Os adolescentes são realmente dignos de pena? 1
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- Renato Lencastre Almeida
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1 Os adolescentes são realmente dignos de pena? 1 A produção de legislação penal deve estar submetida a estudos estatísticos e não à comoção gerada por casos violentos. Se por um lado a percepção da violência pode ser distorcida pela sua proximidade emocional, por outro, a política legislativa deveria ser produzida de forma racional. Dessa forma, a pouca ou nula visibilidade que a mídia confere ao tratamento estatístico quando opta pela exposição da violência por casos exemplares pode gerar a falsa percepção de que crianças e adolescentes no Brasil são agentes da violência, quando são, estatisticamente, suas vítimas indefesas. Segundo dados da UNICEF, de 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Na verdade, são eles, os adolescentes, que estão sendo assassinados sistematicamente. O Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes, atrás da Nigéria. Hoje, os homicídios já representam 36,5% das causas de morte, por fatores externos, de adolescentes no País, enquanto para a população total correspondem a 4,8%. Crimes contra a vida e a integridade física cometidos contra crianças e adolescentes, especificamente os casos de violência doméstica são invisíveis e não fazem parte da pauta diária de divulgação da grande imprensa. As estatísticas demonstram que crianças e adolescentes não são uma ameaça real à integridade física dos cidadãos brasileiros. São, ao contrário, vítimas freqüentes especialmente de violência sexual. Assim, o conjunto das campanhas sobre violência que centra fogo contra as crianças e adolescentes, exigindo o recrudescimento de políticas repressivas para esta faixa da população, é desinformada e, inclusive, irresponsável. O dano imediato produzido por esta opinião pública enviesada é a perversa transformação de crianças e adolescentes em criminosos violentos. Indiretamente, essas campanhas estimulam e legitimam o oportunismo da legislação de comoção, provocando 1 Prof. Dr. Rogerio Dultra dos Santos, Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense e Prof. Dr. Sergio Graziano, Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul, Advogado em Santa Catarina.
2 a substituição de políticas públicas variadas de caráter includente por um direito penal majorado e francamente excludente. A administração da desigualdade social e da pobreza migra, portanto, da construção legislativa de um Estado de Bem-Estar para um Estado que é mínimo em termos de políticas sociais e máximo em políticas criminais. E, obviamente, a ampliação da influência do direito penal não resolve nem o problema social, nem o problema da violência. Ela os amplifica. Um breve retrospecto da produção legislativa sobre crianças e adolescentes no Brasil revela que aqui as leis são, há muito, comprometidas com demandas distantes das estatísticas. O antigo Código de Menores (Lei n /1979) promulgado durante a ditadura militar compreendia a necessidade de regular a existência através da vigilância de menores em situação social diferenciada. Isto significa dizer que as medidas de caráter repressivo deste código tinham supostamente como fundamento a proteção daqueles considerados em situação irregular. Este diploma previa medidas repressivas para crianças e adolescentes que estivessem em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes e com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária. Seja pela extrema vagueza e generalidade das descrições das ações realizadas pelos sujeitos ativos de seus tipos, seja pela incorporação despudorada de elementos morais na definição do seu objeto de proteção, esse código permitia o mais amplo arbítrio repressivo, sendo aplicado preferencialmente sobre jovens pobres além de ter sido formulado sem considerar os critérios técnicos de construção normativa dos tipos penais. A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente ou ECA (Lei n /1990) trouxe uma mudança de paradigma na legislação da infância e juventude, estimulada pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança (CIDC). O ECA reconheceu a necessidade de responsabilização penal das crianças e adolescentes, sem vinculá-la à determinação subjetiva de comportamentos moralmente inadequados, mas passando a fundar a repressão penal em atos lesivos aos bens jurídicos tutelados. Embora as penas atribuíveis pelo ECA sejam denominadas Medidas Sócio-educativas e o art. 104 do Estatuto indique a inimputabilidade dos menores de 18 anos, o art. 103
3 deixa clara a equiparação entre Medida Sócioeducativa e pena já que considera o ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Assim, por ser na prática uma legislação com características penais, o ECA procura definir limites para a intervenção punitiva do Estado que garantam direitos mínimos de crianças e adolescentes. O deslocamento de tratamento na filosofia legislativa da infância e juventude do arbítrio absoluto do Código de Menores para a definição de limites de natureza penal é um elemento positivo desta legislação, embora o resultado seja desastroso. A detenção e a reclusão previstas pelo ECA constam no rol de medidas cuja finalidade essencial é a ressocialização. No entanto, essa suposta função educativa da privação de liberdade é altamente suspeita quando se considera que as medidas do ECA não restritivas de liberdade têm sido aplicadas de forma residual. Assim, os apreendidos por atos infracionais sofrem, em regra, medidas de privação de liberdade. Por outro lado, medidas que indicam (e às vezes obrigam) orientação educacional, tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, criação de abrigos, de programas oficiais ou comunitários de tratamento, etc., não têm sido implementadas, embora sejam diretamente voltadas à socialização de crianças e adolescentes. Em determinados casos, o ECA é muito mais severo com os adolescentes do que o Código Penal com os adultos, como por exemplo na privação provisória da liberdade (art. 108) à qual o adolescente se submete por até 45 dias, enquanto o adulto por no máximo 10 dias. Na prática, portanto, os elementos normativos do ECA que estimulam uma intervenção social do Estado são preteridos em relação àqueles especificamente punitivos. Assim, a utilização do ECA no Brasil acaba justificando a concepção do adolescente infrator como sujeito de uma responsabilização de natureza preferencialmente penal, numa clara violação do princípio segundo o qual não há lei penal sem necessidade, ou seja, de que o direito penal deve ser aplicado subsidiariamente e não como instrumento central de qualquer política estatal.
4 Por outro lado, o artigo 60, 4º, IV, da Constituição Federal estabelece as chamadas cláusulas pétreas e proíbe a elaboração de proposta legal ou de emenda constitucional tendente a abolir direitos ou garantias fundamentais. É direito dos menores de 18 anos serem tratados como crianças e adolescentes. O debate parlamentar sobre a possibilidade de alteração da responsabilidade penal é importante justamente porque permite reafirmar os compromissos democráticos assumidos com a Carta Constitucional de 1988 e, em grande medida, porque revitaliza questões suscetíveis de interpretação: embora nem todos os direitos fundamentais estejam nominados expressamente no artigo 5º da Constituição, decorrem das garantias a ele inerentes. É neste sentido que o artigo 228 da Constituição Federal, ao fixar a idade de responsabilização penal em 18 anos, pretende proteger o direito fundamental da criança e do adolescente de não ser submetido ao tratamento comum imposto ao adulto e, mais ainda, dar-lhe tratamento diferenciado, em especial pelo direito fundamental ao regime da proteção integral em razão de sua vulnerabilidade. Assim, o direito à proteção integral à criança e ao adolescente goza das prerrogativas constitucionais e das exigências do sistema de direitos, ainda que não enumerados expressamente no rol do artigo 5º da Constituição Federal. A leitura atenta do Capítulo VII da Constituição Federal, que trata da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso, ilustra bem a fundamentalidade da proteção à criança e ao adolescente. Ao descrever os deveres da família, da sociedade e do Estado, a Constituição assegurou à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227). Todos estes direitos elencados no artigo 227 da Constituição Federal já estavam assegurados pelo artigo 5º. O legislador originário, mais prudente perspicaz, assegurou um pouco mais, isto é, deu a crianças e adolescentes um status diferenciado garantindo a proteção integral, muito além dos direitos fundamentais. Portanto, a
5 inimputabilidade penal aos menores de 18 anos é mais que um direito e garantia fundamental, é uma obrigação inalienável e inarredável da sociedade brasileira, que assumiu e assegurou a proteção integral à criança e ao adolescente. A eventual aprovação da PEC da redução da maioridade penal, se confirmada pelo Congresso Nacional, representa mais que a violação de uma cláusula pétrea da Constituição Federal. Ela é uma farsa, que vitimiza ainda mais a infância e a juventude brasileiras. É uma farsa porque também é uma impropriedade sociológica, na medida em que: a) as ações criminosas realizadas por adolescentes são percentualmente residuais (nos crimes de sangue, são ínfimas), e tem se mantido no mesmo patamar nos últimos 100 anos, e b) a ampliação da punição é sociologicamente inócua já que a redução da criminalidade violenta, seja de adultos ou de crianças e adolescentes, não se realiza com penas mais duras, mas com políticas públicas de caráter social. Transformar explicitamente adolescentes em sujeitos dignos de pena, isto é, dignos de cadeia, é uma tentativa perversa de negar a perda de legitimidade de um sistema penal que afirma pretender ressocializar, mas que promove unicamente o castigo: uma resposta inócua para a deslegitimação deste sistema punitivo sob a forma de fuga para a irracionalidade da lei de talião. O recrudescimento punitivo, quando escolhe a repressão contra a adolescência como panacéia tranqüilizadora e viola a tendência civilizacional de responder com educação ao comportamento adolescente desviante, representa a incorporação não só processual (a legislação de exceção movida pela comoção), mas também material (o adolescente como bode expiatório) de uma atitude política nazificada: é a escolha da institucionalização da barbárie como resposta social à desigualdade.
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