ESPIRITUALIDADE EM MACHADO DE ASSIS: O ESPELHO
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1 92 ESPIRITUALIDADE EM MACHADO DE ASSIS: O ESPELHO Teresinha Vânia Zimbrão da SILVA 1 Introdução Espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança. (BOFF, 2006, p.14) Este trabalho é parte integrante de uma pesquisa que tem uma proposta interdisciplinar: ler a temática da espiritualidade em textos literários à luz da psicologia de Jung e explicitar então a perspectiva de leitura psicológico-espiritual desses textos. Estaremos considerando espiritualidade segundo a definição do teólogo Leonardo Boff (2006, p. 14), ou seja, como profunda transformação interior capaz de dar um sentido à vida. Como tal, a espiritualidade é, de fato, um objeto próprio da psicologia de Jung. No presente caso, estudaremos o conto O espelho, de Machado de Assis (1997, p ), dialogando, sobretudo, com dois trabalhos anteriores sobre o conto: o da psiquiatra junguiana, Nise da Silveira, Processo de individuação (SILVEIRA, 1997, p ), e o do especialista em budismo e hinduísmo, Dilip Loundo, A espiritualidade e o Oriente em Machado de Assis (LOUNDO, 2007, p ). 1. O Espelho de Machado de Assis Nenhum exemplo ilustrará melhor o que seja a persona que o conto de Machado de Assis O Espelho. (SILVEIRA,1997, p.80) No espelho machadiano, um narrador em terceira pessoa nos conta sobre uma noite em que cinco cavalheiros, entre quarenta e cinco e cinquenta anos, estão conversando e caem no tema da natureza da alma humana. Um deles, Jacobina, apresenta a teoria de que o homem tem duas almas e, diante da surpresa dos seus amigos, sublinha: 1 UFJF.
2 93 Nada menos que duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro. [...] Há casos, [...] em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, [...] etc. (ASSIS, 1997, p. 346) E para demonstrar a sua teoria, narra então um episódio dos seus vinte e cinco anos, quando era pobre e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional, um acontecimento que trouxe muito orgulho e distinção para toda a família. Tanto que uma tia, que morava num sítio, convidou-o então a visitá-la e a levar a farda. Chegando lá, foi alvo, por parte da tia e dos escravos, de inúmeras atenções e cortesias por conta da patente: E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. [...] era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o senhor alferes. (ASSIS, 1997, p. 348). E isto, [...] não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. (ASSIS, 1997, p. 348). E conclui: O certo é que todas essas cousas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, [...] o alferes eliminou o homem. (ASSIS, 1997, p. 348). Nise da Silveira, ao descrever as etapas do processo de individuação ou seja, o desenvolvimento psíquico do ser humano segundo a Psicologia Junguiana cita o conto, O espelho, como exemplar para a compreensão da ideia de persona: Nesse conto, Machado apresenta a teoria de que o homem tem duas almas: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro. [...] E narra o caso de um jovem que, sendo nomeado alferes da Guarda Nacional, tanto se identificou com a patente que o alferes eliminou o homem. (SILVEIRA, 1997, p. 80). Se relacionarmos a teoria machadiana das duas almas à descrição junguiana da psique, ou seja, a alma interior correspondendo ao eixo introvertido ego-self e a alma exterior correspondendo ao eixo extrovertido ego-persona, poderemos ler, nesse recorte do conto, a narração de um caso psicopatológico de identificação do ego com a persona. Não parece ser outra a explicação do personagem: O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-
3 94 me uma parte mínima de humanidade [...] tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem [...]. Era exclusivamente alferes. (ASSIS, 1997, p. 348). Notemos que a alma exterior, reduzida à patente, apossou-se de Jacobina. Contudo, circunstâncias externas a tia viajou às pressas, os escravos fugiram obrigaram-no a ficar sozinho no sítio, sem ninguém para lhe prestar louvores ou sinais de respeito devidos à patente de alferes. Sentiu então um vazio absoluto: Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos [...]. As horas batiam de século a século, no velho relógio da sala. [...] Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma. [...] Tic-tac, tic-tac. (ASSIS, 1997, p ). Depois de uma semana nesta situação, em que tinha sensações inexplicáveis de sentir-se como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco inanimado, Jacobina teve um impulso: [D]eu-me na veneta olhar para o espelho... Olhei e recuei. O próprio vidro parecia esconjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada e difusa. (ASSIS, 1997, p ). Considerando a tradição primitiva de que o reflexo de uma pessoa no espelho é a sua própria alma, parece que a alma do personagem, reduzida à persona, quando confrontada com a solidão do sítio, sem ter um outro que a reconhecesse em sua máscara de alferes, esfumaçou e dispersou-se no ar. Então... Então tive medo [...] receei enlouquecer.[...] Subitamente, por uma inspiração inexplicável, [...][l]embrou-me vestir a farda de alferes. Vestia, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos. (ASSIS, 1997, p ). E eis que o vidro reproduziu então a figura integral, nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. (ASSIS, 1997, p ). Jacobina encontrara, no espelho, a alma exterior, ausente com a tia, fugida com os escravos. Na ausência de um outro concreto para reconhecer a sua persona, o personagem encontrou um outro substitutivo. O artifício de vestir concretamente a máscara de alferes e de se colocar diante do espelho permitiu-lhe ver-se como um outro o veria. Isto foi o suficiente para que a sua alma readquirisse contornos nítidos.
4 95 Notemos que no trabalho de Nise da Silveira (1997), o conto O espelho importa como descrição de um caso psicopatológico de identificação do ego com a persona, ou seja, importa como a estória de um jovem cuja máscara de alferes colara de tal modo ao rosto que, ao ter sido esta dissolvida contra a sua vontade, o jovem teve a sensação da quase dissolução do próprio rosto. Se dialogássemos somente com o trabalho da psiquiatra junguiana, provavelmente terminaríamos por aqui o nosso estudo, ou seja, leríamos o conto como a estória de um processo de individuação interrompido por uma psicopatologia. Contudo, dialogaremos ainda com o trabalho de Dilip Loundo (2007), que define o conto O espelho como a narração de uma experiência transformadora, verdadeiramente espiritual. Loundo propõe que Machado de Assis fez uma leitura muito criativa da filosofia de Schopenhauer, o maior divulgador do pensamento budista e hindu na Europa do século XIX. Segundo Loundo, o ceticismo machadiano com respeito à verdade absoluta caracteriza-se por uma sabedoria da não certeza que compreende e respeita a multiplicidade das verdades relativas, com todo o desapego e liberdade da verdadeira contemplação. Nas palavras de Loundo: Machado de Assis retém o ceticismo com respeito à verdade absoluta, mas, ao mesmo tempo propugna (...) uma sabedoria da não certeza que compreende e respeita a pluralidade das verdades relativas. A sabedoria da não certeza é uma forma de contemplação, à distância, do narrado pelo narrador enquanto condição que liberta e desapega. Ela reflete uma leitura extremamente criativa da filosofia de Schopenhauer. (LOUNDO, 2007, p. 38) Para Loundo, o que distingue a narração machadiana como uma verdadeira contemplação que liberta e desapega é a conscientização a respeito do quanto tudo é efêmero e relativo sem que haja nisso negação do mundo ou niilismo; há negação, sim, dos preconceitos vivenciados pelo narrador memorialista, ou seja, o processo de negação não é metafísico e abstrato, mas existencial e localizado. Loundo sublinha: A contemplação machadiana é (...) o próprio ato da reflexão filosófica enquanto processo sistemático de negação de preconceitos vivenciados, isto é, especificamente localizados. Sem ambições metafísicas ou doutrinárias, ela não busca causas para a efemeridade: toma consciência delas. E é precisamente este conscientizar-se, que subjaz como condição sine qua non a todo ato concreto de negação, que faz da reflexão narrativa uma verdadeira contemplação. (LOUNDO, 2007, p. 39)
5 96 A contemplação machadiana não propõe causas metafísicas para a efemeridade, simplesmente conscientiza-se a respeito. É essa consciência aguda do relativo que leva à compreensão de que o efêmero gosta de se travestir de eterno e que o problema principal da metafísica não é afirmar o absoluto, e sim funcionar como um disfarce que vela a efemeridade do efêmero. Loundo explica: Consequentemente, o sofrimento humano não decorre da efemeridade enquanto tal, mas de seu aparecer existencializado que se vê a si mesmo enquanto eterno. As formas existencializadas desse falso aparecer são os indivíduos com suas estórias, ambições, perversões, fraquezas e realizações. São, afinal, as múltiplas almas exteriores que tomam conta do homem. (LOUNDO, 2007, p. 53) A narração machadiana toma consciência da efemeridade dessas múltiplas almas exteriores, e, ao compreender as máscaras e personas enquanto máscaras e personas, denuncia a condição alienada do narrado. O processo de negação não é niilista, não visa o mundo, e sim as obsessões vivenciadas, contempladas criticamente, com toda liberdade e desapego, pela memória. Segundo Loundo: Fica claro daí que o caminho machadiano da negação, (...) não constitui negação do mundo, mas negação das obsessões existencialmente localizadas. (...) Em outras palavras, a única negação de sentido é aquela que visa os conteúdos subjetivos vivenciados e que, portanto, não poderia ser senão (uma forma de) memorialismo crítico. Qualquer outra forma de negação seria uma mera abstração ineficaz. Nasce daí uma afinidade inesperada em Machado de Assis com o procedimento filosófico fundamentalmente negativo e antimetafísico que caracteriza tanto a tradição dos Upanishads quanto o budismo. (LOUNDO, 2007, p. 54) Loundo propõe, portanto, que há um processo de negação da metafísica em Machado de Assis (ou seja, o desmascaramento do efêmero travestido de eterno), que guarda semelhanças com o processo de negação da metafísica dos Upanishads e do budismo. Não haveria nenhuma arbitrariedade em tal proposição, pois essas semelhanças participam das intertextualidades implícitas que se operam através de Schopenhauer. O processo de negação das obsessões vivenciadas se constitui como um evento de caráter dialógico. No contexto da filosofia indiana isso se dá por meio de uma interlocução pedagógica entre mestre e discípulo, e no contexto machadiano isso se dá por meio de uma interlocução narrativa: o memorialismo crítico que congrega o narrador e suas memórias num plano e o diálogo do narrador com o leitor num outro plano. Loundo sumariza:
6 97 O resultado é a catarse existencial do narrador-diretor-personagem que detecta e desmascara, retrospectivamente, o efêmero que se esconde sob a capa do eterno. O desvelamento narrativo promove, então, o sentimento de desapego e indiferença que liberta gradualmente o narrador das idéias fixas, ao mesmo tempo em que descobre, na realidade efêmera compreendida enquanto tal, uma condição existencial viável (...). O parentesco, mesmo que distante com o [i]deal budista da renúncia aos desejos (...) a extinção das obsessões (...) e a ausência das paixões (...) não seria, então, um mero acaso. (LOUNDO, 2007, p. 55) A respeito do conto O espelho, Loundo chama a atenção para o seu caráter memorialista. O personagem Jacobina apresenta as características do narrador consciente machadiano, indiferente, livre e desapegado. Sua intervenção no conto se dá por meio de um testemunho crítico de vivências, afastando-o, portanto, da abstração ineficaz das discussões metafísicas. Enquanto que a crítica machadiana tem interpretado o retorno gradual da nitidez da imagem do alferes no espelho como uma evidência do retorno ao mesmo, ou seja, a subordinação total à alma exterior, Loundo propõe outra leitura: [S]e a narração de Jacobina é uma ilustração de sua proposição sobre a alma que é ela mesma (a proposição) a expressão da sabedoria que alcançou, é mister supor, então, que o conteúdo da narração deva versar sobre uma experiência transformadora, verdadeiramente espiritual e, portanto, catalisadora de uma transformação qualitativa do ente. (LOUNDO, 2007, p. 56) Pois é essa qualidade de experiência transformadora, verdadeiramente espiritual que procuraremos na narração de Jacobina. Como mencionamos, para a junguiana Nise da Silveira, O espelho importa como a estória de um processo de individuação interrompido por uma psicopatologia. Pois vamos propor aqui uma outra leitura. Principiemos por notar que depois do retorno gradual da nitidez da sua imagem no espelho, Jacobina se torna outro e ele assim se descreve: Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. (ASSIS, 1997, p. 352). Condição que ele consegue manter, através da seguinte disciplina: Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir. (ASSIS, 1997, p. 352).
7 98 Notemos que, através da disciplina de vestir e despir a farda, Jacobina percebe que pode tirar e colocar a alma exterior de alferes quando bem lhe convier, ou seja, por sua própria vontade, e inicia, portanto o processo de desidentificação de ego e persona. Supera a psicopatologia sugerida pelo seu próprio diagnóstico, quando afirmara anteriormente que o alferes havia eliminado o homem. Deixa de ser um autômato para se tornar um ente animado, dando assim continuidade ao seu processo de individuação e ao seu desenvolvimento psíquico. Semelhante é a interpretação de Dilip Loundo quando afirma: Pois bem, o retorno do alferes dá-se, simbolicamente, no evento que devolve nitidez de sua imagem (e das coisas à sua volta) no espelho: quando Jacobina se lembra de recolocar o uniforme da patente. Um retorno, entretanto, que já está indelevelmente marcado pela diferença. (...) De escrava, a alma interior passa a mestra, isto é, alcança a consciência crítica dos limites e da efemeridade do alferes. A menção do narrador a uma prática diária que consistia em vestir o uniforme diante do espelho, ler e meditar, e despi-lo em seguida, no fim de duas, três horas, é vital na persecução desta leitura, pois sugere, simbolicamente, uma disciplina de controle: uma disciplina que sujeita o alferes ao despir do uniforme, isto é, aos ditames críticos da alma interior. (LOUNDO, 2007, p ). É importante notar que o episódio narrado se passa quando Jacobina tem a idade de vinte e cinco anos. Somos informados que chegará aos cinquenta anos como um capitalista bem sucedido e inteligente, capaz inclusive de teorizar sobre as duas almas do homem. Lembremos que é ele quem expõe a teoria no conto, mostrando que adquiriu consciência de que a alma exterior é mutável. Sublinha Jacobina: é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma [...] muda de natureza e de estado. [...] Pela minha parte, conheço uma senhora que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. (ASSIS, 1997, p. 346). E explica: Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a Rua do Ouvidor, Petropólis... [...] E assim outros muitos casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. (ASSIS, 1997, p ). Logo, um indivíduo que se conscientizou a respeito da persona como máscara retirável, que conquistou inclusive sucesso na sua vida social e que parece, portanto, ter desenvolvido ego e persona. Podemos compreender a sua trajetória, desde os vinte e cinco anos, como a de alguém que conseguiu desidentificar o ego da persona, desenvolvendo a ambos e a sua teoria sobre as duas almas do homem.
8 99 Na verdade, Jacobina parece ter cumprido o que Jung define como primeira etapa da vida humana. De fato, no ensaio, Etapas da vida humana (JUNG, 1984), Jung defende que o desenvolvimento psicológico do ser humano pode ser compreendido em duas grandes etapas: primeira metade da vida e segunda. Na primeira, a pessoa deve ser capaz de libertar-se da sua família de origem, constituir sua própria família e adaptar-se a um papel adulto na cultura em que vive. O modo como isto é realizado pode variar muito, mas observa-se que, a princípio, todas as culturas esperam que a pessoa jovem consiga desenvolver ego e persona. Na segunda metade da vida, o desenvolvimento psíquico não deve ser mais em direção extrovertida, no eixo ego-persona, e sim em direção introvertida, no eixo ego-self. A interiorização possibilitará à pessoa aceitar a decadência do seu corpo e compreender a velhice como mais uma etapa de desenvolvimento psicológico. Nesta fase, deve-se perceber que não faz mais sentido continuar a perseguir os mesmos objetivos. Jung é categórico: Não podemos viver a tarde de nossa vida segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã, será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã, será falso no entardecer (...) a tarde da vida humana deve ter também um significado e uma finalidade próprios, e não pode ser apenas um lastimoso apêndice da manhã da vida. (...) O significado da manhã consiste indubitavelmente no desenvolvimento do indivíduo, em sua fixação e na propagação da sua espécie no mundo exterior, e no cuidado com a prole. É esta a finalidade manifesta da natureza. Mas quando se alcançou e se alcançou em abundância este objetivo, a busca do dinheiro, a ampliação das conquistas e a expansão da existência devem continuar incessantemente para além dos limites do razoável e do sensato? Quem estende assim a lei da manhã, isto é, o objetivo da natureza, até à tarde da vida, sem necessidade, deve pagar este procedimento com danos à sua alma, justamente como um jovem que procura estender o seu egoísmo infantil até a idade adulta deve pagar os seus erros com fracassos sociais. (JUNG, 1984, p ) Espera-se então que uma pessoa, na segunda metade da vida, já tenha conseguido se desenvolver psicologicamente de modo satisfatório a fim de que possa sentir a motivação para ir além dos objetivos da natureza e continuar o seu processo de individuação indo ao encontro da experiência de se tornar si-mesmo. O personagem de Machado de Assis está na segunda metade da vida, narrando um caso que lhe aconteceu na juventude. Temos informações que nos sugerem que Jacobina conseguiu desenvolver ego e persona, mas, a princípio, nada mais sabemos sobre o seu desenvolvimento psíquico. O que de fato sabemos é que ele propõe para os amigos, investigadores de cousas metafísicas (ASSIS, 1997, p. 345), um esboço de uma nova
9 100 teoria da alma humana, a partir de uma estória pessoal, o que demonstra o seu grau de autoconhecimento e capacidade de reflexão existencial. Também sabemos que: Não discutia nunca: e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial: e acrescentava que os serafins e querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. (ASSIS, 1997, p. 345) De fato, ele não discutia, e só consentiu em narrar a sua estória, com a condição dos amigos o ouvirem calados e, ao final, desapareceu antes que estes o notassem e iniciassem uma discussão sobre o narrado. Essas informações nos sugerem que o personagem machadiano não só encontra-se numa jornada de auto-conhecimento, mas também de autocontrole, como ele mesmo menciona, sobre instintos e heranças bestiais, indo portanto, além dos objetivos da natureza, como propõe Jung. Logo, estamos diante de um personagem que, na segunda metade da vida, está narrando um caso que lhe aconteceu quando era jovem, uma experiência que o transformou profundamente e que se tornou determinante para o curso tomado por sua vida a partir de então. Tanto que chegou à meia idade tendo conseguido superar as questões de ordem natural, sendo assim capaz de refletir sobre questões existenciais. Sua experiência, metaforizada no confronto com a própria imagem no espelho, admite, portanto, ser interpretada, tal como sugere Dilip Loundo (2007), como uma experiência espiritual. Finalizo o trabalho com uma afirmação do teólogo Leonardo Boff: [E]spiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança. O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto, está sempre se fazendo, física, psíquica, social e culturalmente. Mas há mudanças e mudanças. Há mudanças que não transformam nossa estrutura de base. São superficiais e exteriores, ou meramente quantitativas. Mas há mudanças que são interiores. São verdadeiras transformações alquímicas, capazes de dar um novo sentido à vida ou de abrir novos campos de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e mistério de todas as coisas. Não raro, é no âmbito da religião que ocorrem tais mudanças. Mas nem sempre. Hoje, a singularidade de nosso tempo reside no fato de que a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão profunda do humano, como o momento necessário para o desabrochar pleno de nossa individuação. (BOFF, 2006, p. 14)
10 101 REFERÊNCIAS ASSIS, J. M. Machado de. O Espelho. Obra Completa, vol. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. Rio de Janeiro: Sextante, JUNG, Carl Gustav. A Dinâmica do Inconsciente. Obras Completas, vol. VIII. Petrópolis: Vozes, LOUNDO, Dilip. A espiritualidade e o Oriente em Machado de Assis. Revista Brasileira, ano XIII, v. 51. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2007, p SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
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