Pós-Modernidade e Teoria Social Contemporânea
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- Talita Gil Canário
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1 Pós-Modernidade e Teoria Social Contemporânea Krishan KUMAR. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna. Novas Teorias sobre o Mundo Contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., _c páginas. c Flávio Ramosl Se há algo polêmico nas ciências sociais, poderemos situar o "conceito" de pós-modernidade no centro de qualquer debate acadêmico. A obra de Kumar, cientista político indiano, radicado na Inglaterra, embora tenha como eixo central uma retrospectiva histórica sobre as diferentes contribuições teóricas que buscaram interpretações sobre as sociedades modernas, ousa apresentar inigualável painel em que contextualiza a utilização da expressão pós-modernidade a partir da visão de diversos autores contemporâneos. A obra de Kumar, embora não seja recente, justifica uma resenha, pois o autor, pouco conhecido em nosso meio acadêmico, parece colocar "a casa em ordem", apresentando, de forma didática, as inúmeras ocasiões em que a expressão adquiriu significados diferentes, proporcionando ao leitor agradável e esclarecedora leitura. Afinal, para alguns autores, a pós-modernidade é um conceito vazio, desprovido de qualquer consistência teórica e, pior, algo que estaria a serviço de um suposto discurso conservador, pois atenderia, em última instância, à manutenção de um estado 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina.
2 190 p Política & Sociedade de desconstrução das referências teóricas que nos ajudaram a compreender o mundo nestes últimos trezentos anos. Kumar contribui significativamente para o caloroso debate que envolve a enigmática expressão pós-modernidade, principalmente quando nos permite relativizar as críticas usuais que recaem, nem sempre de forma honesta, sobre o conceito. Poderíamos nos aventurar e aceitar, a partir da leitura, mesmo com algumas reservas, a idéia de que o termo representaria um momento, na história da humanidade, em que culturas diferenciadas e a fácil, em parte, conexão entre as mesmas proporcionariam condições inéditas de interação entre espaços heterogêneos. Não será preciso registrar os avanços tecnológicos, facilidades de comunicação, transporte, etc., explicações suficientemente exploradas em centenas de artigos que abordaram exaustivamente os processos de globalização. E Kumar, conhecedor das armadilhas inerentes ao debate sobre globalização, intencionalmente não dedica especial atenção ao fenômeno, evitando fazer qualquer tipo de paralelo entre pós-modernidade e globalização. Uma das principais constatações da pós-modernidade, que neste caso poderia confundir-se, ou fundir-se ao fenômeno da globalização, é o entendimento de que o Estado, antes estruturado a partir de um centro organizado, diluiu-se numa rede de interconexão, com novos atores, nem sempre facilmente identificada. Por outro lado, o próprio sistema social, característica da modernidade, apresenta-se descentralizado e desconectado com instituições puramente nacionais. Os novos movimentos sociais, transversais e introdutores de novos temas, abordam novas questões não necessariamente ligadas a interesses circunscritos aos limites de um Estado nacional. As instituições políticas, por sua vez, constituídas ao longo dos séculos XVIII e XIX, como os parlamentos, sindicatos, partidos políticos, não conseguem mais atender as demandas de um mundo transformado, de uma sociedade multicultural, sem identidade de classe, sem um eixo que possa transformar seus movimentos em algo unificado, com desejos e expectativas de um conjunto harmônico.
3 Pós-Modernidade e Teoria Social Contemporânea Flávio Ramos Embora Kumar apresente outros paradigmas da Teoria Social Contemporânea, como a sociedade da informação e as teorias do pós-fordismo, na maior parte de sua obra é o debate sobre a pós-modernidade que adquire maior destaque. Kumar resgata a origem da expressão ainda no século XIX e, fazendo uma viagem pela história, enfatiza a contribuição de Jean-François Lyotard que, em 1979, desenhou os traços definitivos do conceito, afirmando que a chegada da pós-modernidade estava relacionada ao surgimento de uma sociedade pós-industrial e disseminou a idéia de que não haveria mais espaço para as grandes narrativas. Enfatiza igualmente a contribuição de Alain Touraine, quando este aborda, praticamente na mesma época, que as forças econômicas passam a transcender os limites dos Estados nacionais. Para completar o ciclo e estabelecer a base epistemológica do conceito, Kumar não poderia deixar de registrar Jürgen Habermas, quando este profere seu célebre discurso Modernidade Um Projeto Inacabado, em Frankfurt. Naquele momento, o filósofo alemão, numa postura nitidamente de esquerda, renega com veemência o conceito de pós-modernidade, defendendo com brilhantismo que o projeto da modernidade ainda estaria em curso. As esquerdas mundiais, em grande parte, ainda se baseiam em Habermas para identificar qualquer discurso em torno da pósmodernidade como algo vinculado ao pensamento neoconservador. A rejeição fortalece-se e o termo adquire conotações irônicas ou pejorativas. Quando algum cientista social desagrada alguns autores comprometidos com o marxismo, é comum ouvirmos, com uma ponta de ironia, a acusação de que o autor é "pós-moderno", interessado em desconstruir as teorias totalizantes e os paradigmas da modernidade. O comodismo dessas acusações aborta qualquer tentativa em pensar o atual estágio da modernidade como produto dos processos de modernização recentes. A recusa em interpretar novos fenômenos embrutece e nega a possibilidade de admitir a possibilidade de que os autores pós-modernos não seriam, em absoluto, pensadores conservadores. Muito pelo contrário, em nosso ponto de vista. É neste momento que a obra de Kumar se sobressai, pois, como assinalamos anteriormente, contextualiza p
4 Política & Sociedade praticamente todos os autores contemporâneos que abordam o tema. O livro, neste sentido, é de grande valia para todos aqueles, iniciantes ou não, que desejam, ou necessitam, ordenar a produção teórica sobre o que se entende por pós-modernidade. E não são poucos os "necessitados". Apesar da resistência dos autores marxistas, a Teoria Social incorporou o tema. É curioso observar que, independente das polêmicas que envolvem o conceito, alguns autores fogem deliberadamente da expressão pós-modernidade, adotando conceitos alternativos. Independente da ambigüidade da expressão, o que faz com que autores renomados fujam do termo, Kumar não estabelece limites para a utilização do conceito, pois, segundo o cientista político, a pós-modernidade seria um estado de reflexão, não havendo uma "percepção de um novo começo, mas apenas um senso algo melancólico de fim" (p.79). A Kumar coube o mérito de, no mínimo, contextualizar as novas teorias sobre o mundo atual. O autor afirma, por exemplo, que correntes de pensamento marxista defendem a tese de que a pós-modernidade seria nada mais nada menos do que um estágio mais avançado do capitalismo contemporâneo. Os marxistas, curiosamente, adotaram um vocabulário paralelo para melhor representar o que para alguns seria a própria pós-modernidade. Os adjetivos e/ou sinônimos proliferam, e expressões como "capitalismo desorganizado", "pós-fordismo", "sistema mundial", "capitalismo tardio", para que esse novo momento, pluralista e fragmentado, possa ser compreendido por aqueles que se recusam a pensar e refletir sobre os processos globalizantes como um fenômeno realmente novo. A teoria pós-moderna, segundo os críticos mais ásperos, proporcionaria o desencanto com a política ou, mais precisamente, o desencantamento com as possibilidades de transformação da sociedade. Kumar consegue perceber, no entanto, que muitos desses críticos parecem ser cooptados pelo "canto das sereias" das teorias pós-modernas, pois até mesmo autores críticos dessas teorias parecem estar, muitas vezes, hipnotizados pelo apelo indiscutível do tema. Citando os insuspeitos Fredric Jamenson e Scott Lash, 192 p
5 Pós-Modernidade e Teoria Social Contemporânea Flávio Ramos afirma que esses mesmos autores são resistentes ao adotar a expressão, "mas são tão simpáticos a seus conceitos básicos e os elucidam com tal compreensão que parecem, na prática, aceitar a visão pósmoderna do mundo. São, na verdade, pós-modernistas disfarçados. Isso, aliás, acontece freqüentemente com pós-modernistas. É de fato muito difikil encontrar alguém que se declare inequivocadamente à posição pós-moderna (p.149)". Parece curioso, mas é exatamente desta forma que diversos cientistas sociais parecem posicionar-se. Kumar vai além, completando que atualmente é uma provocação perigosa, no mundo da academia, se definir como pós-moderno. Kumar demonstra que a complexa, e nova, fronteira entre Estado e sociedade, as formas igualmente inéditas de ação social desvinculadas da política institucional, o papel dos grupos sociais diferenciados, as relações raciais, a questão ambiental, o multiculturalismo de uma sociedade radicalmente transformada pelos processos de modernização recente, proporcionam desafios ímpares para as ciências sociais. 1-lá uma mistura de ceticismo, perplexidade, mas também de aventura em refletir sobre novos temas. E Kumar nos motiva para essa reflexão. É possível que, depois de longas e duradouras décadas, a Teoria Social tenha encontrado um horizonte sem limites para a produção intelectual. Avançar aqui e ali em novas investigações, sem um eixo central, norteador, talvez passe a falsa impressão que as ciências sociais tenham se fragmentado de tal maneira que será dificil reconstruí-la com alguma unicidade. Kumar, no entanto, apresenta excelente e claro argumento sobre esse falso dilema dos autores mais críticos ao pensamento pós-moderno: "O mundo ainda é, sem a menor dúvida, capitalista, e nele existe a pós-modernidade. Mas até que ponto a situação pós-moderna deve ser explicada pela mecânica do desenvolvimento capitalista?" (p.202). o c Ora, ninguém é ingênuo o suficiente para não enxergar o óbvio, ou seja, vivemos um capitalismo global, com graus de exclusão social inaceitáveis, mas, ao contrário do que imaginávamos, não há mais utopias possíveis à frente, pelo menos como as concebemos na modernidade. Esta é a grande distinção enp
6 Política & Sociedade tre os marxistas remanescentes e os cientistas sociais com longa tradição humanista, mas que abandonaram seus projetos não como aderentes à lógica do liberalismo, mas pela impossibilidade prática de continuar com as metanarrativas, características da modernidade. Kumar, em sua obra, de uma forma ou de outra nos permite reflexões libertas de ancoragens teóricas ortodoxas. O que é, digase de passagem, extremamente saudável. Leiamos, portanto, a obra do cientista político indiano, no mínimo esclarecedora e ilustrativa de tempos mutáveis, não previsíveis e inconstantes. Seremos todos nós pós-modernos? Mesmo que não queiramos ou saibamos? Quem sabe? 194 p,
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