Notas sobre a relação entre constituintes prosódicos e a ortografia
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- Pedro Henrique Monteiro Van Der Vinne
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1 Notas sobre a relação entre constituintes prosódicos e a ortografia Notes about the relationship between prosodic constituents and orthography Abstract Luciani Tenani UNESP/IBILCE This paper deals with the relationship between orthographic system and phonological system of Portuguese based on analyzes of texts produced by adults in the beginning of writing acquisition process. It is considered non-conventional segmentation data of writing words which are characterized as results of conflicting solutions given by the writer when produces different alternatives of graphic registration. It is formulated hypothesis that could explain theses solutions and it is argued that these data are relevant to language studies because they can be seen as cues of (i) writer circulation though oral and literacy practices, (ii) how writer segments his representations of reality and language, and (iii) learning process of writing word following the orthographic conventions. Keywords Prosody; Phonology; Orthography; Writing acquisition; Portuguese. Resumo Este texto trata da relação entre o sistema ortográfico e o sistema fonológico do português a partir da análise de textos produzidos por adultos no início do processo de aquisição da escrita. São considerados dados de segmentação não-convencional da escrita que
2 TENANI 232 são caracterizados como resultados de soluções conflitantes dadas pelo escrevente quando produz diferentes possibilidades de registro gráfico da palavra. Apresentam-se hipóteses que podem explicar os motivos que levam a essas soluções e argumenta-se que tais dados são relevantes para os estudiosos da linguagem por serem pistas (i) da circulação do escrevente por práticas de oralidade e de letramento, (ii) de como o escrevente segmenta sua representação da realidade e da linguagem, e (iii) do processo de aprendizagem da noção de palavra da escrita segundo as convenções ortográficas. Palavras-chave Prosódia; Fonologia; Ortografia; Aquisição da escrita; Língua portuguesa.
3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p , jan./jun E0. Introdução ste texto trata da relação entre o sistema ortográfico e o sistema fonológico do Português, a partir da análise de dados de segmentação nãoconvencional da palavra que foram produzidos por adultos no início do processo de aquisição da escrita. As segmentações não-convencionais presentes em textos produzidos por crianças em fase inicial do processo de aquisição da escrita têm sido tema de vários trabalhos, mas pouco sabemos sobre o que ocorre com os textos de adultos no que diz respeito a esse aspecto. As pesquisas em que são analisados textos infantis procuram, sob diferentes óticas e metodologias, explicitar as motivações para tais segmentações não-convencionais. Essas motivações são dadas, por exemplo, a partir das relações que podem ser estabelecidas entre enunciados falados e escritos no que diz respeito à noção de palavra. A relevância para o estudo dessas motivações é dada, muito freqüentemente, com base na necessidade (escolar) de o escrevente alçar as normas de segmentação de palavras previstas pelo sistema ortográfico da língua portuguesa. Cabe observar que é recorrente, em manuais de morfologia da língua portuguesa, encontrar a noção de palavra apresentada como uma unidade de fácil identificação para o falante, mas de difícil caracterização para o estudioso da linguagem (cf. PETTER, 2003, p. 59) e ainda como uma unidade de fácil identificação na escrita, mas de difícil definição quando considerada a fala (cf. BASÍLIO, 1995, p. 11). No entanto, como mostraremos ao considerar dados de segmentação não-convencional, a palavra escrita não é uma noção de fácil aquisição e, possivelmente, os limites do que seja palavra para o falante não coincidem, em muitos casos, com os limites da palavra escrita. Ainda no campo dos estudos lingüísticos sobre a noção de palavra, há a lexicologia que, junto com a lexicografia, são vistas como herdeiras de uma reflexão sobre a palavra bastante antiga. A primeira toma como tarefa estabelecer critérios de identificação das unidades lexicais, enquanto a segunda tem em vista a aquisição de um domínio de língua, de um domínio de escrita e de um domínio de enunciação e de discurso. A lexicografia é definida como um campo
4 TENANI 234 que visa comumente à aquisição de uma língua nacional, de uma ortografia unificada (NUNES, 2006, p. 150), grifos meus. Portanto, a palavra é também objeto de reflexão, cujos significados e funções não são estáveis para os estudiosos da linguagem. A palavra ortográfica também é objeto de estudo e a grafia de uma palavra não é dada puramente por uma motivação morfológica/ lexical, mas também historicamente constituída. Ao tratar das segmentações não-convencionais também estamos tocando na discussão acerca das noções de palavra. Neste texto, como já anunciado, investigamse as segmentações não-convencionais produzidas por adultos que, por diversas razões (sócio-históricas), não são considerados alfabetizados, embora possam ser considerados letrados, se adotada a noção de letramento proposta do Tfouni (2000) ao analisar dados produzidos por adultos analfabetos. Nota-se que, embora o foco seja, neste texto, as segmentações não-convencionais de palavras, que possibilitam tematizar a(s) relação(ções) entre o sistema ortográfico e o sistema fonológico do português, nossa análise traz elementos para também tratar das relações entre as práticas de oralidade e letramento, de modo geral, bem como do conceito de letramento e de alfabetização de adultos, de modo particular. Em última instância, a reflexão aqui apresentada também almeja contribuir com a discussão acerca do modo pelo qual o escrevente adulto, ao usar o branco de modo não-convencional, deixa pistas de como segmenta sua representação da realidade e a linguagem, sistema simbólico através do qual tal representação adquire expressão e materialidade, como apontado por Abaurre e Silva (1993) para dados de escrita infantil. A seguir, trataremos das questões relativas às segmentações nãoconvencionais a partir da apresentação dos dados a serem analisados neste artigo. 1. Da inquietação que o dado provoca Iniciamos esta seção apresentando informações sobre algumas características relacionadas ao contexto em que se deu a produção escrita selecionada e algumas características do escrevente, um adulto em fase inicial do processo de aquisição da escrita. Selecionei um texto (apresentado adiante) entre 35 dos que me chegaram por meio dos professores-alfabetizadores, os quais solicitavam ajuda para solucionar os erros de escrita de seus alunos do programa de Educação de Jovens e Adultos, do município de Olímpia (SP). 1
5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p , jan./jun Para os professores, um problema a ser enfrentado dizia respeito ao fato de o escrevente do texto selecionado falar errado e, desse modo, a questão era como ensinar esse adulto a falar certo para escrever certo? Portanto, uma hipótese explicativa para os erros de escrita está, segundo essa visão, na influência (indesejada) da fala na escrita. 2 Vale mencionar que a maioria dos adultos que freqüentam o referido programa são agricultores nordestinos, oriundos, predominantemente, do interior da Bahia, Piauí e Maranhão, que trabalham na colheita braçal da cana-de-açúcar. Identifica-se aí o preconceito lingüístico que se estabelece em relação à variedade lingüística do migrante nordestino no interior do estado de São Paulo. Somada à visão de como se dão as relações entre as modalidades falada e escrita da língua, cria-se a necessidade (escolar) de ensinar a variedade paulista (prestigiada nesse contexto social) para eliminar os erros de escrita. Ainda segundo informações dadas pelos professores, esses adultos (que freqüentam as aulas à noite, após um dia inteiro de trabalho no campo) têm muito interesse em dominar a escrita a fim de obterem a carteira nacional de habilitação e, assim, ser possível almejar o posto de motorista de treminhões ou colheitadeiras mecânicas nas usinas de cana-de-açúcar. É possível inferir que, para esses adultos, a aquisição da escrita viabiliza uma desejada ascensão socioeconômica. A seleção de um texto é feita por eu acreditar que essa produção escrita permite desenvolver várias reflexões sobre os entrelaçamentos entre as práticas de oralidade e letramento e entre os enunciados falados e os escritos, de modo semelhante ao que Chacon (2004, 2005, 2006) e Capristano (2007) o fazem a partir da análise de dados iniciais de escrita infantil. Entre essas várias reflexões, focalizo, como já anunciado, as relações entre o sistema fonológico, particularmente os aspectos prosódicos, e o sistema ortográfico, particularmente a organização gráfica do texto no que diz respeito às ocorrências dos espaços em branco como indicadores de limites de palavra. Apresento, a seguir, o texto selecionado, 3 uma leitura possível e uma transcrição desse texto a fim de tornar mais visível a comparação que interessa fazer a respeito das ocorrências de espaços em branco que delimitam palavras. Essas ocorrências podem ser classificadas como hipersegmentação (quando ocorrem mais espaços em branco do que os previstos na grafia convencional) e hipossegmentação (quando ocorrem menos espaços em branco do que os previstos na grafia convencional).
6 TENANI 236 Transcrição 1 do Texto 1 O galo e araposa Numa fazenda vivia un galo E uma raposa certo di o galo viu que araposa seaproximodo emtão Subiui no galho mais alto cetiha araposa muito esperta dise algo desa daiseugo Vamo con vresaram e pere umpouco dona rapousa aivenhoctrescachoro a migo galo deixa para outro dia Estou com muta Presa moral comtra espertesa, espertesa e meia Leitura possível do Texto 1 O galo e a raposa Numa fazenda, vivia um galo e uma raposa. Certo dia, o galo viu que a raposa se aproximou. Então, subiu no galho mais alto que tinha. A raposa, muito esperta, disse ao galo: - Desça daí, seu galo. Vamos conversar. - Espere um pouco, dona raposa. Aí vieram três cachorros. - Amigo galo, deixa para outro dia. Estou com muita pressa. Moral: Contra esperteza, esperteza e meia. Aponto, no Quadro 1, para as ocorrências de espaços em branco que discutirei. Organizo tais ocorrências em quatro grupos. Um grupo diz respeito às segmentações que envolvem as ocorrências da palavra raposa : hipossegmentações, como em araposa, arapousa, que se constituem de clítico a e item lexical
7 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p , jan./jun raposa/rapousa, e segmentações convencionais, como em uma raposa, dona rapousa. Outro grupo abrange hipossegmentações constituídas de um clítico (elemento átono, como alguns pronomes, preposições, artigos, conjunções) seguido de um item lexical, como em seaproximodo, cetiha, e umpouco. Um terceiro grupo de hipossegmentações é formado pela juntura gráfica de outros elementos à seqüência formada por clítico e item lexical, como daiseugo, para daí seu galo, e aivenhoctrêscachoro para aí venho três cachorro. O último grupo é formado por ocorrências de hipersegmentação: con versaram, e pere, a migo. QUADRO 1 Segmentações não-convencionais Grupo de dados Segmentações de raposa Hipossegmentação de seqüências constituídas por clítico e item lexical Hipossegmentação de elementos que envolvem unidades maiores do que seqüências de clítico e item lexical Hipersegmentação de seqüências de clítico e item lexical Segmentações não-convencionais araposa, uma raposa, araposa, arapousa, dona rapousa. seaproximodo, cetiha, umpouco. desa daiseugo, aivenhoctrescachoro. con versaram, e pere, a migo. Finalizo esta seção, formulando as seguintes questões: (i) (ii) O que pode estar motivando essa oscilação do escrevente entre diferentes possibilidades de registro gráfico da palavra? Qual o estatuto dessa oscilação? 2. Da análise das segmentações não-convencionais Nesta seção, analisamos os dados de segmentações não-convencionais a partir da organização proposta anteriormente. No que diz respeito ao primeiro conjunto de dados, agrupamos as segmentações que envolvem as ocorrências da palavra raposa. Enfocamos, assim, a flutuação entre, por um lado, a grafia convencional quanto à colocação do espaço em branco quando a seqüência é entre o artigo uma e raposa e entre
8 TENANI 238 o adjetivo dona e rapousa, e, por outro lado, a hipossegmentação quando a seqüência é entre o artigo a e raposa / rapousa. Do ponto de vista fonológico, há uma diferença entre os dados convencionais e os de hipossegmentação: há acento em uma e em dona, mas não há acento em a, por ser um artigo, um clítico fonológico. Poderia ser a tonicidade, como já apontado por Cagliari (1993) e Silva (1991), entre outros, na análise de dados infantis, um elemento relevante para explicar essa flutuação. Portanto, assumimos (provisoriamente) que essa diferença quanto à proeminência acentual do item que precede raposa possa ter motivado a flutuação observada na colocação dos espaços em branco. Ainda do ponto de vista fonológico e considerando o arcabouço teórico da Fonologia Prosódica, na linha do que propõem Nespor e Vogel (1986), segundo a qual os enunciados são organizados em constituintes prosódicos, propomos que os espaços em branco das segmentações não-convencionais podem ser motivados pelos limites de diferentes constituintes prosódicos. As segmentações de araposa, arapousa coincidem com os limites do constituinte prosódico por essa teoria denominado palavra fonológica, 5 que se caracteriza por haver um acento de palavra, e a segmentação de dona rapousa coincide com os limites do constituinte frase fonológica, por dona raposa ser um sintagma nominal. Nota-se que uma raposa pode ser analisada como uma palavra fonológica, embora uma, como numeral, seja um item acentuado que pode ou não se tornar átono, juntando-se à raposa. Desse modo, considerando a possibilidade de uma raposa ser analisada como uma palavra fonológica, temos que a noção de palavra fonológica não é suficiente para exclusivamente sustentar a explicação para haver segmentação não-convencional em araposa, arapousa. No segundo conjunto de dados encontram-se ocorrências de hipossegmentação agrupadas por terem em comum a característica de um clítico ( se, que, um ), portanto elemento dependente fonologicamente, preceder uma palavra fonologicamente acentuada ( aproximou, tinha, pouco ). Talvez, como já apontado, a formação de uma unidade na modalidade falada, a palavra fonológica, tenha motivado algumas das ocorrências de hipossegmentação. Portanto, as ocorrências de espaço em branco em seaproximodo, cetiha, umpouco são interpretadas como podendo ser motivadas por limites da palavra fonológica. Vale enfatizar que nem sempre a configuração de uma seqüência de clítico e palavra acentuada resultará em uma hipossegmentação. Para exemplificar, basta contrapor umpouco a un galo e observar que, em um mesmo texto,
9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p , jan./jun há flutuação na maneira de grafar, quanto à colocação do espaço em branco, a forma um quando seguida de item lexical que tem acento primário. Cabe questionar: o que motiva tal flutuação? Postergando a resposta para a questão ora formulada e continuando a análise dos dados selecionados, passamos a tratar do terceiro grupo de dados caracterizados por hipossegmentação entre itens lexicais que têm acentos. A seqüência aivenhoctrêscachoro (aí venho três cachorro) constitui-se fonologicamente como uma unidade definida por seu contorno entoacional, denominada frase entoacional, 6 segundo a abordagem da Fonologia Prosódica aqui assumida. 7 Como há apenas um contorno entoacional, é possível que essa informação fonológica (e não a ocorrência de acento de palavra) possa ter motivado a ausência de espaço em branco conforme previsto pela convenção ortográfica. O contorno entoacional poderia explicar também a ausência do branco entre seu galo, que forma um constituinte fonológico por apresentar um contorno entoacional, uma vez que, na sentença, funciona como vocativo: desça daí, seu galo. No entanto, daí não forma, junto com seu galo, um constituinte fonológico. Fonologicamente, as unidades são desça daí e seu galo, duas frases entoacionais que, juntas, formam um enunciado fonológico. Resta, portanto, a pergunta: o que motiva a grafia de desa daiseugo? Mais uma vez, postergamos a resposta para a questão ora formulada e continuamos nossa análise, passando a tratar das únicas três ocorrências de hipersegmentação: con versaram, e pere, a migo. 8 Esses dados têm em comum o fato de com, e e a ocorrerem grafados entre espaços em branco, segundo as normas ortográficas do português, por poderem ser, respectivamente, uma preposição, uma conjunção e um artigo (por exemplo, em com muita pressa, e uma raposa, a raposa ). Da mesma forma que Silva (1991) observou para dados de escrita infantil, podemos aqui afirmar que as hipersegmentações decorrem não apenas do que seja palavra na escrita, mas também da percepção de um componente tônico da fala (particularmente os dados e pere e a migo ) ou da convivência entre a percepção deste componente e da escrita. A partir da análise de dados de escrita infantil, Abaurre (1988) já afirmou ser ingênuo pensar que o aprendiz da escrita escreve e representa a escrita como uma simples transcrição da fala, pois há elementos reveladores da incorporação de aspectos convencionais, de escolhas de estruturas típicas da escrita. Portanto, para aqueles professores de EJA, faz-se necessário explicitar que o alfabetizando
10 TENANI 240 não escreve a sua variedade lingüística, nem supõe ser a escrita mera transcrição da fala, mas constrói hipóteses de como se constitui a escrita (por exemplo, a distribuição de espaços em branco) e de como se dão as relações entre enunciados falados e escritos. Encerro a análise das segmentações não-convencionais, retomando as questões formuladas e não respondidas nesta seção: (i) (ii) O que motiva a flutuação quanto à colocação do espaço em branco entre clíticos fonológicos, como um, e o item lexical que o segue? O que motiva a grafia de desa daiseugo? 3. Das reflexões sobre os dados de segmentação não-convencional Abrimos esta seção buscando estabelecer uma relação entre hipossegmentação, hipersegmentação e grafia convencional. A análise das ocorrências de segmentação não-convencional feita na seção anterior pautouse pela tentativa de explicitar que informações de natureza fonológica, principalmente as relativas a acento e entoação relacionadas à organização prosódica, poderiam ser relevantes para sustentar hipóteses explicativas para os dados selecionados. Embora pertinentes, apontamos que as informações consideradas não são suficientes para responder às questões anteriormente formuladas. Cremos que se faz necessário também considerar o fluxo narrativo do texto, pois dessa maneira poderemos formular a hipótese de que a flutuação/ oscilação das fronteiras de palavra na escrita pode estar motivada na maneira como o branco é usado para indicar as relações de sentido que se constroem no texto, que também estão permeadas pela organização prosódica dada ao texto. Argumentamos ainda que tais segmentações não-convencionais podem indiciar também o processo de subjetivação do escrevente. A fim de embasar tais propostas de interpretação das segmentações nãoconvencionais, analisamos onde, no texto, ocorrem algumas hiper e hipossegmentação. Destacamos, das várias ocorrências, a flutuação entre hipossegmentação e segmentação convencional relativas à raposa. Nota-se que a segmentação convencional uma raposa se dá quando da apresentação da personagem, sendo que antes e depois dessa ocorrência ocorrem hipossegmentações, como já analisado na seção anterior. A segmentação, segundo as convenções, para
11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p , jan./jun dona rapousa aparece justamente quando, por meio da sua fala o galo precisa de ganhar tempo até que cheguem seus amigos cachorros para ajudá-lo. Outras ocorrências de hipossegmentação como araposa seaproximodo, na terceira linha do texto, se dão, após a apresentação dos personagens do enredo, quando é narrada a primeira cena: a raposa se aproximando do galo, representando a este uma ameaça. O ápice da tensão da narrativa a saber, a chegada de três cachorros amigos do galo que está ameaçado pela raposa coincide com a ocorrência de aivenhoctrescachoro, única hipossegmentação em que, como já analisado, quatro palavras acentuadas são grafadas juntas. Por outro lado, con versaram e a migo são hipersegmentações que coincidem com a fala da raposa, que é caracterizada como astuta o suficiente para tentar seduzir o galo a descer do galho, em um momento, ou para sair lentamente, vagarosamente, diante da ameaça dos cães, em um segundo momento da narrativa. Igualmente e pere, na fala do galo, parece indiciar um ritmo mais silábico e/ou uma velocidade de fala mais lenta e, assim, por meio da fala, o escrevente mostra que o galo, sendo também esperto, usa os mesmos recursos que a raposa para ganhar tempo até que seus amigos cães cheguem para salvá-lo da ameaça de morte. Desse modo, as ocorrências de espaços em branco para mais ou para menos em relação ao que é previsto pela convenção gráfica não se dão aleatoriamente ao longo do texto, mas podem ser vistos como indícios de movimentos de tensão da narrativa, por um lado, e de movimentos de esperteza dos personagens, por outro lado. Esses movimentos perpassam a fala dos personagens, momentos em que podemos supor que características dos enunciados falados se mostram mais evidentes para nossa análise (como mostrado na seção anterior sobre as características prosódicas que podem ser observadas a partir do produto escrito que analisamos). Vistas dessa maneira, as segmentações não-convencionais nos dão pistas de que o branco pode ser, também, usado pelo escrevente para construir sentidos do texto. Ao adotarmos essa perspectiva de análise, que considera o texto na análise das segmentações não-convencionais, passamos a tomar tais segmentações como representação de um modo de dizer, de recortes da realidade que é simbolizada por meio da grafia. Independentemente da freqüência de ocorrência de hipossegmentação e hipersegmentação, podemos afirmar que, também para dados de escrita produzidos por adultos, as segmentações não-convencionais permitem ser tomadas, assim como fizeram Abaurre & Silva (1993, p.101) para dados de
12 TENANI 242 escrita infantil, como momentos em que o escrevente recorta não apenas sua representação da realidade, mas também a linguagem, sistema simbólico através do qual tal representação adquire expressão e materialidade. Ao aproximarmos os dados de segmentações não-convencionais produzidos por adultos e por crianças, podemos a afirmar que tais segmentações permitem observar a relação que o sujeito mantém com a linguagem, as representações. Essas segmentações não-convencionais da palavra são também índices do funcionamento lingüístico da escrita. Esse funcionamento mostra a escrita como constitutivamente heterogênea, a qual se define por um modo particular de estabelecer a relação entre o oral e o escrito, tal como o faz Corrêa (2004). Comungamos com esse autor a sua visão de a escrita ser constituída do encontro entre o falado e o escrito, refutando a concepção que toma essa relação como sendo o resultado de uma interferência indesejada da fala na escrita. 4. Das considerações finais Na análise das segmentações não-convencionais, buscamos explicitar relações que podem ser estabelecidas entre enunciados falados e escritos no que diz respeito à noção de palavra. Mostramos que as hipersegmentações podem ser resultado de informações letradas e as hipossegmentações podem ser motivadas em informações fonológicas de constituintes prosódicos, tais como a palavra fonológica e a frase entoacional. Junto com Abaurre (1991), vemos a flutuação na grafia de uma mesma seqüência de palavras como o resultado de soluções conflitantes que o escrevente dá por eleger diferentes critérios a cada momento que lida com o problema de segmentação de uma mesma seqüência gráfica. Ancorada em Chacon (2004, 2005, 2006), Capristano (2007) e Paula (2007), assumimos que tais flutuações podem ser evidências de que o escrevente transita, simultaneamente, por práticas orais e letradas. E junto com esses autores, defendemos que tal fato aponta para um modo heterogêneo de constituição da escrita, nos termos propostos por Corrêa (2004). Argumentamos, a partir de nossa análise de hipossegmentações, hipersegmentações e segmentações convencionais, em um texto produzido por adulto, que o espaço em branco entre palavras pode ser tomado como indício de que o escrevente lida com sentidos que perpassam o texto ao segmentar os enunciados em porções cujos limites não coincidem com aqueles da palavra convencional. Tais segmentações não-convencionais de palavra podem ser vistas
13 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p , jan./jun ainda como representações de um modo de dizer, de recortes da realidade que são simbolizados por meio da grafia. Por fim, apontamos que a análise e a discussão de segmentações nãoconvencionais ora apresentadas dão bases para tratar também do conceito de palavra, um objeto de reflexão para o escrevente, cujos significados e limites não são dados necessariamente por uma convenção ortográfica, mas são construídos a medida que o escrevente segmenta a realidade e a representa por meio da linguagem. Notas 1 A cidade de Olímpia situa-se no noroeste paulista e tem uma população de habitantes, segundo Censo IBGE/2000. A economia da cidade está fortemente baseada no cultivo e processamento da cana-de-açúcar e, por essa razão, há muita migração de agricultores (geralmente analfabetos) do interior do Nordeste brasileiro para trabalharem na colheita da cana-de-açúcar. 2 Como já discutido por Tfouni (2000), essa visão está fundamentada na teoria da grande divisa. 3 O texto selecionado foi produzido por um adulto (de 35 anos na época em que o texto foi coletado) em sala de aula, a pedido da professora. 4 Na transcrição do Texto 1, procuramos manter a mesma distribuição gráfica do texto original. Observam-se nesse texto rasuras, aspectos relacionados ao traçado das letras, entre outras características que não focalizamos em nossa análise, embora seja importante mencionar que tais características são igualmente relevantes e interessantes para os estudiosos da linguagem. 5 Cabe destacar que é tema de discussão a definição de palavra fonológica e a pertinência em se assumir para o português brasileiro a noção de grupo clítico na análise de dados como os apresentados em (i). Indicamos aos interessados no tema ler Bisol (2004). 6 Dada a organização textual, a seqüência aivenhoctrêscachoro também pode ser analisada como um enunciado fonológico. Como na teoria adotada, os limites de enunciado fonológico e frase entoacional, nesse caso, são os mesmos, restringimos a esta nota a observação dessas possibilidades de análise. Uma caracterização mais detalhada desses constituintes pode ser encontrada em Capristano (2007) e Tenani (2004). 7 Para Cagliari (1993), assim como para Silva (1991), essa segmentação nãoconvencional é motivada pelo grupo tonal. A noção de grupo tonal difere da noção de frase entoacional por serem unidades definidas dentro de arcabouços teóricos
14 TENANI 244 distintos. Vale observar, entretanto, que é relevante para a caracterização dessas unidades a informação entoacional. 8 Cabe fazer uma observação de ordem quantitativa sobre os dados de segmentação não-convencional analisados: as ocorrências de hipersegmentação são em menor número (total de 03) do que as ocorrências de hipossegmentação (total de 8). A menor ocorrência de hipersegmentação em relação às de hipossegmentação também foi atestada em dados de escrita infantil. Sobre os tipos de segmentação nãoconvencional, Ferreiro & Pontecorvo (1996) constataram, ao compararem dados de escrita infantil produzidos no Brasil, na Itália, no México e no Uruguai, que a tendência à hipossegmentação parece dominar sobre a tendência à hipersegmentação, qualquer que seja a língua, a tradição escolar e o tipo de script (caracteres separados na amostra mexicana e caracteres ligados em todas as outras). (p.49). Supondo ser pertinente aproximar essas observações quantitativas sobre os dados de escrita infantil e o que notamos no texto selecionado, nos perguntamos: o que tais observações indiciam sobre as relações entre o oral/falado e o letrado/escrito que se dão no processo de aquisição da escrita? Por não ser o foco de nossa análise, limitamo-nos a formular a questão. Referências Bibliográficas ABAURRE, M. B. M. O que revelam os textos espontâneos sobre a representação que faz a criança do objeto escrito? In: KATO, M. A. (Org.). A concepção da escrita pela criança. Campinas: Pontes Editores, p ABAURRE, M. B. M. A relevância dos critérios prosódicos e semânticos na elaboração de hipóteses sobre segmentação na escrita inicial. Boletim da ABRALIN, Campinas, v. 11, p , ABAURRE, M. B. M.; SILVA, A. O desenvolvimento de critérios de segmentação na escrita. Temas em psicologia. São Paulo, v. 1, 1993, p BASÍLIO, M. Teoria Lexical. São Paulo: Ática, BISOL, L. Mattoso Câmara Jr. e a Palavra Prosódica. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 20, n. especial, p , CAGLIARI, L. C. Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione, CAPRISTANO, C. C. Segmentação na escrita infantil. São Paulo: Martins Fontes, CHACON, L. Constituintes prosódicos e letramento em segmentações nãoconvencionais. Letras de Hoje, v. 39, n. 3, p , 2004.
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