Audiência de custódia: mecanismo de garantia de direitos ou reforço de estruturas sociais desiguais?
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1 Audiência de custódia: mecanismo de garantia de direitos ou reforço de estruturas sociais desiguais? Lívia Bastos Lages Orientação: Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro As audiências de custódia, que começaram a ser implantadas na capital mineira em 2015, consistem na apresentação de toda pessoa presa em flagrante à autoridade judicial em até vinte e quatro horas. Nesta ocasião, apresentada a pessoa presa, cabe ao juiz apurar eventual prática de tortura ou maus tratos pelo Estado, bem como decidir sobre a legalidade da prisão em flagrante e sobre a necessidade de imposição de alguma medida cautelar. Conforme a legislação vigente, a prisão preventiva é uma medida cautelar extrema, que deve ser decretada apenas se estritamente necessária. Um dos objetivos do projeto Audiência de Custódia, lançado em 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça, foi inibir o uso abusivo da prisão preventiva. Por meio das audiências, pretendeu-se qualificar o processo decisório do juiz pelo contato direto com a pessoa presa e, dessa forma, incentivar o uso de outras medidas cautelares, que se mostrem mais efetivas e adequadas ao caso. No Brasil, 40% da população carcerária é composta por presos provisórios (BRASIL, 2014, p.15). Ou seja, parte significativa das prisões e das penitenciárias está ocupada por aqueles que, sem qualquer condenação, aguardam a finalização do inquérito ou a data do julgamento. Além de superlotar as prisões, o uso abusivo da prisão preventiva pode se mostrar mais danoso do que a pena em si: de acordo com pesquisa do IPEA, em 37,2% dos casos analisados os presos provisórios não foram sequer condenados à pena de prisão ao final do processo (BRASIL, 2015, p. 38). Assim, a medida cautelar de privação de liberdade pode configurar verdadeira punição do suspeito, o que inverte a lógica da presunção de inocência. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal considerou ser obrigatória a realização das audiências de custódia, dado o estado inconstitucional das prisões brasileiras, que, na maior parte, contam com celas superlotadas e insalubres, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos de higiene básica, freqüentes espancamentos dos presos, dentre outras mazelas (BRASIL, ADPF 370, 2016) As audiências de custódia representam uma proposta de alteração desse quadro. Porém, tais mudanças estruturais dependem das práticas adotadas por seus operadores, os quais estão imersos numa cultura do encarceramento.
2 Como pressuposto teórico da pesquisa, entende-se que há, nas práticas institucionais adotadas no sistema criminal, influência do que Loic Wacquant chamou de novo senso comum de punição (1999, p.11). De acordo com o sociólogo, trata-se de um Estado que associa o processo penal com a política de segurança pública. Ao seguir a lógica da contenção de gastos com direitos sociais, o Estado reforça o seu braço punitivo para controlar as mazelas geradas pela ausência de intervenção no domínio socioeconômico. De forma concomitante a essa cultura do encarceramento, a sobrecarga do sistema penitenciário implica a incapacidade de assegurar condições de dignidade e respeito a todas as pessoas presas. Nesse cenário, observa-se que, no que diz respeito à garantia de direitos processuais, a persecução penal não atinge a todos da mesma forma. De acordo com Coelho (1978), Adorno (1995) e Misse (2010), a violação das garantias do suspeito de cometer um crime não está distribuída de maneira igualitária na população, vez que os mais pobres em geral e os homens jovens pretos e pardos representam a população mais vigiada pela polícia. Nesse sentido, pretendeu-se com este trabalho estudar a potencialidade das audiências de custódia se consolidarem como um mecanismo eficaz de garantia do devido processo legal ou, na contramão, que revela e reforça tratamentos diferenciados com base em estruturas sociais desiguais. Para tanto, foram analisados o perfil da pessoa presa em flagrante (sexo, cor da pele, idade e escolaridade), o tipo de crime cometido, a existência de antecedentes criminais e o teor das decisões proferidas. Utilizou-se os resultados do trabalho de campo realizado pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Foram utilizados dois modelos de formulários fornecidos pelo IDDD: o primeiro, visava levantar informações sobre os atores envolvidos e a dinâmica da audiência e, o segundo, extrair informações dos Autos de Prisão em Flagrante Delito (APDF). Entre setembro de 2015 e março de 2016, foram acompanhadas 825 audiências de custódia, do total de realizadas neste período (14,40% do total de audiências). De forma geral, procurou-se acompanhar audiências em todas as semanas, em turnos e dias alternados. Por meio deste trabalho, os principais resultados foram os seguintes: 1 Sexo: em 10% das audiências acompanhadas a pessoa custodiada era mulher. Este dado, se contrastado com a população prisional feminina, mostra que nestas audiências a representatividade da mulher foi maior do que da população prisional, da qual representam 5,5% mulheres conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública
3 (FBSP, 2015). No que tange as decisões proferidas, 5,7% das mulheres e 94,3% dos homens tiveram a prisão preventiva decretada e, mesmo representando 10% da amostra, 35,7% das decisões que decretaram a liberdade provisória, sem qualquer medida cautelar (14 no total), referiam-se às mulheres. A partir desses dados, sugere-se que o fato da pessoa presa em flagrante ser mulher influencia a decisão tomada pelo magistrado. De forma geral, as decisões são mais brandas do que àquelas decretadas aos homens. O estereótipo da mulher como frágil e incapaz de cometer crimes pode estar associado à sua baixa representatividade dentre os presos em flagrante (em geral presos pela Polícia Militar), e dentre os presos provisórios (pela decisão do juiz). Durante a execução da pesquisa, a equipe do CRISP relatou a seguinte fala de um dos operadores: Ao invés da senhora fazer rosquinha em casa, comida para os filhos e para o marido, está sendo presa por tráfico! 2 Cor da Pele: nas audiências acompanhadas, houve predominância de pretos (32,4%) e pardos (45,6%), que juntos somam 78% das pessoas levadas à audiência de custódia. Do total de casos em que houve a decretação da prisão preventiva (442), em 36,2% as pessoas eram pretas, 46,4% pardas e 17,4% brancas. No caso da liberdade provisória sem prisão preventiva, 21,4% eram pretos, 57,2% pardos e 21,4% brancos. A liberdade provisória com medida cautelar, por sua vez, foi decretada a 28,3% aos pretos, 44,2% aos pardos e 27,5% aos brancos. A pouca incidência de relaxamento de flagrantes se distribuiu em 20% de pretos, 40% de pardos e 40% de brancos. A partir desses dados, percebe-se que os pretos e pardos são a maioria dentre os presos em flagrante e dentre aqueles que recebem decisões judiciais menos brandas. A equipe do CRISP relatou duas situações que podem indicar influência da cor da pele na formação da convicção do juiz: no primeiro caso, a pessoa presa era branca, de classe média alta e suspeita de ter cometido roubo. O juiz decidiu pela liberdade provisória com pagamento de fiança e um dos operadores disse: Coitado do moço, bonito, né, um professor bonito daqueles roubando. No segundo caso, a pessoa custodiada era negra, também suspeita de ter cometido roubo. Diferentemente, decidiu-se pela prisão preventiva e um dos operadores comentou: Esse aí tem cara de bandido, cara de marginalzinho! 3- Idade: na data das audiências acompanhadas, em 10,7% dos casos a pessoa custodiada tinha 18 anos; em 41, 8% entre 19 a 25 anos; em 30,1% entre 26 a 35 anos; 12,8% entre 36 a 45; 2,7% entre 46 a 55 anos e 1% tinha idade superior a 56 anos de idade. Das
4 pessoas custodiadas com 18 anos, 42% tiveram a prisão preventiva decretada. Entre 19 e 25 anos, em 50,7% dos casos. Entre 26 e 35 anos, 62,5%. Entre 36 a 45 anos, 58,5% entre 46 a 55 anos, 27,3% e, finalmente, com idade superior a 56 anos, 25% foi preso preventivamente. Assim, na amostra observada, as pessoas presas entre 18 e 25 anos tendem a sofrer sanções mais duras do que aquelas entre 26 e 45 anos. 4 - Escolaridade: nas audiências acompanhadas, 45,7% das pessoas custodiadas possuíam ensino fundamental incompleto, 13,6% ensino fundamental completo; 14,4% ensino médio incompleto; 12% ensino médio completo e apenas 1,8% ensino superior. As prisões preventivas foram decretadas em 55,5% dos casos de custodiados com ensino fundamental incompleto; 49,5% daqueles com ensino fundamental completo; 52,9% com ensino médio incompleto; 52,5% com ensino médio completo e 60% dos poucos custodiados com ensino superior. Nas audiências acompanhadas, esta categoria não pareceu influenciar as decisões. É importante ressaltar, porém, que a baixa escolaridade foi levantada pela equipe do CRISP como um fator que prejudica a pessoa custodiada a compreender a dinâmica da audiência. 5 - Tipo penal: em 30,8% dos casos tratava-se de roubo; 19,6% de furto; 17,7% de tráfico de drogas; 9,4% de receptação; 5,8% de porte ilegal de armas; 5,1% de corrupção de menores; 3,6% de infrações de trânsito e 1,5% de crimes previstos na Lei Maria da Penha. Nos casos analisados, tais dados revelam que crimes violentos, como homicídio e estupro são pouco flagrados na sociedade, o que implica a baixa persecução penal desses crimes. O tráfico de drogas, por outro lado, está bem representado nos flagrantes delitos. Ao contrastar tais dados com as decisões proferidas, tem-se que em 36,8% dos casos de furto foi decretada a prisão preventiva; 66,4% nos crimes de roubo e 72,6% nos crimes de tráfico de drogas. Assim, o tráfico de drogas representa o crime que mais ensejou a decretação da prisão preventiva. 6 - Antecedentes criminais: dentre as prisões preventivas decretadas, em 73,5% dos casos as pessoas tinham alguma passagem pela polícia e em 26% não havia qualquer registro policial. De acordo com a equipe que acompanhou as audiências, os maus antecedentes eram apresentados como justificativa para a decretação da prisão. A partir do exposto, os dados coletados apontam para um tratamento diferenciado das pessoas presas de acordo com a posição social do indivíduo. Na amostra observada, homens
5 jovens, pretos e pardos foram os mais representados dentre os presos preventivamente. Somado a isso, a existência de antecedentes criminais e a suspeita de tráfico de drogas também parecem contribuir para a decretação da prisão preventiva. Com esse resultado, as decisões judiciais analisadas parecem ter sido influenciadas por razões e critérios extralegais, o que implica a maior penalização de indivíduos já socialmente vulneráveis. Nesse sentido, as audiências de custódia observadas apresentaram baixa potencialidade de garantir o devido processo legal a toda e qualquer pessoa presa. Referências Bibliográficas: ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, n. 43, p , nov COELHO, Edmundo Campos. Criminalização da marginalidade e a marginalização da criminalidade. Revista de Administração Pública, v. 12, n. 2, p , abr./jun BRASIL, Ministério da Justiça, Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN, Brasília, p. BRASIL, Ministério da Justiça, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. A aplicação de Penas e Medidas Alternativas. Relatório de Pesquisa, Brasília, p. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, julgada em: 19 de fevereiro de MISSE, Michel. Crime, Sujeito e Sujeição Criminal. Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido. Lua Nova (Impresso), v. 79, p , WACQUANT, Loic (1999), As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
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