisar levar em conta, por exemplo: o gosto daqueles que preferem a carne de frango à carne de gado (geralmente é o caso de algumas mulheres); a opção de outros que evitam comer carne de porco fora de casa; os problemas de saúde de um velho, impossibilitado de consumir comidas mais pesadas, etc. Nesse sentido, o sucesso de uma refeição coletiva não é medido apenas pelo oferecimento de uma grande quantidade de alimentos, mas também pela diversidade de misturas servidas numa única festa, capaz de agradar o universo também diversificado de convidados. 9 DaMatta (1988) anota esse ponto na sua interpretação da expressão bem brasileira, também observada em Urucuia, do fazer o arroz com o feijão, que significaria fazer o básico, o convencional.

172 Figura 6.3. A mesa durante os agradecimentos. Fotografia do autor A oposição entre comida e mistura pode igualmente ser notada no caráter altamente ritualizado dos banquetes, em especial nos momentos em que é efetuada a seção de agradecimentos ocorrida após a refeição. Em contraposição à conspicuidade do que é oferecido, os agradecimentos da janta são marcados por uma ostensiva frugalidade. Se no momento crucial das refeições os pratos, as panelas, as tigelas, os potes e as garrafas estão cheios e espalhados sobre a mesa, durante a saudação eles são substituídos pelo prato vazio, pela garrafa com água, pelo pote de farinha e por uma vela acesa. Nas exegeses nativas, o prato vazio, a farinha e a garrafa são signos do pão e da água, os elementos mais simples e básicos da alimentação humana, segundo os devotos. 10 Trata-se, então, de considerarmos o agradecimento como que voltado ao tema da escassez, valorizando a ideia de alimento capaz de matar a fome. Vivida como eminentemente festiva e coletiva, com o paladar se sobrepondo à mera alimentação do corpo, a refeição é, no entanto, agradecida como o pão nosso de cada dia. Ou, como dizem os versos do 10 A vela acesa, por sua vez, indica o canal de comunicação entre o alto e o baixo, apontando também para os agentes rituais o foco de suas atividades (a presença da bandeira do santo acima da mesa reforça esta interpretação) (Pereira, 2004; 2011).

173 cantorio ritual: Dando água a quem tem sede/dando pão a quem fome. Em certo sentido, poderíamos dizer que, numa verdadeira inversão simbólica, o caráter eminentemente coletivo do empreendimento é destacado tendo em vista a frugalidade dos elementos observados sobre a mesa. Um outro aspecto do ritual deve ser levado em consideração. O que é exposto nos agradecimentos são alimentos marcados pelo poder de mediação simbólica. A farinha, a pimenta e a água são os ingredientes que ligam os elementos do prato. São eles que relacionam o arroz e o feijão (cozidos), e ambos às misturas (invariavelmente elas também são cozidas). O sentido dos ingredientes nos agradecimentos, além de apontar para o mito da fome original (Sahlins, 2007), expresso nas ideias de pão e água, também parece codificar, como verdadeiros símbolos dominantes, o valor da comida relacional. São as relações entre os homens, mediadas pelas figuras sagradas, que importam e são destacadas. Não por acaso, é diante da água, da farinha e da pimenta que se agradece aos ofertantes da comida (santos e imperadores) e seus auxiliares (cozinheiras e serventes), responsáveis pela refeição. O sentido dos rituais parece agrupar conjuntos de ideias por meio das quais a escassez surge não apenas como a fome pautada pela falta das necessidades básicas, mas como a ausência das relações de complementaridade social e cosmológica (Contins; Gonçalves, 2009). A água, a farinha e a pimenta evocam a fome, como as formas mais básicas de combatê-la, mas simultaneamente lembram que somente através das relações entre sujeitos igualados por sua condição humana e submetidos ao poder divino pode emergir a fartura. A universalidade e a diferença A fartura implica também a distribuição indiscriminada de alimento para o povo da festa que comparece a um banquete coletivo. Não basta, pois, que a comida seja muita ou variada; ela precisa ser também bem distribuída. Trata-se, então, de avaliar sua universalidade, na medida em que o aspecto de renascimento e renovação do banquete festivo só se completa quando a conspicuidade e a diversidade de misturas se associam à livre distribuição (Bakhtin, 1999). Para alcançar seu papel transformador, a refeição deve obrigatoriamente atender e reunir todos os convidados. Não há nada mais preocupante para um imperador urucuiano do que o risco de ver sua festa fracassar por não conseguir satisfazer as vontades dos seus participantes. Por isso a insistência com que eles chamam os convidados para retornar fre-

174 quentemente à mesa, solicitando ou quase ordenando que repitam mais uma vez o prato que acabaram de comer. Como regra, nem toda coleção é feita para ser exclusivamente guardada e exposta ao olhar. Algumas precisam ser destruídas ou distribuídas. Um imperador de Urucuia explicava o significado da distribuição: Não é todos os imperador que faz isso, não. Tem uns aí que faz a janta, mas só serve na mesa dos folião. É maneira deles economizar na saída, né? Não gastar os recursos da festa, né? Mas isso não tá certo, não. Meu sistema aqui é diferente. Os folião come na mesa, mas quem quiser pode servi também. Depois que eles levanta tá aberto pra todo mundo. Pode servi à vontade, porque, graças a Deus e os Senhor Santo Reis, nunca faltou nada pra ninguém. A gente tá fazendo uma coisa de devoção, né? A gente recebeu um milagre, nóis tamo cumprindo um voto. Não pode ficar guardando. É pouquinho que a gente dá, mas sempre sobra, graças a Deus. (João Bertoldo, entrevista, Urucuia, Famaliá 11 ) A mesa desempenha um papel importante nesse processo. Centro das atenções, ela delimita o espaço do banquete, atraindo para o seu entorno toda uma coletividade. A mesa instaura a sociabilidade festiva, transformando-se num local de brincadeiras, encontros e conversações. Na medida mesma em que reforça o caráter coletivo e ritual das refeições, ela estabelece a oposição ao mero gesto individualizado e cotidiano de comer (Gonçalves, 2004). A mesa ajudaria a desfazer algumas diferenças e cancelar as mais drásticas oposições. Os pratos e copos sobre ela parecem superar o individualismo simbólico, propondo um compartilhamento formal que não admitiria nenhum tipo de individualidade; totalmente uniformes, eles são, por princípio, igualmente distribuídos a todos os convidados. Ao lado da comida em comum, tais elementos também estão por detrás do gesto coletivo e certamente sagrado de alimentar-se. Sua presença implica o reconhecimento de que todos os que estão sentados a sua volta são partes de um mesmo todo, que se transforma com as refeições festivas. Ali, os objetos colecionados em nome dos deuses e dos imperadores são consumidos, ingeridos para completar seu papel mediador até alcançar o ponto mais íntimo do indivíduo, no seu corpo; onde, tal como diriam Hubert e Mauss, em outro contexto, estaria havendo 11 As folias urucuianas foram objeto de registro fonográfico e visual através da atuação da ONG paulistana Cachuêra!. O trabalho de pesquisa ocorreu entre os meses de janeiro e fevereiro de 1996, tendo como resultado, entre outras coisas, a produção de um valioso conjunto de entrevistas. O material me foi muito útil, sendo gentilmente cedido pela ONG para a constituição da minha pesquisa etnográfica.

175 uma comunhão alimentar que leva ao mais alto grau de intimidade com o sagrado, com Deus e com a sociedade (1999, p. 183). Materializando uma espécie de communitas festiva (Turner, 1974), a mesa, no entanto, também implica algumas hierarquizações. O acesso a esse espaço sagrado parece parcialmente controlado durante as folias. A mesa institui as regras da redistribuição e atualiza as relações hierarquizadas que os indivíduos mantêm entre si durante as festividades. Ela manifesta concretamente certas distinções, criando gradações entre o mundo dos anfitriões (os imperadores) e o de todos os seus convidados (os foliões e os não foliões). Sua presença não produz apenas a comunhão entre iguais (Van Gennep, 1978), mas sempre sujeitos mais iguais do que os outros. A estrutura e a antiestrutura, nesses termos, parecem se concretizar nas práticas das mesas (Turner, 1974). No mundo das folias urucuianas, essa correlação entre hierarquia e igualdade pode ser observada pelos modos como as mesas são apresentadas ao longo dos festejos. Há, a rigor, pelo menos quatro maneiras distintas de se distribuir o alimento. Essas quatro possibilidades conformam uma espécie de sistema de mesas urucuiano que articula hierarquias e distinções de todo gênero. Listo, a seguir, esses modelos: a) As festas sem mesas. Em ocasiões cotidianas os urucuianos costumam se servir diretamente no fogão (símbolo da intimidade do grupo doméstico). Há, claro, exceções, em que isso se repete mesmo em situações festivas. Em todo caso, esses são exemplos que confirmam as regras de etiqueta nos momentos da alimentação coletiva. Numa ocasião, eu acompanhava uma festa dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Durante o almoço, não havia sido montada nenhuma mesa para os convidados. A dona da casa fazia questão de se desculpar, argumentando que seus hóspedes não precisavam fazer cerimônia na hora de comer, porque, na sua festa, o pessoal tem que se sentir à vontade. Ela contava, inclusive, que um visitante de Montes Claros não entendia muito bem aquilo que ela chamava de sistema urucuiano. Ele esperava a comida à mesa e não conseguia pegá-la no fogão. Para os urucuianos, dizia ela, pegar comida no fogão é uma forma de ser simples, de um lado, e ser de casa, de outro. O fogão, pois, adquire função simbólica importante. Lugar onde a natureza vira efetivamente cultura (Lévi-Strauss, 2006), ele é ao mesmo tempo tabu e communitas familiar (Turner, 1974). Aproximar-se do fogão é se aproximar da intimidade de uma casa (uma das formas mais convencionalizadas de se narrar proximidades é dizer que o visitante

176 comia junto com nós sentado no fogão de lenha ). Não por acaso, ele está localizado no espaço mais ao fundo da residência. A mesa, em oposição ao fogão, é, nesse sentido, ao mesmo tempo hierarquia e classificação. O cerimonial associado a ela implica a regulação e a separação do mundo exterior. b) A mesa dos foliões. Costumeiramente, as festas de folia contam sempre com uma mesa especialmente montada para os foliões. Para muitos, isso é uma obrigação e uma forma de retribuir à altura o serviço prestado por esses personagens para todo o andamento dos empreendimentos. Como vimos, o acesso à mesa dos foliões é regulado. Os cantadores e tocadores se servem primeiro (ao lado de seus parentes próximos e alguns amigos). Muitas vezes, os demais convidados só podem participar do jantar depois que os foliões terminaram suas refeições. O controle do acesso é exercido pelos imperadores, pelos foliões e pelos próprios convidados. Numa festa que acompanhava em Urucuia, fui convidado a me sentar à mesa dos foliões pelo imperador. Sem saber que eu chegava a convite do patrocinador dos festejos, um dos foliões falou que eu não deveria estar ali, mas, sim, do lado de fora, junto aos demais convidados que esperavam sua hora de comer. Antes de ser avisado por outros dos seus companheiros de que eu havia sido inserido pelo próprio imperador, ele arrematou: O povo só come depois dos folião. Os próprios convidados podem se sentir intimidados a se sentar com os foliões. Numa ocasião, respondendo aos convites insistentes de um folião para se servir, uma mulher dizia: Mas eu só como depois dos foliões. O controle do acesso às mesas pode ser flexibilizado pela ação algo personalista de alguns dos personagens mais proeminentes da festa. Os convites expressos por eles são, então, importantes vias de acesso às mesas, instaurando um sentido de intimidade onde havia formalidade e distinção. O exercício dessas prerrogativas pode estabelecer certas tensões. Numa festa, vi um capitão urucuiano discutir com a organizadora da festa porque esta havia afastado um convidado da mesa, argumentando que ele, primeiro, deveria esperar os foliões terminarem de se servir, arrematando: Se sobrasse, comia o resto. Ao lado da distinção oferecida aos foliões, também pode haver significativas disputas pelo controle da distribuição dos alimentos. c) A mesa dos foliões e o barracão. Em festas nas quais os imperadores esperam a chegada de muitos convidados (como o caso do festejo da Fazenda Alegre), eles podem agregar à mesa dos foliões um barracão,

177 construído no fundo do terreiro, onde alguns serventes servem os convidados diretamente do balcão. Embora demonstre algum respeito em relação aos convidados não foliões (eles não precisam esperar para comer), a separação entre a mesa e o barracão pressupõe também maior distinção entre os foliões e demais convidados: nos espaços onde se come (os foliões ficam mais perto da casa, os demais convidados nos fundos), nas formas de servir (na mesa os hóspedes se servem, enquanto no barracão eles são servidos) e, às vezes, no próprio cardápio, mais variado no caso das mesas e menos no barracão. d) A mesa dos foliões e a mesa do povo. A montagem de duas mesas é o exemplo máximo da boa distribuição da comida. A primeira, a dos foliões, fica geralmente localizada ao lado da casa, numa varanda contígua à cozinha da residência. A segunda mesa, conhecida como a mesa do povo, por sua vez, é montada no terreiro em frente à moradia, sob os barracões especialmente construídos para as ocasiões. A comida servida nos dois ambientes é, de modo geral, a mesma, e os procedimentos na hora de se servir também. Por outro lado, a proximidade e a distância da cozinha indicam uma evidente hierarquização e distinção entre aqueles mais próximos e que precisam ser louvados (entre os quais são incluídos os foliões) e os mais distantes, meros convidados. Num sentido mais amplo, ambas as mesas configuram dois espaços distintos de sociabilidade festiva. Apenas os imperadores e alguns serventes parecem circular livremente entre os dois locais. As formas de distribuição de alimentos compõem um sistema; cada uma delas só faz sentido se articulada com as outras. Num polo extremo encontramos, então, a ausência de mesa, que é ao mesmo tempo a expressão de maior intimidade e de maior simplicidade ( a festa é pobrezinha, mas ninguém faz cerimônia ). As etiquetas se tornam menos rígidas, os elementos que separam os convidados são mínimos e todos se servem diretamente do fogão. A intimidade, no entanto, implicaria uma perda do prestígio festivo: a festa sem mesas será considerada mais pobre. Ao seu lado, numa zona intermediária, encontramos folias nas quais se observa a solidão da mesa dos foliões, onde há alguma separação e hierarquia. O que está em jogo nesse caso não é a quantidade do alimento servido, mas as regras que estabelecem a distinção: nesse local só se alimentam os cantadores e alguns convidados importantes. É de se notar, também, que a mesa dos foliões institui certos momentos em que as regras podem ser parcialmente quebradas por relações

178 de amizade, vizinhança e parentesco que embaralham e, às vezes, tensionam o cerimonial (todos os presentes podem, de alguma maneira, convidar alguém de fora para se servir à mesa). Também localizada numa zona intermediária, vemos as festas nas quais se constata a existência de uma mesa e de um barracão. Aqui a intimidade começa a dar lugar à força dos festejos, quando se entende que a festa pode ser grande demais e atrair muita gente para sua realização. A distinção aumenta quando foliões e não foliões são separados. Mas, paradoxalmente, o uso da mesa e do barracão também tenta estabelecer certa equivalência (as pessoas podem esperar menos tempo para comer). Por último, no polo oposto, há as festividades que instituem duas mesas paralelas, a dos foliões e a do povo. Sua presença caracteriza festas extremamente fortes, ao mesmo tempo quase totalmente públicas, quando pessoas de fora, desconhecidas e distantes chegam para festejar. A distinção se radicaliza por meio da replicação dos espaços (as duas mesas são praticamente idênticas em tudo), que, por outro lado, também separam hierarquicamente os foliões e os não foliões, em função de sua proximidade com os imperadores (a mesa dos foliões fica mais próxima da casa). 12 Figura 6.4. A mesa do povo. Fotografia do autor 12 É preciso apresentar um caso etnográfico. Estava em São Francisco, junto com outro pesquisador (Wagner Chaves), a serviço do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). Acompanhávamos a realização de uma Folia de São José. Durante o jantar foi oferecido após o giro de um único dia, não havia mesas e sequer pratos para os convidados. Todos se alimentavam num mesmo tacho de comida. A suprema intimidade, contudo, também era explicada em termos de excessiva simplicidade. Em ambos os aspectos, os moradores supunham que eu e meu colega pesquisador não compartilhávamos daquele momento. Fomos os únicos convidados a quem foram oferecidos pratos para o alimento festivo.

179 Um diagrama simplificado desse sistema de mesas pode ser entendido a partir de dois eixos que estabelecem correlações entre duas noções centrais: mais ou menos intimidade e mais ou menos força (que, em termos nativos, expressa riqueza, poder político, social e simbólico). O sistema se completa e se torna ainda mais complexo à medida que inserimos outros elementos, tais como a variedade dos pratos, a diversidade da comida, etc. Folia sem mesa A mesa dos foliões A mesa dos foliões e o barracão Duas mesas Total intimidade e Bastante intimidade e Pouca intimidade e Pouquíssima pouquíssima força alguma força bastante força intimidade e (simplicidade) força máxima O sistema das mesas nas folias urucuianas. Em certo sentido, as configurações de mesas urucuianas também expressam as várias possibilidades de controle e classificação, por meio de uma série que vai da maior pessoalidade ao quase total anonimato. Segundo as leis básicas da hospitalidade (Pitt-Rivers, 1973), nas recepções cabe sempre ao anfitrião ordenar o estrangeiro que chega para visitar. Os procedimentos visam evitar conflitos latentes, decorrentes do perigo associado à entrada daqueles que vêm de fora. A refeição, em particular, desempenha um papel central: ao convidado deve ser garantido o lugar de precedência, e ele deve comer em primeiro lugar. A precedência, porém, atualiza uma relação de poder: é o anfitrião quem define o local onde o convidado deve ficar. O repasto festivo não é apenas uma forma de comunhão, mas também uma maneira de ordenação do visitante, daquele que vem de fora para adentrar um espaço doméstico e familiar. O controle tem como contrapartida a responsabilidade de quem recebe os convidados. O sistema de mesas não se institui numa via de mão única. O controle através dos espaços de alimentação evoca o entendimento de que a festa precisa agradar a todos, senão indiscriminadamente, pelo menos de acordo com suas posições dentro do sistema classificatório. Aqui, as ideias de força e fraqueza ganham relevo. Um convidado não folião, desconhecido do imperador, não vai achar ruim, em princípio, ter de comer a comida do barracão. O que ele vai avaliar é a refeição servida de acordo as convenções básicas destinadas ao seu papel: ter pouca fila, com comida farta, etc. Há que se servir bem, mas sempre em consonância com a posição dos convidados dentro do sistema classificatório compartilhado e de certa forma aceito por

180 todos. Nesse sentido, o sistema de mesas também põe em jogo certos valores relativos ao prestígio dos imperadores e às avaliações da qualidade de sua festa. Se a ausência de mesas, num polo, implica bastante intimidade, mas pouca força, a existência de duas mesas evoca, no polo oposto, muita força e pouca intimidade. O segredo reside no balanceamento e na correta produção de um meio-termo que integre a todos, ao mesmo tempo que produza prestígios e reputações. Saber avaliar de antemão o tamanho da festa pode ser crucial para a constituição das formas de controle e distribuição dos alimentos nela servidos. Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/UnB, BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Tese de Doutorado em Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, 2008, 203p. BOAS, Franz. The Handbook of American Indian Languages, v. 1. Washington D.C.: Government Printing Office, BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas: Papirus, Sacerdotes de viola: rituais religiosos do catolicismo popular em São Paulo e Minas Gerais. Petrópolis: Vozes, CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro: José Olympio, CLIFFORD, James. Colecionando Arte e Cultura. Revista do Patrimônio, n. 23, p , CONTINS, Márcia; GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A escassez e a fartura: categorias cosmológicas e subjetividade nas festas do Divino Espírito Santo entre imigrantes açorianos no Rio de Janeiro. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; GONÇALVES, José Reginaldo Santos (orgs.). Ritos e sociabilidades festivas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009, p DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

181 DOUGLAS, Mary. Implicit Meanings. Londres: Routledge, GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A fome e o paladar: a Antropologia nativa de Luis da Câmara Cascudo. Estudos Históricos: Alimentação, v. 33, p , Rio de Janeiro, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV, jan.-jun Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Coleção Museu, Memória e Cidadania. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Iphan, Departamento de Museus e Centro Culturais, HUBERT, Henri; MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a natureza e função do sacrifício. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1999, p LÉVI-STRAUSS, Claude. A origem dos modos à mesa. Mitológicas 3. São Paulo: Cosac Naify, MAHIAS, Marie-Claude. Cocina. In: IZARD, Michael; BONTÉ, Pierre (orgs.). Diccionario Akal de Etnología y Antropología. Madri: Akal/Básica de Bolsillo, 2005, p Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, PEREIRA, Luzimar Paulo. Os andarilhos dos Santos Reis: um estudo etnográfico sobre Folia de Reis, bairro rural e sistemas de prestações totais. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2004, 92p.. Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre folias em Urucuia, Minas Gerais. Rio de Janeiro: 7 Letras, PITT-RIVERS, Julian. El lugar de la gracia en la Antropologia. In: PITT-RI- VERS, Julian; PERISTIANY, John George (orgs.). Honor y gracia. Madri: Alianza, Tres ensayos de Antropología estructural. Barcelona: Anagrama, POMIAN, Krzystof. Verbete Coleção. In: RUGGIERO, R. Enciclopédia Einaudi, 1: Memória-história. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, SAHLINS, Marshall. Cultura na prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, SIMMEL, George. A Sociologia da refeição. Estudos Históricos, v. 33, p , Rio de Janeiro, TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas: a ação simbólica na sociedade humana. Niterói: EdUFF, O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.

182 VEIGA, Felipe B. A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, Goiás: polaridades simbólicas em torno de um rito. Tese de Mestrado. Niterói: UFF, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e Ciência Política, WEINER, Annette. Inalianable Possessions: the Paradox of Keeping-While-Giving. Berkeley: University of California Press, 1992.

183 7. UMA BIOGRAFIA DO KÀJRE, A MACHADINHA KRAHÔ 1 Ana Gabriela Morim de Lima As músicas do krahô não foram inventadas, que nem as do cupe. Esse mito do kàjre não é uma lenda, ele é história. E a prova disso são as próprias músicas do kàjre. (Renato Yahé) 2 O machado cantor O kàjre (kaj = machado; re = dimin. masculino na língua Krahô) é uma machadinha de pedra polida em formato semilunar, presa a um cabo cilindrico ornamentado com longos pendentes de algodão trançado (chamado hacrer). Alguns Krahô contam que os antigos costumavam encontrar essas machadinhas de pedra nas roças e cachoeiras, confeccionadas por outros povos, provavelmente seus antepassados. Entretanto, na maioria das vezes em que perguntamos sobre as origens do kàjre não é essa a explicação habitual dada pelos Krahô. Em resposta a essa indagação, eles evocam um extenso corpus de mitos que narram os sucessivos roubos e conquistas da machadinha e que, como veremos mais à frente, se misturam com acontecimentos recentes da contemporaneidade Krahô. Evocam também os cantos do kàjre, que foram pegos de seus antigos donos, seres desconhecidos, certos animais e plantas que nos tempos míticos possuíam e cantavam com ele. 1 Gostaria de agradecer a Martinho Penõ, Martins Zezinho Ikrehohtàt, Jorge Henrique Melo, Julia Franceschini, Julio Cesar Melatti, Júlio César Borges, Fernando de Niemeyer e Fernando Schiavini pelas contribuições diretas e indiretas a este artigo, que constitui apenas mais uma versão da história do Kàjre. Neste sentido, ele não tem nada de original, na medida em que incorpora muito das ideias e palavras desses autores. E agradecer também aos editores do livro, pelo cuidado na correção deste artigo. 2 Renato Yahé foi o responsável pelas correções ortográficas das palavras da língua krahô.

184 O kàjre media uma série de relações com a alteridade, ao mesmo tempo que constitui o que há de mais interno e unicamente Krahô. Está presente em momentos de festa e alegria, sendo usado pelos cantores para animar o povo, motivando atividades como caçadas, trabalho na roça e especialmente o amjikĩn, a festa ou ritual, expressão que significa literalmente alegrar-se. A machadinha representa a união das duas metades, dizem os Krahô, se referindo aos partidos Wacme jê (verão) e Catàm jê (inverno) que governam a aldeia, cada qual em sua respectiva estação. O cantor canta junto com o kàjre nos rituais que marcam a passagem da estação chuvosa para a seca, e vice-versa. Embora à primeira vista não seja um instrumento musical propriamente dito, o kàjre está ligado a um conjunto de cantos específicos. Ele forma um grupo de objetos musicais, junto com aqueles chamados os companheiros do kàjre: o cuhtoj (maraca, principal instrumento percurssivo usado pelo cantor), o xy (cinto usado pelo corredor e pelo cantor, ornamentado com pequenas cabaças que produzem um som de chocalho), o kô po (bastão de madeira segurado pelo cantor, também ligado à palavra, é uma antiga arma de guerra, ornamentada com sementes, miçangas ou pequenas cabaças que produzem som de chocalho), o pàtwy (buzina tocada pelos homens), o pyrij jakà (apito de madeira em forma fálica tocado pelos jovens cantores), o crat re (pequena cabaça usada pelas jovens cantoras), o hahĩ (faixa de algodão, similar a uma tipoia de carregar criança, usado pela jovem considerada a melhor cantora da aldeia), e o cuhkõn re (apito de cabaça tocado pelos homens). Para os Krahô, o kàjre tem força própria: ele conduz o cantor, e não o contrário (Schiavini, 2006, p. 156). Ele começa a ganhar vida ao ser todo pintado de urucum pelo cantor e segurado pelo cabo com o braço levantado ou cotovelo dobrado, com os pendentes de algodão caindo ao longo do corpo. Com esses movimentos o cantor aciona o objeto, corporificando uma série de cantos. Apenas homens cantam com o kàjre (embora numa das versões do mito eles sejam ensinados a uma mulher). E embora qualquer pessoa possa ter acesso aos cantos do kàjre, não é qualquer um que sabe cantá-los, apenas alguns poucos especialistas rituais considerados grandes cantores. Martins Zezinho Ikrehohàt, por exemplo, cantor do kàjre na aldeia Pedra Branca, costuma se referir ao longo aprendizado dos cantos e histórias da machadinha como fazer estudo com o kàjre, aprender com ele. 3 3 Embora a história da machadinha seja bastante conhecida, ainda não foi dada a devida atenção aos seus cantos, permanecendo a necessidade de um estudo mais aprofundado dessas artes verbais e musicais, assim como de suas formas de transmissão; o que abriria novas portas para a compreensão do objeto, mas depende de pesquisas de campo futuras.

185 Figuras 7.1, 7.2 e 7.3. Martins Zezinho Ikrehothàt cantando com o kàjre. Fotografias de Ana Gabriela Morim de Lima Existem diferentes versões míticas que narram as conquistas e reconquistas do kàjre nas viagens do herói Hartãt ao extremo do mundo. Como coloca Lévi-Strauss (1955; 1958), o mito é o conjunto de todas as suas múltiplas versões que devem ser lidas sobrepostas umas às outras. A diferença é inerente ao mito, não existe uma versão autêntica ou mais verdadeira: um mito é sempre a versão de uma versão, e não do seu original. O mito não possui início, meio ou fim, começa em algum lugar e termina quase que à vontade do narrador. Apresento a seguir duas traduções sintéticas de diferentes versões, buscando extrair alguns princípios estruturais nelas presentes. A versão narrada por Yavu-Boaventura a Harald Schultz (1950, p. 118, 119) é resumida da seguinte forma pelo último: Havia uma tribo valente que possuía um machado de pedra, koieré. Essa tribo estava em guerra com os Królkamekrá. Numa das lutas o índio que usava o machado como terrível arma de guerra foi morto por uma flecha arremessada de um esconderijo. O índio Królkamekrá era casado; apaixonando-se por outra mulher, abandonou a primeira. Ao mudar-se para a casa de sua nova esposa, esqueceu-se do machado, que ficou dependurado na parede de palha, em cima do seu catre de varas. À noite o machado começou a falar: Intxê (mãe), vamos passear no pátio. A mulher levou o machado consigo ao pátio. O machado começou a cantar, ensinando-lhe muitas canções. Um rapaz estava acordado e ouviu o canto estranho, altas horas da noite.

186 Levantou-se e viu que era o machado que ensinava o canto à mulher. O irmão do primeiro dono do koieré não se conformava com a morte dele e a perda do objeto precioso e resolveu enviar um mensageiro para saber do seu paradeiro. Chegando à aldeia o emissário foi levado à presença do chefe, que mandou chamar o índio que matara o dono do machado. O guerreiro respondeu altivo que só entregaria o koiré àquele que o vencesse na corrida. O vencedor poderia matá-lo e levar o machado. De volta à aldeia, o enviado comunica o que ouvira. Revoltados, os índios resolvem retomar o machado pela guerra. O chefe manda que os índios confeccionem muitas flechas. De madrugada partem oito índios e se escondem. Outros seguem. Deixam entrar no seu esconderijo os índios com o machado. A luta é intensa. O homem em cujo poder está o machado foge, sendo perseguido pelo melhor corredor, que o alcança em breve. O perseguido tropeça, metendo o pé num buraco de tatu, e cai. Logo é rodeado e morto. Tomam o koieré, entregando-o ao irmão do primeiro dono. (Schultz, 1950) Já a versão narrada por Craté e registrada por Júlio César Borges e Fernando de Niemeyer em 2010 difere da de Yavu-Boaventura, trazendo outros elementos para a reflexão. 4 A seguir a versão trabalhada pelos autores e reeditada por mim, de maneira a destacar as passagens que nos interessam neste ensaio: Hartãt vivia distante em sua aldeia. Naquele tempo, os mehĩ mais novos iam pra caçada mas voltavam sem nada. Não chegavam com carne. Onde Hartãt vivia tinha carne. [...] Um dos rapazes que havia saído para uma caçada no mato se desgarrou dos mentuajê [jovens caçadores que já passaram pelos principais rituais de iniciação masculina] e lá pelas tantas, longe, ouviu uma cantiga de Hartãt... ao longe. Ele pensou: será que é verdade? Mas não fez nada, ouviu tudo de longe; ele escutava, mas não respondia. Dizem que ele era wayacá. Um dia resolveu procurar aquele que cantava, depois de tanto sua aldeia acusá-lo de feitiçaria e de mentiroso. Foi até onde estava Hartãt e falou com ele. Hartãt escutou e depois reuniu todo seu povo. Ele falou: o wayacá quer saber dos lugares que eu canto, que eu conheço. Logo, um grande grupo de mentuajê se prontificou a ir. Saíram a caminhar pelo Cerrado rumo ao pé do céu. 4 Esta versão foi narrada por Craté da aldeia Serra Grande durante a VIII Feira Krahô de Sementes Tradicionais, em setembro de 2010 (Niemeyer, 2011; Borges; Niemeyer, 2012).

187 Andaram por um longo caminho entremeado por paradas de Hartãt para ensinar seus cantos e mostrar os lugares, os bichos e as plantas que conhecia. [...] O caminho de ida também reservou muitos perigos. Árvores que expelem fogo e que matam, pântanos alagadiços, fortes ventanias e enormes jacarés. Mas o wayacá, se transformando em animal, conseguia ver o modo de superá-los e foi seguindo Hartãt e seus mentuajê. Hartãt então disse que já estavam chegando ao Khoikwakhrat, o pé do céu. Andaram e arrancharam num lugar. De tarde, jatobá cantou sua cantiga. Os mentuajê acharam que era gente e começaram a comentar um com o outro. Hartãt lhes advertiu: Calma aí. Silêncio! Agora nós entramos na terra em que todos os bichos e até os paus cantam. Não é mehĩ, não. É o jatobá que está lá cantando. Alguns ainda comentavam baixinho e Hartãt lhes advertiu novamente: Silêncio! Quando bicho ou pau canta assim, vocês não respondam; fica só ouvindo direito pra saber cantar quando a gente voltar. Vocês têm que escutar o que o bicho tá cantando. Escutaram, pegaram a cantiga do jatobá e foram caminhando. [Da mesma forma procederam com o mambira, uma arara-preta e outros animais.] [...] Hartãt: Agora nós vamos lá pra ponta onde tem o kàjre o machado-cantor. Arrancharam perto de onde ficava o kàjre. Anoiteceu. Kàjre começou a cantar e cantou até de manhã. Cantava cantiga muito bonita. Agora vocês vão ficar. Vou lá saber do dono do Kàjre. Se ele me der um a gente leva; se não arrumar, também não tem problema. Vocês escutaram. Kàjre é muito respeitado. Ele canta desse jeito. O povo ficou esperando. Ele chegou lá e o dono do kàjre estava em pé. Dizem os antigos que então kàjre falou: Por onde você andou sumido? Mas você sempre lembrou de mim, e então cá você chegou. Aqui eu te esperava. E Hartãt: eu cheguei aqui, onde está você, que é pra você me arrumar um Kàjre. O dono do Kàjre ficou a pensar e depois falou: posso te arrumar, mas não vou te dar agora não; só amanhã de manhã que vou te dar, ainda vou cantar até de manhã. Mas quando você voltar pra sua aldeia, o kàjre não pode ficar só guardado, dependurado. Aí, anoiteceu e ele começou a cantar de novo. Aí, ele foi. Tá bom. Você quer, então vou te dar um. Jogou um bem no peito dele e ele pegou. Olha, é o seguinte: quem for usar, seja uma mulher, não pode por a mão em gordura, não pode por a mão em mel, nem em semeação ou caça não pode ter a mão breada. Tem que ser uma pessoa da mão asseada e que não seja ciumenta. Tem que saber ouvir,

188 não pode maldizer nem brigar. Tem que dormir pouco. Hartãt ouviu, voltou e mostrou o machado para os mentuajê, que se admiraram: é bonito, muito bonito. [...] Pegaram os cantos do kàjre e aí, viajaram, viajaram, viajaram e anoiteceu. [...] Viajaram e, após muita privação no caminho de volta, chegaram à aldeia com o kàjre e seus cantos. (Borges; Niemeyer, 2012) Enquanto a primeira versão mostra a machadinha como disputa de guerra entre aldeias inimigas (uma corrida de toras com a machadinha), a segunda versão conta que o herói Hartãt a conquistou após uma longa viagem ao extremo do mundo, o pé do céu. Durante a viagem, os guerreiros que acompanhavam Hartãt se encantaram com os cantos que saíam do próprio kàjre, cujo guardião era Xàj, o pica-pau (Schiavini, 2006, p. 155). Em ambas as versões o kàjre é mais do que um simples objeto, ele possui perspectiva de sujeito, como nos mostra claramente a segunda versão de Crate: Agora nós vamos lá pra ponta onde tem o kàjre o machado-cantor. Arrancharam perto de onde ficava o kàjre. Anoiteceu. Kàjre começou a cantar e cantou até de manhã. Cantava cantiga muito bonita. São esses cantos que são apropriados através do kàjre, e neles parece residir a importância central da posse sobre a machadinha: aprender os cantos para animar o povo, fazer a festa. Por isso, como dizem os Krahô, ele não pode ficar apenas guardado ou pendurado no telhado, deve estar sempre em movimento, nunca parado. Enquanto a primeira versão ressalta que é o kàjre, ele mesmo, quem ensina os cantos, na segunda quem o faz é o seu dono. A noção do objeto como pessoa e, mais do que isso, como agente ritual, também fica clara nas prescrições cerimoniais seguidas pelo cantor acerca da machadinha. Antes de começar a cantar, o cantor pinta o kàjre com urucum, da mesma forma que sua parente pintou seu próprio corpo, que ganha cor avermelhada e vibrante, signo de beleza para os Krahô. Para cantar com o kàjre, conta o mito, o cantor não pode pegar em gordura, em mel, em semeação ou caça, deve ser asseado e não pode ser ciumento, deve saber ouvir, dormir pouco e não pode brigar. Essa ações descritas no mito remetem a algumas práticas de resguardo que uma pessoa deve seguir no caso de doença, parto, luto (entre outras situações) de parentes próximos, aqueles cujos corpos estão intimamente ligados pela troca de fluídos, substâncias, cuidados. Podemos dizer que o cantor e a machadinha vão se aparentando, pela continuidade criada entre seus corpos e vozes. Na primeira versão de

189 Yavu-Boaventura, o machado trata a mulher que o possui como mãe : À noite o machado começou a falar: Intxê (mãe), vamos passear no pátio. A mulher levou o machado consigo ao pátio. O machado começou a cantar, ensinando-lhe muitas canções. A partir da leitura dessas versões, é possível destacar alguns princípios gerais presentes na mitologia Jê de maneira mais ampla, que nos informam sobre as concepções Krahô acerca da propriedade dos bens materiais e imateriais, suas noções próprias de invenção, produção e circulação do conhecimento. Em primeiro lugar, a experiência da viagem, a ideia do deslocamento por caminhos na maioria das vezes tortuosos. Cabe lembrar que o processo de sedentarização dos Krahô é recente. Antigamente eles eram povos seminômades, que organizavam longas expedições de caça e coleta, viviam tempos em andanças dentro do mato. As viagens às cidades também constituem desde os primeiros contatos a maneira através da qual os Krahô têm acesso às mercadorias dos brancos. Grande parte da mitologia krahô (e amazônica de forma geral) conta sobre a origem de certos bens, práticas e saberes, ressaltando que a apropriação é resultado desses deslocamentos por espaços- -tempos distintos, onde moram outros povos, humanos e não humanos. É preciso, portanto, percorrer esses caminhos desconhecidos que levam para fora da aldeia, pelo meio da floresta, adentrando outros universos como o mundo das águas, do céu, de povos inimigos e dos brancos. Durante as viagens os sujeitos são passíveis de sofrer uma série de transformações e metamorfoses, tão desejadas quanto perigosas, o que também está diretamente ligado às formas xamânicas de conhecer, validar e circular o conhecimento: o ver e o escutar (cf. Borges; Niemeyer, 2012). A figura do emissário ou mensageiro, que diziam os Krahô antigos ser um wayaká ( curador ), é quase uma constante nos mitos que falam sobre o roubo original : Hartãt iniciou sua expedição a pedido de um wayaká; assim como ocorre no mito de origem da Festa da Batata, em que um mensageiro é mandado até a roça e vê todas as plantas virando gente e fazendo a Festa da Batata; ou ainda Tyrkre, que subiu aos céus e pegou os conhecimentos xamânicos junto ao Grande Gavião e seus companheiros Urubus, entre muitos outros exemplos. Os wajaká têm o poder de se comunicar com os espíritos das plantas e animais em sua forma humana, rompendo as barreiras corporais através de suas capacidades transformativas. Eles elaboram um saber sobre esse outro, se apropriando das suas forças criativas, transformando simultaneamente o outro e a si mesmos (Viveiros de Castro, 2002 [1996]).

190 O kàjre media uma série de relações com a alteridade. Não apenas porque, como conta a primeira versão, ele é a razão do embate com uma tribo inimiga, mas porque os Krahô pegaram o objeto e seu conjunto de cânticos de outras agencialidades não humanas o machado-cantor, pássaros, macacos, plantas, os verdadeiros donos do machado que habitavam domínios exteriores aos da sociedade mehĩ. Isto não era do mehĩ, ele pegou (ou aprendeu) com a onça, a planta cultivada, o povo do céu, da água, é uma resposta habitual que o antropólogo recebe ao perguntar sobre a origem de certas práticas culturais. Na verdade, essa apropriação externa daquilo que constitui (e distingue) mais internamente estas sociedades objetos, práticas, cantos, ritos, etc. é um tema central da mitologia Timbira e Jê. Ressalto aqui o modo Krahô de compreender a noção de propriedade e de produção do conhecimento: apropriações e reapropriações, roubos, apreensões ou trocas que apontam, sobretudo, para a necessidade de circulação dos bens e conhecimentos rituais por meio de redes que conectam pessoas, sejam elas parentes, estrangeiros, inimigos, animais, plantas ou mortos (cf. Borges; Niemeyer, 2012). Segundo Borges e Niemeyer (2012), o exemplo do kàjre e de Hartãt ilustra o que os autores denominam não propriedade circulante : se os bens materiais e imateriais possuem seus donos-mestres num mundo de múltiplos domínios, o mestre (especialista ritual) aparece não como proprietário individual de um saber, mas como sujeito-agente que realiza as mediações com a alteridade plural (cf. Fausto, 2008). Ao externalizar seu conhecimento, ele o faz circular, permitindo sua potencial (re)apropriação por outrem. A categoria que condensa essa perspectiva mehĩ é justamente o verbo apakin, pegar ou furtar, categoria acionada pelos Krahô para explicar um aprendizado, uma apropriação individual de um bem de outro. Esta não propriedade circulante, dizem os autores, se deixa ver na experiência ritual, na performance das cantigas (que no fim pertencem às agencialidades não humanas), quando virtualmente estará presente alguém que irá escutá-las e que, se atento, capaz de bem escutar, poderá pegá-las para si, garantindo sua circulação. O conhecimento é fundamentado pela experiência direta, isto é, nas percepções captadas pelos sentidos, sejam eles olfativos, visuais, auditivos ou táteis, que constituem capacidades corporais entranhadas de valores morais e indispensáveis às aquisições de saberes (Carneiro da Cunha, 2009, p. 365). E os rituais são momentos centrais no aprendizado, transmissão e circulação desses conhecimentos, práticas e habilidades. A ação ritual é orientada fundamentalmente para a fabricação dos corpos de pessoas humanas : a

191 noção de artefatual se estende à construção da pessoa, assim como esta informa a concepção de objeto. Trata-se de sujeitos, capazes de assumir um ponto de vista. Possuem agência na medida em que estão inseridos numa rede de relações sociais, o que, no caso ameríndio, não se restringe ao parentesco local, mas se estende para além das fronteiras da aldeia e do social. Pessoas e objetos são, sobretudo, materializações de um conhecimento encorporado, sendo o corpo um modelo da relação com o outro. Parece ser o que os Krahô ressaltam quando se referem ao kàjre como a machadinha que canta, sendo ele mesmo uma extensão corporal das pessoas que com e através dele entoam os cantos adquiridos em lugares e tempos longínquos (Coelho de Souza, 2002; Gell, 1998; Lagrou, 1998, 2007; Viveiros de Castro, 2002 [1992]). A perda do kàjre para o Museu Paulista: mito e história Um fato ocorrido na década de 1940 veio a provocar uma torção na biografia da machadinha, atualizando certos acontecimentos míticos no âmbito da história recente : ela foi levada da aldeia Pedra Branca para o Museu Paulista pelo antropólogo Harald Schultz, e lá permaneceu até 1986, quando foi reivindicada pelos Krahô. A perda e o resgate são uma espécie de reviver do mito, uma demonstração de que mito e história se confundem na cosmologia indígena. Não se trata de dois tempos distintos, mas de uma série de acontecimentos sincrônicos que, se não têm fim como não têm começo nem meio, estendem-se ao cotidiano: vive-se constantemente uma orientação para o devir presente e futuro. As condições nas quais o kàjre foi levado, comprado, trocado ou doado ao Museu Paulista, e posteriormente recuperado, variam de acordo com os atores participantes do processo. A principal fonte histórica e etnográfica utilizada neste ensaio a respeito do caso é a dissertação de Jorge Henrique Teotônio de Lima Melo intitulada Kàjre: a vida social de uma machadinha Kraho (2010). A exemplo do narrado por Jorge Henrique Melo (2010, p. 92, 93), Domingos Crate também informou-me que o machado teria sido trocado por um rifle calibre 22 com o doutor Haroldo, maneira pela qual os índios da Pedra Branca se referem a Harald Schultz. De acordo com o site da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), 5 foi no ano de 1945 que 5 Disponível em:

192 Schultz teria comprado um belo machado de pedra, em forma de âncora e com uma espécie de alça feita de fios trançados de um adolescente em um momento em que a tribo passava fome. E segundo Melatti (comunicações pessoais), os Krahô lhe disseram que quem teria trocado a machadinha foi um Canela de nome Yavu-Boaventura (o mesmo que aparece como narrador do mito do kàjre registrado por Schultz e apresentado anteriormente). Todas as versões seriam justificadas pelo fato de que em situações normais os Krahô não a teriam entregue, não cabendo aqui buscar a mais verdadeira (tal como um mito). Ao traçar o ocorrido não estamos acessando uma visão uniforme e homogênea. Ao contrário, as disputas de opinião e conflitos de interesses entre as principais lideranças Krahô ficarão evidentes quando abordarmos mais adiante o processo de resgate da machadinha. Por hora, tracemos um rápido panorama histórico do Museu Paulista. O Museu Paulista, antigo Museu do Ypiranga, foi inaugurado em 7 de setembro de 1895 como museu de História Natural, dedicando-se à pesquisa etnográfica e às Ciências naturais, sendo a ideia original de construir um monumento à independência do Brasil. 6 Foi com a entrada do diretor Hermann von Ihering em 1895 que o museu conheceu sua fase mais científica, sendo a Antropologia ainda vista como um ramo dos estudos zoológicos e botânicos (Schwarcz, 2005, p ). Em 1917, Affonso de Taunay foi nomeado o novo diretor do antigo Museu do Ypiranga. Em contraposição ao pensamento naturalista e enciclopédico de Von Ihering, o primeiro diretor, Taunay possuía um projeto de caráter mais histórico, permeado por uma ideologia de integração e fortalecimento do Estado nacional (Melo, 2010). Ao longo de sua história ocorreu uma série de transferências do acervo para diferentes instituições, sendo que a última delas foi em 1989 para o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Atualmente o museu possui um acervo de mais de 125 mil unidades, entre objetos, iconografia e documentação textual do século XVII até meados do XX. Um dos maiores colaboradores para a composição do acervo etnográfico do Museu Paulista foi justamente o antropólogo Harald Schultz, responsável pela coleta de 130 coleções que somavam artefatos. Schultz estudou Etnologia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, foi discípulo do Marechal Rondon e de Curt Nimuendajú. Em sua formação na Escola de Sociologia e Política foi orientado por Herbert Baldus, que assumiu em 1946 a coordenação do setor de Etnologia do Museu Paulista, tornando-se respon- 6 Museu Paulista, disponível em:

193 sável pela organização das coleções etnográficas, trabalhando diretamente com Schultz para a aquisição das peças para o acervo. Schultz realizou cinco viagens às aldeias Krahô (1947, 1949, 1955, 1959 e 1965), e em todas elas trouxe objetos para integrar o acervo do Museu Paulista, e foi em sua primeira viagem que Schultz levou a machadinha para o Museu Paulista, como parte de uma coleção de 243 artefatos (Melo, 2010, p ). A machadinha fazia parte de uma coleção heterogênea, que projetava uma história indígena nacional fundamentada na classificação e exposição da cultura material. De acordo com Melo (2010), o kàjre recebeu a descrição de emblema de melhor cantor da aldeia na vitrine do Museu Paulista; segundo Schiavini (2006) ele teria sido identificado como arma de guerra da nação Krahô. Em 1963 a machadinha virou emblema da VI Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), sendo reconhecida como símbolo nacional pelo então presidente da associação Herbert Baldus, que justifica a escolha pelo fato de o machado pertencer a um grupo Jê que seria o único exclusivamente brasileiro (Julio Cezar Melatti, comunicação pessoal). Figura 7.4. Broche VI Reunião da ABA. Fotografia cedida por Julio Cesar Melatti De acordo com Gonçalves (1995), no final do século XIX os museus eram por excelência espaços do conhecimento antropológico, e a formação da Antropologia estava ligada a esses locais. Sendo raro o trabalho de campo, os antropólogos analisavam os objetos e os relatos de viajantes e missionários que eram guardados nos museus. Os objetos ilustravam teorias evolucionistas e difusionistas, que percebiam a cultura como um aglomerado de objetos e de traços culturais. Esse período, chamado de era dos museus por Stutevard (Stocking, 1985, apud Schwarcz, 2005, p. 124), termina nas décadas de 1920 e 1930, e a Antropologia passa à esfera das universidades, ocorrendo um distanciamento em relação aos museus. Não parece ser, entretanto, o que ocorre no Museu Paulista em 1940, que mantinha relações diretas com a Universidade e continuava a ser um espaço de atuação dos antropólogos. A

194 prática de colecionamento continuava presente para os antropólogos de campo como Schultz, e os objetos continuavam ilustrando as teorias antropológicas, mesmo que estas se transformassem ao longo da história da disciplina. No contexto de Harald Schultz e seus contemporâneos, a atividade do antropólogo pode ser entendida como um colecionamento de culturas. Em sua reflexão sobre a prática do colecionamento, Clifford (1994) afirma que a construção da identidade passa necessariamente pelo ato de colecionar, mas para a sociedade ocidental esse colecionamento estaria relacionado a uma acumulação sem precedentes. Existe na nossa sociedade uma concepção de que o tempo destruiria as coisas, sendo o colecionamento uma espécie de resgate, já que a história deterioraria a cultura, expressando a velha concepção de que o tradicional, o puro, estaria ligado ao passado. É preciso proteger esse passado da destruição pelo esquecimento, o que justifica um acervo exorbitante de objetos e documentos da memória formando os espaços sacralizados dos museus. Roy Wagner (2010) define os museus como instituições culturais onde se preserva e protege a cultura, no sentido antropológico do termo e referente ao universalismo do fenômeno humano, ao mesmo tempo promovendo a Cultura, instrução e refinamento do espírito humano tão valorizados em nossa sociedade. Os museus articulam diferentes sentidos do termo (discussão à qual retornaremos na conclusão deste artigo): eles metaforizam, isto é, reinventam a cultura dos outros em termos de cultura (com aspas) a fim de promover Cultura. Observamos que, ao ser levado para integrar o acervo do Museu Paulista, o kàjre passa por um processo de ressignificação, na medida em que é percebido num outro contexto. De machado-cantor, objeto-pessoa que incorpora uma série de conhecimentos e práticas rituais especializadas e que devem ser constantemente atualizadas de forma a manter-se vivas (e o significado de vida para os Krahô está intimamente ligado à ideia de estar em movimento ), o kàjre passa a ser classificado no espaço do museu como artefato etnográfico, representativo de uma cultura particular, e que deve ser devidamente guardado, preservado da ação degradante do tempo para continuar a existir. Já falamos na secção anterior que os objetos musicais Krahô não podem ficar parados, guardados, apenas pendurados no telhado: eles devem sair para o pátio, cantar, ser usados, reinventados. Além disso, certos objetos devem nascer e morrer com as pessoas ao ser enterrado o morto leva consigo alguns dos seus bens pessoais, pois esses objetos presentificam sua intencio-

195 nalidade e desejo de, imbuído da saudade pelos parentes vivos, levá-los consigo à aldeia dos mortos. E, quando vivos, esses objetos têm a prerrogativa de circular: eles são oferecidos como dádivas nos rituais e passam a habitar outras casas, até ser novamente trocados. Portanto, podemos sugerir que a prática de colecionamento do museu contrasta com as noções de movimento, deslocamento e circulação inerentes aos usos e representações dos bens materiais e imateriais sob a ótica indígena. Por outro lado, ao ser levado para o Museu Paulista, o kàjre cumpre seu devir mitológico de estar em movimento, viajando pelos extremos do mundo, circulando entre povos diferentes, humanos e não humanos. Mesmo que os Krahô digam que em condições normais ele não teria sido trocado, as versões do mito reificam a machadinha como objeto passível de exteriorização, de relação com os não Krahô. Durante o tempo em que ficou guardada na reserva do Museu Paulista, a machadinha não ficou inerte. Seu longo período de ausência na aldeia e de estadia no museu fez que ela incorporasse novos cantos, novas visões, práticas e concepções. Ela passou a ser um símbolo, talvez o mais representativo e emblemático, da cultura Krahô, como veremos adiante na viagem de volta do kàjre para a aldeia Pedra Branca. O resgate do kàjre A ausência da machadinha era cantada nas aldeias, ela nunca foi esquecida, dizem os Krahô. Mesmo estando no museu, seus cantos não foram perdidos e continuavam a ser entoados, em tons de lembrança e saudade. Foi assim que, em 1985, um antropólogo de São Paulo em trabalho de campo na aldeia Pedra Branca ficou impressionado com a beleza de um canto que um velho entoava no pátio, à noite, relata Fernando Schiavini (2006). Ao saber que se tratava dos cantos da machadinha kàjre, o antropólogo anunciou que tinha visto um objeto igual àquele no Museu Paulista, causando grande comoção. Através de uma foto enviada pelo técnico Paulo Cesar, que prestava serviços à aldeia Krahô e morava em São Paulo, a notícia foi confirmada. O kàjre tinha sido reencontrado, era preciso organizar uma expedição para conquistá-lo novamente (Schiavini, 2006, p. 156). Em 19 de abril de 1986, na ocasião da comemoração do Dia do Índio, um grupo entre nove e 11 índios Krahô chega em São Paulo. O que seria oficialmente uma viagem pelas comemorações do Dia do Índio na Universidade de São Paulo (USP) torna-se símbolo da luta política indígena (e indigenista)

196 pelo reconhecimento de sua cultura: o movimento de resgate do kàjre, que, para além da machadinha que canta, torna-se a machadinha Krahô. Para descrever esse processo recorro mais uma vez à pesquisa de Jorge Henrique Melo (2010), e os detalhes a respeito das etapas de negociação provêm de uma entrevista do autor com o antropólogo Sergio Domingues Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do livro De longe toda serra é azul (2006) do indigenista Fernando Schiavini. Comecemos aqui por destacar o contexto político no qual a posse do kàjre é reivindicada pelos Krahô: o momento de abertura política depois de um longo período de ditadura militar, caracterizado por fortes mobilizações políticas, tanto por parte de brancos quanto de índios. A Constituição de 1988 estava em andamento e reconhecia a diversidade cultural, possibilitando ainda mais a articulação de movimentos políticos reivindicatórios. Os Krahô costumam chamar esse período de rekrahôrização, o que vai ao encontro do processo de emergência da afirmação étnica nos anos 1980 entre vários povos que até então negavam a sua identidade indígena. Percebe-se também nos anos de 1980 uma reaproximação da Antropologia com os museus em função da onda reflexiva pela qual passa a disciplina: os museus passam a ser vistos como espaço de conflito e disputa de representação dos grupos sociais (Gonçalves, 1995). A expedição ao Museu Paulista para reaver a machadinha foi planejada ao longo de meses e contou com a ajuda do antropólogo Sergio Domingues e do técnico Paulo Cezar, responsáveis por fornecerem ao Krahô as informações precisas do paradeiro exato da machadinha. Ela era comandada pelos líderes Pedro Penõ e Aleixo Po hi, representantes de facções que historicamente pertenciam a povos distintos, respectivamente os Kenpokateye e Mãkraré, atualmente reunidos como Krahô. Em sua chegada o grupo era aguardado pela equipe de jornalismo da Rede Globo de Televisão, que, ao fazer a cobertura do caso, permitiu que ele extrapolasse os limites da aldeia, do Museu e da Universidade, caindo nas graças da grande mídia e da opinião pública (Schiavini, 2006; Melo, 2010). Acompanhados pelos jornalistas, o grupo encontrou-se com Orlando Marques de Paiva, diretor do Museu Paulista, que pediu um prazo de alguns dias para verificar a procedência da peça. No segundo encontro, entretanto, já estava presente o reitor da USP na época, José Goldemberg, que informou à comitiva Krahô a impossibilidade de devolução do objeto, uma vez que ele era tombado como patrimônio da humanidade (Melo, 2010, p. 88). Segundo Schiavini, a reação de Pedro Penõ foi veemente:

197 Vocês não entendem nada! Assim vocês vão matar a machadinha, ela não pode ficar trancada num cofre. Ela precisa ficar em movimento, não pode ficar assim fechada, no escuro. O senhor prometeu que nos entregaria nossa kàjre. O senhor é um velho, como eu, porque não cumpre sua palavra? (Schiavini, 2006, p. 158) Passaram-se dois meses entre a reivindicação e a reapropriação da machadinha no dia 11 de junho de 1986, um verdadeiro processo kafkaniano, como descreve em detalhes Schiavini (2006, p. 161). Estabeleceu-se uma forte disputa, e os debates políticos, mediados pelas coberturas jornalísticas e pelos pronunciamentos acadêmicos oficiais, acabam por mobilizar a opinião pública em favor do grupo indígena, que recebeu o apoio de artistas e da população civil. Na época, até, o episódio deu origem a uma novela da emissora Globo que tinha como um dos personagens um índio, interpretado por Stenio Garcia, que buscava reaver um objeto sagrado, uma machadinha de sua tribo. A discussão avançava e se tornava cada vez mais pública, o que levou a USP a firmar uma visão oficial da instituição sobre a condição pela qual o museu obteve a posse do artefato e através da qual o devolveria. A professora de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Eunice Ribeiro Durham, escreveu então um artigo, publicado em 2 de maio de 1986 na Folha de S.Paulo intitulado A Universidade e a machadinha, no qual ela se coloca a favor da devolução do objeto aos Krahô, trazendo, por outro lado, uma série de argumentos elucidativos a respeito da posição da Universidade (Melo, 2010, p ; Franceschini, comunicação pessoal). Eunice Durham começa por defender a importância ritual do kàjre, chamando atenção para os cantos a ele relacionados, contrastando o interesse dos índios com o da Universidade. Os primeiros, muito além de uma reivindicação da propriedade, estariam interessados no resgate da tradição como ferramenta de afirmação étnica e, nesse sentido, a expedição de reconquista é ela mesmo central, transcendendo o espectro material. Já a Universidade tem o objeto como testemunho das realizações culturais de determinada sociedade indígena, testemunho de um passado que é parte da história das sociedades humanas. A pesquisa, no entanto, segue Durham, torna-se incompleta se não acessar os cantos e os mitos associados à machadinha. Por conta disso, o conhecimento almejado pela Universidade só pode atingir seu objetivo ao reintroduzir o objeto no contexto ritual que lhe é intrínseco, o que será possível devolvendo a machadinha aos índios. O interesse da pesquisa tem de ser

198 superior ao da propriedade, pois o segundo representaria a destruição do que há de mais importante no objeto: seu significado. Por fim, tal como a autora sugere no artigo, a Universidade acaba garantindo a propriedade da machadinha, cedendo aos índios, mediante acordo escrito, a guarda e posse do objeto. E no que concerne à propriedade esse contrato parte dos mesmos pressupostos da concessão de uso da terra pelos povos indígenas proposta na Constituição de O território é de posse da União, que concede o uso aos povos indígenas através da demarcação de territórios específicos. Ou seja, os índios têm a posse, mas não a propriedade da terra. Assim a proposta de Durham para a machadinha: os índios a levariam de volta à aldeia, porém o Museu Paulista continua tendo direitos de propriedade sob ela. Durante a viagem de retorno do kàjre à aldeia Pedra Branca, Melatti (comunicações pessoais) contou que foi encaminhado à Universidade de Brasília (UnB) um pedido de auxílio financeiro para realizar um evento entre os Krahô denominado entronização do machado. Esse termo é usado pela Igreja Católica quando se comemora no dia 26 de maio a entronização de Nossa Senhora do Sagrado Coração de Maria. A entronização significa exaltar, sublimar, elevar ao trono, ou seja, colocar a imagem do Coração de Maria no altar ou quadro na parede. Na linguagem bíblica, o coração ocupa um lugar importante, assim como o Sagrado Coração de Maria quando está no nosso lar. Em muitos momentos os Krahô se referem à kàjre como o coração do mehĩ, uma forma de traduzir a centralidade do objeto, e o coração, de acordo com a concepção indígena, é um órgão que sente e pensa. O kàjre é, assim, mais uma vez ressignificado pelos contextos nos quais se desloca e pelas redes de relações em que se insere. Ele não é mais considerado a mesma machadinha que foi levada para o acervo do museu. Durante seus 39 anos de ausência e com seu retorno, a machadinha se torna um símbolo da nossa cultura, como afirmam os Krahô, não apenas da guerra contra os inimigos míticos de antigamente, mas da luta de afirmação da identidade indígena perante a sociedade dos brancos. Mas tenhamos algumas precauções ao incorporar ao nosso debate a expressão nossa cultura, uma constante nos discursos indígenas nos dias de hoje. Junto com a reconquista do kàjre, é preciso refletir sobre as apropriações e reinvenções daquilo que se entende por cultura, em suas diferentes definições, níveis de contraste e contextos. O termo é ambíguo, em seus duplos sentidos, mobilizando diferentes princípios de inteligibilidade. Lidar com esses paradoxos é uma tarefa para o antropólogo, que deve tomar cuidado com os equívocos presentes na tradução dos termos e suas intenções.

199 O retorno do kàjre Os embates em torno da machadinha não se encerram por aqui. Ao tratar os Krahô como uma unidade sociopolítica, obscurece-se o extremo faccionalismo interno que caracteriza os povos Timbira. Como já mostrou Azanha (1984), os Timbira encontram na dissidência sua dinâmica de reprodução social. Uma aldeia em conflito é cindida e gera uma outra aldeia, que segue a mesma forma Timbira de organização social e política, mas inteiramente autônoma em relação às outras. Da mesma maneira, o grupo que foi a São Paulo reivindicar a machadinha marcava uma série de diferenças quanto ao destino que deveria ser dado a ela, uma vez reempossada. Duas correntes conduziam o impasse, revivendo uma tensão histórica entre as duas principais facções Krahô: enquanto Aleixo Po hi, de origem Xerente e líder Makraré, defendia que o machado deveria circular pelas aldeias Krahô como um objeto de integração, Pedro Penõ, o líder Kenpokateye, manifestou o desejo de manter a peça em uma espécie de museu da machadinha em sua aldeia, a Pedra Branca. O kàjre acabou por permanecer na Pedra Branca, o que pode ser atribuído ao alcance da liderança de Peno, que, como coloca Melo (2010), tornou-se uma espécie de marco temporal da aldeia Pedra Branca (cabe notar que uma das características mais admiradas de Penõ como liderança é justamente seu conhecimento da cultura do branco e sua capacidade de dialogar com eles o que também é bastante reconhecido em Po hi. Após a morte de Penõ em 2002, seu filho Martinho Penõ assumiu a responsabilidade de guardar o kàjre e dar continuidade ao projeto do pai para o museu local. Tendo sido um dos principais interlocutores de Jorge Henrique Melo, este considera a visão de Martinho Penõ central para a compreender o redimensionamento contemporâneo do machado na aldeia Pedra Branca, o que, segundo o autor, refletiria uma museificação do objeto por Martinho Penõ: [...] a posse do kàjre pelo Museu Paulista implica, na visão de Martinho Peno, o reconhecimento de um valor do objeto que o leva a incorporar ao seu discurso, colocado para mim, pesquisador, a necessidade da construção do museu para abrigar e exibir a machadinha. (Melo, 2010, p. 94). Sem querer inferir se o objeto foi levado ao museu em função de sua sacralidade, ou se tornou sagrado justamente por ter permanecido tanto tempo no museu (provavelmente as duas coisas), o que nos interessa é chamar

200 atenção para a ressignificação do kàjre a partir da viagem ao Museu Paulista. E reproduzindo a fala de Martinho Penõ ao antropólogo: To querendo ver se sai algum recursinho pra fazer um museuzinho pra pendurar o kàjre em algum lugar... O coração do mehĩ. To querendo fazer aqui mesmo, levantar outra casa aqui, ver se eu boto o kàjre em cima, num quartinho, e quem vier de fora paga poré [dinheiro] pra ver, pra tirar foto. Aí já bota um escritinho na porta dizendo o que é. Papai falou: Vou deixar o kàjre pra vocês pra fazer um negocinho pra quem vier de fora, de algum país, e quiser ver (Pedra Branca, 4 de fevereiro de 2009). (Melo, 2010, p. 94) Algumas lideranças da Pedra Branca buscam parcerias para o projeto do museu. Os povos indígenas de maneira geral vêm adotando novas formas associativas que lhes permitam alegar representatividade para lidar com a política dos projetos, elemento central da política indígena contemporânea. Fazer projeto é um empreendimento cultural, político e econômico que depende tanto da população local quanto de agentes externos o que explica os índios recrutarem constantemente os antropólogos em suas atividades de projeto (Carneiro da Cunha, 2009, p. 335). Mas, para ser bem-sucedida, a política dos projetos e das associações deve transcender a política local, o que nem sempre é possível, como ocorreu nas disputas em torno do destino da machadinha. Atualmente existe um prédio de concreto com um grande pátio no meio, ao lado da casa de Martinho Penõ, que é a sede física da associação da aldeia, que também se chama Kàjre. Ela se confunde com o pátio central e a casa da pensão, locais de reuniões públicas e festas. Alguns afirmam que esse seria o lugar original do museu, o que não se concretizou. Miguelito Cawkre explica que a Escola Kàjre foi construída em 2003 com recurso da Funai para ajudar a associação daqui e que antes o museu Era pra ser aqui na Escola Kàjre, que eles pensaram pra ser escola só de coisa de mehĩ mesmo: música, talvez pintura... (Melo, 2010, p. 85, 96). É interessante também o fato de que, com a fama que o kàjre ganhou entre os brancos, os Krahô passaram a confeccionar pequenas réplicas em madeira do kàjre, usados como colares ou enfeites de parede, vendidos como souvenir turístico aos visitantes.

201 Figura 7.5. Colar kàjre. Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima Cabe ressaltar que a ideia do museu se confunde com o projeto pessoal e com a construção biográfica da família Penõ na aldeia Pedra Branca (Melo, 2010, p. 95). Em meu trabalho de campo percebi que em outras aldeias existe certa insatisfação com esse destino da machadinha, acusações de que Martinho Penõ, em seu cuidado excessivo com a machadinha e temendo que se perca novamente, não a deixa circular. As únicas vezes em que presenciei algum ritual com o kàjre fora da Pedra Branca foram em feiras e festas realizadas no espaço da associação Kapéy, que não é uma aldeia, mas um lugar de encontro entre as aldeias que participam da associação. Essa contradição, entre guardá-la e fazê-la circular, é percebida no próprio discurso de Martinho Penõ. [...] [a Kajre] é da nossa cultura, mas fica aí parada, sem movimento... Tem que todo mundo ver, sair pra animar a aldeia... (Melo, 2010, p. 75) Assim como Martinho Penõ, muitos Krahô se referem ao kàjre como nossa cultura. Antes de concluir este artigo, é necessária uma breve reflexão sobre os paradoxos contidos nas apropriações e reinvenções acerca do termo cultura, tal como observamos na viagem de volta do kàjre. Isso porque casos como o do kàjre não são isolados. A partir da década de 1980 ocorre uma série de manifestações indígenas que reivindicam seus direitos sobre artefatos, padrões gráficos, recursos genéticos e conhecimentos em geral, suscitando uma discussão mais ampla em torno dos direitos culturais e intelectuais, que põe em questão a maneira como se entende a cultura. Ou seria cultura?

202 Manuela Carneiro da Cunha traz duas noções de cultura interessantes para nossa reflexão acerca do kàjre: a cultura (sem aspas), esquemas interiorizados que organizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um certo grau de comunicação em grupos sociais (Carneiro da Cunha, 2009, p. 313); e a cultura (com aspas), um metadiscurso da cultura que opera em contextos interétnicos, isto é, uma maneira de falar sobre si mesmo ao se projetar para o branco especialmente (e levando em consideração a imaginação do branco sobre si, num jogo especular). Enquanto a antropologia contemporânea vem procurando desconstruir a noção de cultura, vários povos mais do que nunca a estão exaltando; a política acadêmica e a política étnica parecem assim caminhar em direções contrárias (Carneiro da Cunha, 2009, p. 313). Segundo a autora, a maioria dos povos indígenas se (re)apropria constantemente da sua cultura e pode agora expô-la ao mundo. O que se torna, entretanto, uma faca de dois gumes, já que implica que seus possuidores devem demonstrar performaticamente a sua cultura para o branco. Por um lado, os movimentos indígenas elaboram suas reivindicações nos termos dessa linguagem de direitos dominantes, tornando-as possíveis de serem reconhecidas e bem-sucedidas. Por outro, essas declarações introduzem questões em torno das especificidades e diferenças pertinentes ao conhecimento tradicional, em contraposição à visão sobre o conhecimento científico. Caberia na imaginação ocidental que esses povos aleguem ser suas culturas exógenas, apropriadas de outros, numa tendência indígena em atribuir bens, práticas e saberes culturais a outros povos, humanos e não humanos, como vimos no caso do kàjre? Já vimos que a cultura percebida como empréstimo e abertura para o outro é central na mitologia e nas experiências xamânicas (Carneiro da Cunha, 2009, p. 361); o que cria um curto-circuito na maneira como Penõ se refere à kàjre como sendo da nossa cultura, pois, como vimos, os Krahô afirmam ao mesmo tempo que a nossa cultura é que vem do kàjre, roubada de outros seres humanos e não humanos. A cultura e o kàjre não foram inventados pelos mehĩ, eles foram pegos ou roubados desses outros povos. Portanto, o kàjre pode ser visto como um exemplo interessante dessa reflexibilidade cultural a que se refere Manuela Carneiro da Cunha, como um ponto de articulação entre essas duas faces do mesmo conceito de cultura. Se por um lado a cultura sem aspas esta relacionada a uma série de elementos fundamentais da cosmologia Krahô, como vimos na primeira secção deste artigo, vimos também como o kàjre passou a operar num novo contexto em

203 que a cultura, em toda a sua complexidade, deve ser objetificada para a sociedade nacional, tornando-se o kàjre um símbolo da cultura com aspas. A questão é perceber com as duas faces estão inter-relacionadas, uma servindo de contexto para a reinvenção da outra, sem deixar de notar que existem disparidades significativas aqui, pois trata-se de conteúdos que não pertencem ao mesmo nível de discurso. Por enquanto, o kàjre continua na casa de Martinho Penõ, talvez à espera de uma próxima aventura. Ele fica guardado dentro de um cesto de palha pendurado no telhado, enrolado num pedaço de pano manchado de urucum. Martinho Penõ o retira e desembrulha cuidadosamente, deixando-o à vista dos antropólogos curiosos, que fazem seus registros fotográficos. E repete sua história, para que o escutem bem, sempre lembrando: Porque o velho meu pai trouxe esse kàjre de lá e não fez nada com ele de demonstração no lugar, para quando você chegar ir lá direto e ver. Mas não, ele está jogado aqui, sempre cheio de poeira... Aí eu fico assim com vergonha. Do jeito que está, assim na poeira, eu não estou gostando. Eu já falei muito para me ajudarem de fazer um museuzinho, para eu colocar o conjunto do kajre: caty, xy, pydwe, buzina, pyrijakà, cukonre, cratre, eu queria colocar todos juntos. Não é assim de museuzão não, é só de demonstração que eu vou colocar para quando uma pessoa chega de fora e quer ver. Pra ver como é que faz. E pra deixar pros netos, pros filhos, pros novos, lembrando sempre... [...] E no tempo que o Papam [Deus] me carregar, então já deixei essas coisas juntas de lembrança. Eu já vou ter colocado de um outro modo para os novos lembrarem. É isso que eu estou querendo, lembrar. E se um deles aprende mais do que eu, já fica com ela e toma de conta... (Martinho Penõ, comunicação pessoal)

204 Figura 7.6. Martins Zezinho Ikrehohtàt levando a kàjre depois de cantar. Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima Figura 7.7. Martins Zezinho Ikrehohtàt devolvendo o kàjre para Martinho Penõ ao terminar de cantar. Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima

205 Figura 7.8. Martinho Peño guardando o kàjre em sua casa. Fotografia: Ana Gabriela Morim de Lima Referências bibliográficas ÁVILA, Thiago Antonio Machado. Não é do jeito que eles quer, é do jeito que nós quer: os Krahô e a biodiversidade. Dissertação de Mestrado. Brasília: UNB, DAN, 2004, p AZANHA, Gilberto. A forma Timbira: estrutura e resistência. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, FFLCH, 1984, p. 81. BORGES, Júlio Cesar; NIEMEYER, Fernando de. Cantos, curas e alimentos: reflexões sobre regimes de conhecimento Krahô. Revista de Antropologia 55 (1), São Paulo, USP, jan.-jun CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas e outros ensaios, capítulo 19. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p Os mortos e os outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa Krahó. São Paulo: Hucitec, 1978.

206 . Pontos de vista sobre a floresta Amazônica: xamanismo e tradução. Mana. Estudos de Antropologia Social 4 (1), p. 7-22, Rio de Janeiro, CLIFFORD, James. Colecionando arte e cultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 23, p , Rio de Janeiro, Iphan, COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. O traço e o círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, PPGAS-MN, 2002, p DURHAM, Eunice Ribeiro. A Universidade a machadinha. Folha de S.Paulo, FAUSTO, Carlos. Donos demais: maestria e domínio na Amazônia. Mana, v.14, n. 2, p , FRANCESCHINI, Julia. Antropologia e globalização: direitos e desafios indígenas à cultura: os paradoxos da patrimonialização e da indigenização. Artigo não publicado. GELL, Alfred. Art and Agency: an Anthropological Theory. Londres/Nova York: Oxford/Clarendon Press, GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Coleções, museus e teorias antropológicas: reflexões sobre conhecimento etnográfico e visualidade. Cadernos de Antropologia e Imagem, n. 8, p , Rio de Janeiro, Uerj, O templo e o fórum: reflexões sobre museus, Antropologia e cultura. In: CHUVA, Márcia (org.). A invenção do patrimônio: continuidade e ruptura na constituição de uma política oficial de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Minc/Iphan, GORDON, Cesar. Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os índios Xikrin- -Mebêngôkre. São Paulo/Rio de Janeiro: Unesp/ISA/Nuti, LADEIRA, Maria Elisa. A troca de nomes e a troca de cônjuges: uma contribuição ao estudo do parentesco Timbira. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, FFLCH, 1982, p LAGROU, Elsje Maria. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, Alteridade e identidade de uma perspectiva kaxinawa. In: ESTERCI, Neide; FRY, Peter; GOLDENBERG, Mirian (orgs.). Fazendo Antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: Capes/DP&A, 2001, p LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003 [1955], p

207 . A gesta de Asdiwal. In: Antropologia estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993 [1958], p A origem dos modos à mesa. Mitológicas 3. São Paulo: Cosac Naify, 2006 [1967].. Do mel às cinzas. São Paulo: Cosac Naify, 2005 [1966].. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras, 1993 [1991].. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac Naify, 2004 [1964]. LIMA, Tânia Stolze. O dois e seus múltiplos: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia Tupi. Mana: Estudos de Antropologia Social 2 (2), p , Rio de Janeiro, out MELATTI, Julio Cezar. Indivíduo e grupo: à procura de uma classificação dos personagens mítico-rituais Timbiras. Anuário Antropológico, n. 79, p , Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Myth and Shaman. In: LYON, Patricia J. (org.). Native South Americans. Boston: Little, Brown, 1974, p Nominadores e genitores: um aspecto do dualismo Krahô. In: SCHA- DEN, Egon. (org.). Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Nacional, 1976, p O sistema social Krahô. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, Personagem e pessoa. Anuário Antropológico, n. 87, p , Brasília/ Rio de Janeiro, UNB/Tempo Brasileiro, Ritos de uma tribo Timbira. São Paulo: Ática, MELO, Jorge Henrique Teotonio de Lima. Kàjre: a vida social de uma machadinha Kraho. Dissertação de Mestrado. Natal: UFRN, PPGAS, 2010, 156p. NIEMEYER, Fernando de. Cultura e agricultura: resiliência e transformação do sistema agrícola Krahô. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, NIMUENDAJÚ, Curt. The Eastern Timbira. Berkeley: University of California Press, SCHIAVINI, Fernando. De longe toda serra é azul: histórias de um indigenista. Brasília: Ed. do autor, SCHULTZ, Harald. Lendas dos índios Krahô. Revista do Museu Paulista, v. IV, p , São Paulo, SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. A Era dos museus de etnografia no Brasil: o Museu Paulista, o Museu Nacional e o Museu Paraense em finais do XIX. In:

208 FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL, Diana Gonçalves (orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à Museologia moderna. Belo Horizonte/Brasília: Argumento/CNPQ, 2005, p SEEGER, Anthony. Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras. Rio de Janeiro: Campus, ; DAMATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In: PACHECO DE OLIVEIRA FILHO, João (org.). Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1987 [1979], p VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Imanência do inimigo. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002 [1992], p Imagens da natureza e da sociedade. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002 [1996], p Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002 [1996], p WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010 [1975].

209 8. AS MORADAS DA CALUNGA 1 DONA JOVENTINA: OBJETOS, PESSOAS E DEUSES NOS MARACATUS DE RECIFE Clarisse Kubrusly Katarina Real e a multiplicação dos maracatus e de seus nomes Desde o final do século XIX, intelectuais como Pereira da Costa (1908), Mário de Andrade (1959), Mario Sette (1938), Ascenso Ferreira (1986), entre outros ligados ao chamado movimento folclórico brasileiro, 2 encenavam uma retórica da perda (Gonçalves, 2002), profetizando o fim dos maracatus nação, vistos por esses autores como autênticas tradições afro-brasileiras e sob a ameaça de uma modernidade homogeneizante e avassaladora. Para esses intelectuais, os maracatus de baque virado deveriam ser a todo custo preservados, resgatados e até reconstruídos, pois representavam uma esperança de futuro reverso, de retorno a uma natureza propriamente brasileira. O primeiro maracatu nação de baque virado 3 que conheci foi o Estrela 1 Cemitério, morto, egum, ancestral. Conhecida simplesmente como boneca, nos maracatus nação são as bonecas esculpidas em madeira e às quais são atribuídos poderes mágico-religiosos. 2 Sobre o movimento folclórico brasileiro ver Vilhena, Os maracatus nação ou maracatus de baque virado, também referidos como nações africanas, são uma manifestação carnavalesca da cidade do Recife que tem como mito de origem as Instituições dos Reis do Congo ou Instituições Mestras, associadas às irmandades que prestavam assistência aos negros nos bairros portuários do Recife antigo. Atualmente as nações de maracatu realizam suas saídas (desfiles nas ruas) com uma grandiosa Corte Real e seus personagens (rei, rainha, princesa, dama do paço, calungas, baianas ricas, vassalos, caboclos de lança ou reiamar, escravos e catirinas ou baianas, etc.) De suas sedes e terreiros saem para as ruas acompanhadas do soar de um intenso baque virado, executado por um conjunto musical percussivo (instrumentos: alfaias ou bombos, gonguê, caixas, mineiros e abês).

210 Brilhante, localizado no Alto José do Pinho, bairro do Recife, cujas calungas ou bonecas são Dona Joventina e Dona Erundina. Visitando o Museu do Homem do Nordeste (MHN), em 2001 e 2004, a boneca de um antigo maracatu Estrela Brilhante despertou minha curiosidade, pois tinha sido trazida de volta ao Brasil, doada por Katarina Real em Assim, a boneca Dona Joventina serviu de inspiração para a investigação sobre a trajetória de Katherine Royal Cate conhecida como Katarina Real com os maracatus de baque virado em Recife. A boneca era um universo de intercessão entre a trajetória da pesquisadora e o maracatu Estrela Brilhante com o qual eu mantinha contato. Figura 8.1. Calunga Dona Joventina. Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj Uma verdadeira potência envolveu Katarina Real em uma série de ações e reações dirigidas às antigas nações de baque virado do Recife. Katarina estabeleceu vínculos de alma com alguns mestres e rainhas de maracatus, tais como: a rainha Dona Santa da nação Elefante; Dona Assunção, 4 a viúva de Seu Cosme, 5 da antiga nação Estrela Brilhante; Eudes Chagas 6 do 4 Dona Maria Assunção foi a derradeira esposa do Seu Cosme (fundador do Estrela Brilhante de Recife), e levou adiante as obrigações no Estado de catimbó do falecido marido ( ). 5 Cosme Damião Tavares ( ), natural de Igarassu, foi o fundador do Estrela Brilhante de Campo Grande, em Recife, em Eudes Chagas ( ) nasceu em Olinda e foi para Recife ainda menino. Era babalorixá no bairro do Pina, onde exerceu o sacerdócio até sua morte (1978). Com a colaboração de Katarina Real, foi coroado Rei do Maracatu Nação Porto Rico do Oriente, em 1967.

211 maracatu nação Porto Rico do Oriente; Luiz de França, 7 do maracatu nação Leão Coroado; e Seu Veludinho, 8 o centenário batuqueiro que participou de algumas nações até meados da década de 1960 (Elefante, Estrela Brilhante e Leão Coroado). Katarina e seus interlocutores do maracatu misturavam-se e modificavam-se a cada encontro, estabelecendo trocas de dons e contradons, vínculos que perduraram ao longo dos anos de trabalho da pesquisadora em Pernambuco. Katarina e os mestres de maracatu mantiveram relações de reciprocidade e confiança bastante estreitos, como pretendo mostrar adiante. A relação de Katarina com Dona Joventina e com o maracatu Estrela Brilhante da década de 1960 é mediada por uma série de trocas e finalizada por um presente. Um dom especial que implicou uma verdadeira obrigação (Mauss, 2003). Katarina recebeu um presente que não poderia recusar, uma oferta imposta pelo mestre espiritual da nação. Segundo a pesquisadora, foi o avô da nação quem determinou que ela se tornaria a guardiã de Joventina contra as dissidências e brigas que assolavam a comunidade de Campo Grande e que se agravavam desde a morte de seu Cosme Damião (Cocó). Quando Katarina Real recebeu Joventina de presente, uma dimensão quase total de sua inserção no universo do Estrela Brilhante ficou aparente. A calunga constituía um verdadeiro motivo espiritual e cosmológico para o maracatu. A autora admirava a boneca, mas nunca poderia imaginar que seu próprio destino fosse virar a guardiã da escultura mágica. Por mais que tivesse se empenhado em propiciar condições para a nação continuar saindo às ruas, ela acabou recebendo um presente que efetivamente impediria que o maracatu continuasse com seus desfiles espetaculares, assim como com seus rituais internos. Joventina deixou de exercer suas qualidades mediadoras e espirituais no maracatu em Campo Grande e passou então a figurar como objeto na co- 7 Luiz de França dos Santos ( ) era filho de Laureano Manuel dos Santos (fundador do Leão Coroado). Cresceu no bairro de São José, espécie de gueto de escravos libertos, local onde aconteciam cultos africanos. Os padrinhos de santo de seu Luiz foram Eustachio Gomes de Almeida e Dona Santa. (Amorim, 2006). Seu Luiz foi membro da Irmandade de São Benedito da Igreja de São Gonçalo do bairro da Boa Vista e da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos do bairro de Santo Antônio. Tido como um dos últimos oluos de Recife, foi o mestre do maracatu Leão Coroado até sua morte, em João Batista de Jesus (seu Veludinho) foi batuqueiro das nações Estrela Brilhante, Elefante e Leão Coroado. Na década de 1960, já tinha mais de 100 anos e ainda tocava o bombo mestre maior, mais grave e mais pesado.

212 leção particular, na casa da pesquisadora em um primeiro momento, no Recife, e posteriormente nos Estados Unidos. Katarina mantinha com a boneca uma relação afetiva que remetia a uma vivência do passado, associada ao maracatu e ao Brasil. Katarina levou Joventina com a missão de protegê-la da destruição e do desaparecimento que sofriam as nações de maracatu na época (meados da década de 1960). A imagem que a pesquisadora criou em seu discurso é a de que a boneca foi para o exílio e iria esperar até que a situação da cultura popular, e em especial dos maracatus, melhorasse. Entre outros motivos, atribuiu a decadência dos maracatus ao golpe militar de 1964, afirmando que, nesse contexto, o destino de qualquer tipo de associação popular ligado a comunidades parecia bastante incerto. Dona Joventina foi então para o exílio, a exemplo de alguns amigos folcloristas, intelectuais e artistas perseguidos como comunistas. Em 1996, quando trouxe de volta a calunga, Katarina preparou um discurso especial para ler em voz alta, na cerimônia de doação da boneca ao MHN. Contudo, esse discurso foi escrito do ponto de vista da calunga ou melhor, Katarina escreveu um texto/discurso como se a própria calunga estivesse contando sua vida tal como Katarina a narra. Esse discurso, que virou um panfleto do MHN em 1997, é escrito em tom autobiográfico e fala sobre a relação entre Katarina e Joventina: Em 1968, a situação dos maracatus nação era péssima! O maracatu Elefante, da saudosíssima Dona Santa, acabara com a morte da grande rainha em 1962; o antigo Estrela Brilhante acabou-se em 1964; e alguns outros maracatus estavam em condições muito precárias ameaçados de desaparecer. [...] Mas as coisas estavam muito erradas mesmo em 1968! Tanto os maracatus nação quanto os maracatus rurais estavam em declínio; a Federação Carnavalesca Pernambucana encontrava-se nas mãos dos cartolas, que pouco se interessavam pelos problemas do povo carnavalesco; havia uma falta de interesse alarmante pelo folclore pernambucano e pela preservação de nossas tradições regionais; e a situação política ainda pior, com o movimento de Cultura Popular totalmente desmantelado e tantos bons amigos brasileiros presos, foragidos e até no exílio. Com muito pesar, Katarina e eu deixamos o Brasil em fins de 1968, e eu fui para aquele país chamado Estados Unidos, onde ninguém sabe o que é um maracatu, ou uma fanfarra de frevo ou estalido seco da preaca de um caboclinho. Katarina e eu decidimos que eu ficaria por lá, esperando que a situação melhorasse para as tradições populares e para o povo carnavalesco. (Katarina Real, 1997 [1996])

213 Katarina se tornou guardiã de um patrimônio em exílio, cujos sentidos e experiências permaneciam perdidos em um Recife de homens pretos de outros carnavais. No período de 1965 até 1996, a boneca apareceu em público três vezes: a primeira foi em 1967, na cerimônia realizada na Câmara dos Vereadores, na ocasião em que a antropóloga recebeu o título de Cidadã de Recife. A segunda foi em 1968, no lançamento da primeira edição do livro O folclore no carnaval de Recife, no Teatro Popular do Nordeste. A terceira vez foi na exposição da coleção Katarina Real de Arte Popular Nordestina em um museu em San Diego, na Califórnia. A pesquisadora, que ficou alguns anos sem frequentar o carnaval pernambucano, surpreendeu-se, em 1995, com o ressurgimento, restauração e renovação de tantas tradições do folclore da região. Empolgada, resolveu trazer de volta a boneca Joventina. Disse que, em sonho, Joventina lhe pedira para voltar. Assim, o patrimônio exilado voltou à terra natal, sendo deslocado da coleção particular da autora para o acervo da instituição que tanto incentivou o trabalho de Katarina no Brasil (Museu do Homem no Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco FJN). [...] aqui estou finalmente com meu povo carnavalesco. [...] E aqui serei sempre uma força de resistência cultural contra tudo que possa prejudicar a integridade das nossas tradições carnavalescas. Para terminar, eu preciso lhes dizer porque Katarina não quis, que é com grande sacrifício que ela se separa de mim. Mas ela bem sabe que serei muito bem cuidada neste maravilhoso Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco [...] e vou ficar aguardando sempre com muita alegria as visitas de todo o povo carnavalesco nordestino aqui no museu. Muito obrigada pela atenção, Katarina Real e Dona Joventina. (Katarina Real, 1997 [1996]) Em trabalho anterior (2007) busquei ressaltar o processo de colecionamento por meio do qual Katherine Royal Cate se torna Katarina Real, uma especialista na arte folk de Pernambuco: como a autora constrói sua autoridade etnográfica acompanhando os últimos mestres africanos dos maracatus nação no Recife durante aproximadamente quatro décadas ( ). Autores como Clifford (1988), Stewart (1993), Pomian (1984), Jackins (2002), Gonçalves (2002), entre outros, buscam mostrar que o ato de colecionar ou as coleções expressas pelas etnografias, pelos romances, pelos filmes e, mais notavelmente pelos museus, realizam mediações. Os objetos são deslocados e transformados em símbolos abstratos, tornando-se metonímias da cultura e de suas diversas possibilidades. Esses autores

214 chamam a atenção para o processo do colecionamento como um lugar por excelência da construção de subjetividades, sublinhando o papel fundamental de determinados intelectuais na colaboração e seleção de fatos e acontecimentos. Podemos dizer que Katarina Real foi, sem dúvida, a colecionadora que mais atuou no sentido de valorizar e pensar políticas de incentivo aos maracatus em Recife durante a década de Figura 8.2. Katarina Real em sua casa conhecida como a torre do frevo no Recife, Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj Os maracatus nação são uma manifestação carnavalesca da cidade do Recife que têm como mito de origem as Instituições dos Reis do Congo ou Instituições Mestras, associadas às Irmandades que prestavam assistência aos negros nos bairros portuários do Recife antigo (Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, dos bairros de Santo Antônio e São José).

215 As narrativas históricas sobre os terreiros e afrodescendentes 9 em Recife remetem ao Mercado São José, ao Pátio do Terço e às casas dos sacerdotes da seita e da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ostentam seus vínculos com alguma religião afro de Recife (Xangô, Catimbó e Jurema) e se dizem nações devido à alegada ascendência africana. No soar dos baques e no compassar dos tempos, os maracatus nação promoveram intensos diálogos, intersecções, compras, vendas e doações, entre si e entre outras agremiações carnavalescas, como escolas de samba, caboclinhos e maracatus rurais, possibilitando agrupamentos e reorganizações variadas no decorrer dos anos. Os maracatus nação misturaram-se, passando por diferentes pessoas e lugares, dividiram-se e ainda hoje seus movimentos de cortes e fluxos os separam e agrupam, podendo ser criadas novas nações e recriados antigos nomes. O nome das antigas e novas nações de maracatu é uma espécie de bem inalienável (Weiner, 1992), patrimônio fundamental que evoca a ancestralidade africana. Ainda assim, os nomes, objetos, práticas e saberes que compõem e articulam o maracatu nação podem ser vendidos, roubados, transferidos, herdados, doados, recolhidos, refeitos e, ao mesmo tempo, em diferentes medidas e camadas, ser considerados os mesmos antigos nomes associados a sacerdócios quase mitológicos, como é o caso da famosa rainha do Maracatu Elefante, Dona Santa. Quem cuida de um maracatu é sempre posto em xeque quanto à densidade de seu conhecimento sobre as práticas litúrgicas adequadas. Certos rituais devem ser executados para que a nação mantenha o vínculo religioso, sem perder seu caráter de saída nas ruas da cidade. Uma verdadeira diversão carnavalesca que exige forma não muito fixa, mas com uma série de preparos especiais de proteção devido a seu perigo (Douglas, 1976) e ao risco que implicam caso não sejam realizados os sacrifícios e oferendas adequadas. Assim, um conjunto de práticas e saberes específicos e de difícil acesso constitui a existência e a permanência do mesmo maracatu, ou do mesmo nome, ou das mesmas bonecas que evocam uma origem comum e africana. Em conjunto com o nome da nação, os nomes de eguns, 10 9 Refiro-me aqui a um conjunto de práticas e concepções bastante amplo e heterogêneo que se comunica devido a uma origem comum trazida pelos escravos africanos, que por sua vez vieram de distintos reinos e com distintas bagagens. Com o tempo, tais práticas e concepções foram incorporando em maior ou menor grau cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo e espiritismo europeu; transformando-se à medida que se combinavam de diferentes formas e em todas as direções. 10 Nome para os espíritos dos mortos, desencarnados. No maracatu também é chamando de egum, o espírito do ancestral da nação presente em assentamentos do terreiro ou nas calungas.

216 orixás, 11 mestres 12 e falecidos sacerdotes são igualmente preparados, evocados e alimentados em práticas de segredo. Atualmente duas nações de maracatu atendem pelo nome de Estrela Brilhante. Uma fica localizada no bairro do Alto José do Pinho, na cidade do Recife, e a outra em Igarassu, município litorâneo dos arredores da capital. Ambas passaram por dificuldades ao longo do século XX. O Estrela Brilhante de Igarassu esteve pouco visível, quase inativo nos anos 1980, e reapareceu na capital nos anos 1990, em parte graças ao apoio de Roberto Benjamin. 13 Com o auxílio da prefeitura, a Comissão Pernambucana de Folclore promoveu uma coroação pública de Dona Mariú, falecida rainha, mãe de Dona Olga, que é a atual dirigente do maracatu Estrela Brilhante de Igarassu. O maracatu do Alto José do Pinho se considera a continuação do Estrela Brilhante de Campo Grande estudado na década de 1960 por Katarina Real. Dona Joventina é uma escultura, uma boneca em madeira de aproximadamente 65 cm de altura, e está exposta no MHN desde meados da década de Ficou nos Estados Unidos durante trinta anos ( ), com Katarina Real, antes de ser doada ao acervo desse museu. O remexer na trajetória de Joventina, o evocar de seu nome após as três décadas de exílio, somados a sua viagem de volta à terra natal torna possível um encontro com outras narrativas manifestas, contrariando a galega dos Estados Unidos. O maracatu Estrela Brilhante não apenas não deixara de sair às ruas, mas se multiplicara. Hoje esses dois maracatus que se denominam Estrela Brilhante reivindicam de formas distintas a posse da escultura e sua retirada do museu. Essas esculturas sagradas são objetos de encantamento que articulam mundos heterogêneos e essencialmente distintos, como o mundo dos mortos (antigos donos da nação), o mundo dos vivos (donos e integrantes da nação) e o mundo dos deuses do candomblé e da Jurema sagrada. Apesar de esses maracatus terem suas respectivas esculturas sagradas, desejam a posse de Joventina, reconhecendo nessa boneca algo de especial, poderoso e potente. 11 Qualquer divindade ioruba, com exceção de olóòrum (vd). Seus equivalentes fón (vd) são vuduns. A designação do culto angola-congo que lhes correspondem é inkice (Voguel; Mello; Barro, 2005, p ). 12 Espírito mestre do estado de catimbó em Pernambuco. 13 Roberto Emerson Câmera Benjamin nasceu em 1943, em Recife. Bacharel em Jornalismo e em Direito, é professor aposentado da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRRPE) e é o atual Presidente da Comissão Pernambucana de Folclore. Sobre a experiência de Benjamin como colecionador e também com calungas de maracatu, ver capítulo II da minha dissertação (Kubrusly, 2007).

217 A trajetória da boneca Joventina em seu fluxo de criação constante A trajetória da boneca Joventina é marcada por deslocamentos e reclassificações que lhe conferem a riqueza de concentrar possibilidades igualmente verdadeiras e válidas, direcionadas a um único objeto específico. Assim, podemos ouvir diferentes relatos sobre a boneca, pois tal calunga estabelece relações em histórias e desejos com os diferentes sujeitos envolvidos com os maracatus de nome Estrela Brilhante. Em geral, do ponto de vista dos maracatuzeiros, quando uma calunga de maracatu ou os objetos pessoais de rainhas e mestres consagrados são recolhidos por museus, ocorre uma espécie de morte para a nação. O tipo de eternização e de preservação que o museu propõe inviabiliza a qualidade de agência espiritual que o objeto até então exercia. Como ouvi inúmeras vezes entre os maracatuzeiros de Recife, Uma vez no museu, para sempre nele. Ou seja, uma vez o objeto tornado patrimônio de alguma instituição museal e entrado no circuito de exposições, dificilmente tornará a fazer parte de um maracatu atuante e não poderá sair nas ruas compondo a corte e o cortejo real, muito menos exercerá seu papel de protetor da nação. A proteção exige que se alimente e se cultive a boneca, mantendo um contato intímo e de atenção às vontades da escultura, que dialoga com o grupo a partir de seus dirigentes e dos guias espirituais especializados que dominam o jogo de búzios, por meio do qual a boneca fala. Os atuais mestres de maracatu presentes nesse trabalho (Dona Olga, Dona Marivalda e Afonso Aguiar 14 ) enfatizam o sujeito espiritual da boneca, sua qualidade de ação e de realização mediante uma relação de devoção que deve ser cultivada, alimentada e mantida. Assim, do ponto de vista nativo, a perda da sua agência protetora é ressaltada quando uma calunga vai para algum museu. No museu a boneca não come, não age, não fala. Sua vida fica reduzida a uma potência que pode até ser reativada, mas que está parada, como se fosse morta. 14 Afonso Gomes de Aguiar Filho nasceu em Campina do Barreto, Recife, em 15/03/1948. Seu pai tinha um peji em casa. Ao se mudarem para Águas Compridas, Olinda, em 1955, abriu um ilé (terreiro) assumido por Afonso com a morte do pai, há 19 anos. Quando passou a tomar conta do Leão Coroado em 1996, o maracatu foi transferido para o bairro de Afonso no qual foi comprado o terreno, em Para saber sobre a relação de Katarina Real e Roberto Benjamim com a transferência de zeladores e a compra do terreno do Leão Coroado, ver capítulo II da minha dissertação (Kubrusly, 2007).

218 A questão apresentada pelo meu material empírico permite pensar de que forma seres encantados, ancestrais africanos, esculpidos em uma boneca de madeira são deslocados e ressignificados como objeto de arte popular, como objeto de coleção no MHN. Para os integrantes dos maracatus que hoje reivindicam a posse da escultura, Joventina é vista como detendo forças totais, cosmológicas e práticas. Joventina é compreendida como uma entidade espiritual, ora um mestre do estado (Mestre Cangarussu Katarina Real), ora um orixá (Iansã Gigan Marivalda), ou um egum (explicação de Afonso Aguiar), ou até como uma preta velha (explicação de Dona Olga de Igarassú), mas, de todo modo, um verdadeiro sujeito de ação. O que significa um maracatu ir para o museu? E para quem? É uma das questões que recebem um olhar cuidadoso nesse trabalho. A partir da boneca Joventina e da experiência de Katarina com os maracatus nação, pretendo iluminar diferentes imaginários sobre o que significa um maracatu no museu. Para Katarina, a presença de Joventina no MHN é justificada pela possibilidade de divulgar, preservar e valorizar a boneca, o maracatu e a sua própria história e inserção como pesquisadora nesse universo carnavalesco- -religioso. Já para os integrantes de um maracatu, ir para o museu significa dizer que a nação parou, recolheu, morreu, se aposentou, já que seus desfiles e rituais deixam de existir para que outra forma de vida mais contemplativa fale para um outro público sobre aquele período em que o maracatu saía às ruas. Nesse sentido, seguindo a perspectiva maracatuzeira, o museu é como uma morada final e sem saída, e por isso equivalente a uma espécie de morte. Para Katarina Real, no entanto, os sentidos de objeto e sujeito também parecem conviver em tal boneca de forma indissociável, embora sua experiência acabe priorizando o aspecto material da escultura. Em sua perspectiva, o museu é um local que garante determinado tipo de preservação daquilo que é material, do objeto propriamente dito. Da madeira esculpida na forma humana e articulada em todas as juntas, do cabelo de gente, do vestido e das bijuterias, etc. Além disso, informa e divulga ao grande público sobre a importância de tal sujeito-objeto de valor mágico, artístico e cultural, trazendo uma pretensão de vida eterna à boneca. Para uns a morte ; para outros a vida eterna. Ambas as ideias, em princípio antagônicas, falam do mesmo evento: da presença de objetos-sujeitos, ou seja, objetos que representam entidades espirituais poderosas, tais como as calungas de maracatu expostas no MHN. (Uma morte, como definiu dona Olga, associada ao fim dos desfiles e das práticas rituais dirigidas

219 à boneca pela nação de maracatu; e uma espécie de vida eterna objetificada, criada pela divulgação de um rótulo estanque proposto por Katarina Real, que foi a doadora da calunga ao museu). A boneca passa de totem roubado de um maracatu muito antigo em Igarassu, a protagonista e protetora do antigo Estrela Brilhante de Campo Grande. Em seguida, por um presente mágico e obrigatório, passa a compor a coleção particular de Katarina Real. Trinta anos mais tarde é doada para a coleção do MHN. Nesse meio-tempo é replicada e passa a ser também a protetora do maracatu do Alto José do Pinho. Hoje a calunga Joventina acumula todos esses sentidos e é como se ela fosse feita por um agregado de camadas de significados concomitantes. Em Igarassú ela é vista como um antigo e fundamental pertence que foi roubado. Todos sabem de sua existência e falam de sua falta e do fato de no passado ela ter sido roubada. No MHN ela é um dos principais objetos do acervo da coleção afro-brasileira, foi doado por Katarina e está posicionado no início da exposição, em um lugar de destaque. Por fim, para o maracatu do Alto José do Pinho, ela era a antiga calunga do maracatu Estrela Brilhante de Campo Grande que após alguns deslocamentos foi parar no Alto José do Pinho na casa da costureira e rainha Marivalda, só que sem a escultura mágica. A essa altura dos acontecimentos Joventina já estava sob a posse da colecionadora Katarina Real. Assim, Marivalda, junto com seu pai de santo (Jorge de Ogunté) fez duas novas esculturas e as preparou, consagrando Joventina e Erundina respectivamente a Iansã e a Oxum, que seriam as deusas protetoras do maracatu de Recife. Marivalda e Jorge contam que foram instruídos a fazer o santo das bonecas. Assim, as novas esculturas são filhas desses orixás. Após iniciadas ritualmente, passaram a presentificar também as próprias deusas na terra em momentos rituais específicos como nas saídas do maracatu no carnaval. Após preparadas, as novas esculturas passaram a proteger a nação, agora ligada a um terreiro de Xango (Ilê Omyn Ogunté) no bairro da Bomba do Hemetério, ao lado do Alto José do Pinho. Joventina apresenta-se assim em diferentes imagens, lembranças e histórias que permitem sua existência multipla: imagens gráficas, poéticas, materiais e corporais que fluem nas possibilidades e biografias associadas à boneca em questão. Sua trajetória engloba circuitos e classificações variadas e, desse modo, a calunga ocupa suas diferentes moradas no espaço-tempo. Katarina Real acompanhou o maracatu Estrela Brilhante em Campo Grande (1963) fundado por Cosme em Durante a década de 1960 a

220 pesquisadora não sabia da existência de um homônimo ainda mais antigo em Igarassu. É preciso levar em conta que no início do século XX (1904), a distância entre as duas cidades era de fato muito maior. Recife e Igarassu compunham universos distintos que quase não mantinham contato, e a criação de um novo Estrela Brilhante na capital não poderia ocasionar maiores conflitos. Hoje, Igarassu faz parte do grande Recife. Muitos de seus habitantes trabalham na capital e ambos os maracatus realizam apresentações durante o carnaval, encontrando-se com cada vez mais frequência. Hoje, a existência de dois maracatus nação de nome Estrela Brilhante é, de alguma forma, motivo de piadas, fofocas e trocas de hostilidades em ambos os lados. Para Katarina, Dona Joventina era a calunga do maracatu de Campo Grande. Ficava guardada e era cultuada no estado 15 do falecido Cosme, exposta apenas nas mãos da dama do paço (pessoa preparada espiritualmente para carregar a boneca) durante as saídas da nação. Joventina se misturava ao mestre Cangarussu, um dos mestres de catimbó do centro espírita localizado na casa de Cosme, que também era a sede do maracatu. Em um momento de extrema dificuldade para a nação, que estava sob o comando da viúva Assunção, Katarina foi escolhida pelo próprio mestre Cangarussu para ser a guardiã de Joventina. Trinta anos mais tarde, resolveu trazer de volta a boneca, mas ficou confusa por não reconhecer em nenhum dos dois maracatus contemporâneos de nome Estrela Brilhante a nação que pesquisou nos anos Entregou então a boneca ao MHN-FJN, pontuando sua própria trajetória de pesquisa com o maracatu Estrela Brilhante de Campo Grande, que hoje só existe nas histórias variadas e controversas dos dois outros maracatus também nomeados Estrela Brilhante, um situado em Recife (Alto José do Pinho) e outro em Igarassú. Para aqueles que são parte da nação Estrela Brilhante de Recife, o maracatu não parou, não acabou; recolheu, mas logo voltou às ruas. Marivalda argumenta que seu maracatu é a continuação do Estrela Brilhante de Cosme, e que sua Dona Joventina foi refeita em uma nova escultura, que é a Iansã protetora de sua nação. No Estrela do Alto José do Pinho, a calunga Joventina 15 Estado é um centro espírita de catimbó e dos mestres. [...] Veludinho, foi ele quem me disse que Assunção teve um estado e ele também me disse que Dona Santa teve um Estado e eu acho também que o Estado é ligado a Jurema. Mas eu acho que essas complicações dessas religiões populares é um grande pesadelo para o pesquisador. Porque você sabe, temos uma mistura de espiritismo branco, de caboclo, de candomblé, de candomblé de caboclo, de jurema, dos senhores mestres, de umbanda. E está em plena evolução de dinâmica, não é o que eu encontrei na década de 1960 (entrevista feita pelas irmãs Barbosa com Katarina Real na CPF em 1998).

221 aparece ora associada a um deus orixá, que é a própria Iansã Gigan, ora ao espírito desencarnado de uma princesa africana, filha de Iansã, que é cultuada anualmente no balé como os eguns. Para Marivalda, a escultura do MHN está esvaziada de sentidos e seus axés foram transferidos a sua nova escultura. O ritual da Saída das Bonecas (Joventina e Erundina) acontece no sábado de carnaval no Ilê Omyn Ogunté, antes do primeiro desfile anual da nação. Uma semana antes realizam um toque para Iansã e outro para Oxum, no qual são sacrificados e oferecidos os animais que servem de alimento às deusas protetoras Joventina e Erundina. Dessa forma, o nome de Joventina toma parte em rituais distintos no centro, onde é venerada tanto como um orixá quanto como um egum. Marivalda explica que a boneca deveria ter sido devolvida a ela, pois se considera a verdadeira herdeira do maracatu de Cosme. Na lógica da rainha do Alto José do Pinho, a calunga do museu perdeu os axés, que foram transferidos para a sua Joventina. Segundo Dona Olga, Joventina era uma das antigas calungas do maracatu que foi roubada e estava desaparecida havia muito tempo. Desconhece detalhes da história, mas argumenta que na década de 1960 só existia o seu Estrela Brilhante em Igarassu, portanto, não poderia ser de outro maracatu a boneca trazida pela gringa. Não sabe de nenhum Cosme Damião Tavares, pescador da região, e acusa Marivalda de estar à frente de um maracatu cujo nome e uma das calungas são antigos pertences roubados de seus antepassados. A matriarca de Igarassu acredita que a Dona Joventina trazida de terras estrangeiras por Katarina é a sua antiga calunga e que deveria ter sido finalmente restituída ao Estrela Brilhante de Igarassu. Para Olga, mataram o espírito quando colocaram a boneca no MHN, mas se ela saísse de lá, Olga saberia prepará-la de forma a utilizar seu poder e eficácia. É notável que, apesar de morta ou aposentada, nas categorias nativas de Olga, ela poderia ser refeita, ou reativada e utilizada, reestruturando todo o sistema que essa calunga articula. É como se seu poder pudesse a qualquer momento ser reativado com eficácia e precisão, e é por isso que ela é desejada não apenas por Olga, mas também por Marivalda. Considerações e desdobramentos da pesquisa O argumento de ambas as senhoras (Marivalda e Olga) apresenta a ideia de que os poderes da boneca foram enfraquecidos ou extinguidos quando guardados por uma instituição e por pessoas que não a conheciam. Segundo

222 elas, o museu não saberia fazer as preparações e devoções litúrgicas adequadas para alimentar o espírito ancestral presente na boneca. Ainda que encarada como um espírito morto, aposentado ou sem axé, Joventina é desejada pelas duas rainhas. É como se ela pudesse a qualquer momento ser reativada e, com ela, a força e proteção que vem dos antigos. Essa agência exercida pela boneca é essencialmente mediadora e estabelece uma conexão entre os vivos (atuais donos e participantes), os mortos (antigos donos) e os deuses ou entidades da Jurema (Oxum, Iansã, Cangarussú e a preta veia ) através dos sacrifícios e banhos rituais. As calungas são em geral feitas para garantir a proteção espiritual do maracatu, assim como para mostrar os caminhos a serem percorridos pelas nações de baque virado em Recife. Nas galerias do MHN, a boneca ressalta mais a experiência da colecionadora que a doou, consagrando a narrativa de Katarina e sua reputação como pesquisadora, do que o antigo maracatu Estrela Brilhante de Campo Grande. Em companhia dos adereços e das calungas do maracatu Elefante de Dona Santa, Joventina também faz falar sobre uma forma de vida, sobre os homens e mulheres dos maracatus, os descendentes de homens pretos do Recife. No discurso preparado por Katarina para a cerimônia de doação da boneca em 1996 é Joventina quem tenta justificar a escolha de Katarina, ou Katarina que tenta justificar sua escolha através de Joventina: Eu sou a calunga dona Joventina, do antigo Maracatu Estrela Brilhante [...] Durante muitas décadas, eu saí no carnaval e dancei nas mãos de diversas damas de paço, sempre recebendo os aplausos e a admiração do povo pernambucano. Mas foi só em 1961 que cheguei a conhecer a antropóloga Katarina Real, quando ela apareceu na sede da Nação Estrela Brilhante [...] para entrevistar a dona Assunção, que era na época presidente da agremiação e viúva do fundador [...] O Estrela Brilhante saiu nos carnavais de 1961 a 1964, cada ano com mais dificuldade [...] Durante muito tempo não vi mais Katarina, mas sei que ela lutou muito para impedir que o Estrela Brilhante acabasse. Num certo dia em 1966, exatamente há trinta anos, dona Assunção me enrolou numa toalha e me levou para o apartamento de Katarina, no 14. andar do Edifício Duarte Coelho, onde havia A Torre do Frevo. Ela contou a Katarina que durante uma sessão espírita, lá na casa dela, um mestre baixou para avisar que dona Assunção não precisava mais botar o maracatu na rua; que ela podia vender todas as alfaias da nação com exceção de mim a calunga Dona Joventina e que eu teria que ser dada de presente a Katarina... (Katarina Real, 1996)

223 A relação de Katarina com Dona Joventina e com o maracatu Estrela Brilhante da década de 1960 é mediada por uma série de encontros e finalizada por um presente/obrigação especial, que foi a guarda da boneca. Contudo, o maracatu Estrela Brilhante não apenas não deixara de sair às ruas, mas se multiplicara. Ambos os maracatus de hoje reconhecem na boneca Dona Joventina substâncias e capacidades para motivações e agenciamentos essenciais que permitem a comunicação entre o mundo dos homens (vivos), dos antigos (homens mortos) e dos deuses e entidades protetoras de cada maracatu. Segundo Olga, a antropóloga roubou Joventina e, arrependida, veio devolvê-la. Mas achou que era do outro Estrela Brilhante e não quis devolver para Igarassu. Nas palavras de Olga, ela matou o espírito ao colocá-la no museu, ninguém pode mais tocar e usar o poder dela (da boneca). Olga gostaria de ter a boneca, já que reconhece nela sua origem ligada a Igarassu, além de atributos mágicos poderosíssimos. Além disso, a matriarca de Igarassú gostaria de reativar a força que reside em potencial na escultura, mas que está enfraquecida pela falta de conhecimento das práticas adequadas a serem feitas com a calunga sagrada. Diz que Katarina inventou tudo e que por conta do nome em comum Estrela Brilhante confundiu os maracatus e não quis mais devolver a boneca para nenhum dos dois maracatus Estrela Brilhante atuantes. O que significa um maracatu ir para o museu? E para quem? São algumas das questões que receberam aqui um olhar cuidadoso. Para os integrantes de maracatu, ir para o museu significa dizer que a nação parou, recolheu, morreu, se aposentou, já que seus desfiles e rituais deixam de existir para que outra forma de vida mais contemplativa fale para um outro público sobre aquele período em que o maracatu saía às ruas. Apesar das respostas ligadas à reclusão e aposentadoria de objetos e maracatus em geral, os dois Estrelas pareciam querer saber mais, querer ir ver a boneca e visitar o MHN para avaliar as reais possibilidades de colocar enfim Joventina em seus afazeres primordiais, a movimentar o mundo. Fazendo um esforço de sistematização cronológica, o maracatu pesquisado por Katarina em Campo Grande pode ter sido uma dissidência do de Igarassú. Também foi por dissidências e descontinuidades que o maracatu de Campo Grnade foi continuado no Alto José do Pinho. As biografias de objetos (Kopytoff, 1986) podem ajudar a salientar questões que porventura ficam obscurecidas em narrativas oficiais. O MNH oferece uma versão limitada dessa biografia da boneca Joventina. Apresenta a versão da antropóloga norte-americana doadora do acervo, mas não dá conta das controvérsias e conflitos que disputam outras versões dessa mes-

224 ma e variada história. A riqueza das informações etnográficas sobre a boneca revelou-se interessante também pela abundância de possibilidades (mestre Cangarussu, Iansã Gigan, Preta Velha ou o totem roubado de Igarassu). Contudo, o que é significativo nessas trocas culturais não é o fato de objetos e ideias estranhas serem negociadas e importadas, mas sim o fato de que tais importações são reclassificadas, ressignificadas, reestruturadas em seus usos, tornando-se próprias do grupo que faz, utiliza de forma criativa e única a boneca Joventina (Kopytoff, 1986, p. 67). No imaginário maracatuzeiro os museus estão associados à noção de morte, pois recolhem, sem saída. Como ressaltou Dona Olga, uma vez no museu para sempre nele. Por outro lado, o mesmo museu que mata e recolhe, marca e legitima, imortalizando uma história oficial sobre esses maracatus de baque virado em Recife. O deslocamento de objetos sagrados tais como as calungas de maracatu cria um vazio de significado, uma saudade nos que deixam de fazer, de prepará-los para sair às ruas, possibilitando a criação de novas nações, como pretendi mostrar com o caso da boneca Joventina e os maracatus Estrela Brilhante de Recife e de Igarassú. Assim, para os integrantes de maracatu, o museu expropria, aliena (ressignificando) aquilo que é palpável, que acaba e que pode ser refeito, mas não aquilo mesmo que é vital e, portanto, permanece na própria noção de ancestralidade 16 presente nas práticas e cultos aos eguns, orixás e mestres. A imaterialidade das coisas que permanecem por natureza própria e duradoura, como aquilo que se pretende eterno e inalienável como o ancestral, não deixa de ser e se refazer no tempo e nas trajetórias de deslocamentos e reelaborações de crenças e objetos. Desse modo, ambos os maracatus continuam praticando seus rituais de caráter fechado e aberto e mantendo entre seus segredos o culto às calungas de madeira. O vazio e a saudade gerados pelo recolhimento criam alternativa de refabricar aquilo que é inalienável, aquilo que, embora se modifique, não deixa de ser na medida que os antigos estão sendo refeitos nos novos, com os quais mantêm uma consubstancialidade alegada e notável. Nesse artigo chamei a atenção para a complexidade envolvida na guarda e na manutenção das calungas de madeira, que depois de esculpidas com o objetivo de se tornar um corpo humano perfeito, são feitas e alimentadas para agir. 16 Nas palavras nativas ancestral é aquilo que vem dos antigos de tempos imemoriais, do tempo dos africanos em recife e na africa e que permanece em uma memória física, prática, corporal e duradoura, essencial para a fabricação dos corpos e para a manutenção e ciação da vida.

225 Concebidas como verdadeiros sujeitos de ação, desestabilizam nossas noções de sujeito e objeto. Tais bonecas permitem a desessencialização e a comunicação entre mundos, relacionando vivos, mortos e divindades. São objetos especiais e potentes, com sabedorias próprias e eficácia comprovada pelas experiências vividas trazidas aqui pelos maracatus de nome Estrela Brilhante de Recife, em Pernambuco. A calunga Joventina é ainda hoje motivo de disputas e dissidências com relação à história desses maracatus de nome Estrela Brilhante. Contudo, recentemente esses dois grupos se juntaram diante do MHN, reivindicando as documentaçãoes de Katarina Real e pleiteando a possibilidade de um repatriamento da escultura sagrada. Nessa luta política e identitária, a diferença entre esses dois maracatus tão marcada por eles se dissolveu perante a instituição do museu da Fundação Joaquim Nabuco. Os dois maracatus a princípio rivais estão juntos desde a realização do documentário Dona Joventina 17 (Kubrusly; Barreto, 2010) lutando pela retirada da escultura sagrada do museu. A disputa sobre com quem ficará a boneca parece já estar resolvida por eles, que até o momento concordam que a escultura deveria ir para Igarassu, já que no Alto José do Pinho outras esculturas foram feitas e funcionam em seus afazeres de proteção. Ainda assim, as duas nações não parecem satisfeitas com a atual morada da calunga e permanecem em uma luta pela retirada da escultura sagrada do MHN. Figura 8.3. Dona Joventina acompanhada do Maracatu Leão Coroado na Fundaj. Festa pela ocasião em que Katarina Real recebeu o título de cidadã do Recife, 24/11/1967. Acervo iconografia Fundaj 17 Dona Joventina (26min, 2010) é um Documentário etnográfico partocinado pelo edital do prêmio Etnodoc Direção: Clarisse Kubrusly e Milena Sá. Montagem Julia Barreto Produção Murilo Saroldi.

226 Referências bibliográficas AMORIM, Maria Alice. Patrimônio vivo de Pernambuco: reconhecimento para arte e tradição cultural: barro, xilo, música e folguedos populares nas mãos de 12 mestres. Revista Continente Documento n. 43, março ANDRADE, Mário de. O maracatu. In: Danças Dramáticas do Brasil, tomo 2. Obras completas de Mário de Andrade XVIII. São Paulo: Itatiaia/Martins, ARAÚJO, Humberto. Maracatu Leão Coroado (org. Raul Lody). Recife: Fundação da Cultura da Cidade do Recife, BARBOSA, Cristina. A nação maracatu Estrela Brilhante de Campo Grande. Monografia de Etnomusicologia. Recife: UFPE, BARBOSA, Virgínea. A nação maracatu Estrela Brilhante do Alto José do Pinho ( ). Monografia de Etnomusicologia. Recife: UFPE, BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica [1986]. In: AMADO, Janaína; FER- REIRA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da história oral. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005, p CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, CLIFFORD, James. Collecting Art and Culture. In: CLIFFORD, James. The Predicament of Culture: Twentieth Century Ethnography, Literature and Art. Cambridge: Harvard University Press, 1988, p Objects and Selves. In: STOCKING, George (org.). Objects and Others: Essays on Museums and Material Culture. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985, p Sobre a alegoria etnográfica. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos (org.). A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, Sobre a autoridade etnográfica. In: GONÇALVES, José Reginaldo Santos (org.). A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, FERREIRA, Ascenso. In: BENJAMIN, Roberto (org.). O Maracatu, presépios e pastoris e o bumba meu boi: ensaios folclóricos. Recife: Departamento de Cultura, GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. BIB, Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, p. 7-26, São Paulo, 2. semestre 2005.

227 . A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, Coleções, museus e teorias antropológicas: reflexões sobre conhecimento etnográfico e visualidade. Cadernos de Antropologia e Imagem, n. 8, p , Rio de Janeiro, Uerj, O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHA- GAS, Mario (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Faperj/DPA/UniRio, 2003, p Ressonância, materialidade e subjetividade as culturas como patrimônio. (Texto apresentado na ABA, 2004.) Horizonte Antropológico 11 (23), Porto Alegre, jan.-jun GUERRA PEIXE. Maracatus do Recife. São Paulo/Recife: Irmãos Vitale/Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, JACKINS, Ira. Collecting. The Storage Box of Tradition: Kwakiutl Art, Anthropologists and Museums, Washington D.C.: Smithsonian Institution Press, 2002, p KOPYTOFF, Igor. The Cultural Biography of Things: Commoditization as Process. In: APPADURAI, Arjun (org.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, KUBRUSLY, Clarisse Quintanilha. A experiência etnográfica de Katarina Real ( ): colecionando maracatus em Recife. Brasília: Minc/Ibram, Reflexão antropológica sobre a experiência etnográfica de Katarina Real com os Maracatus em Recife. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2007, 140p. KUBRUSLY, Clarisse Quintanilha; SÁ, Milena; BARRETO, Julia (dirs.). Dona Joventina. Documentário [curta-metragem], 26 min. Rio de Janeiro/Recife: Etnodoc/Tribal Filmes e Sambak, LATOUR, Bruno. What is Iconoclash? Or is There a World Beyond the Image War? In: LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (orgs.). Iconoclash: Beyond the Image War in Science, Religion and Art; Massachusetts: The MIT Press, 2002, p MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: formação e razão da troca nas sociedades arcaicas [1925]. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p PEREIRA DA COSTA, Francisco Augusto. Folk-lore pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco. Prefácio de Mauro Mota.

228 Recife: Arquivo Público Estadual, 1974 (Publicado originalmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 70, 1908.) POMIAN, Krzysztof. Entre o visível e o invisível: teoria geral das coleções. Verbete Coleção. In: RUGGIERO, R. Enciclopédia Einaudi, 1: Memória-história. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p REAL, Katarina. Dona Joventina calunga do Maracatu Estrela Brilhante [Discurso, 1996]. Folheto. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Ministério da Educação e do Desporto, (Em vhs-dvd, editado em 1997, acervo da Comissão Pernambucana de Folclore.). Eudes o Rei do Maracatu. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, Folkways of Northern Brasil. Folheto da exposição organizada pela autora na Universidade da Carolina do Norte, O folclore e a bondade brasileira. Discurso proferido pela autora na Câmara Municipal, ao receber o título de Cidadã do Recife em 22/11/ O folclore no carnaval do Recife. Recife: Massangana, 1990 [1966]. SANDRONI, Carlos. O destino de Joventina. Comunicação apresentada no 36. Congresso do ICTM. Rio de Janeiro, jul SETTE, Mário. Maxambombas e maracatus. Recife Livraria Universal, STEWART, Susan. On longing: narratives of the miniature, The Gigant, the souvenir, the collection. London: Duke University press, 1993.VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Funarte, VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antônio da Silva; BARRO, José Flávio Pessoa de. A galinha-d angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Prefácio de Antônio Olinto. 3 ed. Rio de Janeiro: Pallas, WEINER, Annette. Inalienable Possessions: the Forgotten Dimension. In: WEINER, Anette. Inalienable Possessions: the Paradox of Keeping-While-Giving. Berkeley: University of California Press, 1992, p

229 9. ENTRE A RODA DE BOI E O MUSEU: UM ESTUDO DA CARETA DE CAZUMBA Flora Moana Van de Beuque No ano de 2006, o artesão Abel Teixeira proferiu uma palestra no Museu Casa do Pontal 1 no Rio de Janeiro, instituição dedicada à exibição de arte popular brasileira. Esse senhor maranhense, de 72 anos, é produtor das caretas do cazumba, máscaras utilizadas pelo personagem cazumba na festa do bumba meu boi. Abel tem um duplo papel: além de artesão das máscaras, também atua como o personagem cazumba. Esse foi meu primeiro encontro com Abel. Mas antes da palestra já conhecia suas caretas e algo sobre sua história. Meu contato com suas máscaras se deu no mesmo Museu Casa do Pontal, espaço que frequento desde a infância, já que foi criado por meu avô, o designer francês Jacques Van de Beuque. 2 Informações sobre Abel e as caretas também chegaram a mim por outras fontes: pessoas próximas 3 já haviam falado muito sobre ele; eu possuía em minha casa uma miniatura de sua máscara; conhecia ainda um livro sobre a careta (Mazzillo; Bitter; Pacheco, 2005). 1 O Museu Casa do Pontal está localizado no Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro. Exibe uma coleção de arte popular brasileira formada por mais de 8 mil esculturas, produzidas por cerca de duzentos artistas de vinte estados brasileiros. 2 Jacques Van de Beuque ( ) nasceu em Bavey, no norte da França, e veio para o Brasil com o término da Segunda Guerra Mundial, fixando residência no Rio de Janeiro. Formado em Belas Artes, em Lyon, desde o início de sua estadia no Brasil, interessou-se pela chamada arte popular brasileira (Mascelani, 2006). 3 Entre essaspessoas destaco especialmente a psicanalista Elisabeth Bittencourt e sua filha, a atriz e pesquisadora, Juliana, que conhecem Abel há anos. Elas têm forte ligação profissional e pessoal com ele.

230 A palestra de Abel no Museu Casa do Pontal me instigou fortemente a conhecer mais o universo festivo no qual a máscara se inseria, o qual conhecia pouco e parecia ser de uma riqueza ímpar. Ao elaborar o projeto de pesquisa cujos resultados apresento aqui, decidi por fazer um estudo antropológico sobre a careta. Nele, optei por aprofundar meus conhecimentos sobre o uso festivo da máscara e acerca das diversas vidas desse objeto (já que ele circula entre a festa, os museus e o comércio para turistas). Assim, esse artigo é fruto de uma etnografia da produção, uso e circulação da careta de cazumba por diferentes contextos sociais. Para dar início ao estudo, fui à casa de Abel em São Luís no Maranhão, em novembro de Nesse encontro pude conhecer mais profundamente sua trajetória. O trabalho de Abel como artesão das caretas é reconhecido no universo da festa e fora dele também. Ele nasceu em 1939 no povoado de Santo Inácio, no município de Viana, na Baixada maranhense. Em 1978, migrou para a capital do estado, São Luís. Em Viana era agricultor. Na capital do estado trabalhou principalmente como vigilante no serviço público, além de vender as caretas que produzia. Esteve sempre ligado à prática do bumba meu boi, antes e depois da ida para a capital. Atualmente, encontra-se aposentado do serviço público e é casado com Meire, sua segunda esposa, com quem reside num bairro popular de São Luís, chamado Coroadinho. Ele é muito procurado por pesquisadores e admiradores de sua produção, que também querem ter mais informações sobre sua atuação como cazumba. 4 Já foram feitas algumas exposições temporárias nas quais figuravam suas caretas, como no Museu do Folclore Edison Carneiro, no Centro Cultural da Caixa Econômica (ambos no Rio de Janeiro) e no Centro de Cultura Odílio Costa Filho, no Maranhão. Suas caretas compõem o acervo de museus no Brasil (Casa do Maranhão, Maranhão; Museu do Folclore Edison Carneiro e Museu Casa do Pontal, Rio de Janeiro; Museu Afro-Brasileiro, em São Paulo, e outros) e no mundo (Museu da Máscara em Bragança, Portugal). Já nesse dia, em sua casa em São Luís, pude perceber que além de a careta ser ressignificada nesse processo de deslocamento, Abel também parecia ter sua identidade ressignificada à medida que participava desse novo circuito. A posição de artista popular que alcançou em alguns meios o diferenciava 4 A descrição desse personagem mascarado da festa do bumba meu boi, que tem características complexas, entre elas um viés cômico e outro assustador, será feita de forma aprofundada a seguir, a partir de relatos etnográficos.

231 dos seus colegas cazumbas, que em sua maioria produziam máscaras quase exclusivamente para uso no período festivo. O antropólogo Igor Kopytoff (2008) diz que as coisas podem ser estudadas como se fossem pessoas, sendo rentável pensar a vida social das coisas. Ainda segundo ele, nos grupamentos humanos de grande escala, as identidades em geral seriam menos estáveis, daí a possibilidade de múltiplas classificações e reclassificações, extensivas aos objetos. Inspirada em Kopytoff, fui em busca da biografia cultural das máscaras do cazumba por seus distintos contextos de significação. Ao longo da pesquisa, no entanto, fui me dando conta de que Abel e a máscara constituíam-se como uma díade inseparável, que meu trabalho consistia não só no acompanhamento da máscara pelos distintos contextos sociais, mas também da circulação de Abel por eles. A circulação da máscara se dava junto com a de Abel; e, nesse processo, ambos se ressignificavam. A pesquisa, assim, se debruçou consideravelmente sobre Abel. Entrando no contexto festivo No contexto festivo, o estudo concentrou-se no grupo de bumba meu boi Boi da Floresta grupo no qual o artesão participa como cazumba e nos acontecimentos vivenciados por mim nas viagens feitas à região da Baixada maranhense junto com o artesão. 5 No que identifico como universo de circulação da máscara fora da festa, concentrei a pesquisa em alguns museus (são eles os citados Casa do Maranhão, Museu de Folclore Edison Carneiro e Museu Casa do Pontal) e em alguns atores sociais que contribuem para o deslocamento da careta e de Abel. Para adentrar o contexto festivo cabe uma pequena introdução ao universo dos folguedos do boi e ao personagem cazumba. Esse folguedo existe Brasil afora, assumindo diversas feições, envolvendo brincadeiras variadas em torno da figura de um boi. Dependendo da região em que é realizado, pode variar em muitos aspectos: em relação às características da ação ritual, 6 da 5 Foram quatro idas ao Maranhão entre 2008 e Em novembro de 2008, estive lá por uma semana. Em 2009 estive quinze dias em fevereiro, vinte dias entre junho e julho e dez dias em setembro. 6 Entendo ritual, em primeiro lugar, como um domínio privilegiado de expressão simbólica (Giumbelli; Cavalcanti, 2009). Também é possível pensá-lo como um momento especial, que se contrapõe ao tempo ordinário e é instituído por diferentes mecanismos de ritualização, personagens, gestos e roupas características (DaMatta, 1979).

232 época do ano em que se desenrola ou do nome que recebe. Apesar das variações, podemos classificar todos da mesma forma, como folguedos do boi, pois têm características fundamentais em comum. Sempre encontramos um boi-artefato, feito em madeira ou outro material como o plástico, que é animado por um brincante, e em torno do qual está uma série de personagens que cantam, dançam, atuam, tocam, etc. A brincadeira é associada ainda ao mito de morte e ressurreição do boi (Cavalcanti, 2000). 7 Não só entre os estados brasileiros existem diferenças na forma de brincar, 8 já que alguns folguedos do boi da mesma região e que recebem a mesma denominação se expressam de maneira heterogênea entre si. É o caso do bumba meu boi que se realiza no Maranhão. Uma classificação bastante disseminada nesse estado divide os grupos de boi em diferentes sotaques, que designariam estilos e/ou demarcariam regiões de origem. Existiriam cinco sotaques predominantes: zabumba, costa-de-mão, matraca, orquestra e baixada (Carvalho, 1995). O cazumba é um personagem encontrado principalmente nos grupos considerados do sotaque intitulado baixada. Esse sotaque compreende, principalmente, aqueles grupos que estão sediados na região da Baixada maranhense 9 ou se localizam em São Luís e foram formados por pessoas que migraram daquela região. A partir das observações possibilitadas pelo trabalho de campo, é possível dizer, como introdução ao cazumba, que esse é um personagem ambíguo: ao mesmo tempo que é cômico também é assustador, e comete pequenas transgressões. 10 Sobre sua máscara, pode-se afirmar que é muito importante para o pleno exercício das funções rituais do personagem. No contexto pesquisado, existem muitos tipos de máscaras, que podem ser feitas com materiais 7 Existe uma densa bibliografia que abordou o folguedo do boi: Andrade, 1982; Azevedo Neto, 1997; Borba Filho, 1966; Pereira de Queiroz, 1967; Cavalcanti, 2006b, 2006c, Entre os que estudaram mais especificamente o bumba meu boi do Maranhão, destacam-se: Albernaz, 2004; Araújo, 1983; Bueno, 2001; Carvalho, 2005; Carvalho, 1995; Lima, 1982; Prado, Modo de denominar o ato de festejar, utilizado por participantes de festas populares de vários contextos brasileiros. 9 A Baixada maranhense é assim denominada por ser uma região de campos baixos, possuindo numerosos rios, lagos e campos alagados. Economicamente essa região sobrevive da agricultura e pesca (Matos, 2010, p. 13). 10 Diversos autores analisaram a atuação ritual do cazumba e abordaram a importância da máscara para sua ação no contexto festivo (Bittencourt, 2009; Lody, 1995, 1999; Ferretti, 1986; Ferretti e Matos, 2010; Manhães, 2009; Matos, 2010; Mazzilo; Bitter; Pacheco, 2005). O presente trabalho se diferencia dos demais por analisar de forma aprofundada o lugar da máscara no contexto ritual, assim como por investigar de forma inédita a circulação desse objeto por contextos exteriores à festa.

233 diversos e com diferentes técnicas. De forma geral, podemos dividi-las em dois estilos principais: as menores e as de grandes formatos. As menores, que cobrem apenas o rosto, costumam representar um ser antropozoomórfico. Feitas de madeira, pano, plástico ou papel machê, podem incluir simultaneamente diferentes misturas de materiais. As do segundo tipo são as maiores, que recebem os nomes de torre ou igreja, e costumam ser compostas de uma máscara menor que cobre o rosto e de uma estrutura que sobe acima da cabeça. Essa estrutura também pode ser feita em materiais diversos como ferro ou isopor, costuma ser muito alta e é amplamente decorada. Figura 9.1. Cazumba criança do grupo Boi da Floresta usando máscara do tipo menor em apresentação no período junino em São Luís, 28/06/2009. Fotografia da autora

234 Além da máscara, o cazumba utiliza uma veste que cobre o corpo todo e tem também grandes nádegas. Ele leva ainda um sino, que é seu instrumento percussivo, e pode ter outros acessórios como chicotes e bonecas. A ação ritual do cazumba se dá principalmente no interior da roda do bumba meu boi. Dentro dela o grupo de cazumbas dança, um atrás do outro, de forma circular. Tem um aspecto que caracteriza especialmente a dança do cazumba: o brincante que dá vida ao personagem, ao longo de sua performance, mexe seu quadril para um lado e para o outro, fazendo balançar as grandes nádegas, o que torna a cena cômica. O cazumba não precisa permanecer o tempo todo dentro da roda, é um dos poucos personagens que pode abandoná-la. Nesses momentos pode fazer traquinagens com os demais participantes da festa. Ao analisarmos sua atuação durante a festa, a importância da máscara e da indumentária na eficácia ritual do cazumba será reforçada. Esses objetos ajudam a produzir o cazumba, assim como seus efeitos no contexto festivo. Eles contribuem para o personagem produzir alguns sentimentos nos participantes da festa, como medo, curiosidade, atração e graça. Como veremos adiante, ajudam a construir os sentidos míticos desse personagem, o inventam. Produzem ainda relações de rivalidade entre os cazumbas, que disputam para saber quem tem a melhor careta ou torre. Assim, é possível afirmar que a máscara tem agência, no sentido colocado por Alfred Gell (1998), já que ela tem uma atuação social e é produzida para causar efeitos nas pessoas. O Boi da Floresta em São Luís Foi através de Abel que cheguei ao grupo Boi da Floresta, que se tornou um dos meus espaços privilegiados de pesquisa no contexto ritual de inserção da máscara. Abel participa do grupo desde que chegou à capital do estado maranhense e é um dos principais cazumbas do grupo. Seu trabalho como artesão de caretas é bastante reconhecido ali, mesmo que ultimamente outro artesão, Nilson, também tenha se destacado. O Boi da Floresta tem sua sede em um bairro popular de São Luís: Liberdade. O grupo tem como líder Apolônio Melônio, que fez 93 anos em julho de 2011 e continua atuante no Boi da Floresta. Por conta de sua idade, no entanto, sua esposa tem estado mais ativa na condução do grupo. O Boi da Floresta tem em torno de 130 integrantes, a maioria provinda das camadas populares e com alguns integrantes das camadas médias, que se dividem entre os diferentes personagens. O grupo foi criado na década de 1970 e uma

235 de suas características é a proximidade com grupos de intelectuais e pesquisadores. O seu ciclo festivo desenrola-se entre os meses de março/abril e setembro. Suas atividades se iniciam com os ensaios do grupo realizados a partir do último dia da Semana Santa no calendário católico. No dia 23 de junho acontece o batizado, evento no qual o boi, artefato em torno do qual se faz a brincadeira, é habilitado simbolicamente para brincar. Durante os meses de junho e julho o grupo é contratado prioritariamente pelo governo para brincar em espaços públicos (arraiais) por toda a cidade de São Luís. Também é possível se apresentarem durante o São João na porta da casa de amigos do grupo. Suas apresentações são feitas em roda. Na parte exterior dela, se localiza a tribo de índios, composta majoritariamente por jovens que dançam em círculo de maneira vigorosa e coreografada. Em direção ao centro da roda, dança o grupo de cazumbas. No centro da roda brincam alguns personagens: o boi e seu vaqueiro, Pai Francisco, Catirina, a onça, a burrinha e outros. Atrás da roda, em semicírculo, estão os baiantes, os músicos e cantadores, e entre eles o amo. A apresentação se desenrola pautada pelas diferentes toadas, que são as músicas próprias do bumba meu boi. Em setembro, o Boi da Floresta costuma encerrar seu ciclo festivo com a Morte do Boi. Nessa festa, de cunho mais comunitário, é encenada a morte do boi pelo grupo. O número de cazumbas do Boi da Floresta varia muito. Durante o período em a pesquisa foi realizada existiam em torno de 15 pessoas que atuavam como o personagem, de faixas etárias distintas: crianças, jovens, adultos e idosos. As vestes e máscaras são normalmente feitas por integrantes do grupo e circulam intensamente entre eles. A atividade de feitura das caretas envolve disputa entre os participantes do Boi da Floresta e com os demais grupos. Uma particularidade dali é a presença de mulheres como cazumbas, o que não é muito recorrente em outros contextos. Essas mulheres são normalmente provindas das camadas médias. Circulando pela Baixada maranhense Em todas as conversas que tivemos desde que nos conhecemos, Abel falou com bastante entusiasmo das suas atividades como cazumba quando morava no interior maranhense. Mesmo que Abel tenha tido essas experiências há muitos anos e saiba que as festas no interior passaram por mudanças, sempre insistiu para que eu fosse a essa região. Ele é muito crítico em rela-

236 ção às mudanças ocorridas no interior e o seu principal alvo são as torres, máscaras altas bastante usadas pelos cazumbas da região. Porém, igualmente ele afirma que além dessas práticas, que ele não valoriza, também é possível ver na Baixada cazumbas em ações rituais especialmente interessantes. Num estudo sobre as tradições cômicas do bumba meu boi, Carvalho (2005) também mostrou que Betinho, seu principal interlocutor, insistia para irem juntos para o interior maranhense. Betinho dizia que lá, sim, ele poderia mostrar-lhe a verdadeira tradição (p. 77). Tanto Abel como Betinho localizam no interior as brincadeiras mais interessantes, aquelas que não poderiam ser encontradas na capital, e querem que seus interlocutores tenham conhecimento dessa referência que tanto valorizam. Mesmo que eu não aposte na existência de brincadeiras mais ou menos autênticas, ir à Baixada foi de fato uma possibilidade de entender melhor, entre outras questões, a relação de Abel com o interior. Fui duas vezes para essa região. Na primeira ida, fui à cidade de Viana, e pude conhecer alguns cazumbas e artesãos de careta dali. A segunda ida deu-se no mês de junho, durante o período festivo do bumba meu boi. Dessa vez pude presenciar contextos rituais distintos, como um arraial no município de Matinha (quando uma série de grupos se apresentou durante uma hora cada na praça central da cidade); um boi de promessa no município de Viana (em que dois grupos brincaram durante uma noite inteira, com objetivo de cumprir o pagamento de uma promessa, e para tal ocorreu o ritual da matança); e uma festa realizada na cidade de Viana, que ocorreu durante algumas horas da noite, na qual um grupo foi pago para brincar na porta do contratante. Estar com Abel no interior me ajudou a entender um pouco mais sua complexa trajetória. Na primeira ida à Baixada, em 2009, em Viana, pude conhecer Onório Serra, cazumba amigo de Abel. Quando o encontramos, ele foi logo contando que era considerado o melhor cazumba de Viana. Onório Serra, que faz as torres, gabava-se de ter ganhado o concurso da região de melhor cazumba. Esse concurso, como entendi depois, não havia existido de modo institucionalizado, mas era o jeito com que todos se referiam ao consenso geral estabelecido entre os brincantes de que ele era o melhor. Senti que Abel estava desconfortável por não fazer as máscaras grandes, por ter de ouvir calado que o outro era o melhor fazedor de careta de Viana. De maneira arguta, ele justificou sua opção dizendo: eu faço as pequenas porque elas me levaram mais longe. Nessa fala, Abel expressa o poder de agência das suas máscaras, revelando a capacidade desses objetos por ele produzidos de promover seu deslocamento social, seu reconhecimento como artista, etc. Percebemos, assim,

237 que a máscara também tem agência fora do contexto ritual (ela o levou mais longe, o fez circular como artista por outros estados do Brasil, ou mesmo por espaços fora do país). Vemos também essa agência fora da festa ser poderosa no contexto festivo, já que é acionada por Abel na relação de rivalidade com o outro cazumba: ter ido mais longe o deixa competitivo perante Onório. Sobre a questão mais geral da competição entre os cazumbas, o estudo de Cavalcanti (2006a) sobre desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro pode nos ajudar a pensá-la. A autora explorou o caráter competitivo desses desfiles, mostrando que a disputa é um modo de relacionar-se que instaura um vínculo entre os participantes. Acredito ser possível fazer um paralelo entre essa dimensão do universo das escolas de samba e a brincadeira dos cazumbas. Além da conversa entre Onório e Abel, em outras situações pude perceber que, no contexto festivo em geral, aqueles que dão vida a esse personagem mascarado disputam intensamente entre si. A competição parece ser bastante importante na sociabilidade dos cazumbas, apresentando-se como um modo de se relacionar, mas também como um propulsor das relações. Reflexões sobre cazumbas e caretas no contexto festivo Apesar das diferenças entre a festa na capital São Luís e os circuitos de apresentação pelos quais pude transitar no interior (na região da Baixada), é possível dizer que existem pontos em comum entre os dois contextos em relação à produção, ao uso e à circulação das máscaras dos cazumbas. A seguir darei foco nessas semelhanças, trazendo, sempre que necessário distinções entre os contextos. Sentidos do cazumba Sobre os sentidos do cazumba, tanto no Boi da Floresta como na Baixada, fala-se sobre sua alegria, o lado cômico, as pequenas transgressões, a capacidade de assustar e seu mistério. Quando perguntei a alguns brincantes quem era esse personagem, ouvi diferentes respostas: Genilson (fevereiro de 2009), cazumba da Baixada, disse: Na tradição ele era o cachorro, que trazia o boi para matar. Genilson mostra que o cazumba funciona como uma espécie de carrasco no mito associado à festa do bumba meu boi. Sobre o personagem, o cazumba Nico (fevereiro de 2009), também da Baixada, afirmou: O cazumba é um velho gagá que tinha na fazenda, o Pai

238 Francisco. Diziam que até virava bicho. Em sua fala ele faz referência ao mesmo tempo às características animalescas (bicho), humanas/grotescas (velho gagá) e sobrenaturais (virava bicho) do personagem. Também vemos Nico fazer uma associação entre o personagem do bumba meu boi Pai Francisco e o cazumba. A fala dos brincantes sobre a ação ritual do cazumba também pode ser reveladora. Sobre a sua atuação como cazumba na festa, Onório Serra (fevereiro de 2009) disse: Eu enfeito muito a boiada, chama a atenção a boiada. A boiada que estou brincando é muito aplaudida. Onde eu estiver brincando é aplaudida a boiada, até os bailantes se animam na cantiga. Se a brincadeira tá meio devagar, eu animo. Eu chamo a atenção. Tem um monte que se apronta e não sabe dançar. Eles não sabem fazer a careta e não sabem dançar. Parece que Onório vê a realização correta da dança como um exercício fundamental para ser um cazumba bem-sucedido, já que, durante as apresentações, na maior parte do tempo o personagem está dançando. A dança costuma agradar, entre outros motivos, pelas grandes nádegas do personagem, que dão força a seu lado grotesco e, quando balançam, fazem todos rir. Onório também aponta para o fato de que o cazumba anima a brincadeira. Fabriciano, cazumba do Boi da Floresta, disse em julho de 2009: O negócio ali é uma fantástica que tem na boiada. Você tá aqui, fechado de gente aqui, vem um cazumba por lá, vai se afastando. É um negócio de encaretado, ninguém olha a feição dele. É um tipo de negócio de satanás. Suas palavras nos fazem refletir sobre uma discussão empreendida por Daniel Bitter (2008), que assinala que em seu trabalho de campo junto a um grupo de Folia de Reis no Rio de Janeiro, os palhaços foram associados pelos brincantes a figurações míticas consideradas perigosas, como diabo e exu. A partir das proposições de Victor Turner (1982), ele mostra que diabo e exu podem ser vistos como seres ambíguos, posicionados além da estrutura social; e pelo fato de o palhaço ser associado a essas figuras, ocupa posição parecida. Fabriciano, ao relacionar o cazumba à figura do satanás, outro modo de chamar o diabo, nos leva a refletir que os cazumbas podem ocupar posição simbólica análoga à dos palhaços, exus, diabos e outras figuras míticas.

239 Como visto, os sentidos do cazumba são diversos. É possível rir do modo como ele dança, mas também se assustar com sua imagem. É possível rir das traquinagens que ele faz com os outros e não gostar de ser alvo de suas brincadeiras. Ao mesmo tempo, o cazumba é um personagem que anima a brincadeira e que traz vestes e máscaras exuberantes. No mito de morte e ressurreição do boi relacionado à festa, ele é aliado do Pai Francisco (que em algumas versões é responsável pela morte do boi), e não se sabe se é um humano, um animal ou um ser sobrenatural. Assim, o cazumba se apresenta como um personagem complexo, que atrai, descontrai, mas assusta. Ele se mostra um ser liminar que pode ser tomado como símbolo multivocal, uma molécula semântica com muitos componentes (Turner, 2005, p. 149). Vimos que, de modo geral, os sentidos do cazumba na Baixada assemelham-se àqueles associados ao personagem no Boi da Floresta. Porém, existem diferenças entre os contextos: na Baixada, o cazumba parece ter um leque mais amplo de atividades rituais. Isso se mostra, por exemplo, nas diversas ações rituais que pude presenciar dos cazumbas em uma festa do boi de promessa na Baixada: sequestrando um rapaz, dançando forró de modo grotesco, assustando os meninos, correndo em suas direções, etc. Esse fato não muda significativamente os sentidos do personagem, mas na Baixada talvez seja possível perceber o conjunto de características do personagem de maneira mais explícita. Percebi também que o cazumba tem ali suas atividades mais ligadas a questões do universo rural. Uma careta para brincar Existem muitos modos de se obter uma careta para brincar no contexto festivo. De modo geral, é possível que: 1) o líder do grupo compre uma máscara de algum artesão e passe para o brincante; 2) a pessoa compre diretamente do artesão; 3) alguém não queira mais utilizar uma careta e a doe ou venda para outro; 4) seja produzida a partir de tentativas solitárias; 5) que alguém que já saiba fazê-la ensine ou ajude novatos no processo de confecção; 6) que se compre uma máscara industrializada e se enfeite. Esses meios de obter a careta indicam que ela circula muito no contexto festivo, através de trocas. Existem várias formas de se trocar a careta nos grupos, e podem envolver dinheiro ou não. É possível que a troca seja realizada com intuito religioso, o que foi abordado pelo cazumba Nilson (julho de 2009), do Boi da Floresta: Eu sempre faço uma careta e, quando acaba a temporada, eu dou ela pra São João, que fica lá na sede, e Nadir passa pra

240 outro brincante. A fala desse cazumba é bem interessante, já que Nilson parece oferecer a máscara ao grupo numa relação de troca com o santo. A discussão empreendida por Marcel Mauss em Ensaio sobre a dádiva (2003) pode contribuir para refletirmos sobre o caso de Nilson. A partir de diversos relatos etnográficos, o autor fala sobre as trocas voluntárias realizadas como se fossem presentes gratuitamente dados, recebidos e retribuídos. Porém, apesar de não ser explicitado pelos participantes das trocas, ele revela que subjaz a elas a obrigatoriedade de dar, receber e retribuir. Assim, toda dádiva pressupõe uma contradádiva. É possível que na relação de Nilson com o santo essa questão se apresente. Podemos pensar que, ao entregar a máscara a ele, o artesão espere uma contradádiva em retorno. É interessante que, mesmo que se compre a máscara de um artesão, a receba por doação, usada ou industrial, o cazumba dificilmente deixará de fazer algum acréscimo a ela por conta própria. Por meio do enfeite é possível transformar uma máscara que pode ter sido de outra pessoa ou que obedeça a determinada padronagem em algo que passa a ter as características daquele que a utiliza. O cazumba Bruno, do Boi da Floresta, que é um adolescente, é um exemplo, já que fez um enfeite que deixou sua careta com características bem particulares. A careta tem o formato igual a de muitos cazumbas do grupo, mas é enfeitada de modo singular, com o que representa uma espécie de cabelo do personagem com comprimento maior que o usual. Figura 9.2. Cazumba com máscara em São Luís. Fotografia: Flora Moana Van de Beuque

241 Essa diversificação dos formatos das máscaras estaria relacionada aos sentidos do cazumba. Esses personagens são mais singularizados uns em relação aos outros do que os demais da festa; dessa maneira, suas caretas também precisam ser. Os cazumbas são diferentes de personagens totalmente singularizados da festa do bumba meu boi, como o boi ou o amo, e também fazem contraste com personagens mais homogêneos entre si, como a tribo de índios os cazumbas são diferentes entre si, particularizados, mas também atuam em grupo, tendo um propósito de coletividade. Assim, a liminaridade do cazumba, construída nas suas ações individualizadas e livres dentro da brincadeira, é reproduzida nos aspectos formais da máscara; a singularidade da máscara produz uma ação ritual mais efetiva do cazumba. Além da necessidade de cada cazumba singularizar sua máscara, também há a ideia de que esses objetos precisam ser fruto de ações inventivas e não tradicionais. O artesão que tem criatividade individual seria então valorizado nesse contexto, abrindo margem para uma inventividade sem limites. Um exemplo dessa inventividade foi uma máscara que vi em Matinha, na Baixada, que era totalmente diferente das demais: representava um homem em tamanho grande e o rosto do brincante se localizava na altura da barriga da figura. Figura 9.3. Cazumba com máscara que representa um homem em Matinha, MA. Fotografia: Flora Moana Van de Beuque

242 A produção das máscaras é, ao mesmo tempo, uma atividade realizada por especialistas e por não especialistas. Existem os artesãos reconhecidos por fazer as máscaras muito bem e que são convidados a confeccioná-las para terceiros, mas elas também podem ser feitas por alguém que não é considerado especialista pelo grupo. No Boi da Floresta, os dois artesãos tidos como especialistas pelos integrantes do grupo (Abel e Nilson) criaram um estilo inconfundível de caretas e costumam vendê-las para o grupo ou individualmente, para brincantes. Eles também lecionaram em oficinas de produção desses objetos nos grupos. Como em São Luís o personagem cazumba existe basicamente em alguns poucos grupos de bumba meu boi cujos fundadores são oriundos da Baixada maranhense, não existem por lá tantos artesãos da máscara. Já na Baixada, como a quase totalidade dos grupos possuem cazumbas, existem muitos artesãos: tanto aqueles que fazem as máscaras para uso próprio como os especialistas que as produzem para vender a terceiros. Os artesãos com trabalho reconhecido pelos demais brincantes na Baixada costumam enfatizar seu talento pessoal para a atividade. Existe a forte construção da ideia de que são indivíduos que se destacam dos demais na produção das máscaras, e a disputa é intensa. Torres em ação As torres são bastante usadas na região da Baixada, e aqueles que as produzem participam de um intenso jogo competitivo. Todos querem exibir suas máscaras e ser elogiados por elas. Para produzir uma torre na Baixada, normalmente se compra de algum artesão um queixo (parte que cobre o rosto, normalmente feita em madeira) e constrói-se uma estrutura (muitas vezes de isopor), que é encaixada nele e ultrapassa a altura da cabeça. A madeira para fazer o queixo costuma ser a paparaúba ou tapiririca, escolhidas por serem mais macias para talhar e, muitas vezes, trazidas das partes mais rurais da Baixada. O trabalho mais valorizado na feitura das torres é essa estrutura que vai além da cabeça. Tenta-se fazer trabalhos com formatos inovadores, usam-se até luzes para enfeitá-la, e quanto mais alta, melhor.

243 Figura 9.4. Torre em Matinha, MA. Fotografia: Flora Moana Van de Beuque Na capital São Luís, o grupo Santa Fé, que também é considerado de sotaque da Baixada, já utilizava torres há algum tempo, quando o Boi da Floresta ainda não as possuía. Havia grande desejo dentro do grupo de que conseguissem fazê-las, mesmo que houvesse alguma resistência entre os mais velhos em função desse novo formato. Como mostrou Malinowski (1976), num estudo entre os trobriandeses, na Melanésia, no ato cerimonial de troca de colares e braceletes chamado kula os objetos desempenhavam um papel importante, valorizando os indivíduos que os possuíam, já que lhes conferiam prestígio. Tomando esse estudo como referência, é possível assinalar que as torres desempenham papel semelhante, já que, quanto mais altas as máscaras, mais valorizados são os brincantes. No Boi da Floresta, as torres de Nilson têm como base sua máscara pequena, e acima dela vem uma estrutura de isopor sobre a qual ele acrescenta outra estrutura.

244 Figura 9.5. Abel Teixeira, na sede do Boi da Floresta, em São Luís, MA. Fotografia: Flora Moana Van de Beuque Sobre o processo de confecção das torres, ele disse em entrevista em julho de 2009: Esse ano é uma de touro que eu fiz toda lilás, fazendo uma homenagem ao Divino do Espírito Santo. Eu coloquei duas coroas e coloquei a pombinha no meio. Porque, quando eu faço uma careta, ela tem um objetivo, ela tem uma forma. Esse depoimento nos permite refletir sobre o caráter complexo dos sentidos da careta. Nilson diz que sua máscara pequena revela a imagem de um touro, mas podemos pensar que esse é um sentido aproximado. Ao olharmos para ela, vemos características de um touro, mas também de outros animais, assim como algumas características humanas, e outras que não remetem a nada de conhecido na natureza. A máscara pequena parece representar um ser fantástico que produz estranhamento, assusta, mas também atrai. O sentido da máscara torna-se mais complexo, e mais ainda quando é posta sobre a careta pequena uma estrutura de isopor com imagens relacionadas ao universo religioso cristão. As formas das máscaras estariam bastante relacionadas à construção de sentido do personagem. Elaborariam, por exemplo, a complexidade do personagem, já que seriam compostas por signos diversos, às vezes dissonantes, como as torres que podem reunir formas monstruosas com símbolos religio-

245 sos. Como as máscaras Ndembu (Turner, 2005), feitas a partir de elementos da vida social comum, mas arrumadas de uma forma diferente (esses objetos traziam membros humanos com tamanhos distorcidos, colocavam lado a lado partes de animais e de homens, alteravam as cores da natureza, etc.), e tinham como função simbólica permitir que os neófitos refletissem sobre a realidade social; as caretas e suas formas enigmáticas parecem operar no mesmo sentido, levando aqueles que se deparam com ela a colocar a realidade social em perspectiva. Vemos, assim, a máscara agindo no contexto ritual, exercendo uma modalidade de poder. Função estética e função performativa No depoimento de alguns brincantes da Baixada encontramos um tom de crítica em relação à atuação contemporânea dos cazumbas, principalmente em relação ao uso das torres. Nico (fevereiro de 2009), cazumba e artesão de caretas, residente na Baixada, mostra sua posição: Antes saía, roubava coisa, ninguém falava nada, hoje não pode, já chamam a polícia, chegava em casa às 4 horas da tarde. Hoje não tem mais graça, o cazumba hoje em dia é luxo, é só para mostrar farda bonita, uma careta, aquela coroazona grandona. Isso que acontece. Antes tinha mais graça. Nico parece opor um passado mais livre a um presente no qual esse personagem não pode exercer suas travessuras com liberdade e está mais preocupado com a exibição de sua farda e de suas máscaras grandes. É curioso ver que a careta ocupa lugar importante nessa sua comparação. Sua crítica ao modo de brincar no presente está relacionada, entre outras questões, ao uso das máscaras grandes, as torres, chamadas por ele de coroazonas. Para ele, as máscaras pequenas permitem uma ação ritual mais livre. A crítica de Nico é semelhante à encontrada no Boi da Floresta (e que também aparece com ênfase no discurso de Abel). 11 Podemos perceber que essa fala aponta para o fato de que, dependendo da máscara utilizada, os sentidos da ação ritual do cazumba se modificam. As torres parecem estar atreladas a um modo de ação ritual que enfatiza a exibição; o uso das máscaras pequenas estaria relacionado a um modo de atuação mais ligado ao lado cômico do personagem. No trabalho de campo na Baixada, percebi que 11 Essa fala pode revelar um sentimento de nostalgia.

246 nas apresentações de uma hora realizadas nos arraiais o mais importante era exibir as torres. É possível avaliar que, nessas situações, sua função estética estivesse mais ativada. Já nas festas que duravam a noite inteira, o foco parecia estar colocado nas atividades lúdicas do personagem. Nesse caso, é possível afirmar que sua função performativa estivesse mais ressaltada. Apesar de Nico e outros cazumbas, tanto da Baixada como do Boi da Floresta, fazerem um discurso de oposição entre as duas práticas, muitos vivem essa questão de outra maneira. É comum a mesma pessoa ter duas máscaras, uma pequena e uma grande, que podem ser usadas dependendo da situação. Também percebi que o exercício de atividades lúdicas não se realiza em total oposição à exibição das máscaras. Mesmo que alguns contextos exaltem mais um lado que o outro, independentemente da situação o cazumba revela em algum nível seu caráter lúdico e de exibição da indumentária. Talvez seja possível afirmar que a função estética e a função performativa sejam duas polaridades da ação ritual do cazumba. Elas estariam sempre presentes (sendo complementares), mas, dependendo da situação, uma função seria mais ativada do que a outra. Vale assinalar que, para o exercício das duas funções, os objetos do cazumba (máscara e veste) são muito importantes. Na função estética a agência deles é fundamental para que essa função se exerça, já que ela está intrinsecamente ligada à questão da plasticidade. Percebemos no exercício dessa função a máscara agindo, tanto no sentido de causar maravilhamento com as formas como provocando disputas entre os cazumbas. Em relação à função performativa, a careta e a veste também são fundamentais. Como visto anteriormente, a partir de seus aspectos formais elas ajudam a construir os sentidos complexos do personagem e, em conjunto com a ação do brincante que dá vida a ele, provocam efeitos naqueles com quem o cazumba interage. Em contato com o personagem, e pela ação dos seus objetos, as pessoas sentem medo, riem, se sentem atraídas. A máscara e a veste ajudam ainda presentificar a figura mítica do cazumba, tornando eficaz sua performance na festa. Os objetos e a eficácia ritual do cazumba Vale ainda aprofundar a discussão a respeito da relação entre a máscara e outros objetos na ação do cazumba. Uma dessas relações se dá entre a careta e o cofo (cesto colocado por debaixo da veste do cazumba, na parte traseira, que faz que tenha grandes nádegas). A careta monstruosa causa espanto e o

247 cofo provoca o riso nos participantes da festa. As grandes nádegas, em conjunto com a máscara, produziriam um monstro poderoso do qual se pode rir (Clastres, 1978). Lembramos que o humor é muito importante na caracterização do cazumba; ele assusta, transgride, incomoda, mas é tudo considerado uma brincadeira. O lado cômico do cazumba permite assim que sejam abordados, nas traquinagens que faz, assuntos considerados tabus (como o sexo, a violência, a morte, o diabo), já que é mais fácil tomar contato com esses temas pelo viés do humor. Outra relação se dá entre a máscara e a farda (veste que cobre o cazumba): a máscara assusta aqueles que se deparam com ele, mas o personagem tem, muitas vezes estampada na parte traseira da farda a figura de um santo católico. Isso reforça mais uma vez a ideia de que o cazumba é complexo em seus sentidos, assim como os objetos que ajudam a produzi-los e pô-los em cena, causando efeitos naqueles que interagem com o personagem. Vemos, mais uma vez, toda a indumentária do cazumba e sua materialidade sendo fundamentais para eficácia do personagem. Mas é preciso lembrar aqueles aspectos indispensáveis à sua ação ritual: a pessoa que dá vida a ele e o contexto festivo propriamente dito. Os objetos festivos (a careta e a indumentária) não têm sentido sem o brincante que dá vida ao personagem, da mesma forma que o cazumba não se presentifica fora do espaço/tempo festivo. Portanto, a agência dos objetos, nesse contexto, está atrelada à ação do brincante e à moldura da brincadeira (Bateson, 1972). Abel e a circulação da careta Nas conversas com Abel, o universo de circulação da careta por contextos exteriores à festa foi se delimitando. Desde nossas primeiras entrevistas, ele já assinalou a importância da pesquisadora Zelinda Lima para sua inserção nesse circuito. Ele contou que veio do interior do Maranhão, de Viana, para a capital do estado, São Luís, para cobrar o pagamento de umas caretas que o Boi da Floresta havia lhe encomendado. Chegou na semana da festa, brincou e, no término dos festejos, resolveu tentar estabelecer-se na cidade. Apolônio Melônio, que lhe encomendara as caretas por intermédio de Zelinda Lima, que trabalhava na Secretaria de Cultura do Estado, conseguiu que ele fosse contratado para trabalhar no serviço público. Além disso, ela, que foi personagem relevante na formação das políticas públicas para as culturas populares no Maranhão, contribuiu muito para a inserção de Abel num cir-

248 cuito de venda distinto do festivo, já que comprava sistematicamente suas máscaras e indicava que outras pessoas as adquirissem. Na década de 1980, Abel foi transferido por Zelinda para o Centro de Cultura Domingos Vieira Filho, instituição do estado dedicada ao campo das culturas populares. Lá foi contratado para atuar como vigilante e também para restaurar peças do acervo da instituição. As pessoas entrevistadas relataram que, depois de um tempo de serviço, Abel começou a usar o expediente no Centro de Cultura para fazer suas caretas. Em relação ao trabalho como restaurador, ele disse em janeiro de 2009 que não tinha gostado de realizá-lo, pois não via muito sentido na restauração de peças relacionadas às festas e às devoções populares, já que, ao fazê-lo não poderia interferir muito nas obras. Esse detalhe é facilmente compreendido se lembrarmos a dinâmica de reaproveitamentos de caretas praticada entre os brincantes do boi. Restaurar seria, de certa maneira, imobilizar. Para ele, as obras estariam mais ligadas ao uso. No entanto, é interessante observar que a concepção de Abel sobre a musealização da máscara é ambígua. Ao mesmo tempo que estranha o enfoque dos museus, também gosta de ver suas obras neles expostas. Abel também tem em sua casa um museu pessoal: na sua sala guarda e expõe caretas antigas feitas por ele, que não vende e não altera. A posição de Abel, transitando entre o contexto festivo e outros circuitos sociais, parece favorecer essa dupla perspectiva. Voltando a Zelinda Lima, podemos dizer que aparece como uma mediadora importante na trajetória de circulação da careta. A noção de mediação em estudos urbanos foi desenvolvida em diversos trabalhos para dar conta de agentes sociais que fazem pontes entre contextos sociais heterogêneos, permitindo que informações sejam trocadas entre meios diversos, e pessoas de perfis sociológicos e com práticas culturais distintas entrem em contato (Cavalcanti; 2006a; Velho, 2001; Velho; Kuschnir, 2001). No caso da circulação da careta, ao longo da pesquisa fui identificando outras pessoas que atuam como mediadores nesse processo. Um deles é o antropólogo Sergio Figueiredo Ferretti, já citado, que se dedica ao estudo das religiões afro-brasileiras. Ele fez chegar máscaras de Abel a museus, escreveu artigos sobre ele, etc. Além de Sergio Ferreti, outras pessoas (como a fotógrafa Maria Mazzillo, a psicanalista Elisabeth Bittencourt, a atriz Juliana Manhães, o pesquisador Jandir Gonçalves) são importantes para articulação do processo que descrevo e compõem uma rede de pesquisadores, colecionadores, profissionais liberais, servidores públicos e outros. A noção de rede social foi desenvolvida por autores como Clyde Mitchell (1969), Ar-

249 nold Epstein (1969) e Elizabeth Bott (1976) para dar conta de um conjunto específico de relações entre pessoas determinadas, possibilitando deduzir das características gerais dessas relações o comportamento social das pessoas envolvidas. Pensar a partir das redes é bastante útil para o estudo de fenômenos sociais que acontecem, como na circulação da careta, em sociedades complexas em que as pessoas se ligam entre si e promovem ações sociais para além de limites institucionais. Através desse instrumental analítico e interpretativo, é possível identificar uma rede de pessoas que promovem ações num sentido comum e analisar sua atuação social. Jandir diretor da Casa de Nhozim 12 critica o fato de apenas Abel ser reconhecido pelo seu trabalho de artesania de caretas. Segundo ele, existem muitos artesãos no Maranhão que não têm seu trabalho reconhecido como Abel. Ele acredita que a facilidade de acesso a Abel, por este já estar inserido na rede de pesquisadores e outros indivíduos das camadas médias que se interessam pela cultura popular, fazem que apenas esse artesão tenha destaque. É interessante observar que essa rede continua sendo alimentada. As pessoas apresentadas anteriormente (e outras ainda) foram fundamentais para fazer Abel e sua máscara circularem, entre outros motivos, porque faziam chegar as máscaras do artesão a pessoas ligadas ao campo da cultura popular e a espaços museais. Na medida em que se inseria nesse novo circuito, Abel passou a se apropriar de códigos próprios a esses contextos. Sua postura quanto à sua produção vai se modificando em relação àquela adotada pela maioria dos artesãos da festa. Não vê mais a máscara como um objeto restrito ao uso ritual. Em entrevista (fevereiro de 2009), Abel disse que considerava sua máscara uma obra de arte. A partir de determinado momento, passou a assiná-las, o que não ocorre no universo da festa. Ao compreender que o objeto que produz ingressa num circuito que opera com outros códigos e que lhe atribui outros significados, vai tendo ideias que o ajudam a permanecer e a aumentar sua circulação nesses novos meios. Tentando alcançar um público mais amplo, na década de 1990 Abel começa a produzir miniaturas. Ele entende que com as miniaturas seria possível atingir um público mais amplo, como os turistas, já que eram mais baratas e fáceis de transportar. As exposições feitas com as máscaras de Abel também foram importantes na sua trajetória. Em exposições em outros estados, Abel, que já era bas- 12 Instituição dedicada a exposições de objetos de uso na vida rural maranhense.

250 tante conhecido entre os pesquisadores e os demais integrantes do circuito de cultura popular no Maranhão, teve a oportunidade de ingressar em outros circuitos. Ao se tornar um representante da produção das máscaras e do cazumba, Abel se tornou uma voz de autoridade sobre esse personagem. Em diálogo com Lionel Trilling e Walter Benjamin, Gonçalves (2007) elabora um debate em torno da noção de autenticidade aurática e afirma que esse conceito dá conta de entender alguns objetos e pessoas valorizados socialmente por serem considerados originais, únicos ou com genuína relação com o passado. A autoridade de Abel e o valor de sua obra provêm, entre outros motivos, do fato de o artesão e sua máscara estarem relacionados de forma original com o universo da festa, trazendo com ele uma autenticidade aurática. A partir dessas múltiplas inserções e frentes de trabalho, Abel foi se tornando uma espécie de representante oficial fora da festa da produção de máscaras e da arte do cazumba. Apesar de terem sido citadas pessoas físicas que contribuíram para a circulação de Abel e da máscara, também existiram instituições que possibilitaram que isso ocorresse, como o Centro de Cultura Domingos Vieira Filho, em São Luís. Através da noção de mundos de arte, Howard Becker (1977) explorou a dimensão coletiva da atividade artística. Essa dimensão seria percebida tanto na produção da obra quanto na construção de seu valor. Mesmo que a produção de Abel não seja vista por todos como artística, a noção utilizada por Becker é interessante para pensar sua atividade como artesão, já que esta tem caráter fortemente coletivo, tanto na feitura das máscaras quanto na sua comercialização e construção do valor das peças. Percebemos então que a ressignificação de Abel e da careta é resultado de um processo social mais amplo, no qual foi fundamental um grupo de pessoas e instituições que identificaram a máscara como objeto de valor capaz de ser classificado como obra de arte, um objeto representativo de uma cultura, ou outro enquadramento que justifique sua utilização fora da festa, ingressando no que James Clifford (1994) identificou como a dinâmica dos modernos sistemas de arte e cultura. É interessante observar que dentro dessa rede de pessoas que contribuíram para a circulação de Abel, são dados enquadramentos diferentes à máscara ( artefato cultural, arte popular, arte afro-brasileira, artesanato). Mesmo que esses atores sociais não concordem com as classificações destinadas à obra, compartilham determinadas concepções que os levam a agir no sentido de possibilitar a ressignificação do produtor e de sua obra.

251 Todos entendem Abel como alguém com valor especial (como artesão das caretas e/ou como cazumba), e sua peça também. Mesmo que apontemos para a importância de algumas instituições e dessa rede de pessoas para a projeção do artesão fora da festa, é preciso ressaltar, no entanto, que Abel não foi figura passiva nesse processo; pelo contrário, teve papel ativo todo o tempo. Sempre atento, é articulado e sagaz. Mais um fator pode ser considerado importante para a projeção de Abel: o fato de seu trabalho ser reconhecido dentro da festa. Talvez algo do lugar ritual do cazumba e de sua máscara no contexto festivo possibilite seu deslocamento para outros circuitos. Como vimos, esse personagem é mais individualizado na brincadeira e atua com certa liberdade em relação aos demais. A máscara, por sua vez, mostrou-se na etnografia da festa como um objeto que, apesar de precisar de toda a indumentária do personagem e da ação do brincante para ter eficácia ritual, se destaca especialmente entre os artefatos da festa. Também pode ter contribuído para a circulação da máscara o fato de o trabalho produzido por Abel ter ressonância (Greenblatt, apud Gonçalves, 2007) entre aqueles que fazem a máscara circular. Greenblatt explica: Por ressonância eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais (1991, p ). Esse lugar de representante é vivido, no entanto, com contradições. No São João de 2009 estavam espalhados pela cidade de São Luís diversos outdoors com fotos do bumba meu boi. Entre as fotos, havia a de um cazumba vestido com uma careta do estilo de Abel. Muitas pessoas vieram dizer a Abel que era ele quem figurava nas fotos e ele mesmo achava que existiam grandes possibilidades de isso ser verdade, porém não havia nenhuma indicação no outdoor de que a máscara era sua ou de que era ele ali. Assim, apesar de Abel ser uma espécie de representante do personagem e da manufatura das máscaras, podemos pensar que existe um olhar sobre sua atividade (como artesão e cazumba) que a entende como arte coletiva, o que implicaria a existência de pouca diferenciação entre seus autores, redundando na falta de necessidade de dar crédito a Abel. O artesão também não teve nenhum ganho econômico com a possível exposição de sua imagem. Abel tem se afastado do Boi da Floreta, grupo no qual brinca. No período junino de 2009, quando estive no Maranhão, Abel passou parte do tempo no interior, não tendo participado de muitas apresentações do grupo. Ele parece se individualizar dentro do Boi da Floresta. Sua identidade como artista popular tem se tornado cada vez mais forte para ele. Mas Abel não tem o

252 intuito de se desligar do contexto da festa. Ele também busca manter seu prestígio dentro do contexto festivo, o que se revela, por exemplo, quando entra em uma peleja velada na Baixada com Onório Serra aquele que dizia ser considerado o melhor cazumba de Viana. Abel parece estar entre mundos, entre o mundo da festa e entre aquele do museu. Assim como o cazumba, Abel também parece habitar a liminaridade. Ele se projeta, torna-se um artesão conhecido, um artista popular, mas isso não garante uma boa vida financeira. Abel precisa se esforçar o tempo todo para continuar a vender, a circular e a ser lembrado. Abel circula entre pessoas das camadas médias com boa condição financeira, mas não é uma delas. Sua condição não faz jus à noção idealizada que se tem no senso comum sobre a vida de um artista. Assim como seu personagem cazumba, Abel também é um ator social liminar. Podemos vê-lo também como um mediador, pois ajuda uns a conhecerem mais o universo da festa e coloca os brincantes em contato com pessoas de outros círculos sociais. Velho (2001) diz que nas grandes cidades os indivíduos estão mais propícios a transitar entre universos sociológicos, estilos de vida e modos de percepção da realidade distintos e mesmos contrastantes. Certos indivíduos não apenas fazem esse trânsito, mas desempenham o papel de mediadores entre diferentes mundos, estilos de vida e experiências. Segundo Velho e Kuschnir (2001), o estudo da mediação e, especificamente, dos mediadores, permite constatar como se dão as interações entre categorias sociais e níveis culturais distintos (2001, p. 9). Sobre o deslocamento das caretas para os museus Diversos autores, como James Clifford (1994), Krzysztof Pomian (1987), Nélia Dias (1994), Ludmilla Jordanova (1989), Barbara Kirshenblatt-Gimblett (1998) e Gonçalves (2007), entendem os modelos expositivos como resultados de processos sociais de construção de sentidos. Assim, ao organizar uma exibição, os museus estariam produzindo determinadas representações sobre os objetos expostos. A partir dessa perspectiva, Gonçalves (2007) afirma que: A inserção [dos objetos] em coleções, museus e patrimônios culturais [...] permite perceber os processos sociais e simbólicos por meio dos quais esses objetos vêm a ser transformados ou transfigurados em ícones legitimadores de ideias, valores e identidades. (2007, p. 24)

253 A perspectiva de Gonçalves e dos demais autores permite refletir sobre a maneira como algumas instituições museais constroem enquadramentos em torno da careta de cazumba. No caso das instituições pesquisadas, percebemos que noções de arte e cultura popular são construídas nos seus modelos expositivos. Nosso foco de análise incidiu em três instituições que abrigam a máscara: a Casa do Maranhão, o Museu do Folclore Edison Cordeiro e o Museu Casa do Pontal. A Casa do Maranhão é uma instituição do governo estadual que surgiu no início da década de 2000 a partir de uma subdivisão do acervo total do Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, que abrigava grande parte da coleção relacionada à área de cultura popular do estado. A Casa do Maranhão constitui-se como o espaço que exibia elementos que fazem parte da festa do bumba meu boi. No decorrer do trabalho de campo, em 2009, a instituição fechou para reformas. Ainda não foi reaberta, mas fui informada na ocasião que o intuito era reformular totalmente a exposição anterior. De qualquer forma, acho válido apresentar a antiga exposição do museu, que tive a oportunidade de conhecer na primeira ida a campo em novembro de A exposição reconstruía cenograficamente o ambiente da festa do bumba meu boi, valendo-se dos objetos nela utilizados. Eram apresentados alguns momentos da brincadeira (ensaios, batizado, apresentações e morte) e os diferentes sotaques do bumba meu boi. Numa ala eram exibidos vários deles. Assim, parece que os objetos expostos na Casa do Maranhão estão ali principalmente como objetos representativos de um universo cultural. Entrevistei Maria Michol (julho de 2009), diretora da Casa do Maranhão durante muitos anos. Seu trabalho como pesquisadora influenciou a concepção da primeira exposição, da qual participou na curadoria. Na entrevista, ela disse que os objetos da exposição tinham o objetivo de aproximar a festa dos visitantes. As obras estariam expostas menos pela sua dimensão estética e mais como um objeto representativo desse contexto cultural. As caretas seriam vistas da mesma maneira. Havia algumas caretas na vitrine dedicada ao sotaque da Baixada. Outras estavam em manequins vestidos de cazumba, ou seja, relacionadas ao contexto de seu personagem na festa. O Museu de Folclore Edison Carneiro, que expõe diversos objetos relacionados às manifestações das culturas populares, é um museu federal que integra a Coordenação Nacional de Folclore e Cultura Popular do Ministério da Cultura. Ele foi criado em A partir de visita à exposição permanente do museu, é possível dizer que a relação da careta com seu uso na festa também é sua dimensão mais valorizada. A careta encontra-se numa

254 sala dedicada ao bumba meu boi, junto com outros objetos da festa. Silva (2008) comparou as exposições permanentes desse museu inauguradas em 1980 e 1984 e desenvolveu uma reflexão sobre exposições como produtoras e legitimadoras de discursos sobre o patrimônio e o folclore. Segundo ela, a exposição permanente, que está em cartaz desde 1994 na instituição (onde encontramos as caretas), segue o mesmo paradigma museográfico daquela feita em Essas exposições, segundo Silva, estariam mais marcadas por uma ótica antropológica. Nessa proposta, existe uma tentativa de relacionar os objetos expostos ao contexto de produção. Figura 9.6. Máscaras do cazumba em exposição no Museu Casa do Pontal. Fotografia: Lucas Van de Beuque O Museu Casa do Pontal foi criado por Jacques Van de Beuque a partir de sua coleção particular formada durante mais de quarenta anos, desde Aberta à visitação sob reserva desde 1976, a instituição, em 1992, abriu amplamente para a visitação pública e constitui uma organização privada de interesse público. Os objetos que ali estão são classificados como arte popular. As obras, em sua maioria, são esculturas feitas com diversos materiais, como barro, madeira e metal. São mais de 8 mil esculturas, de cerca de duzentos artistas de todo o Brasil. A antropóloga Angela Mascelani, que dirige a instituição, discute em sua tese de Doutorado (2001) o conceito de arte popular, revelando sua am-

255 biguidade, já que é produzida num circuito (popular) e legitimada por outro (camadas médias intelectualizadas urbanas), sendo o seu conceito formulado num diálogo entre diferentes contextos. Segundo Mascelani (1999), a noção de arte popular seria de difícil contorno, mas é possível dizer que: Sob o olhar de um grupo pequeno e específico, que se interessa preferencialmente pelos aspectos estéticos e formais da produção plástica popular, e onde se inclui o colecionador Jacques Van de Beuque, verifica-se a tendência para designar como arte popular brasileira esculturas, máscaras, xilogravuras, placas em cerâmica e demais objetos tridimensionais feitos a partir de materiais como a madeira, o barro, o ferro, as areias e outros, mesmo quando apresentam temáticas, formas, estilos, cores e técnicas altamente diversificados. (p. 133) Considerando-se que o Museu Casa do Pontal se dedicaria à exibição de arte popular e que as dimensões estéticas e formais seriam as mais valorizadas nos objetos entendidos assim, podemos dizer que esses seriam os aspectos da máscara mais valorizados ali. A exposição também reflete tal visão sobre a máscara, já que ela aparece destacada, sem a indumentária do cazumba. São três máscaras expostas em uma parede de fundo colorido. Porém, como ela está localizada num setor do museu dedicado às Festas populares e nesse setor há textos explicativos sobre elas, podemos pensar que não é apenas o seu caráter artístico que é realçado, mas que se estaria levando em consideração também o contexto social em que ela é usada. Parece que, nas suas exposições, os museus abordados fazem um esforço de remeter a máscara ao seu contexto de produção e uso ritual, no caso da Casa do Maranhão e do Museu do Folclore, de forma mais explícita, e no do Museu Casa do Pontal, de forma mais indireta, já que privilegia a dimensão estética do objeto. Assim como o objeto é, de alguma forma, remetido ao contexto de uso ritual no Museu do Pontal, também percebemos que a dimensão estética da máscara não é ignorada no Museu do Folclore e na Casa do Maranhão. No catálogo da atual exposição do Museu do Folclore, Cláudia Márcia Ferreira, diretora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, que abriga o museu em questão, afirma que: O Museu aspirou por uma nova publicação que expressasse a maneira como o universo do folclore/cultura popular estava sendo expressado. Um mundo de objetos cuja dimensão estética é de valor indiscutível. Mas também um mundo que comporta outros significados. Testemunho de modos de vida, os objetos colecionados pelo Museu

256 do Folclore possuem um valor documental único. São porta-vozes dos diferentes mundos sociais que lhes dão origem. (Bisilliat e Soares, 2005) A antiga diretora da Casa do Maranhão, Maria Michol, disse na mesma entrevista que a dimensão estética das obras também era valorizada na exposição da Casa do Maranhão. Vemos assim que, apesar de as instituições colocarem ênfases diferentes na dimensão estética e no valor cultural da máscara, é possível afirmar que os dois aspectos são de alguma forma enfatizados na exposição desse objeto nos museus citados. De qualquer forma, percebemos que, no processo de circulação da máscara, ela recebe diferentes enquadramentos, não havendo um consenso em relação às categorias nas quais ela é classificada. O mesmo ocorre com Abel, não sendo unânimes as formas de tratá-lo, pois recebe as qualificações de artista, artesão e outras. Cada instituição museal teria um olhar direcionado à máscara relacionado ao modo mais amplo como vê os objetos que compõem o seu acervo. As instituições identificariam qualidades na máscara que permitiriam que fosse vista a partir dos enquadramentos mais gerais que utilizam. Parece que o Museu Casa do Pontal incorpora a careta, pois percebe nela características estéticas relevantes; já o Museu do Folclore e a Casa do Maranhão entendem esse objeto como um importante artefato do universo da cultura popular; o Museu Afro-brasileiro, que não analisamos mais profundamente, a tomaria por sua ligação com o universo afro. Assim, políticas institucionais mais amplas acabariam por orientar as ressignificações da máscara nos contextos museais. Também pudemos ver que os diversos mediadores citados, que podem ou não ter relações com essas instituições, têm visões múltiplas sobre a máscara e sobre Abel. A ótica desses mediadores poderia decorrer de diferentes processos de formação intelectual e profissional. As instituições pelas quais passaram podem, igualmente, ter influenciado seus olhares. A careta em ação em distintos contextos Comparando a inserção da máscara na festa do bumba meu boi e nos museus, podemos dizer que, se nos museus a contemplação revelaria o seu valor, durante a festa este só é revelado quando alguém coloca a máscara com toda a indumentária do cazumba e executa as ações rituais do personagem dentro da moldura (Bateson, 1972) da festa. Dessa forma, dentro da festa a máscara se destaca ou tem como principal função contribuir para

257 que o cazumba seja eficaz no ritual (assustando, atraindo, participando de rivalidades, chamando a atenção para a sua visualidade), e não para ser contemplada por si só ou por seu valor estético e/ou cultural. Outra diferença é que na festa uma mesma máscara pode passar por diversas alterações, sendo constantemente metamorfoseada, enquanto no museu o intuito é preservar o máximo possível a máscara do jeito como ela chegou à instituição. Se compararmos Abel com os demais produtores da máscara que existem na festa, poderemos ver que, enquanto a produção do primeiro se dá ao longo do ano inteiro, constituindo-se na sua profissão, entre os artesãos da festa, mesmo entre os especialistas que vendem esse objeto para outros brincantes, o período produtivo da careta é apenas aquele que antecede o folguedo. O lugar social ocupado pelo artesão também é diferente. Enquanto nos espaços museais pesquisados destaca-se principalmente a figura de Abel, no contexto das festas existe um grande número de artesãos, alguns deles considerados especialistas. Também chama a atenção o fato de o ambiente festivo possuir uma grande quantidade de artesãos e Abel ser praticamente o único a se destacar num contexto de circulação mais ampla da máscara. Uma série de fatores presentes na trajetória de Abel reforça a ideia de que o lugar ocupado por ele foi construído socialmente. Como vimos na etnografia, seu reconhecimento como artista já é o resultado de uma cooperação social informal formada por pesquisadores, colecionadores, agentes do Estado, etc. (Becker, 1977). Sobre o lugar do artesão na festa, vimos que no contexto festivo existe a valorização dos artesãos que concebem máscaras originais e inventivas, havendo uma exaltação de suas particularidades. Isso nos permite problematizar a noção corrente no senso comum de que a produção plástica popular não diferenciaria individualidades, como fariam os setores do campo da arte erudita. Também vimos que na festa a ideia de uma produção singular está atrelada ao papel desempenhado pelo cazumba, que é mais individualizado que os demais personagens. É interessante observar que quando Abel tem sua máscara inserida num circuito distinto do festivo, muitas vezes tendo seu trabalho classificado como artístico, ele passa a repetir os mesmos modelos de careta constantemente. É curioso que o espaço de circulação artística que normalmente está associado à originalidade, à invenção é, neste caso, um espaço que induz à repetição, já que Abel, consagrado por sua obra, passa a reproduzir as mesmas máscaras. Essa repetição talvez se explique pelo fato de ele ser um chamado artista popular e precisar ter uma marca registrada para

258 possibilitar que venda com certa regularidade. É interessante também que o espaço festivo popular, muitas vezes associado a uma produção tradicional, que se repete, é aquele que induz à inventividade; e o espaço artístico aparece como aquele da repetição. Metodologicamente foi possível pensar o contexto festivo e o de circulação mais ampla da festa em separado. No entanto, não podemos ignorar o fato de que esses universos estão amplamente interligados, dialogando e se influenciando mutuamente. Pessoas, objetos, informações e sentidos circulam entre eles, sendo possível entendê-los como parte de um mesmo fenômeno social que ocorre no campo das culturas populares no contexto de uma sociedade complexa. É possível desestabilizar essa separação entre o contexto festivo e o de circulação mais ampla da máscara ao retomarmos a ideia de que o lugar ritual do cazumba e da máscara, assim como o modo como é tratado o artesão das caretas na festa, podem ter influenciado a circulação da careta e de Abel fora da festa. A trajetória de Abel também permite ver que o contexto festivo e o de circulação mais ampla da máscara estão conectados. A análise de sua história pessoal permitiu pensar os diálogos entre esses meios, suas conexões e os efeitos de tal contato sobre as partes. Por um lado, pudemos ver que o prestígio de Abel fora da festa é valorizado dentro dela e, pelos relatos e entrevistas dados por ele, que seu lugar no contexto festivo se altera à medida que ingressa em outros circuitos. Por outro lado, sua atuação como cazumba e artesão de máscara para brincantes contribui para que ele seja valorizado fora da festa, dando maior autenticidade à sua produção. Também vimos que o fato de esse artesão já ter sua produção legitimada junto a seus pares colaborou para que suas máscaras tivessem impacto junto à rede de colecionadores, pesquisadores e outros. A conexão entre os dois contextos também se evidencia no fato de Abel vender suas obras tanto para brincantes como para pessoas fora da festa. Ele entende que sua máscara pode ser usada ritualmente e também figurar em exposições. No entanto, ao lidar com diversos significados, acaba tendo posturas contraditórias. Vimos, por exemplo, sua crítica à musealização das obras, mas seu agrado em ver suas obras em instituições museais. Também observamos suas ações que visavam constituir uma espécie de museu pessoal. Se considerarmos que a circulação da máscara se dá no contexto mais amplo das culturas populares, seria possível ler esse campo como um espaço

259 de interação, construído socialmente, composto por pessoas de perfis socioculturais diversos (por produtores das manifestações festivas populares, artesãos populares, pesquisadores, funcionários das agências governamentais de cultura, agentes de turismo, colecionadores e outros), envolvidos com a elaboração, reflexão e circulação das manifestações culturais populares. Acompanhando a máscara por diferentes contextos sociais, foi possível perceber que, inserida em relações sociais e na relação com outros objetos, ela circula produzindo efeitos distintos nos diversos enquadramentos. No contexto festivo, sua agência é fundamental para eficácia ritual do personagem, estando sua ação intrinsecamente atrelada ao brincante e à moldura da brincadeira. Vimos também ela seduzir pesquisadores e colecionadores, deslocando-se para contextos distintos do original. A partir da relação entre esses atores (pesquisadores e colecionadores) e esse objeto, a máscara ganha novos sentidos no contexto de comercialização mais ampla e nos espaços museais, agindo de outras maneiras sobre o público desses espaços. A máscara também permitiu o deslocamento de Abel, como ele revela em 2009 no momento de rivalização com o cazumba Onório: eu faço as pequenas porque elas me levaram mais longe. Referências bibliográficas ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira. O urrou do boi em Atenas: instituições, experiências culturais e identidade no Maranhão. Tese de Doutorado de Antropologia. Campinas: Unicamp, ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. 2. ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia/Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória, ARAÚJO, Maria do Socorro. Tu contas! Eu conto!: caracterização do significado do bumba meu boi. São Luís: Sioge, AZEVEDO NETO, Antônio. Bumba meu boi no Maranhão. São Luís: Alumar, BAHKTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/UnB, 1993.

260 BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Londres/São Francisco/Scranton/ Toronto: Chandler, BECKER, Howard S. Mundos artísticos e tipos sociais. In: VELHO, Gilberto (org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, BISILLIAT, Maureen; SOARES, Renato (coords.). Museu do Folclore Edison Carneiro: sondagem na alma do Povo. São Paulo: Empresa das Artes, BITTENCOURT, Elisabeth. Quando os cazumbás saem por aí. Boletim da CMF, n. 43, São Luís, BITTER, Daniel. A bandeira e a máscara: estudo sobre a circulação de objetos rituais nas folias de reis. Tese de Doutorado em Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, BORBA FILHO, Hermilo. Apresentação do Bumba meu boi. Recife: Imprensa Universitária, BOTT, Elizabeth. Família e rede social: papéis, normas e relacionamentos externos em famílias urbanas comuns. Rio de Janeiro: Francisco Alves, BUENO, André Paula. Bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo: Nankin, CARVALHO, Luciana. A graça de contar: narrativas de um Pai Francisco no bumba meu boi do Maranhão. Tese de Doutorado em Antropologia. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, CARVALHO, Maria Michol. Matracas que desafiam o tempo: é o bumba boi do Maranhão, um estudo da tradição e modernidade na cultura popular. São Luís: Sioge, CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006a.. O Boi-Bumbá de Parintins: breve história e etnografia da festa. História, Ciências, Saúde-Manguinhos VI (0), set Tema e variantes do mito: sobre a morte e a ressurreição do boi. Mana 12 (1), 2006b.. Tempo e narrativa nos folguedos do boi. Revista Pós-Ciências Sociais 3 (6), jul.-dez. 2006c. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de Antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, CLIFFORD, James. Colecionando arte e cultura. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 23, p , Rio de Janeiro, Iphan, 1994.

261 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, DIAS, Nélia. Looking at Objects: Memory, Knowledge in Nineteenth-Century Ethnographic Displays. In: ROBERTSON, George; MASH, Melinda; TICKNER, Lisa et al. (orgs.). Traveller s Tales: Narratives of Home and Displacement. Londres/Nova York: Routledge, EPSTEIN, Arnold Leonard. The Network and Urban Social Organization. In: MITCHELL, Clyde (org.). Social Networks in Urban Situations. Manchester: Manchester University Press, FERRETTI, Sergio Figueiredo. Careta de cazumba, máscara do bumba meu boi. O Estado do Maranhão, Caderno Alternativo, São Luís, 31/05/1986. FERRETTI, Sergio Figueiredo; MATOS, Elisene Castro. Caretas de cazumba no bumba meu boi do Maranhão. Revista Pós Ciências Sociais 6 (12), São Luis, GELL, Alfred. Art and Agency: an Anthropological Theory. Londres/Nova York: Oxford/Clarendon Press, GIUMBELLI, Emerson Alessandro; CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro (orgs.). Editorial. Religião e Sociedade 29 (1), Rio de Janeiro, Instituto de Estudos da Religião, GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Coleção Museu, Memória e Cidadania. Rio de Janeiro: Iphan, O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHA- GAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A/Faperj/UniRio, GREENBLATT, Stephen. Ressonance and Wonder. In: KARP, Ivan; LAVINE, Steven L. (orgs.). Exhibiting Cultures: the Poetics and Politics of Museums Display. Washington D.C.: Smithsonian Institution Press, 1991, p JORDANOVA, Ludmilla. Objects of Knowledge. In: VERGO, Peter (org.). The New Museology. Londres: Reaktion, KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara. Destination Culture: Tourism, Museums, and Heritage. Berkeley: University of California Press, KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In: APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, KUBRUSLY, Clarisse Quintanilha. Reflexão antropológica sobre a experiência etnográfica de Katarina Real com os Maracatus em Recife. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2007.

262 LAGROU, Elsje Maria. Antropologia e arte: uma relação de amor e ódio. Ilha Revista de Antropologia, v. 5, p , Florianópolis, O que nos diz a arte kaxinawa sobre a relação entre identidade e alteridade? Mana 8 (1), p , Rio de Janeiro, LIMA, Carlos de. Bumba meu boi. 3. ed. São Luís: Augusta, LIMA, Zelinda de Castro e. Memória de velhos: depoimentos, uma contribuição à memória oral da cultura popular maranhense, v. 7. São Luís: Secma/CMF, MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, MANHÃES, Juliana Bittencourt. Memórias de um corpo brincante: a brincadeira do cazumba no bumba meu boi maranhense. Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas. Rio de Janeiro: Uni-Rio, MASCELANI, Angela. A Casa do Pontal e suas coleções de arte popular brasileira. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 28, Rio de Janeiro, Iphan, Coleções, colecionadores e o mundo da arte popular. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, UFRJ, MATOS, Elisene Castro Matos. Cazumba: etnografia de um personagem do bumba meu boi. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Luís: UFMA, MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e a razão da troca nas sociedades arcaicas [1925]. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, MAZZILLO, Maria; BITTER, Daniel; PACHECO, Gustavo. Careta de cazumba. Rio de Janeiro: Associação Cultural Caburé, MITCHELL, Clyde. The Concept and Use of Social Network. In: MITCHELL, Clyde (org.). Social Networks in Urban Situations. Manchester: Manchester University Press, PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O bumba meu boi, manifestação do teatro popular no Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 2, São Paulo, Ministério da Educação e Cultura, Departamento de Assuntos Culturais, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, POMIAN, Krzysztof. Verbete Coleção. In: RUGGIERO, R. Enciclopédia Einaudi, 1: Memória-história. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987.

263 PRADO, Regina de Paula Santos. Todo ano tem: as festas na estrutura social camponesa. São Luís: UFMA, SILVA, Rita Gama. Quantos folclores brasileiros? As exposições permanentes do Museu de Folclore Edison Carneiro em perspectiva comparada. Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado em Sociologia e Antropologia, UFRJ, IFCS, TURNER, Victor. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdU- FF, From Ritual to Theather. Nova York: PAJ, VAN DE BEUQUE, Flora Moana Mascelani. Entre a roda de boi e o museu: um estudo da careta de cazumba. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, PPGSA, VELHO, Gilberto. Biografia, trajetória e mediação. In: VELHO, Gilberto; KUS- CHNIR, Karina (orgs.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, Individualismo e cultura: notas para uma Antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina. Apresentação. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (orgs.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

264 10. A MORADA E A CASA: MATERIALIDADE E MEMÓRIA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO FAMILIAR Anelise dos Santos Gutterres Introdução As duas mulheres com quem dialogaremos nas próximas páginas Carla e Ainsley tinham pouco mais de 50 anos quando participaram desta pesquisa. 1 Moradoras da cidade de Porto Alegre, elas viviam em casas de metragem ampla, com área externa espaçosa e pátio. Com a área interna separada em diversos cômodos, a maioria deles era recheado de móveis e objetos que haviam pertencido a seus antepassados ou que estavam relacionados à montagem da casa para o crescimento dos filhos. Ainsley vivia na zona sul da cidade. Habitava uma casa à beira do rio, plantada em um terreno amplo e arborizado, que havia servido de chácara de lazer para seus ascendentes paternos na primeira década do século XX e de que era uma das herdeiras. Carla vivia em uma região nos arredores do centro administrativo da cidade, em uma área que teve sua população adensada no fim da década de 1940, período em que os pais de seu marido a construíram e de quem ela e o marido comprariam trinta anos mais tarde. 1 As reflexões aqui desenvolvidas partem do processo de construção de minha dissertação de Mestrado, defendida em 2010 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizada entre 2007 e 2009, a etnografia teve como objeto a experiência de mudança de residência de duas mulheres e suas estratégias na eleição dos objetos e móveis a serem mantidos.

265 Figuras 10.1 e Quarto vazio na casa de Carla, e cantinho da sala, já sem os móveis, no dia da mudança. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2007 A pesquisa foi realizada durante o processo em que as duas interlocutoras estavam se mudando dessas para outras casas menores. E a mudança foi o universo da etnografia que realizei com elas. É importante dizer que, no caso de Carla, após a desocupação a casa seria destruída para dar lugar a um prédio de apartamentos e ela se mudaria para outra cidade. No outro contexto, a casa também seria destruída, no entanto Ainsley permaneceria vivendo próxima a ela. A eminência da destruição da matéria das casas de origem e a diferença entre o tamanho delas em relação às casas de destino tornou o processo ainda mais dramático para as duas. Era preciso escolher no espaço de tempo estabelecido pelos prazos contratuais de desocupação do terreno aqueles móveis, fotografias, roupas, brinquedos, objetos que seriam importantes para narrativa do que seria destruído. E o que estava sendo destruído? Que história seria contada a partir daquela mudança? Que matéria seria escolhida para integrar essa narrativa do passado? Quais fotografias, quais objetos? O que seria lembrado? À medida que fui cúmplice na formulação dessas questões, observei minhas interlocutoras em seus esforços simbólicos de controlar a transformação exigidos pela avaliação, escolha e risco implícitos no ato de guardar ou não guardar objetos ligados à vida familiar. Corolário desse ato, a permanência de um conjunto de sensações, ligadas aos objetos queridos estava em debate naquele momento. O patrimônio ambivalente: entre as heranças paterna e materna Ainsley era geniosa e braba, e justificava isso pela astrologia: leonina, né!. Gostava de cuidar dos cabelos, que eram ruivos como os do pai,

266 a pele do rosto tinha sardas e seus olhos eram grandes e escuros. Insistia muito em me casar com o seu filho mais velho, porém acabamos superando esse desejo à medida que, de mulher estrangeira motivada pelas histórias da família, fui classificada apenas como antropóloga e amiga. Figura Armário da casa de Ainsley já sem os objetos em seu interior. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2007 Eu fui a sua casa algumas vezes antes de ser esvaziada completamente. Como tinha intenção de fazer um documentário etnográfico sobre a escolha dos objetos no processo de desocupação da casa, com frequência levava a câmera de vídeo em minhas saídas de campo. A casa ficava no centro do terreno e tinha árvores e mato em sua volta. Dentro dos limites da propriedade que ficava entre uma pequena rua e o rio Guaíba havia uma garagem coberta que foi transformada na cozinha coletiva da casa, a que chamavam de o cozinhão. Era nela que todo mundo assistia à televisão, fazia as refeições e sentava para conversar de forma mais íntima. Do lado da casa tinha uma construção de dois cômodos que funcionou como lavanderia por um tempo, mas que na ocasião acomodava o caseiro; no outro cômodo se alojava temporariamente o filho mais velho desde que havia voltado de uma viagem à Austrália. No limite do terreno que ficava próximo à rua havia um chafariz em ruína, tomado pelo mato, e ao lado dele uma enorme pedra. A torre como a família se referia ao conjunto de peças e escadas construído em cima e no entorno dessa pedra era o xodó de Ainsley. E ela sempre me narrou com muita dor o fato de a pedra ter ficado nos limites da parcela do terreno que cabia ao primo, não na sua. Subi muitas vezes nessa torre e dela podia-se ver o rio ao entardecer. Como o pôr do sol no rio Guaíba é uma das imagens mais fortes para a memória coletiva do morador de Porto Alegre, vê-lo daquela torre era considerado um acontecimento e um privilégio.

267 Parece mentira que ainda tem dentro de Porto Alegre, né? Um espaço assim... aqui que eles trocaram o primeiro beijo, é a história que eu sei, meu avô, né... mais ou menos por aqui Ainsley para na frente da escada e mostra o local do beijo [...] Daí ele fez essa torre, que tem 94 degraus, tem um primeiro lance depois tu sobe por dentro. Ela contou isso para minha mãe, que ela tinha 13 anos na época. E aí, ele achava ela muito bonita (a minha vó tinha os olhos violeta que nem da Elizabeth Taylor). Ele com olhar brejeiro disse: quando tu cresceres eu vou casar contigo. E quando ele pediu ela em casamento para o meu bisa, ele chamou a minha vó para comunicar e perguntou o que ela achava daquele pedido. Ela disse que já sabia. Claro... ela guardou aquilo [...] Ela era de De Ele morreu com 36 anos. De acidente de avião. Vamos? me convida a subir até o alto da pedra aqui é uma pedra inteiriça, aquela árvore tombou e aponta para uma imensa árvore que estava caída fazia alguns anos quer dizer, a natureza também sofre. Aqui eu me lembro quando criança que eram servidos uns chás de muita pompa, sabe? Guardanapos de linho, no final de tarde. Ao descer da torre chegava-se a um largo onde havia espaço para os carros fazerem retorno, em volta de um círculo limitado por concreto onde antigamente havia flores. Dali tinha-se acesso a uma das duas entradas ao interior da casa, de uso cotidiano. A outra, que ficava num avarandado de frente para o rio, se utilizava menos. A casa tinha uma sala larga em forma retangular. Sala de jantar e de estar ficavam divididas por um sofá, nesse mesmo cômodo. De um lado uma mesa de madeira escura também retangular. Junto às paredes havia cristaleiras que guardavam os bibelôs de Ainsley, os copos e as louças para ocasiões especiais. Nas mesinhas de centro e em cima do balcão, os bibelôs e os porta-retratos. Os móveis eram todos de madeira escura e com formas levemente arredondadas. Penduradas nas paredes estavam pinturas feitas por sua avó paterna, um retrato desse avô que morreu num acidente de avião, uma certidão da casa redigida em alemão, além de retratos dela com os filhos. A casa era arejada e clara, e era comum as portas e janelas estarem sempre abertas.

268 Figura Um documento da casa de Ainsley. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2007 Os quartos ficavam nas laterais dessa sala. E eram três. Num deles havia uma mobília que era da sua avó, um conjunto com cama, criado-mudo, penteadeira, armário e uma escrivaninha. E que havia sido ocupado por sua filha quando ela morava com Ainsley. Havia um outro quarto, ocupado pelo filho mais novo que ainda morava com ela nessa época, e o quarto dela. Nesse último havia a cama de ferro que tinha sido do seu pai e um armário revestido de laca branca, além de uma penteadeira. No avarandado que ficava contíguo à sala havia um conjunto de poltronas e uma mesa de centro; um aquário, um grande móvel que guardava alguns livros e um conjunto de prata da avó. Pena que agora eu já estou tirando, mas esse móvel é bem antigo, essa penteadeira e aquele móvel, também. Tudo da vó, os Frederico Mentz... isso aqui era dos Mentz. Eu não sei se começou com os Trein ou começou com os Mentz [...] Essa é esposa do Frederico Mentz, Catarina Trein Mentz me mostra um retrato grande da vó Catarina pintado a óleo. Aqui é meu pai e minha filha, aqui é minha mãe diz, apontando-os na fotografia que pegara para me mostrar. Porque na verdade isso era uma coisa só. Daí com a morte foram dividindo e foi ficando uma coisa diferente. Na verdade eu sou bisneta do que começou [...] Esse roupeiro aqui tem cem anos [...] Essas coisas nem existem mais. [...] Esse móvel era do meu bisa, porque meu vô, como eu te disse, ele morreu com 36 anos, é aquele ali ela atravessa sala e aponta para o retrato que está na parede. Têm muitas fotos aqui, lindas as fotos. O móvel que estava com as fotos eu já embalei. Grande parte dos móveis e objetos que ela me apresentou haviam sido do enxoval da sua avó paterna adquiridos por sua avó paterna ou herdado

269 de seus pais e avós. Alguns móveis Ainsley havia comprado ao longo do seu casamento e poucos objetos haviam sido de sua mãe, que possuía uma outra propriedade perto do centro da cidade, onde morou até ficar doente e onde vivia a filha de Ainsley. A família nuclear dos pais de Ainsley havia vivido pouco tempo naquela casa, seu pai é que vivera a infância e a juventude ali junto dos irmãos. Após o casamento da mãe e do pai de Ainsley, o casal se mudou para uma outra casa nos arredores do bairro. Quando aconteceu a separação deles a mãe partiu para o centro com os filhos; e o pai, após alguns anos, voltou a viver na casa em que havia crescido. Quando o pai de Ainsley adoeceu ela retornou. Com o marido e os filhos, ela voltou a viver com o pai. Após o falecimento dele, ela segue no gerenciamento da casa, função que assumiu desde que ele ficou enfermo. É no centro dessas relações de parentesco, configuradas entre suas idas e vindas para a casa, que Ainsley assumiu o papel de guardiã da memória da família paterna, cuidando dos objetos e móveis de seus antepassados. De acordo com Halbwachs (2006, p. 39), os eventos vividos, as cenas lembradas variam de indivíduo para indivíduo; porém, quando as lembranças dos outros, apesar de diferentes, nos dão a sensação de possuir o mesmo sentido das nossas, há uma conexão que faz a memória coletiva. Guardiã da memória familiar (Lins de Barros, 1989, p. 34), Ainsley assume a compreensão de marcas do passado, por onde ela como narradora se orienta e se guia, num deslocamento constante e também cíclico no tempo. Observando suas descontinuidades no processo vivido, Ainsley estabelece uma ordem e um contexto para essas marcas: as idas e vindas da casa, a morte do pai, a separação e, a partir delas, reinventa a sua permanência no tempo e o lugar da casa na memória da família. Quando a conheci, a mudança de casa já estava com data marcada e ela só estava acontecendo me contou ela e o filho mais velho por causa da ganância e da avareza de um dos primos, filho da irmã do pai de Ainsley. Durante a desocupação da casa ela embalou cada objeto, cada quadro, cada bibelô, fiscalizou para que cada móvel fosse deslocado com cuidado e retirado com segurança do interior da casa para fora dela. Evitando a perda de um objeto, ela tomava cuidado para que nada fosse quebrado. Ela dizia e repetia aos carregadores seus filhos e amigos deles no processo de desmonte dos cômodos: vai tudo. As medidas do novo imóvel foram pensadas para que a casa pudesse acomodar o mobiliário grandioso. E ele coube no interior do imóvel. Cobrindo as paredes inteiras e também o centro dos dois ambientes da nova casa. Foram acomodados de tal maneira que ao olhar para o interior das cristalei-

270 ras, para cima da mesa principal, das duas outras mesinhas e do balcão, era difícil imaginar que eles tinham sido desmontados para serem transportados até ali. O arranjo era muito semelhante ao da antiga casa, de modo que eles reconstituíam perfeitamente a forma com que estavam dispostos nela. A morada paterna parecia resgatada. Figura Móvel sendo esvaziado na Casa de Ainsley. Dia da mudança. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2007 Construída ao lado da peça ocupada pelo filho e pelo caseiro, na porção do terreno destinada a ela na partilha, a casa nova tinha um quarto, uma sala e um banheiro. Os móveis e objetos que foram retirados da casa de origem foram acomodados temporariamente no cozinhão e também em uma área coberta ao lado dele, onde foram embalados para que não sofressem danos com a chuva e a umidade da rua. Após um mês nessa condição, eles foram então desembrulhados e distribuídos entre a sua casa que a essa altura já estava pronta e a casa dos dois filhos, o cozinhão e a casa da praia. Ela me disse que nesses lugares tudo bem, não achava que os filhos se desfariam do mobiliário. No entanto, em relação ao terreno que ela havia herdado nessa partilha, e que após a sua morte seria herdado pelos filhos, ela foi categórica. Botaria uma cláusula na relação de bens da família que os proibia de vendê-lo. Questionada sobre a guarda desses objetos e móveis num espaço tão diminuto em comparação com o anterior, Ainsley respondeu que sabia que havia ficado um pouco apertado, mas que não se importava com isso. Além dos objetos e móveis, ela transferiu as janelas e portas do avarandado, com vidro em bisotê, para a casa nova antes que a velha fosse destruída. Uma pia pequena que havia em um dos quartos foi retirada e guardada; e uma outra,

271 guardada de uma reforma anterior, foi transferida para o novo banheiro. No dia em que a mudança foi feita ela estava muito agitada e ansiosa, buscando controlar a saída e a chegada dos móveis. Todos pareciam importantes. Entre as poucas pausas que tínhamos numa peça esvaziada, na soleira de uma porta enquanto juntávamos alguns papéis caídos de cima de armários, ou recolhendo peças que caíam do interior de alguma caixa, conversávamos. Não era raro ela perguntar não sei o que tu acha, tu que está vendo tudo de fora... e eu respondia que ainda estava tentando entender por que era tão difícil para ela abandonar aqueles objetos e aquela casa. E ela me respondia é difícil de entender, é complicado... tem muita coisa aqui dentro dessa casa. Muitos meses depois, quando já havia finalizado o vídeo e a casa nova já era a casa principal, propus que ela me falasse dessas complicações por meio de uma entrevista. Quando fizemos essa conversa a casa paterna ainda estava no mesmo lugar, porém completamente arruinada, consumida pelas chuvas e pelo mato, já não parecia uma casa. Separada por um muro feito para limitar o terreno de Ainsley, a ruína, no entanto, parecia incorporada ao conjunto dos imóveis novos: a casa dela e a casa do filho mais novo. Para que pudessem ir até o cozinhão todos passavam cotidianamente pela ruína, através de um pequeno portão junto ao muro. O cozinhão permanecia em funcionamento no mesmo lugar, só que agora estava na parcela do terreno que pertencia a um dos outros dois herdeiros filho de um irmão do seu pai e com quem ela tinha mantinha relações mais estreitas. No dia dessa entrevista ela se sentou no sofá, sentei junto à mesa onde apoiei a câmera. E ali entre os móveis, cristais, pratas, retratos, bibelôs, mesas e pinturas da família paterna ela narrou sua relação com eles, de outra maneira. A Oma que não discriminou assim, mas sempre houve uma discriminação muito grande em relação à mãe. Não tanto em relação à questão financeira, mas muito cultural também, porque a mãe era uma moça de fora. 2 A mãe foi conhecer o mar em lua de mel, com o pai... essas coisas... ela sempre disse: que foi o pai. O copo de cristal, essas coisas... e ela aprendeu muito enquanto morou aqui, era uma pessoa que comia em gamelas, assim bem simples, uma vida simples no campo, em cima de cavalo, tirando o leite e de repente era o uso do guardanapo de linho. Eu me lembro na nossa casa era sempre guardanapo de linho, não tinha, não existia guardanapo de papel na 2 Do interior do Rio Grande do Sul.

272 nossa casa, o pai não permitia. Eu me lembro assim, as toalhas, os guardanapos tudo quarando naquelas bacias grandes... Eu tenho essa lembrança. E o pai assim, até bem tarde, depois ele resolveu abolir, mas eram os famosos guardanapos de linho. A mesa com toalha de tecido, tudo isso. Então esse choque acho que incomodou um pouco... e sei também... tem uma conversa assim: que a Oma testou os sentimentos dele, porque ele era novo e ela também, eram duas crianças. O pai tinha 21, fez em agosto, e a mãe faria 21 em dezembro, 30 de dezembro [...] E aí a Oma, que é vó em alemão, ela fez uma pergunta para ele. Que ela daria uma viagem de volta ao mundo para ele, durante um ano, se ele não casasse com a mãe. Lindo, né? (e ri) e aí ele não aceitou, não aceitou. E a Oma diz que isso foi para testar os sentimentos dele. As diferenças étnicas, econômicas e culturais, como disse Ainsley, entre a mãe e a família do pai foram ressaltadas por ela nas imagens de contraste: entre a moça da roça e o rapaz da cidade. A oposição na polidez e os hábitos civilizados do uso do banheiro são destacadas; e a noção da civilização (Elias, 1993, p. 18), aliada aos bons costumes à mesa, constrói uma diferença quase antagônica entre um lado e outro da aliança formada entre o pai e a mãe de Ainsley. Na época do casamento, o lado paterno da família de Ainsley já gozava de prestígio na sociedade porto-alegrense, sua descendência já havia promovido a limpeza ideológica que privilegiava a europeização do seu passado (Woortmann, 1994, p. 3), esquecendo sua trajetória inicial no Brasil, mais vinculada ao contexto colonial. Integrantes de álbuns comemorativos da cidade de Porto Alegre e usufruindo do status de burguesia industrial estabelecida, a família dos guardanapos de linho não aceitou de início a ideia do casamento. Moça sem estudo, a mãe de Ainsley tinha um keim 3 ruim (1994, p. 12) segundo os padrões de aliança da família do noivo, cuja geração era a primeira a contrair casamento com uma pessoa completamente desconhecida das redes familiares. A traição da mãe aliada a uma ascendência que não estava de acordo com a rede, e os padrões econômicos e étnicos da família paterna do cônjuge parece ter contribuído para que Ainsley também fosse vinculada ao keim ruim de sua mãe. Com base nisso perguntei a ela, na sequência de nossa 3 Keim - Segundo o trabalho de Ellen F. Woortmann (1994) a categoria cultural keim pode ser traduzida como princípio germinativo. Ela classifica pessoas, através de famílias, definindo-as como casáveis e não-casáveis, segundo sejam portadoras de um keim bom ou de um keim ruim (Woortmann, 1988).

273 conversa, se a destruição da casa não havia sido uma tentativa de extinguir a matéria, para extinguir também as lembranças ruins dessa relação. Depois de uma longa e nervosa risada ele me respondeu: É, é porque ficou uma coisa assim, a casa... a casa, tipo eu tive que alugar a casa para morar. Eu fui despejada da casa, da casa que um terço era minha, quer dizer, não tem explicação. À medida que eu assinei, assinei, foi um atestado de burrice da minha parte. O contrato a que Ainsley se refere é um contrato de aluguel assinado entre ela e o filho da irmã do seu pai para que ela pudesse viver na casa após a morte dele. Exatamente... porque foi a perda do pai, que daí eu herdei, são as ironias do destino... daí eu não passei mais a ser a filha do dono, mas sim a dona. Então, não é a minha parte? Então vamos derrubar, vamos pegar a patrola 4 e passar por cima, e passei, e não me arrependo. Olhando para a raiva que ela expressava nos olhos, que se misturava com uma mágoa também muito forte, eu questionei se ela realmente não se arrependia de ter demolido a casa da infância do pai. Não. Às vezes me dá uma dor, assim, sabe... que eu acho que ela, não só essa parte que eu derrubei, mas toda ela tem que ser derrubada. Tem, tem espíritos ali dentro ainda, têm pessoas que não saíram dali, eu só sentia que tinha, mas não via. E eu acho que ela tem que vir ao chão, para bem de começar uma história nova. Eu acho. Eu acho que querer recuperar aquilo ali, não, a casa não tem mais estrutura, ela tá caindo, ela tá cheia de cupim. Me dói assim, porque eu ainda entro ali... então não era o interesse dele da casa em si, do que representava a casa, porque ele tinha uma bela casa. Então não era nem o valor estimativo da casa, era só a intenção de me tirar dali. Porque nunca veio arrumar? Porque ele não tá ali? Não é? É, é uma coisa assim, tudo uma casa, que loucura... às vezes, quando eu passo ali eu olho ela com desprezo, puxa, o que tu me fizeste passar? Ordinária! E às vezes eu passo ali e choro. E foi chorando que ela terminou a frase. Me pediu desculpa, e disse que doía. Repetiu que iria passar, enquanto limpava as lágrimas do rosto com 4 Trator.

274 uma das mãos. Olhando para mim e para o alto, ela secou os olhos com a ponta dos dedos e bateu no peito duas vezes com o punho fechado. Ainda um pouco molhada, sorriu. É uma casa... e olha como mexeu com todo mundo [...] ninguém acreditou, a minha atitude foi de verdadeira filha de Gustavo. Ninguém, ninguém entendeu..., mas não era para entender. Ah, é minha? Então tá. Então vai para o chão. Porque como é que nós íamos dividir uma casa? Parte de lá, Luli, depois ele, ela no meio, e eu! Conforme ela conta, houve negociação entre os primos para a preservação da casa e repartição do terreno. Inicialmente Ainsley queria ficar com a parte da pedra e com a casa, pois a considerava a matéria mais importante para a lembrança da família paterna. Mas isso acabou não acontecendo. A minha parte era a pedra, era... Então, tem as culpas, porque a pedra era o amor do pai, porque ali a Oma trocou o primeiro beijo, então representava muito aquela pedra ali. Mas porque também eu ia deixar o coitado do Luli, com duas partes lá, mais aqui, e eu no meio, complicado, bem complicado. Dois anos antes dessa entrevista período em que eu comecei a etnografar a casa de Ainsley, recebi uma ligação do seu filho mais velho. Pelo telefone ele me contou que a mãe havia contratado um operador de retroescavadeira e que estava ordenando a derrubada de parte da antiga casa da família e que eu deveria ir lá acompanhar. Após desligar o telefone, saí rapidamente em direção ao bairro dela a tempo de acompanhar a demolição. Sem entender as razões daquela demolição, estive presente no evento junto com Ainsley. Conforme ela me contaria na situação de entrevista, no momento em que decidiu destruir a casa a materialidade dela passou a expressar outro valor. Já que não seria possível se apossar dela inteiramente, ela se apossou de um pedaço, destruindo-o. Destruindo ela conseguiu expressar que era dona de um pedaço daquela casa e que possuía um pedaço do seu pai. A pedra, os objetos, o rio, o entardecer, os móveis, o avarandado, as flores, a casa, as ervas, isso tudo era o seu pai. Destruindo, ela configurou o patrimônio da família paterna para além da materialidade da casa (Gonçalves, 2005).

275 Figura Objetos e documentos esperando encaixotamento para a mudança. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2007 Conforme foi destacado na entrevista que transcrevi anteriormente, Ainsley tinha uma relação difícil com um dos primos. Após a morte do pai, quando ela decidiu não pagar mais aluguel, esse primo moveu uma ação para que ela fosse despejada da casa. Filho da irmã do pai de Ainsley e do homem com quem a mãe dela acabou se relacionando concomitantemente ao casamento, esse primo era um dos três herdeiros da propriedade. O terceiro herdeiro, Luli, nos contou, em uma conversa que tivera com seu pai, que os irmãos certa vez haviam se encontrado e que nesse dia teriam decidido que a casa tinha valor zero, o que importava era o terreno. Esse acordo definia que não haveria nenhum motivo judicial para uma disputa por essa casa, já que a propriedade seria dividida igualmente entre os três herdeiros designados a receber uma parte do lote. Entre esses herdeiros estava o pai de Ainsley, o pai de Luli e a mãe desse outro primo, que por direito sucessório herdaram esse bem dos pais. Após a morte do pai de Ainsley, no entanto, o processo contra ela foi iniciado. Durante a retirada do mobiliário do interior da casa, no prazo determinado pela justiça, a situação entre os herdeiros estava tensa. Havia um fio de náilon com estacas limitando uma parte do terreno. Ele partia do muro próximo à rua e, para chegar até a outra extremidade, teria de atravessar a casa, cortando-a quase ao meio. Por algumas semanas o destino dela foi discutido, e seu valor não era mais zero. O filho da irmã do pai de Ainsley começava a demonstrar interesse na casa, alegando que ela deveria ficar na família, e portanto teriam de ajustar o corte sugerido pelo fio. A decisão de destruir ou não destruir estabeleceu outra relação entre os envolvidos na querela e a casa. Se de acordo com Pitt-Rivers a essência da honra é a vontade (1992,

276 p. 20), a conduta de honra de um dos primos se expressou através de um processo judicial. A posição de Ainsley foi outra. Para ela a honra da família não estava mais relacionada à manutenção da casa, mas em sua destruição. Nessa disputa de honra, os vivos e os mortos tinha estatuto semelhante na construção da memória do parentesco. 5 Foi uma coisa bem delicada. A mãe se separou por uma pessoa da família. Um cunhado... Ela nunca negou. E naquela época as mulheres eram julgadas, os homens não. Mas as mulheres eram julgadas e ela foi considerada meretriz. Nós prestamos depoimento, eu tinha 13 para 14 anos. A gente teve que dizer com quem iria ficar. Na verdade eu queria ficar com meu pai, mas eu fiquei com ela porque eu sabia seria ela a pessoa para me criar. Eu tinha noção disso, porque o pai era muito louco. [...] Foi muito, foi muito difícil [...] Fui testemunha e era bem menina. [...] a partilha demorou, a mãe demorou para receber... a separação em si que foi litigiosa, eu me lembro do juiz dando o veredicto. [...] Sim, sim, considerada meretriz, foi um choque. A mãe não pôde mais entrar no clube que nós éramos sócios, eu fui fada num baile e ela foi barrada, na entrada... eu entrando para ser fada das debutantes, e ela não pôde entrar. A senhora por gentileza nos acompanhe, que o presidente precisa conversar com a senhora, e eu entrei sozinha. Eu era uma criança, guria, eu tinha 13 anos. [...] Depois ela não deu uma ênfase maior para isso, aí, sabe, ela foi nos poupando. A traição de sua mãe com o cunhado, marido da irmã do seu pai, culminou no julgamento citado por ela. A finalização legal parece ter acontecido somente nos anos 1970, época em que a justiça autorizou que os bens que eram por partilha de divórcio de direito da mãe de Ainsley fossem de fato para ela. Sobre essa época, Ainsley diz: ficou muito bem, a mãe ficou muito bem, ela era uma mulher rica. Os bens e a situação econômica estável não evitaram, no entanto, que Ainsley e o irmão passassem por constrangimentos. O status de meretriz afastou a maioria dos familiares do lado paterno de uma aproximação mais cotidiana. Ainsley narra apenas duas pessoas da linhagem paterna com quem manteve boas relações depois do ocorrido: a avó paterna e uma filha do irmão desta avó, interlocutora de Ainsley acerca das histórias da família. 5 Aportados no Brasil em 1846, os parentes distantes de Ainsley, oriundos do processo imigratório da Europa para o estado do Rio Grande do Sul, vieram de próximas porém diferentes regiões das que hoje compõem a Alemanha. Entre esse grupo étnico, conforme discute Woortmann, tanto para os colonos alemães como os novos-ricos industriais, o parentesco é memória (1994, p. 13).

277 O desejo público de reparação e de dignidade perdidos com a traição e a relação sexual entre os concunhados eram sempre indiretamente ressaltados por Ainsley. Mais do que a separação, a manutenção de relações sexuais com o homem da irmã do seu marido transformou a mãe de Ainsley numa meretriz. A consanguinidade que compunha o parentesco do pai com as crianças foi, com isso, rompida; e somente uma das consanguinidades (Fox, 1986, p. 38) envolvidas na geração das crianças tomou destaque: a da mãe. Os filhos, portanto, foram considerados no mesmo status de filhos bastardos, o que era muito grave dentro de uma moral étnica e aristocrática 6 constituinte da linhagem de parentesco paterna de Ainsley. O isolamento promovido pela traição da mãe pareceu evidenciar o não fazer gosto que desde o início rondou a aliança dos dois por parte da família de origem dele. A autonomia e a escolha pessoal, características dos casais modernos (Velho, 2006, p. 27) e que promoveram a escolha de seu pai por construir um laço de parentesco com uma família que os pais não conheciam ou consideravam pouco convencional, chocou-se depois com a autonomia de Noeli, que rompeu a rede de relações construídas através do casamento em troca de uma opção no âmbito de uma noção individualista 7 e moderna, a paixão. A materialidade da casa e os objetos nela guardados carregavam essas histórias. As lembranças evocadas por eles foram construídas sobre um novo arranjo no processo de mudança da casa. A partir dela as relações familiares foram ressignificadas e organizadas numa nova narrativa. 6 Cf. Sandra Pesavento (1986), acostumadas a riscos, essas famílias eram detentoras de bancos e integrantes de associações de classe que foram até patrocinadores dos revolucionários de 1930, se envolvendo em cargos políticos ou com intenções políticas a fim de manter suas fábricas em atividade e, com isso, garantir a manutenção do seu patrimônio ligado a bens móveis e imóveis. 7 As narrativas de Carla e Ainsley nos termos das escolhas feitas por elas e suas relações com a noção de indivíduo e de pessoa foram tratadas no capítulo 4 e 5 de minha dissertação de Mestrado (Gutterres, 2010)

278 A casa como depósito das lembranças Figura Caixas preparadas para a mudança. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2008 Como aconteceu com Ainsley, cheguei até Carla a partir de minha rede de relações sociais mais próxima. Quando cheguei em sua casa, alguns cômodos já haviam sido desmontados parcialmente e, segundo ela, a casa estava uma bagunça. Em um terreno com quarenta metros de profundidade, a casa de Carla era geminada a outra que pertencia à irmã de sua sogra. A casa tinha sido presente do pai às duas e havia sido construída pelo marido da irmã, que era engenheiro. Nos fundos havia um pequeno aclive onde cresciam árvores frutíferas, e subindo uma escada se chegava até um piso onde havia uma piscina e um espaço coberto, próprio para fazer churrasco. No fim de semana subsequente a nossa conversa, um dos filhos de Carla havia programado uma festa de despedida da casa. Então ela estava enchendo a piscina e cuidando da água. A parte coberta onde ficava a churrasqueira tinha uma sala, um banheiro e um quarto, que guardava nesse dia os instrumentos de percussão desse mesmo filho. Invenção dela, aquele espaço era um dos que ela mais gostava em toda a casa, porque havia sido planejado por ela. A garagem da casa, que ficava na lateral do terreno, também havia sido modificada quando o casal passou a habitar a casa. Ela foi fechada e guardava a oficina do seu marido, que, conforme ela me contou, adorava os trabalhos manuais. No andar de cima havia um quarto que havia sido fechado e outros que foram adaptados pelo casal. No entanto, Carla achava que a casa ainda se parecia muito com a casa da planta original. A morte do marido, nove anos antes da mudança que etnografei, foi a marca que ela estabeleceu para me narrar as reformas mais significativas da casa. Foi depois da morte dele que

279 ela realmente mudou tudo. Trocou o branco de uma parede da sala pela cor laranja. Quebrou uma parede da cozinha, pintou-a de vermelho e a separou da copa com um balcão ao estilo de cozinha americana. Sobre a cozinha, ela me disse que quando olhou o resultado se pôs a pensar por que não havia feito a reforma antes. Figura Fachada da casa de Carla. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2008 Nas primeiras entrevistas que fiz na sua sala, conversamos sobre a pesquisa. E foi então que ela me disse que um dos seus desejos com aquela mudança era o de conseguir jogar muita coisa fora. Não queria levar lixo para a nova vida. Entre outras combinações, acertamos que acompanharia ela durante a seleção das fotografias, feita meses antes da mudança 8 acontecer. A planta da casa tinha aproximadamente 440 metros quadrados e era dividida em dois pisos. Embaixo havia uma sala grande com uma porta de correr na metade, podendo ser dividida entre sala de estar e sala de jantar. A porta era de madeira escura, assim como todos os acabamentos e detalhes da casa: a janela, o corrimão da escada, a escada, o chão e os nichos nas paredes, recortados em arco. As portas internas do andar térreo tinham formas vazadas na madeira e continham vidro. Contígua a essa sala havia uma porta que dava para um pátio entre as árvores frutíferas e a casa. Paralelo à sala, um corredor levava até um lugar onde havia a mesa das refeições cotidianas, a copa, ao lado da cozinha. Nesse lugar havia uma mesa muito especial para 8 Conforme analisei em outra ocasião (Gutterres, 2010), as escolhas feitas nos dias que antecederam e durante a mudança tiveram motivações e ritmos diferentes. Os objetos e os cômodos a serem desocupados seguiram um roteiro que conferiu a eles potências diferentes em relação à capacidade de lembrança.

280 Carla, o primeiro móvel que levaria para a casa nova, disse. Nela seu filho havia feito um desenho quando era pequeno que lhe rendeu uma bronca do pai, mas estava lá até agora e ela lembrou de me contar sobre ele. Havia em cima da mesa um relógio que o marido havia ganho de uma tia e que ela também disse que ia levar com ela. Em torno da mesa havia um banco inteiriço que acompanhava o ângulo reto da parede. Na ocasião em que olhamos as fotografias, Carla me mostrou pelo menos dois álbuns com fotos tiradas exclusivamente naquela mesa. Ela disse que a sogra, quando se mudou, também tinha uma mesa como aquela, mas havia levado com ela. Aquela ela tinha trazido quando o casal voltou do Rio de Janeiro, local onde haviam morado durante o Mestrado e Doutorado do marido. Figura Interior da casa de Carla, no dia da mudança. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2008 A aliança com o marido foi promotora de uma rede de sociabilidade (Velho, 2006, p. 27) que ela fazia questão de fortalecer à medida que cunhava o espaço da casa como local para encontros entre o grupo de parentesco e os amigos, através de festas de aniversário, natais, formaturas, ano novo. Muitas dessas festas aconteciam em torno daquela mesa e no espaço da sala. A mesa era o espaço em que ela fazia absolutamente questão de que todos estivessem reunidos nos almoços e nos jantares diários. O meu casamento foi aqui. O meu casamento foi aqui. Fizemos a festa aqui, aqui era a sala de jantar, tinha aquele balcão, tinha a cristaleira, mesa com as cadeiras, sala de jantar, que também não usava, só em ocasiões especialíssimas. Aqui era a copa e aqui é que eles viviam todas as refeições. [...] Tem um banco aqui, essa mesa fica com um banco aqui, e eu tenho foto de todos, os meus filhos eu criei ao redor

281 dessa mesa, eu sempre digo isso e a mesa eu vou levar comigo. Porque eu criei meus filhos aqui, a gente nas refeições conversava, brigava, eu fazia absolutamente questão de todo mundo junto durante muito tempo. Essa aqui eu comprei no Rio e ela tem trinta anos e ela não tem um cupim, eu tenho foto dos aniversários dos meus filhos em volta dessa mesa, de toda a vida. Foto de aniversário de todo mundo eu tenho uns dois três álbuns só de gente ao redor dessa mesa, a família se criou aqui. Além dos aniversários dos cinco integrantes da casa, amplamente fotografados a cada ano, ela me mostrou fotos das brincadeiras das crianças na sala, das brincadeiras delas no chão; das brincadeiras deles em uma pequena mesa baixa de centro; dos lanches deles na mesa da copa; dos teatros e invenções que faziam com o pai. Todas essas fotos foram guardadas e seguiriam para a casa nova. Também foram guardadas as fotos tiradas em frente da escada e da lareira as fotos posadas. Na frente da lareira ela guardou as fotografias com os instantes que mostravam seus filhos pequenos e jovens; e aqueles instantes em que os filhos de sua sogra também apareciam, nesse mesmo lugar. Guardou as fotografias que mostravam diferentes gerações numa mesma fotografia, também em frente à lareira. Na escada e no pátio as fotos eram das crianças: elas entre os primos; aquelas que registravam o primeiro dia da escola; e também as deles um pouco mais velhos, batidas antes de as meninas saírem para festas com os amigos. Ainda no andar térreo havia, depois da cozinha, uma área onde ficavam as lixeiras e a máquina de lavar roupa; era uma peça com saída para a rua. Após esse espaço havia ainda um quarto pequeno e um banheiro. No fim da escada que ligava os dois pisos havia um hall, e a partir dele, à direita, ficavam dois dos quartos cujas janelas davam para a frente da casa, área em que o marido da sogra de Carla havia plantado um flamboyant. No centro do hall, um corredor direcionava até outros dois quartos. À esquerda ficava um banheiro e um outro corredor que levava até uma pequena área externa que havia sido fechada e a um outro quarto, que Carla chamava de quartinho. Aqui tem um quartinho, é muita bagunça, Anelise, tu vai dizer para o pessoal do teu filme que eu estou me mudando. [...] se tu tivesse vindo dois meses atrás, tu teria visto a casa montada, foi pena que a gente não se conheceu, porque tu teria visto a casa montada e agora tu teria visto o processo de mudança que tá acontecendo. (Conversa gravada em vídeo)

282 Foi nesse lugar que ela me narrou com mais veemência suas angústias em relação à materialidade da memória. Sobre o risco que estava em jogo ali: de que os filhos perdessem lembranças na ausência de alguns daqueles objetos, ficando sem uma parte do patrimônio da família. Ao entrar no quartinho, o tempo de escuta foi outro. Os prazos, contratos, acertos e escolhas urgentes, e que preocupavam Carla nas nossas conversas, ali foram esquecidos: escolher um serviço de mudança, comprar sacos de lixo, conseguir algumas caixas, cancelar algumas contas, trocar endereço junto às lojas, receber os funcionários da empreendedora que havia comprado o terreno. O quartinho seria um dos últimos cômodos a passar pelo processo de seleção. Ali dentro a casa nunca havia sido montada. O quartinho era por excelência um lugar que acomodava o desmonte, a bagunça. A bagunça como arranjo era uma condição que fazia dele um lugar muito difícil de ser classificado por Carla, pois nele havia objetos que poderiam servir a uma infinidade de memórias. Objetos coletados por anos e anos, que iam e voltavam do quarto, mas nunca recebiam dentro dele uma ordenação específica. Era na bagunça que eles se constituíam como agentes da lembrança. E eram agentes dos mais poderosos. Eles haviam sido descartados ao acaso para que ficassem justamente longe do alcance cotidiano dos cômodos mais utilizados. Eram em si mesmos um risco ao cotidiano, pois remetiam a viagens longas, por vezes doloridas. Quando chegamos, foi preciso que ela destrancasse a porta com uma chave para que pudéssemos ingressar no cômodo. Isso tem uma história, é uma vida que tem aqui. Realmente, essas coisas eu não me acho no direito de jogar fora sem que meus filhos olhem. Só que eu dei um prazo, vocês tem que vir separar. Eu tenho prazo para sair. É claro que certas coisas eu não vou conseguir jogar fora: os brinquedos. Eu até já comprei umas caixas grandes dessas de plásticos. O playmobil, a Barbie isso eu vou guardar. Levo lá para minha casa, depois eu vejo. Livro de história também. Porque nós tínhamos o hábito de ler histórias para eles todas as noites, sem exceção. Tem livros tão amados aqui que a gente não conseguiu dar, alguns brinquedos mais especiais vão. Mas esses troços da faculdade aqui, mais todos os polígrafos, todos os cadernos... não sei, eles guardaram porque moram em casa. Aí agora é com eles. Eles têm que vir ai porque, se eles não derem, eu vou jogar fora. (Idem)

283 Carla falava e ia mexendo nas coisas mais aparentes, em cima de caixas e nas prateleiras das duas estantes de ferro que cobriam uma das paredes do cômodo. Eram brinquedos, objetos, inteiros ou parte deles. Ai, meu Deus, aqui tem uma tartaruga que a minha filha ganhou do meu pai, ah, mas tá sem cabeça. Ganhou do meu pai quando fez 1 ano. (Idem) A condição de morar em uma casa grande era ressaltada por ela como uma possibilidade de acumular lembranças em potencial através do ajuntamento de objetos. Era como se, ao mexer de uma só vez que foi como descreveu os momentos em que revisava os objetos guardados ali, ficasse mais fácil descartá-los. Tinham muitas festas. Porque a medicina tem a tal da festa dos cem dias, adoravam a festa dos cem dias que era a fantasia. E quando eram menores adoravam a coisa do teatro, teatros mil, na praia, aqui; fantasia de todo tipo; no colégio. Mas as festas da medicina foram muito elaboradas. Lembrança de viagem: lá o berimbau que todo mundo traz, o chapéu do México, o bicho da Disney [...] Muito aniversário, muito aniversário. Eram famosos. Sempre fiz janta para todo mundo, todo mundo festejava aqui, o natal sempre foi aqui, agora festa de aniversário deles. (Idem) Andando com dificuldade no meio das altas e variadas caixas com fantasias, roupas e chapéus, Carla reforçou ali o papel da casa como cenário para as festas familiares, e para as festas dos filhos com os amigos. O quarto também guardava o acervo da vida escolar dos filhos, e de suas diferentes brincadeiras. Na época da mudança nenhum deles morava mais com ela. Como habitavam residências menores e a venda da casa demorou para ser efetivada a casa da mãe abrigou os objetos ligados a sua infância e a formação escolar vivida ali. Esse lugar tá abandonado, porque aqui está fechado sempre. E cai uma coisa lá de cima. Uma fuligem, está vendo? Eu acho que é um tipo de formiga que faz isso. É cor de barro. Ou cupim. Esse quarto aqui ficou como um guardado, eu considero como se fosse um sótão, tá tudo aqui, e aqui a gente entra pouco. Quando tu faz uma arrumação, quando a gente fazia uma arrumação em qualquer armário... Tchuf... jogava para cá. As coisas que tu não queria jogar fora, ao invés de jogar fora na hora, fomos amontoando ao longo

284 dos anos. E eu vou te dizer, isso acontece principalmente para quem mora em casa, quem tem apartamento não tem nada disso. Mas quem mora em casa tem essa possibilidade. E daí tu começa, começa, começa. Eu tenho posto fora ao longo dos anos uma quantidade inacreditável de coisas e mesmo assim parece que não botei nada fora. Livros, eu te disse, três ou quatro carros cheios; jogos dei uma caixa para essa minha amiga que tem uma creche, um centro social...; livros infantis, também dei para ela. Uma que trabalha com crianças eu dei as fantasias. Meu Deus, eu já dei muita, muita coisa. Eu já botei sacolas de papel fora e tu olha para cá e parece que não botei nada fora. (Idem) No interior do quartinho, ela me provoca a pensar nos objetos acumulados ali ao longo dos anos: transferidos da circulação e do uso, das gavetas e dos armários para aquela peça. A trajetória desses pequenos objetos da vida dos filhos os brinquedos, o souvenir de viagem, os cadernos, as cartas da namorada, a roupa das bonecas, o berimbau comprado na viagem à Bahia, do repouso nas gavetas até o repouso no quartinho, seria alterada com a mudança de casa. A solidão (Bachelard, 1988, p. 41) deles no quarto abandonado estava ameaçada pela mudança, pelos novos arranjos que Carla estava propondo aos filhos. Sugerindo uma ressonância (Gonçalves, 2005), ela os intima a ingressar naquele lugar para que façam a eleição do seu patrimônio. As fotografias que olhamos na sala antes da mudança saíram desse quartinho dentro de grandes caixas plásticas. Dentro das caixas, a maioria dessas fotos estava solta ou organizada em pequenos álbuns como aquele montado só com fotos de eventos ocorridos em torno da mesa da copa. Ainda havia álbuns de aniversários; de veraneios; da casa de Gramado; 9 da praia; da formatura da escola. As fotografias soltas estavam relacionadas a sua família de ascendência. Havia muitas fotos de sua mãe, do seu pai, separadamente; havia fotos da sua infância, de sua juventude, da juventude de sua mãe, da juventude de seu pai. Fotos acolhidas por ela após a morte deles, quando teve de desocupar a casa onde moravam. 9 Casa onde passavam as férias de inverno, na cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul.

285 Figura Carla mostrando fotografias. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2008 Remexendo essas caixas, ela encontrou fotografias da família de ascendência do seu marido, que remetiam a situações da infância dele, e da época em que a residência havia sido construída; fotos dos irmãos do marido ainda pequenos nos arredores da casa. As fotos da década de 1980 eram a grande maioria: filhos brincando, posando, jogando videogame, sozinhos, com os primos, na sala, no pátio, na mesa. Condicionadas em álbuns pequenos ou soltas, essas fotografias enchiam três caixas plásticas médias. Além delas ainda havia os álbuns grandes de capa dura em que a trajetória das crianças estava organizada por idade ou por local. Eram os móveis, objetos e brinquedos que apareciam nessas fotos que ela levaria para a casa nova. A recorrência deles nas fotografias era usada por Carla para justificar a escolha deles. Algumas das fotografias soltas continham furos de alfinete nas pontas, o que sugeria que elas já haviam composto algum mural, organizadas conforme a narrativa de cada filho. À medida que ia reconhecendo as pessoas nas fotos, ou quando encontrava alguma foto da casa antiga ou atual, Carla a virava e mostrava para mim, acrescentando algum detalhe. A partir desses detalhes ela narrou as lembranças de situações que não estavam nas fotografias, mas que partiam do que estava nelas. Uma foto ia completando a lembrança provocada por outra, das centenas que ela foi retirando de dentro da caixa. A grande maioria dos personagens ali eram seus conhecidos, e ela foi construindo relações entre eles a fim de que eu compreendesse o que ela estava chamando de família e a relevância da casa na construção dela.

286 Figura Destroços da casa de Carla, no dia de sua destruição. Frame de imagem em vídeo. Anelise dos Santos Gutterres, 2008 Apenas aquilo que tem razões para recomeçar Ao chegar à residência de cada uma das interlocutoras eu já sabia de antemão que a casa seria desocupada (em um dos casos sabia, também, que seria demolida). Essa condição etnográfica demarcou temporalmente nossa interlocução pela excepcionalidade (Pollak, 1990, p. 10) desse evento. Nesse circuito de agenciamentos (Latour, 2008, p. 293) entre humanos, antepassados e contemporâneos; objetos guardados ou jogados fora, as casas produziram conexões que foram significadas por Carla e Ainsley na experiência da mudança. Essa experiência foi espaço privilegiado para a construção das recordações, cosidas e descosidas pela condição do presente (Bachelard, 1988, p. 38), e que só foram passíveis de compreensão como construções do processo vivido pela mudança. Na qualidade de narrativa, a morada também se construiu na escuta do antropólogo que assegurou momentaneamente a possibilidade de sua reprodução (Benjamin, 1994, p. 210) e que integrou, na experiência da mudança, o circuito dos agenciamentos. Além da escuta do pesquisador, havia a incerteza de que as conexões ali estabelecidas e que configuravam a morada fossem reproduzidas pelos filhos. Integrantes do mundo dos sucessores (Schutz, 1979, p. 219), os filhos e as relações que seriam produzidas por eles eram completamente indetermináveis; e fugiam do controle das narradoras. Buscando a ressonância dos objetos familiares junto aos seus descendentes, Carla e Ainsley tinham apenas a expectativa de construção de um patrimônio da família através da mediação dos objetos, não a certeza. Guardando ou des-

287 fazendo-se desses objetos, essas mulheres tornaram-se dependentes deles para se perceberem numa teia de relações entre vivos e mortos. Carregados de testemunhos de contextos de significado (Schutz, 1979, p. 213) ou seja, contextos que elas não haviam vivido na contemporaneidade, os objetos e a casa como morada fizeram a mediação entre predecessores e sucessores; estabelecendo relações sociais que configuraram aquilo que para elas tinha razões para recomeçar. As relações de parentesco foram se configurando nas escolhas dos objetos e móveis que iam sendo guardados, em meio às rupturas nos laços parentais e às transformações nas relações sociais de cada família ao longo do tempo. A casa e os objetos operaram como agentes mediadores entre relações indiretas e diretas de pessoas que elas conheceram ou não conheceram, vivas ou mortas e que, configuradas na experiência da mudança, constituíam, todas elas, a suas redes de relações. Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e historia da cultura. Coleção Obras Escolhidas, v ed. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p ECKERT, Cornélia. Questões em torno do uso de relatos e narrativas biográficas na experiência etnográfica. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 19 (1-2), p , Porto Alegre, ECKERT, Cornélia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. O tempo e a cidade. Porto Alegre: UFRGS, ELIAS, Norbert. O processo civilizador, v. 2: Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, FOX, Robin. Parentesco e casamento: uma perspectiva antropológica. Trad. José Carlos Rodrigues. Lisboa: Vega Universidade, GANS, Magda Roswita. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX ( ). Porto Alegre: UFRGS, 2004.

288 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda: os discursos sobre patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Iphan, Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como patrimônios. Revista Horizontes Antropológicos 11 (23), Porto Alegre, jan.-jun GUTTERRES, Anelise dos Santos. A morada como duração da memória: estudo antropológico das narrativas e trajetórias sociais de núcleos familiares e redes de camadas médias urbanas habitantes da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil e do bairro de San Telmo, na cidade de Buenos Aires Argentina. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2010, 227p. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, LATOUR, Bruno. Segundo movimento: redistribuir lo local. In: LATOUR, Bruno. Reensamblar lo social: una introdución a la teoría del actor-red. Trad. Gabriel Zadunaisky. Buenos Aires: Manantial, LINS DE BARROS, Myriam Moraes. Família e gerações. Rio de Janeiro: FGV, Memória e Família. Estudos Históricos 3, Memória. Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989.PESAVENTO, Sandra Jatahy. Empresariado industrial, trabalho e Estado: contribuição a uma análise da burguesia industrial gaúcha ( ). Tese de Doutorado em História. São Paulo: USP, 1986, 640 p. PITT-RIVERS, Julien. A doença da honra. In: CZECHOWSKY, Nicole (org.). A honra: uma imagem de si ou o dom de si um ideal equívoco. Porto Alegre: L&PM, POLLAK, Michael; Le témoignage. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, ns , p. 3-29, jun L Experience Concentrationnnarie. Essai sur lê maintien de l identité sociale. Paris: Éditions Metailié, RICOEUR, Paul. O si e a identidade narrativa: o si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, SCHUTZ, Alfred. Relações sociais indiretas. In: WAGNER, Helmut R. (org. e introd.). Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Subjetividade e sociedade: uma experiência de geração. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

289 WOORTMANN, Ellen Fensterseifer. A árvore da memória. Anuário Antropológico, v. 92, p , Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Keim e parentesco: reflexões sobre uma categoria cultural de colonos teuto-brasileiros. Revista Brasileira de Estudos da População, São Paulo, v.5, n.1, p.21-35, jan/jun.1988.

290 SOBRE OS AUTORES Alberto Goyena Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS, UFRJ). Mestre em Antropologia pela UFRJ (PPGSA/IFCS). Bacharel em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Bolsista de Doutorado sanduíche pelo CNPq na Universidade de Aberdeen, Escócia. Pesquisador na área de Antropologia cultural: Espaços e patrimônios em contextos urbanos. Tem interesse acadêmico pelos seguintes temas: intervenções urbanas, discursos do patrimônio cultural e memória, formas arquitetônicas e procedimentos de demolição. Atualmente é pesquisador vinculado ao Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (Laares/PPGSA/ IFCS, UFRJ). Ana Gabriela Morim de Lima Possui Bacharelado em Ciências Sociais ( ) e Mestrado em Sociologia e Antropologia ( ), ambos pela UFRJ, e atualmente faz Doutorado no PPG em Sociologia e Antropologia da Universidade do Rio de Janeiro. Possui experiência na área de Antropologia, atuando principalmente nos temas relativos à Etnologia ameríndia, Conhecimentos tradicionais e biodiversidade, Antropologia da arte, Patrimônio e Cultura material. Desde 2004 realiza pesquisa com os Krahô, etnia indígena que habita o estado do Tocantins. Anelise dos Santos Gutterres Possui graduação em Comunicação Social (2002) pela PUCRS e Mestrado em Antropologia Social (2010) pela UFRGS. Atualmente é doutoranda em Antropologia Social pela UFRGS, atuando nos seguintes temas: Antropologia da política, Antropologia do trabalho e Antropologia urbana; pesquisa sobre as trajetórias de grupos populares, espa-

291 ço urbano, conflito e crise na vida metropolitana. Atualmente desenvolve pesquisa a partir das redes contestatórias às obras preparatórias para a Copa do Mundo e Olímpíada no Brasil, no contexto de Porto Alegre e do Rio de Janeiro. Clarisse Kubrusly Doutoranda em Antropologia Social no PPGAS-MN, UFRJ. Pesquisa as danças de possessão e a construção da pessoa nos cultos afro-brasileiros em Pernambuco, Brasil. Possui graduação em Ciências Sociais e Mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA-IFCS, UFRJ (2007). Sua dissertação sobre o universo dos maracatus de Recife ganhou primeiro lugar no Prêmio Mário de Andrade (Iphan/Demur) em Esse trabalho foi publicado em 2011 e serviu de argumento para o documentário Dona Joventina, contemplado pelo Etnodoc Daniel Bitter Doutor em Antropologia pelo IFCS-UFRJ e Mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ (2000) com Estágio no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa ISCTE-Lisboa. Atualmente é professor adjunto 2 do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia vinculado a esse departamento. Tem atuado nas áreas de Ritual e simbolismo, Antropologia do dom, Antropologia dos objetos e Etnomusicologia. Desde 2004 é membro da Associação CulturaL Caburé, ONG dedicada à pesquisa e difusão da cultura brasileira através de projetos artísticos e culturais. Sua tese de Doutorado recebeu o primeiro lugar no Prêmio Silvio Romero de monografias, do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/Iphan, publicada com o título de A bandeira e a máscara: a circulação de objetos rituais nas folias de reis, pela Editora 7 Letras e o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP)/ Iphan em 2010.

292 Flora Moana Van de Beuque Mestre em Sociologia e Antropologia (2010) e graduada em Ciências Sociais (2006), ambas pela UFRJ. Tem experiência de pesquisa na área de Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura popular, colecionamento, festas populares, arte popular e objetos. Por sua Dissertação de Mestrado, recebeu a Primeira Menção Honrosa no Prêmio Silvio Romero (2011), concedido pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP). José Reginaldo Santos Gonçalves PhD em Antropologia Cultural pela Universidade de Virginia, Charlottesville, Estados Unidos (1989). Pesquisador 1 do CNPq. Professor/Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS e do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS, ambos da UFRJ. Pesquisador, dirige o Laboratório de Antropologia da Arquitetura e Espaços (Laares) e o Núcleo de Antropologia dos Objetos (Nuclao) no âmbito do PPGSA e do DAC/IFCS, UFRJ. Autor de A retórica da perda: os discursos do Patrimônio Cultural no Brasil, em segunda edição pela Editora da UFRJ/Iphan. Organizador de A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX (textos de James Clifford), atualmente em quarta edição pela Editora da UFRJ. Seu último livro, Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios, foi publicado pelo Iphan. Luzimar Paulo Pereira Doutor em Antropologia pelo PPG em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Possui graduação em Ciências Sociais pela UFRJ (2000) e Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) (2004). É bolsista pós- -doutor júnior ligado ao Departamento de Antropologia Cultural do IFCS da UFRJ, onde atua como professor e pesquisador do Laares. Em 2011, publicou o livro Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre folias em Urucuia/MG. Realiza pesquisas sobre rituais, campesinato, objetos, espaço, festas, reciprocidade e comunidades.

293 Nina Pinheiro Bitar Mestre e doutoranda do PPG em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Possui bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais, também na UFRJ, e experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Urbana. Integra o Laares e o Núcleo de Antropologia dos Objetos (Nuclao) PPGSA, UFRJ. Autora do livro Baianas de acarajé: comida e patrimônio no Rio de Janeiro, pela Editora Aeroplano. Primeira colocada no Prêmio IPP-Rio Maurício de Lima Abreu Roberta Sampaio Guimarães Professora-adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Doutora e mestre em Antropologia Cultural pelo PPG em Sociologia e Antropologia do IFCS, UFRJ. Desenvolve pesquisa principalmente sobre os temas dos objetos e patrimônios, projetos urbanísticos e formas arquitetônicas e cultura e memória afro-brasileiras. Atualmente, prepara para publicação a tese de Doutorado A utopia da Pequena África: os espaços do patrimônio na Zona Portuária carioca (FGV/Faperj). Roger Sansi Professor de Goldsmiths (University of London) e pesquisador na Universitat de Barcelona. Tem trabalhado extensamente sobre religiões afro-brasileiras e arte. Suas publicações incluem Fetishes and Monuments: Afro-Brazilian Culture in the 20th Century (Berghahn, 2007) e Sorcery in the Black Atlantic (Chicago University Press, 2011, editado com Luis Nicolau).

294 Imagens

295 Imagem 1: Pedra do Sal vista de cima (Fotografia de Roberta Sampaio Guimarães) Imagem 2: Fachada da sede do Afoxé Filhos de Gandhi (Fotografia de Roberta Sampaio Guimarães)

296 Imagem 3: Fritando acarajé no dendê (Fotografia de Nina Pinheiro Bitar) Imagem 4: Montando o acarajé (Fotografia de Nina Pinheiro Bitar)

297 Imagem 5: Altar de Oxum (Fotografia de Madalena do Vale)

298 Imagem 6: Bandeira da Folia Sagrada Família (Fotografia de Daniel Bitter)

299 Imagem 7: Palhaço Trinca-ferro. Morro da Candelária, Mangueira, RJ (Fofografia de Daniel Bitter)

300 Imagem 8: Os foliões se servem à mesa (Fofografia de Luzimar Paulo Pereira) Imagem 9: A mesa durante os agradecimentos (Fofografia de Luzimar Paulo Pereira)

301 Imagem 10: Martins Zezinho Ikrehothàt com o Kàjre (Fotografia Ana Gabriela Morim de Lima) Imagem 11: Martins Zezinho Ikrehothàt com o Kàjre (Fotografia Ana Gabriela Morim de Lima)

302 Imagem 12: Calunga Dona Joventina (Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj)

303 Imagem 13: Katarina Real em sua casa conhecida como a torre do frevo no Recife PE 1966 (Acervo Fundação Joaquim Nabuco; Fundaj)

304 Imagem 14: Cazumba em São Luís, MA (Fotografia de Flora Moana Van de Beuque)

305 Imagem 15: Cazumba e sua torre em São Luís, MA (Fotografia de Flora Moana Van de Beuque)

306 Imagem 16: Fachada da casa de Carla (Frame de imagem em vídeo. Autoria: Anelise dos Santos Gutterres) Imagem 17: Destroços da casa de Carla, no dia de sua destruição (Frame de imagem em vídeo. Autoria: Anelise dos Santos Gutterres)

Patrícia Martins PPGAS/UFSC

Patrícia Martins PPGAS/UFSC 343 GONÇALVES, José Reginaldo; BITAR, Nina Pinheiro & GUIMARÃES, Roberta Sampaio. 2013. A alma das coisas: patrimônios, materialidade e ressonância. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ. 296 pp. Patrícia Martins

Leia mais

RESENHA: O Patrimônio como Categoria do Pensamento, de José Reginaldo Santos.

RESENHA: O Patrimônio como Categoria do Pensamento, de José Reginaldo Santos. RESENHA: O Patrimônio como Categoria do Pensamento, de José Reginaldo Santos. d.o.i. 10.13115/2236-1499.2013v1n10p287 Emanoel Magno Atanásio de Oliveira 1 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio

Leia mais

Patrimônios Culturais 60H

Patrimônios Culturais 60H Universidade Federal de Goiás Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia Curso de Mestrado em Antropologia Social Disciplina: Patrimônios Culturais 60H Prof. Manuel Ferreira Lima Filho mflimafilho@yahho.com.br

Leia mais

Revista CPC, São Paulo, n. 8, pp , maio 2009/out

Revista CPC, São Paulo, n. 8, pp , maio 2009/out Resenha do livro: LIMA FILHO, Manuel Ferreira; ECKERT, Cornelia; BELTRÃO, Jane (Orgs.). Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2007. 368 p. Íris Morais

Leia mais

CARTA DO RIO DE JANEIRO SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA 1

CARTA DO RIO DE JANEIRO SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA 1 CARTA DO RIO DE JANEIRO SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA 1 1. CONSIDERANDO que a ciência exerce grande influência no desenvolvimento da sociedade, possibilitando transformações no nosso

Leia mais

Apresentação do curso 1ª aula 14/03 Apresentação do curso. 2ª aula 21/03 - Documentos e contextos

Apresentação do curso 1ª aula 14/03 Apresentação do curso. 2ª aula 21/03 - Documentos e contextos Fundação Oswaldo Cruz Casa de Oswaldo Cruz Programa de Pós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde Disciplina: Perspectivas do patrimônio cultural (MPAT009) Status:

Leia mais

ESPAÇO DE GÊNERO NA MATAÇÃO DOS ANIMAIS DA FOLIA DE REIS, SILVIANÓPOLIS (MG)

ESPAÇO DE GÊNERO NA MATAÇÃO DOS ANIMAIS DA FOLIA DE REIS, SILVIANÓPOLIS (MG) ESPAÇO DE GÊNERO NA MATAÇÃO DOS ANIMAIS DA FOLIA DE REIS, SILVIANÓPOLIS (MG) Fernandes é um bairro rural do munícipio de Silvianópolis (MG) habitado predominantemente por agricultores e criadores de gado.

Leia mais

Patrimônio Histórico. Tradicionalmente refere-se à herança composta por um complexo de bens históricos.

Patrimônio Histórico. Tradicionalmente refere-se à herança composta por um complexo de bens históricos. Patrimônio Histórico Tradicionalmente refere-se à herança composta por um complexo de bens históricos. Todavia, esse conceito vem sendo substituído pela expressão patrimônio cultural, que é muito mais

Leia mais

PRINCIPAIS MONUMENTOS

PRINCIPAIS MONUMENTOS ARTE CHINESA ARQUITETURA Grandes construções da engenharia e arquitetura chinesa de caráter civil e militar foram feitas com pedras e escavadas em rocha viva, tais como A Grande Muralha e os templos budistas

Leia mais

Avaliação Capes, aprovação do doutorado (trechos parecer CAPES):

Avaliação Capes, aprovação do doutorado (trechos parecer CAPES): Avaliação Capes, aprovação do doutorado (trechos parecer CAPES): Os indicadores de produção de artigos são bons, com boa equivalência da produção distribuída da seguinte forma: A1: 4; A2: 7; B1: 26 (...)

Leia mais

Disciplina: HS Antropologia IV: Teorias Antropológicas III 2º semestre de 2007 Profª Ciméa B. Bevilaqua

Disciplina: HS Antropologia IV: Teorias Antropológicas III 2º semestre de 2007 Profª Ciméa B. Bevilaqua Disciplina: HS 046 - Antropologia IV: Teorias Antropológicas III 2º semestre de 2007 Profª Ciméa B. Bevilaqua Ementa: Teorias antropológicas III; tópicos especiais em teorias contemporâneas. PROGRAMA I.

Leia mais

5 Conclusão A intenção da pesquisa realizada nessa dissertação foi encontrar algumas respostas para a pergunta sobre como dois dos principais jornais

5 Conclusão A intenção da pesquisa realizada nessa dissertação foi encontrar algumas respostas para a pergunta sobre como dois dos principais jornais 5 Conclusão A intenção da pesquisa realizada nessa dissertação foi encontrar algumas respostas para a pergunta sobre como dois dos principais jornais americanos usaram o conceito de terrorismo, nas semanas

Leia mais

Disciplina: Sociologia Prof. Edson Elias Turma: 1 ano Ensino Médio. O QUE É ANTROPOLOGIA?

Disciplina: Sociologia Prof. Edson Elias Turma: 1 ano Ensino Médio. O QUE É ANTROPOLOGIA? Disciplina: Sociologia Prof. Edson Elias Turma: 1 ano Ensino Médio. O QUE É ANTROPOLOGIA? Por: Vagner Gonçalves da Silva http://www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html A Antropologia é o estudo do homem

Leia mais

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO PRÓ REITORIA DE GRADUAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO PRÓ REITORIA DE GRADUAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO PRÓ REITORIA DE GRADUAÇÃO Disciplina MUL 107 - Antropologia e Museus Departamento Carga Horária Semanal Teórica 04 Prática 00 DEMUL N o de Créditos 04 Duração/Semanas

Leia mais

Objetos de Conhecimento e Habilidades BNCC (V3)

Objetos de Conhecimento e Habilidades BNCC (V3) Coleção Crescer História aprovada no PNLD 2019 Código 0202P19041 Objetos de Conhecimento e Habilidades BNCC (V3) 1º ano Mundo pessoal: meu lugar no mundo As fases da vida e a ideia de temporalidade (passado,

Leia mais

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS SCH DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS SCH DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA EMENTA DE DISCIPLINA Codigo HS149 Carga Horária Disciplina ANTROPOLOGIA E PATRIMÔNIO Teóricas Práticas Estágio Total Ementa Professor(a) Assist/Monitor O patrimônio como um campo de estudo. O monumento

Leia mais

Código 0222P Objetos de Conhecimento e Habilidades BNCC (V3)

Código 0222P Objetos de Conhecimento e Habilidades BNCC (V3) Coleção Akpalô História aprovada no PNLD 2019 Código 0222P19041 Objetos de Conhecimento e Habilidades BNCC (V3) 1º ano Mundo pessoal: meu lugar no mundo As fases da vida e a ideia de temporalidade (passado,

Leia mais

RICARDO VIDAL GOLOVATY CULTURA POPULAR: SABERES E PRÁTICAS DE INTELECTUAIS, IMPRENSA E DEVOTOS DE SANTOS REIS,

RICARDO VIDAL GOLOVATY CULTURA POPULAR: SABERES E PRÁTICAS DE INTELECTUAIS, IMPRENSA E DEVOTOS DE SANTOS REIS, RICARDO VIDAL GOLOVATY CULTURA POPULAR: SABERES E PRÁTICAS DE INTELECTUAIS, IMPRENSA E DEVOTOS DE SANTOS REIS, 1945-2002. UBERLÂNDIA/MG 2005 RICARDO VIDAL GOLOVATY CULTURA POPULAR: SABERES E PRÁTICAS DE

Leia mais

Abrindo os baús - Tradições e valores das Minas e das Gerais

Abrindo os baús - Tradições e valores das Minas e das Gerais Abrindo os baús - Tradições e valores das Minas e das Gerais Autor(a): Tanya Pitanguy de Paula Ano: 2007 Páginas: 168 Resumo: Toda a história não reside no fato real mesmo, mas na história dos ideais,

Leia mais

A constituição da Antropologia como ciência. Diversidade cultural, relativismo e etnocentrismo. Evolucionismo. Críticas ao Evolucionismo.

A constituição da Antropologia como ciência. Diversidade cultural, relativismo e etnocentrismo. Evolucionismo. Críticas ao Evolucionismo. Disciplina: Introdução à Antropologia (Antropologia I) Período: 2006/1 Profa. Sandra Jacqueline Stoll EMENTA A constituição da Antropologia como ciência. Diversidade cultural, relativismo e etnocentrismo.

Leia mais

EDITAL DO EXAME DE SELEÇÃO PARA INGRESSO NO CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS

EDITAL DO EXAME DE SELEÇÃO PARA INGRESSO NO CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS (PPHPBC) EDITAL DO EXAME DE SELEÇÃO

Leia mais

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES SCHLA DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES SCHLA DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA EMENTA DE DISCIPLINA Código HS 105 Carga Horária Disciplina Antropologia Social Britânica Teóricas Práticas Estágio Total Ementa A formação da Antropologia Social britânica. Teorias clássicas, eixos temáticos

Leia mais

Ementa: Teorias antropológicas III; tópicos especiais em teorias contemporâneas. PROGRAMA DE DISCIPLINA

Ementa: Teorias antropológicas III; tópicos especiais em teorias contemporâneas. PROGRAMA DE DISCIPLINA HS046 Antropologia IV: Teorias Antropológicas III 2º semestre de 2007 Profª Edilene Coffaci de Lima Ementa: Teorias antropológicas III; tópicos especiais em teorias contemporâneas. I - Conteúdo PROGRAMA

Leia mais

Programa de Disciplina /2º semestre

Programa de Disciplina /2º semestre Programa de Disciplina - 2014/2º semestre Código: HS 105 Disciplina: Antropologia Social Britânica - Perspectivas Clássicas e Contemporâneas Curso: Ciências Sociais Professor: João Rickli Horário: Segunda-feira,

Leia mais

LÍNGUAS INDÍGENAS tradição, universais e diversidade

LÍNGUAS INDÍGENAS tradição, universais e diversidade LÍNGUAS INDÍGENAS tradição, universais e diversidade luciana storto LÍNGUAS INDÍGENAS tradição, universais e di versidade Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do

Leia mais

Curso Aprendizes do Evangelho 1º Ano. Aula 1 Evolução da Religiosidade através dos tempos

Curso Aprendizes do Evangelho 1º Ano. Aula 1 Evolução da Religiosidade através dos tempos Curso Aprendizes do Evangelho 1º Ano Aula 1 Evolução da Religiosidade através dos tempos Texto para reflexão Pão Nosso Item 41 No Futuro Quem aqui gosta de manga? Prefere comprida ou curta? Evolução da

Leia mais

1ª aula: 12/03 Módulo I Trabalhando os conceitos de memória, história e patrimônio (Apresentando os conceitos de memória e patrimônio)

1ª aula: 12/03 Módulo I Trabalhando os conceitos de memória, história e patrimônio (Apresentando os conceitos de memória e patrimônio) Fundação Oswaldo Cruz Casa de Oswaldo Cruz Programa de Pós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde Disciplina: Instituições de Memória Status: Eletiva Curso: Mestrado

Leia mais

Colégio Santa Dorotéia Área de Ciências Humanas Disciplina: História Ano: 6º - Ensino Fundamental Professoras: Júlia e Amanda

Colégio Santa Dorotéia Área de Ciências Humanas Disciplina: História Ano: 6º - Ensino Fundamental Professoras: Júlia e Amanda Colégio Santa Dorotéia Área de Ciências Humanas Disciplina: Ano: 6º - Ensino Fundamental Professoras: Júlia e Amanda Atividades para Estudos Autônomos Data: 6 / 3 / 2018 Aluno(a): N o : Turma: Caro(a)

Leia mais

Código: BAC 775 BAC 821

Código: BAC 775 BAC 821 Ementa de Curso/Linha: Imagem e Cultura Período: 2016-1 Disciplina: Cultura Material e Arte Étnica II Professor: Renata Curcio Valente EMENTA: Código: BAC 775 BAC 821 O presente curso, orientado para pesquisadores

Leia mais

Antropologia IV - Questões de Antropologia Contemporânea (2 semestre 2016) Código: FLA0206

Antropologia IV - Questões de Antropologia Contemporânea (2 semestre 2016) Código: FLA0206 Antropologia IV - Questões de Antropologia Contemporânea (2 semestre 2016) Código: FLA0206 Disciplina requisito ou indicação de conjunto: FLA0205 Curso: Ciências Sociais Créditos - Total: 4 Professores

Leia mais

EJA 5ª FASE PROF.ª GABRIELA DACIO PROF.ª LUCIA SANTOS

EJA 5ª FASE PROF.ª GABRIELA DACIO PROF.ª LUCIA SANTOS EJA 5ª FASE PROF.ª GABRIELA DACIO PROF.ª LUCIA SANTOS ARTES CONTEÚDOS E HABILIDADES FORTALECENDO SABERES DESAFIO DO DIA DINÂMICA LOCAL INTERATIVA Unidade I Tecnologia - Corpo, movimento e linguagem na

Leia mais

Cultura e política: debates contemporâneos sobre Ementa conceito de cultura, etnocentrismo, identidade e Requ DOCENTE(S) VALIDADE

Cultura e política: debates contemporâneos sobre Ementa conceito de cultura, etnocentrismo, identidade e Requ DOCENTE(S) VALIDADE UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS SCH DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA EMENTA DE DISCIPLINA Codigo HS 099 Carga Horária Disciplina ANTROPOLOGIA E DINÂMICAS DA CULTURA Teóricas Práticas

Leia mais

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Editor Thiago Domingues Projeto Gráfico e Editorial Rodrigo Rodrigues Revisão Ney Robinson Copidesque Jade Coelho Capa Ana Clara Fank Tiago Shima Copyright Viseu Todos os direitos desta edição são reservados

Leia mais

linha de pesquisa Práticas e Processos em Artes - Artes Visuais.

linha de pesquisa Práticas e Processos em Artes - Artes Visuais. Publicação de Paulo Rogério Luciano, parte da dissertação de Mestrado que reúne a documentação da exposição A Cidade Imaginada & Itinerários Urbanos, realizada em agosto de 2011, das ações realizadas em

Leia mais

MATRIZ DE REFERÊNCIA DE HISTÓRIA - ENSINO FUNDAMENTAL

MATRIZ DE REFERÊNCIA DE HISTÓRIA - ENSINO FUNDAMENTAL D1 D2 D3 D4 D5 Identificar a constituição de identidades culturais em diferentes Reconhecer a influência das diversidades étnico-raciais na formação da sociedade brasileira em diferentes tempos e espaços.

Leia mais

Teoria Antropológica I

Teoria Antropológica I Universidade Federal de Juiz de Fora Instituto de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Disciplina: Teoria Antropológica I Professor: Raphael Bispo Horário: quartas-feiras (14h

Leia mais

Quadro de Oferta 2017_2. Professor Curso Disciplina Horário SALA Eduardo Vargas/Ruben Caixeta

Quadro de Oferta 2017_2. Professor Curso Disciplina Horário SALA Eduardo Vargas/Ruben Caixeta Programa de Graduação em. P P G A n. Arqueologia Obrigatórias Quadro de Oferta 2017_2 Professor Curso Disciplina Horário SALA Eduardo Vargas/Ruben Caixeta Andrei Isnardis Andrei Isnardis Ruben Caixeta/Leandro

Leia mais

GRUPO I POPULAÇÃO E POVOAMENTO. Nome N. o Turma Avaliação. 1. Indica, para cada conceito, o número da definição que lhe corresponde.

GRUPO I POPULAÇÃO E POVOAMENTO. Nome N. o Turma Avaliação. 1. Indica, para cada conceito, o número da definição que lhe corresponde. Nome N. o Turma Avaliação GRUPO I 1. Indica, para cada conceito, o número da definição que lhe corresponde. Conceito Definição a. Cultura 1. Discriminação de povos ou pessoas, por certos grupos de indivíduos,

Leia mais

MATRIZ DE REFERÊNCIA DE HISTÓRIA - ENSINO FUNDAMENTAL

MATRIZ DE REFERÊNCIA DE HISTÓRIA - ENSINO FUNDAMENTAL D1 Identificar a constituição de identidades culturais em diferentes contextos Identificar as diferentes representações sociais e culturais no espaço paranaense no contexto brasileiro. Identificar a produção

Leia mais

PUBLICIDADE, PROPAGANDA E RELAÇÕES INSTITUCIONAIS NO SETOR DE SERVIÇOS PROF. MSC. PAULO ROBERTO VIEIRA DE ALMEIDA

PUBLICIDADE, PROPAGANDA E RELAÇÕES INSTITUCIONAIS NO SETOR DE SERVIÇOS PROF. MSC. PAULO ROBERTO VIEIRA DE ALMEIDA PUBLICIDADE, PROPAGANDA E RELAÇÕES INSTITUCIONAIS NO SETOR DE SERVIÇOS PROF. MSC. PAULO ROBERTO VIEIRA DE ALMEIDA Assuntos Abordados no Módulo Princípios, conceitos e funções da publicidade e da propaganda.

Leia mais

IMAGENS COMO PRÁTICA DE ENSINO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA NAS ESCOLAS INDÍGENAS

IMAGENS COMO PRÁTICA DE ENSINO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA NAS ESCOLAS INDÍGENAS IMAGENS COMO PRÁTICA DE ENSINO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA NAS ESCOLAS INDÍGENAS Célia Maria Foster Silvestre 1 1 Professora do Curso de Ciências Sociais, Unidade Universitária de Amambaí; e-mail: celia.silvestre@gmail.com

Leia mais

Normas para Apresentação de Trabalhos Ensino Fundamental II (normas simplificadas adaptadas da ABNT)

Normas para Apresentação de Trabalhos Ensino Fundamental II (normas simplificadas adaptadas da ABNT) Normas para Apresentação de Trabalhos Ensino Fundamental II (normas simplificadas adaptadas da ABNT) Todo trabalho escolar, acadêmico e cientifico necessita de padronização na sua forma de apresentação,

Leia mais

Antropologia. Prof. Elson Junior. Santo Antônio de Pádua, março de 2017

Antropologia. Prof. Elson Junior. Santo Antônio de Pádua, março de 2017 Antropologia Prof. Elson Junior Santo Antônio de Pádua, março de 2017 O Que é a Antropologia? Ciência da cultura humana. É uma disciplina que investiga as origens, o desenvolvimento e as semelhanças das

Leia mais

COPYRIGHT TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - SABER E FÉ

COPYRIGHT TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - SABER E FÉ Aviso importante! Esta disciplina é uma propriedade intelectual de uso exclusivo e particular do aluno da Saber e Fé, sendo proibida a reprodução total ou parcial deste conteúdo, exceto em breves citações

Leia mais

Temas de orientação dos professores do PPGHIS

Temas de orientação dos professores do PPGHIS ANEXO I Temas de orientação dos professores do PPGHIS Andréa Casa Nova Maia Doutora em História (UFF, 2002). Linhas de pesquisa: Sociedade e Cultura; Sociedade e Política. Temas de orientação: história

Leia mais

RIF Ensaio Fotográfico

RIF Ensaio Fotográfico RIF Ensaio Fotográfico Fé Canindé: sobre romeiros, romarias e ex-votos Fotos: Itamar de Morais Nobre 1 Texto: Beatriz Lima de Paiva 2 O ensaio fotográfico é um recorte de um projeto documental em desenvolvimento

Leia mais

Bens em regime de proteção federal IPHAN

Bens em regime de proteção federal IPHAN Bens em regime de proteção federal IPHAN Casa de Câmara e Cadeia de Santos Número do Processo: 545 - T. Livro das Belas Artes: inscrição n.º 448, fl. 83, 12/05/59. Tombamento pelo CONDEPHAAT: inscrição

Leia mais

Literatura Brasileira Código HL ª: 10h30-12h30

Literatura Brasileira Código HL ª: 10h30-12h30 Código HL 012 Nome da disciplina VI Turma A 3ª: 07h30-09h30 6ª: 10h30-12h30 Pedro Dolabela Programa resumido Falaremos do romance no Brasil entre 1964 e 1980 sob uma série de perspectivas simultâneas:

Leia mais

Associações de moradores de favelas no Rio de Janeiro das UPP s

Associações de moradores de favelas no Rio de Janeiro das UPP s Associações de moradores de favelas no Rio de Janeiro das UPP s Suellen Guariento 1 O trabalho analisa a atuação de associações de moradores de favelas no Rio de Janeiro no contexto das chamadas Unidades

Leia mais

HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO

HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO Hermenêutica e Interpretação não são sinônimos: HERMENÊUTICA: teoria geral da interpretação (métodos, estratégias, instrumentos) INTERPRETAÇÃO: aplicação da teoria geral para

Leia mais

Carga Horária das Disciplinas e Atividades Acadêmicas

Carga Horária das Disciplinas e Atividades Acadêmicas Carga Horária das Disciplinas e Atividades Acadêmicas LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA - Grade Curricular Sugerida (C/H) Primeiro Período Seminário, Educação e Sociedade 40 Introdução aos Estudos Históricos

Leia mais

A construção do tempo nacional na historiografia brasileira do século XIX Estágio docente da doutoranda Nathália Sanglard

A construção do tempo nacional na historiografia brasileira do século XIX Estágio docente da doutoranda Nathália Sanglard UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA A construção do tempo nacional na historiografia brasileira do século XIX Estágio docente da doutoranda Nathália Sanglard Ementa:

Leia mais

OSMANYR BERNARDO FARIAS POLÍTICAS DE INSERÇÃO INDÍGENA NA UNIVERSIDADE: O SIGNIFICADO DA FORMAÇÃO SUPERIOR PARA OS ÍNDIOS TERENA

OSMANYR BERNARDO FARIAS POLÍTICAS DE INSERÇÃO INDÍGENA NA UNIVERSIDADE: O SIGNIFICADO DA FORMAÇÃO SUPERIOR PARA OS ÍNDIOS TERENA OSMANYR BERNARDO FARIAS POLÍTICAS DE INSERÇÃO INDÍGENA NA UNIVERSIDADE: O SIGNIFICADO DA FORMAÇÃO SUPERIOR PARA OS ÍNDIOS TERENA UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO CAMPO GRANDE-MS MARÇO 2008 OSMANYR BERNARDO

Leia mais

Cultura Material e Imaterial

Cultura Material e Imaterial Cultura Material e Imaterial 1. (ENEM 2013) TEXTO I Material de apoio para Monitoria Andaram na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e daí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este

Leia mais

2ª. Sessão: BANTON, M The Idea of Race. Londres, Travistock. Caps. 5, 8 e 9.

2ª. Sessão: BANTON, M The Idea of Race. Londres, Travistock. Caps. 5, 8 e 9. PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO QUINTA DA BOA VISTA S/N. SÃO CRISTÓVÃO. CEP 20940-040 RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL Tel.: 55 (21) 2568-9642 - fax

Leia mais

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - CURSO DE DOUTORADO - E D I T A L 2009

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - CURSO DE DOUTORADO - E D I T A L 2009 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - CURSO DE DOUTORADO - E D I T A L 2009 O da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro torna pública a abertura das inscrições para as provas de seleção

Leia mais

Mais do que um retrato

Mais do que um retrato Faculdade Cásper Líbero Mais do que um retrato Os detalhes nas personagens de Van Dick Luciana Fernandes dos Reis 2º JO D História da Arte Jorge Paulino São Paulo/ 2009 A Marquesa Lomellini e os Filhos

Leia mais

Ementa: Teorias antropológicas III; tópicos especiais em teorias contemporâneas PROGRAMA DE DISCIPLINA

Ementa: Teorias antropológicas III; tópicos especiais em teorias contemporâneas PROGRAMA DE DISCIPLINA HS046 Antropologia IV: Teorias Antropológicas III 2º semestre de 2009 Profª Edilene Coffaci de Lima Ementa: Teorias antropológicas III; tópicos especiais em teorias contemporâneas I - Conteúdo PROGRAMA

Leia mais

INFORMAÇÃO, MEMÓRIA E AS HUMANIDADES DIGITAIS

INFORMAÇÃO, MEMÓRIA E AS HUMANIDADES DIGITAIS INFORMAÇÃO, MEMÓRIA E AS HUMANIDADES DIGITAIS experiências do Repositório Institucional da Fundação João Pinheiro Roger Guedes Doutor em Ciência da Informação (UFMG). Bibliotecário. Fundação João Pinheiro

Leia mais

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais FaE Faculdade de Educação OFERTA DE DISCIPLINAS OPTATIVAS 2013/1º DAE CÓDIGO DISCIPLINA TURNO PROFESSOR(A)

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais FaE Faculdade de Educação OFERTA DE DISCIPLINAS OPTATIVAS 2013/1º DAE CÓDIGO DISCIPLINA TURNO PROFESSOR(A) CÓDIGO DISCIPLINA TURNO PROFESSOR(A) OP1 OP3 OP4 OP5 (direcionada) OP6 DAE Título: Educação, trabalho docente e cidadania: desafios Nome professor: LÍVIA FRAGA Terça: noite contemporâneos VIEIRA EMENTA:

Leia mais

Medida Normalização e Qualidade. Aspectos da história da metrologia no Brasil

Medida Normalização e Qualidade. Aspectos da história da metrologia no Brasil Medida Normalização e Qualidade Aspectos da história da metrologia no Brasil Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo _ MICT Ministro José Botafogo Gonçalves Instituto Nacional de Metrologia,

Leia mais

CAPELA DO TAIM: UMA REPRESENTAÇÃO MATERIAL DA IDENTIDADE LOCAL (RIO GRANDE / RS)

CAPELA DO TAIM: UMA REPRESENTAÇÃO MATERIAL DA IDENTIDADE LOCAL (RIO GRANDE / RS) 1 CAPELA DO TAIM: UMA REPRESENTAÇÃO MATERIAL DA IDENTIDADE LOCAL (RIO GRANDE / RS) Educação, Linguagem e Memória Hélen Bernardo Pagani 1 (helenpagani@unesc.net) Josiel dos Santos 2 ( josiel@unesc.net)

Leia mais

Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. a) Pesquisas com resultados parciais ou finais (dissertações e teses);

Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. a) Pesquisas com resultados parciais ou finais (dissertações e teses); X Jogo do Livro Infantil e Juvenil: Qual Literatura? 6 a 8 de novembro de 2013 Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Orientações para submissão de trabalhos 1) Comunicações Na categoria

Leia mais

Disciplina: HS045 Antropologia III: Teorias Antropológicas II Profa. Ciméa Barbato Bevilaqua - 1º semestre de 2011

Disciplina: HS045 Antropologia III: Teorias Antropológicas II Profa. Ciméa Barbato Bevilaqua - 1º semestre de 2011 Disciplina: HS045 Antropologia III: Teorias Antropológicas II Profa. Ciméa Barbato Bevilaqua - 1º semestre de 2011 Turma A: 4ª feira 07:30-09:30 e 6ª feira 09:30-11:30 Turma B: 2ª feira 09:30-11:30 e 4ª

Leia mais

CADERNOS DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA PRORROGAÇÃO DA CHAMADA PARA PUBLICAÇÕES DE 08/12/2012 a 08/02/2013

CADERNOS DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA PRORROGAÇÃO DA CHAMADA PARA PUBLICAÇÕES DE 08/12/2012 a 08/02/2013 CADERNOS DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA PRORROGAÇÃO DA CHAMADA PARA PUBLICAÇÕES DE 08/12/2012 a 08/02/2013 Chamada para publicação 02/2012 O Laboratório de História da Ciência torna público a PRORROGAÇÃO da Chamada

Leia mais

Cultura material e imaterial

Cultura material e imaterial Cultura material e imaterial Patrimônio Histórico e Cultural: Refere-se a um bem móvel, imóvel ou natural, que possua valor significativo para uma sociedade, podendo ser estético, artístico, documental,

Leia mais

FACULDADE SETE DE SETEMBRO FASETE

FACULDADE SETE DE SETEMBRO FASETE PLANO DE CURSO 1. DADOS DE IDENTIFICAÇÃO Curso: Bacharelado em Psicologia Disciplina: Fundamentos Sócio-Antroplógicos da Psicologia Professor: Salomão David Vergne e-mail: vergne07@gmail.com Cardoso Código:

Leia mais

PATRIMÔNIO CULTURAL LOCAL: MEMÓRIA E PRESERVAÇÃO REGIÃO LITORAL DO RIO GRANDE DO SUL - RS

PATRIMÔNIO CULTURAL LOCAL: MEMÓRIA E PRESERVAÇÃO REGIÃO LITORAL DO RIO GRANDE DO SUL - RS PATRIMÔNIO CULTURAL LOCAL: MEMÓRIA E PRESERVAÇÃO REGIÃO LITORAL DO RIO GRANDE DO SUL - RS Educação, Linguagem e Memória 1 Hélen Bernardo Pagani 1 (helenpagani@unesc.net) Laíse Niehues Volpato 2 (laisevolpato@unesc.net)

Leia mais

Patrimônio, museus e arqueologia

Patrimônio, museus e arqueologia Universidade de São Paulo Biblioteca Digital da Produção Intelectual - BDPI Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE Livros e Capítulos de Livros - MAE 2014 Patrimônio, museus e arqueologia http://www.producao.usp.br/handle/bdpi/47543

Leia mais

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA C/H 170 (1388/I)

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA C/H 170 (1388/I) EMENTÁRIO DAS DISCIPLINAS DO CURSO DE HISTÓRIA IRATI (Currículo iniciado em 2010) ANTROPOLOGIA CULTURAL C/H 68 (1364/I) Estudo das teorias da antropologia cultural e social e da etnografia voltadas para

Leia mais

EMENTÁRIO HISTÓRIA LICENCIATURA EAD

EMENTÁRIO HISTÓRIA LICENCIATURA EAD EMENTÁRIO HISTÓRIA LICENCIATURA EAD CANOAS, JULHO DE 2015 DISCIPLINA PRÉ-HISTÓRIA Código: 103500 EMENTA: Estudo da trajetória e do comportamento do Homem desde a sua origem até o surgimento do Estado.

Leia mais

Definição: ( PÉRES, 2006)

Definição: ( PÉRES, 2006) Antropologia Visual Definição: Antropologia Visual é uma área da Antropologia Sócio-cultural, que utiliza suportes imagéticos para descrever uma cultura ou um aspecto particular de uma cultura. ( PÉRES,

Leia mais

CRP0468 PATRIMÔNIO CULTURAL EM TURISMO E BENS IMATERIAIS

CRP0468 PATRIMÔNIO CULTURAL EM TURISMO E BENS IMATERIAIS CRP0468 PATRIMÔNIO CULTURAL EM TURISMO E BENS IMATERIAIS Objetivos: A disciplina tem por objetivo capacitar o aluno a refletir e posicionar-se criticamente diante das apropriações do patrimônio cultural

Leia mais

Cinema, televisão e história

Cinema, televisão e história Cinema, televisão e história Coleção PASSO-A-PASSO CIÊNCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO Direção: Celso Castro FILOSOFIA PASSO-A-PASSO Direção: Denis L. Rosenfield PSICANÁLISE PASSO-A-PASSO Direção: Marco Antonio

Leia mais

LITERATURA, IDENTIDADE E DIFERENÇA CULTURAL (COMUNICAÇÃO DE PESQUISA DE DISCENTES DO PROGRAMA)

LITERATURA, IDENTIDADE E DIFERENÇA CULTURAL (COMUNICAÇÃO DE PESQUISA DE DISCENTES DO PROGRAMA) 4 LITERATURA, IDENTIDADE E DIFERENÇA CULTURAL (COMUNICAÇÃO DE PESQUISA DE DISCENTES DO PROGRAMA) OS CAMINHOS SECRETOS DE UM CONTO DE BORGES Maria Perla Araújo Morais* Percorrer um único caminho em uma

Leia mais

RESOLUÇÃO Nº 81/10-CEPE

RESOLUÇÃO Nº 81/10-CEPE RESOLUÇÃO Nº 81/10-CEPE Estabelece o Currículo Pleno do Curso de Bacharelado em Ciências Sociais, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. O CONSELHO DE ENSINO,

Leia mais

Obs. Todas as disciplinas relacionadas já são registradas e codificadas. Pertencem ao DFCH com Carga Horária - 60 horas Créditos: 2T1P.

Obs. Todas as disciplinas relacionadas já são registradas e codificadas. Pertencem ao DFCH com Carga Horária - 60 horas Créditos: 2T1P. Anexo DISCIPLINAS OPTATIVAS DO CURSO A) Disciplinas Optativas do Eixo da Formação Científico-Cultural FCH358 - Antropologia do Imaginário: Analisar a constituição do imaginário social, a partir de uma

Leia mais

Construindo a memória e identidade no Tocantins

Construindo a memória e identidade no Tocantins Construindo a memória e identidade no Tocantins Resenha do Livro: SANTOS, José Vandilo. Memória e identidade. Curitiba: Appris, 2015. João Nunes da Silva 1 O professor José Vandilo dos Santos é antropólogo

Leia mais

O Cristianismo É uma religião abraâmica monoteísta centrada na vida e nos ensinamentos de Jesus, tais como são apresentados no Novo Testamento; A Fé

O Cristianismo É uma religião abraâmica monoteísta centrada na vida e nos ensinamentos de Jesus, tais como são apresentados no Novo Testamento; A Fé O Cristianismo É uma religião abraâmica monoteísta centrada na vida e nos ensinamentos de Jesus, tais como são apresentados no Novo Testamento; A Fé cristã crer em Jesus como o Cristo, Filho de Deus, Salvador

Leia mais

CATEDRAL DE PONTA GROSSA: A IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO NA HISTÓRIA DO MUNÍCIPIO.

CATEDRAL DE PONTA GROSSA: A IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO NA HISTÓRIA DO MUNÍCIPIO. ISSN 2238-9113 Área Temática: Cultura CATEDRAL DE PONTA GROSSA: A IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO NA HISTÓRIA DO MUNÍCIPIO. Carlos Eduardo Machado Gonçalves (cadumachado308@gmail.com) Márcia Maria Dropa (mdropa@gmail.com)

Leia mais

COLÉGIO MAGNUM BURITIS

COLÉGIO MAGNUM BURITIS COLÉGIO MAGNUM BURITIS PROGRAMAÇÃO DE 1ª ETAPA 2ª SÉRIE PROFESSORA: Elise Avelar DISCIPLINA: Língua Portuguesa TEMA TRANSVERSAL: A ESCOLA E AS HABILIDADES PARA A VIDA NO SÉCULO XXI DIMENSÕES E DESENVOLVIMENTO

Leia mais

AGENDA NOVEMBRO /QUINTA

AGENDA NOVEMBRO /QUINTA AGENDA NOVEMBRO 2018 01/QUINTA 15h às 17h30 Cultura e Desenvolvimento 15h às 18h30 Feminismos online 19h às 21h30 Fotografia, Gênero e Política 19h30 às 21h30 A linguagem da Máscara Neutra e a Máscara

Leia mais

DISCURSO IMAGÉTICO. Por Claudio Alves BENASSI DAS TRANSMUTAÇÕES POÉTICAS/SEMÂNTICAS PARA O

DISCURSO IMAGÉTICO. Por Claudio Alves BENASSI DAS TRANSMUTAÇÕES POÉTICAS/SEMÂNTICAS PARA O DAS TRANSMUTAÇÕES POÉTICAS/SEMÂNTICAS PARA O DISCURSO IMAGÉTICO Por Claudio Alves BENASSI m dos recursos muito utilizados na Língua de U Sinais (LS) e que mais comove seus usuários é, sem dúvida, a interpretação

Leia mais

A sua obra, maioritariamente em fotografia e vídeo, tem um grande carácter subjetivo e é bastante marcada por referências literárias e históricas.

A sua obra, maioritariamente em fotografia e vídeo, tem um grande carácter subjetivo e é bastante marcada por referências literárias e históricas. Prece geral, de Daniel Blaufuks RECURSOS PEDAGÓGICOS O artista Daniel Blaufuks é um artista português, nascido em Lisboa em 1963. A sua obra, maioritariamente em fotografia e vídeo, tem um grande carácter

Leia mais

ATRIBUIÇÕES DO IPHAN NA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

ATRIBUIÇÕES DO IPHAN NA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO ATRIBUIÇÕES DO IPHAN NA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO Curso de Capacitação de Guias Fortalezas e Turismo Embarcado na APA de Anhatomirim Florianópolis, 26 de novembro de 2014 IPHAN - Instituto do Patrimônio

Leia mais

DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga horária mínima 300 horas

DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga horária mínima 300 horas 1 DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga mínima 300 horas O aluno deverá cursar a carga mínima de 300 horas em disciplinas optativas. Estas disciplinas serão oferecidas pelos diversos

Leia mais

A BELO HORIZONTE DOS MODERNISTAS

A BELO HORIZONTE DOS MODERNISTAS A BELO HORIZONTE DOS MODERNISTAS Autora: Luciana Teixeira Andrade Editora: C/Arte Ano: 2004 Páginas: 208 Resumo: Destacam-se, nas últimas décadas, duas modalidades novas de textos sobre o modernismo literário

Leia mais

Letras Língua Portuguesa

Letras Língua Portuguesa Letras Língua Portuguesa Leitura e Produção de Texto I 30h Ementa: Ocupa-se das estratégias de leitura e produção de textos orais e escritos considerando os aspectos formal e estilístico e sua relação

Leia mais

EXTREMOS CONTEMPORÂNEOS

EXTREMOS CONTEMPORÂNEOS EXTREMOS CONTEMPORÂNEOS Coleção Imaginário Cotidiano Coordenador da coleção: Luis Gomes Conselho Editorial: Álvaro Nunes Larangeira UTP Edgard de Assis Carvalho PUC-SP João Freire Filho UFRJ Juremir Machado

Leia mais

FRAGMENTO DO IMAGINÁRIO. Programa In Loco, Oficinas de fotografia

FRAGMENTO DO IMAGINÁRIO. Programa In Loco, Oficinas de fotografia FRAGMENTO DO IMAGINÁRIO Programa In Loco, Oficinas de fotografia Salvador, 22 até 28 março de 2018 A terceira edição do Programa IN LOCO apresenta a oficina do destacado fotógrafo BAUER SÁ In Loco, novo

Leia mais

Apresentação para Sala de Aula para alunos de 1ª a 4ª série

Apresentação para Sala de Aula para alunos de 1ª a 4ª série Apresentação para Sala de Aula para alunos de 1ª a 4ª série O que é Patrimônio Cultural? Patrimônio é constituído pelos bens materiais e imateriais que se referem à nossa identidade, nossas ações, costumes,

Leia mais

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS SCH DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS SCH DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA EMENTA DE DISCIPLINA Código HS 104 Carga Horária Disciplina Antropologia cultural norte-americana: Práti perspectivas clássicas e contemporâneas Teóricas cas Estágio Total Ementa A formação da Antropologia

Leia mais

ATUALIDADES. Atualidades Conflito s do Mundo Contemporâneo Ásia. Prof. Marcelo Saraiva

ATUALIDADES. Atualidades Conflito s do Mundo Contemporâneo Ásia. Prof. Marcelo Saraiva ATUALIDADES Atualidades 2017 Conflito s do Mundo Contemporâneo Ásia Prof. Marcelo Saraiva Ásia Afeganistão A invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos ocorreu após os ataques de 11 de setembro no final

Leia mais

DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga horária mínima 300 horas

DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga horária mínima 300 horas 1 DISCIPLINAS OPTATIVAS DO BACHARELADO EM ATUAÇÃO CÊNICA Carga horária mínima 300 horas Serão oferecidas aos alunos do Bacharelado em Atuação Cênica 101 disciplinas optativas, dentre as quais o aluno deverá

Leia mais

RIF Ensaio Fotográfico

RIF Ensaio Fotográfico RIF Ensaio Fotográfico Devoção ao divino: simbolismos de uma catolicidade popular Alvaro Daniel Costa 1 Maura Regina Petruski 2 Vanderley de Paula Rocha 3 As imagens que compõem este ensaio fotográfico

Leia mais

O ESPÍRITO NATALINO GANHA AS RUAS NUM GRANDE DESFILE DE SONHO E MAGIA

O ESPÍRITO NATALINO GANHA AS RUAS NUM GRANDE DESFILE DE SONHO E MAGIA O ESPÍRITO NATALINO GANHA AS RUAS NUM GRANDE DESFILE DE SONHO E MAGIA NATAL MÁGICO No Natal Mágico o espírito natalino ganhará forma num grandioso desfile de sonho e magia. Ajudantes de Papai Noel, bailarinas,

Leia mais

A recepção televisiva em pesquisas historiográficas: apontamentos teóricos-metodológicos

A recepção televisiva em pesquisas historiográficas: apontamentos teóricos-metodológicos A recepção televisiva em pesquisas historiográficas: apontamentos teóricos-metodológicos Monise Cristina Berno Mestranda Unesp/Assis Resumo Esta comunicação busca apresentar minhas reflexões sobre trabalhos

Leia mais

EVOLUCIONISMO CULTURAL: Tylor, Morgan e Frazer.

EVOLUCIONISMO CULTURAL: Tylor, Morgan e Frazer. EVOLUCIONISMO CULTURAL: Tylor, Morgan e Frazer. Prof. Elson Junior Santo Antônio de Pádua, março de 2017 Edward Tylor (1832-1917) Edward Tylor (1832-1917) Tylor lançando-se no debate da época no qual as

Leia mais