UMA ALEGORIA NA TERRA DE VERA CRUZ
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- Nina Jardim Bennert
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1 UMA ALEGORIA NA TERRA DE VERA CRUZ Carolina Cavalcanti Bezerra Laboratório de Estudos Audiovisuais (OLHO) Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) A presente comunicação, parte do texto de qualificação de mestrado intitulado Caminha, Meirelles e Mauro: narrativas do (re) descobrimento do Brasil: decifrando as imagens do paraíso, pretende olhar o quadro A Primeira Missa no Brasil (1860) de Victor Meirelles de Lima 1 através do conceito de Documento/Monumento de Jacques Le Goff (2003), e sua reprodução/reconstrução em outras duas narrativas. Para tanto e em comum, ambas as três narrativas escolhidas estamparam o caráter político de suas respectivas épocas, apontando para a permanência imagética da representação do que teria sido a celebração da primeira missa no Brasil. Ilustração 1 - Primeira Missa no Brasil, óleo s/ tela, 268x356 cm. Acervo Museu Nacional do Rio de Janeiro 1 Nascido em Rio Pardo, Rio Grande do Sul em 1806 e morto em Lisboa, Portugal, no ano de Em 27 de janeiro de 1827 matricula-se como aluno fundador da Academia Imperial de Belas-Artes, na classe do mestre Jean Baptiste Debret, que se tornaria seu grande amigo. Em 1837 foi nomeado professor de Pintura Histórica da Academia Imperial de Belas-Artes. De 1854 a 1857 foi diretor da mesma instituição. Desiludido com o rumo da arte no Brasil, termina sua vida como embaixador de Portugal a partir de 1866, falecendo 13 anos depois.
2 2 A segunda narrativa a ser utlizada será o filme de Humberto Mauro 2, O Descobrimento do Brasil de Filme produzido pelo Instituto do Cacau da Bahia e que posteriormente foi adquirido pelo Instituto de Cinema Educativo (INCE), órgão criado no governo de Getúlio Vargas. Ilustração 2 - Cena da representação da Primeira Missa em O Descobrimento do Brasil (1937) de Humberto Mauro Por fim, como terceira narrativa, apontaremos um impresso específco da fábrica de sabonetes Eucalol, distribuído entre os anos de 1930 e 1957, intitulado Primeira Missa Dita no Brasil Como aprofundamento desta leitura, proponho voltarmos nosso olhar para a criação da Cruz como símbolo de descoberta, conquista e referência na criação do Brasil. A Cruz como alegoria 3 do mito de fundação (CHAUÍ, 2000) em termos de imagem que permanece na memória coletiva, como por exemplo, no já citado filme O Descobrimento do Brasil. 2 Trinta e seis anos após a visão de Meirelles sobre a primeira missa celebrada, Humberto Mauro nasce, no ano de 1897, na cidade de Volta Grande, Minas Gerais. Diretor de grande importância para o desenvolvimento da cinematografia nacional, em 1910 tem seu primeiro contato com o cinema através de filmes exibidos em Cataguases (MG). 3 Entre alguns de seus significados, sugere-se por alegoria dizer outra coisa além do sentido literal das palavras e para este texto, para além das imagens pictóricas ou cinematográficas (Dicionário Houaiss, 2001).
3 3 Além disso, com a criação de um documento histórico - a pintura de Meirelles - que ao se tornar imagem agente (ALMEIDA, 1999) do descobrimento do Brasil persisitindo em diversos documentos, a importância da cruz se dá não só como símbolo de uma religião (cristã), mas, no caso do Brasil, como uma construção social ao longo dos anos. Como no exemplo abaixo, temos uma nova reconstrução imagética de como teria sido a primeira missa realizada na Terra de Vera Cruz. Ilustração 3 - A Primeira Missa Dita no Brasil, impressos da empresa Eucalol de sabonete. O início da impressão de estampas com caráter nacional foi motivado pela baixa venda dos produtos da empresa e o uso de temáticas históricas nacionais, incentivava os colecionadores a adquirirem seus sabonetes. Motivos nacionais como Santos Dumont, Produtos do Brasil, Aves do Brasil, Episódios Nacionais, dentre outros, aumentaram as vendas dos produtos da Eucalol e de suas duas mil e quatrocentas estampas, divididas em 54 temas 4. 4 Algumas inclusive foram utilizadas como material didático nas escolas, como foi o caso das séries História do Brasil e Lendas do Brasil. Ver mais em acessado em dez/2005.
4 4 Primeiramente, parece interessante mencionar os períodos históricos referentes à criação das imagens, sejam em movimento (cinema) ou não (quadro e estampa). Como fonte de inspiração primordial tem-se o descobrimento do Brasil em si, documentado na Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1º de maio de A Carta de Caminha, enviada no dia 2º de maio do mesmo ano ao Rei de Portugual, D. Manoel, encerra sua descrição do achamento da Terra de Vera Cruz com a celebração da missa de conquista. (Castro, 1996) Sim, uma missa de conquista, já que era hábito dos desbravadores portugueses fincar uma cruz em terras descobertas, demarcando assim o que viria a ser uma conquista de Portugal. Tal documento será fonte de inspiração para as demais narrativas sugeridas ao nosso olhar neste texto. Em ordem cronológica, temos o quadro de Meirelles produzido durante o Segundo Reinado ( ) de D. Pedro II e datado como parte do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes na cidade do Rio de Janeiro no ano de Porém, antes de D. Pedro II, o desenvolvimento cultural no Brasil deu-se durante todo o governo de D. João VI ( ) e com a vinda da Corte Portuguesa, que trouxe consigo uma comitiva de estudiosos, exploradores e artistas (HOLANDA, 1965). O próprio Meirelles teve seus estudos fora do Brasil financiados durante o Segundo Reinado, criando em troca, o seu quadro mais famoso, A Primeira Missa no Brasil. Sobre Humberto Mauro e seu filme, estes fizeram parte da proposta de educação visual do que foi denominado Estado Novo ( ), onde o uso do cinema como veículo de comunicação poderia atingir a massa de analfabetos, grande maioria da população nacional na década de 30 do século passado (SIMIS, 1996). Uma das propostas do INCE 6 - órgão público que incorporara em seu acervo O Descobrimento do Brasil -, era o de promover e orientar a utilização da cinematografia, especialmente como um processo auxiliar do ensino, e ainda como meio de educação popular e também (...) instruir aqueles que não tiveram educação formal" (RAMOS, 2000, p.471). Sobre as estampas divulgadas pela Eucalol, verficou-se em pesquisas iniciais, que apenas serviram como veículo para o aumento das vendas de seus produtos. Mas, vale ressaltar, que sua produção e distribuição coincidia com o período governado por Getúlio Vargas. 5 Após algumas leituras verifiquei que o projeto do quadro Primeira Missa teve início em 1858 com sua idealização e estudos, tendo sido encerrado em A data de 1861 aparece em várias referências bibliográficas sobre o quadro como sendo a data de sua criação. Talvez porque tenha sido o ano de sua apresentação no Salão Parisiense ou por ser o ano de sua chegada ao Brasil, tendo sido incorporada ao acervo do Museu de Belas Artes na cidade do Rio de Janeiro. 6 Institucionalizado em 1936.
5 5 Pensando as imagens como documento/monumento Partindo do pressuposto de Jacques Le Goff (2003, p. 525) de que todo documento é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, trata-se de pôr à luz as condições de produção e de mostrar em que medida o documento é instrumento de poder ; e sendo assim, como através do tempo os nossos objetos de análises permaneceram como a verdade do fato primeira missa celebrada - na memória coletiva. Os relatos apresentados e discutidos têm como foco principal o olhar sobre a o encontro entre índios e portugueses, bem como a permanência da imagem criada sobre a primeira missa celebrada no Brasil. A representação da primeira missa através de três documentos distintos em sua forma documental, mas semelhantes em seu conteúdo, levou-me a questionar tais permanências. Serão coincidências? Foram espontâneas as retomadas de aspectos e minúcias comuns nos três relatos? Através da repetição de um tema ou mesmo de uma imagem, esta tende a se fixar em nossa memória, tornando-se parte de nossos conhecimentos. Mas, a relevância de tais documentos na construção de uma memória revelou-se importante para entendermos de onde viemos: (...) o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. (...) Trago comigo uma bagagem de lembranças históricas, que posso aumentar por meio de conversas ou leituras mas esta é uma memória tomada de empréstimo, que não é minha (HALBWACHS, 2006, pp. 71-2). Conforme nos faz refletir Maurice Halbwachs nas palavras acima e por todo seu livro A memória coletiva (2006), somos seres individuais que fundamentamos nossa memória - no caso pesquisado sobre A Primeira Missa, ressalto a memória histórica - em fatos acontecidos no passado, tendo a presença de um ou mais indivíduos participantes da construção de uma identidade, seja política, social, cultural, religiosa ou histórica. E retomando a questão do documento como instrumento do poder (LE GOFF, 2003, p. 525), tomo de empréstimo as palavras de Laura Maria Coutinho (2003): O que deve ter a dignidade de se tornar memória? Qual poder [grifo meu] decide o que será memória? Quem [ou o quê] deve merecer ser lembrado? Esse quem não é uma pessoa, mas imagens de pessoas, de objetos, de lugares, de documentos, o que não tem mais memória, pois a memória é atributo de quem está vivo (COUTINHO, 2003, p. 10)
6 6 O que diferencia um documento de um monumento é sua escolha temporal como algo passível de ser lembrado. Os monumentos são heranças do passado, ou ainda, tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos ; e enquanto documento será o fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como uma prova histórica (LE GOFF, 2003, p ). A Primeira Missa como um documento escrito por meio de uma quadro, um filme e um impresso, apresentada ao mesmo tempo como documento, pois foi escolhida pelos historiadores e também por seus governantes como imagem do mito fundador do Brasil, torna-se monumento à observação se o considerarmos como um projeto arquitetônico que mantém vivo um acontecimento do passado na memória coletiva. E considerando que ao mesmo tempo todo documento pode ser falso ou verdadeiro, como apontado por Le Goff (2003), têm-se então a criação de uma alegoria do que viria a ser a criação do Brasil, e sua permanência no tempo como representação de uma realidade criada por interesses políticos, aproximando-se de uma realidade construída. Não existe verdade, e sim, a representação da Primeira Missa, foi e é até os dias de hoje, uma verdade construída na memória coletiva. Ambas as narrativas fizeram parte de programas políticos. O quadro, baseado na Carta de Caminha foi encomendado durante o Segundo Reinado. O filme de Mauro bem como as estampas da Eucalol, foram produzidos e distribuídos durante um período de fortalecimento do nacionalismo brasileiro. Como documento, o quadro A Primeira Missa no Brasil, baseado em relatos históricos nada mais é do que uma montagem, consciente ou insconsciente, da história, da época e de seus idealizadores (LE GOFF, 2003, p. 538), dando embasamento para a produção, através da reprodução 7, das demais narrativas (filme e estampa). Adquire status de monumento enquanto alegoria do mito fundador e tendo a Cruz como imagem norteadora, símbolo central (e centralizador) das narrativas ao seu redor, que permanece como lembrança, memória e representação da criação de uma realidade. Até os dias de hoje. Símbolo que representa uma religião, mas para nós, o marco incial da colonização do que viria a ser o Brasil. Colonização que não foi pacífica e harmoniosa como a pintada por Meirelles. Qual seria o interesse de tornar tal representação, um monumento do início do genocídio de dezenas de tribos e das florestas brasileiras, em documento corroborador da fundação do Brasil? 7 S.f. 2. imitação de quadro, fotografia, gravura etc; 2.2. estampa fac-similar, feita mecanicamente a partir de um original (Dicionário Houaiss, 2001).
7 7 Através da idéia de dominação imposta pelos portugueses diante da colonização, fica a dúvida sobre o(s) interesse(s) em perpetuar tal imagem de uma realidade criada não tão bela de se recordar. Torná-la monumento e documento ao mesmo tempo, reforçando uma verdade que não existiu, parece ser a continuidade de uma educação visual, mas a do esquecimento. Do colocar nas sombras a realidade dos fatos. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Milton José de. Cinema: Arte da Memória. Campinas: Autores Associados, CASTRO, Silvio. A Carta de Pero Vaz de Caminha: o Descobrimento do Brasil. Porto Alegre: L&PM, CHAUÍ, Marilena. O Mito Fundador do Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 de março de COUTINHO, Laura Maria. O estúdio de televisão e a educação da memória. Brasília: Plano Editora, HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira O Brasil Monárquico. São Paulo: Difusão Européia do Livro, LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, pp RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe. (Orgs.) Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: SENAC, SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1996.
8 9 CATÁLOGO vol. I O CINEMA DE HUMBERTO MAURO vol. II LIMITE, O FILME DE MÁRIO PEIXOTO vol. III ENTRE FILMES E HISTÓRIAS DA ERA DOS ESTÚDIOS coleção cinema brasileiro C L Á S S I C O i n d u s t r
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