Infância, Educação Infantil e Relações raciais no Brasil
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- Branca Flor Mirandela Flores
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1 Infância, Educação Infantil e Relações raciais no Brasil TATIANE COSENTINO RODRIGUES ANETE ABRAMOWICZ Introdução A tentativa de transformação do Brasil em um país de população mestiça e isento de conflitos étnico-raciais adiou durante décadas o debate sobre a questão racial no país, especialmente sobre as condições de vida de parte significativa da população negra que ficou alijada de qualquer política pública após a erosão do período escravista. A política de imigração européia financiada pelo Estado Brasileiro coincidiu e foi influenciada por uma onda de publicações que celebravam a mistura racial como uma característica nacional positiva e atributo da construção nacional. São trabalhos expressivos os de Sérgio Buarque de Holanda, Arthur Ramos e Gilberto Freyre, que, transformaram o pensamento popular sobre raça ao privilegiar a cultura e o meio ambiente como determinantes da aptidão e convivência social, colocando-os como princípios e determinantes da evolução histórica e social do Brasil. A concepção de democracia racial é uma política de homogeneização cultural que busca negar as diferenças, ocultando as hierarquias implícitas às culturas, ao mesmo tempo em que viabiliza certa folclorização de um Brasil diverso e sem racismo. O que sabemos não existe, e serviu para ocultar a subalternização social, cultural e econômica da população negra. Uma nova interpretação a respeito das relações étnico-raciais no Brasil surgiu a partir da década de 1950 com os estudos dirigidos e financiados pela UNESCO inicialmente destinados à compreensão das relações raciais em um país até então considerado exemplo para o mundo pós-guerra de convivência entre povos, culturas e raças diferentes. Estas pesquisas marcaram um novo modo de interpretar as relações raciais no Brasil que se diferenciará radicalmente das explicações vigentes de harmonia e democracia racial. Diferentemente do esperado, os resultados das pesquisas visibilizaram a existência do racismo e preconceito racial na sociedade brasileira, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Thales
2 de Azevedo, Guerreiro Ramos, Fernando Henrique Cardoso, Otavio Ianni e Virgina Leone Bicudo foram alguns dos pesquisadores envolvidos no desenvolvimento dos trabalhos realizados no âmbito do projeto. Mesmo com interpretações distintas a respeito da existência do racismo na sociedade brasileira, sejam a herança do período escravista ou o processo de integração dos negros na sociedade de classes, estas pesquisas possibilitaram a ascensão e o fortalecimento do debate a respeito das relações étnico-raciais no Brasil, seja pelo movimento negro ou pela academia. A década de 1970 é emblemática no desvelamento da democracia racial por meio das produções elaboradas principalmente por estudiosos que investigavam as desigualdades raciais a partir de dados censitários e estudos quantitativos. Embora os primeiros trabalhos críticos sistemáticos de Nelson do Valle Silva e Carlos Hasenbalg tenham feito progredir significativamente o estudo e o debate sobre racismo na sociedade brasileira, há limitações nas perspectivas de ambos os autores por terem minimizado o papel da raça na estruturação das relações sociais e por terem desconsiderado a atuação das autoridades governamentais no favorecimento aos imigrantes europeus no mercado de trabalho. As contestações a esse paradigma dominante acentuam-se com a atuação do movimento negro a partir da década de 1970, quando o mesmo adotou uma estratégia mais politizada de denúncia aberta à discriminação racial e ao racismo na sociedade brasileira. A atuação do movimento negro registrou a concordância entre intelectuais negros de que a raça constituía-se em um conceito organizador das relações sociais no Brasil, obstaculizando o avanço socioeconômico da população negra, a qual se encontrava sob péssimas condições de vida. A luta do movimento negro contemporâneo, ao identificar na integração subalterna de sua população o principal indicador da persistência da discriminação racial e do racismo, tem enfatizado que o resgate de sua identidade racial e a construção de uma sociedade plurirracial e pluricultural passa necessariamente pela desfolclorização da cultura e pelo reconhecimento do legado africano para construção do Brasil. É por esse âmbito que se pauta a insistência e persistência das diferentes
3 gerações de militantes negros sobre o papel fundamental da educação. Daí as reivindicações e proposições do movimento negro durante a elaboração da Constituição Federal de 1988 e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional pela introdução o ensino de história da África e afro-brasileira nos currículos escolares. No final da década de 1970, a ênfase na questão educacional dada pelo movimento negro situa-se na denúncia do ideal de branqueamento implícito e veiculado nos livros didáticos, nas escolas, na omissão dos conteúdos escolares, no enfoque que a história dá ao negro, ao seu modo de ser, às suas habilidades, da tendência a enfatizar a sua docilidade, esquecendo-se de todo o movimento de resistência, e, ainda, da omissão dos interesses subjacentes à Abolição (Pinto, 1993, p.26). Em 2003 tivemos a aprovação da lei no , que após, quatro anos de tramitação e negociações, atende a uma antiga reivindicação do movimento negro para a LDB, a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos de ensino fundamental e médio. Em 2004 aprovou-se o Parecer 003/2004 que regulamenta as alterações da LDB instituindo Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana. Educação infantil e questão racial Atravessamos a década de 1980 e de 1990 consolidando uma importante, mas marginalizada produção sobre a intersecção entre raça e educação. Este acervo reúne as denúncias do movimento negro, propostas, experiências desenvolvidas pelo mesmo, consolidando, nos termos de Silva e Barbosa (1997), um pensamento negro sobre a educação e, de forma complementar, a realização de pesquisas que corroboram as denúncias do movimento negro, ao mostrarem a disparidade entre
4 negros e brancos nos indicadores educacionais. Em seu conjunto essa produção traz não somente reivindicações, mas problematizações teóricas e ênfases específicas (Gomes, 1997, p. 19). Essas problematizações denunciam a escola como instituição que discrimina principalmente os alunos negros e perpetua o racismo, veiculando valores preconceituosos nos livros didáticos e na abordagem errônea e omissa da história oficial por não contemplar a luta e resistência negras. Segundo Gomes, os negros trouxeram para a educação o questionamento do discurso e da prática homogeneizadora, que despreza as singularidades e as pluralidades existentes entre os diferentes sujeitos presentes no cotidiano escolar (Gomes, 1997, p. 23). Embora a denúncia e propostas educacionais de enfrentamento ao racismo sejam anteriores à década de 1980, foi a partir deste período que as pesquisas educacionais sobre esta temática começaram a se consolidar. Os trabalhos de Luiz Alberto Gonçalves (1985) ao denunciar o silêncio dos educadores diante de situações de discriminação e o trabalho Ana Célia da Silva (1988) de denúncia dos estereótipos e preconceitos em relação à representação dos negros nos livros didáticos são alguns exemplos. Em meio à produção sobre raça e educação são poucos as que focam a Educação Infantil. Em geral, os estudos abordam a temática na educação básica e ensino superior. Um trabalho muito significativo é o de Eliete Aparecida de Godoy (1996), que constatou que as crianças na faixa etária de cinco a seis anos, ao realizarem descrições de si mesmas ou dos colegas, referem-se à cor da pele como uma das principais características físicas e que as crianças negras se sentem desconfortáveis quando necessitam verbalizar ou assumir sua condição étnico-racial. Demonstram interiorização da ideologia negativa em relação às diferenças étnicas e procuram se assemelhar fisicamente ao branco. Essas atitudes foram observadas apesar de a autora fazer uma ressalva de que na relação entre as crianças não havia nenhuma discriminação perceptível, sugerindo que o racismo, para existir e se perpetuar, prescinde de manifestações explícitas e agressivas. Eliane Cavalleiro (1998) aborda a questão do preconceito e da
5 discriminação racial na educação infantil por meio da observação e acompanhamento das crianças e professoras e familiares no convívio social, em suas relações multiétnicas, tanto no espaço pré-escola quanto no familiar. Ao final da análise realizada confirma as três hipóteses que orientaram o trabalho: o educador da pré-escola brasileira apresenta dificuldades para perceber os problemas que podem aparecer nas relações entre crianças pertencentes a diferentes grupos étnicos; as crianças em idade pré-escolar já interiorizam ideias preconceituosas que incluem a cor da pele como elemento definidor de qualidades pessoais, e o silêncio do professor no que se refere à diversidade étnica e às suas diferenças, facilita o desenvolvimento do preconceito e a ocorrência de discriminação no espaço escolar. Em 2004, Fabiana de Oliveira, realizou sua pesquisa em uma creche da rede municipal de ensino de São Carlos (SP), analisando as práticas educativas que ocorrem na creche, verificando as maneiras pelas quais essas práticas produzem e revelam a questão racial, constituindo um marco nos trabalhos que tratam da educação infantil devido o foco em práticas desenvolvidas com bebês (seis meses a dois anos), faixa etária ainda menos investigada em relação ao tema. Esses são alguns exemplos de pesquisas que enfocando aspectos diferenciados ressaltam o papel fundamental da educação como um todo e da educação infantil em particular em possibilitar que as crianças vivenciem o ambiente escolar de respeito às diferenças que não se esgote nas frases de efeito tão comuns no meio educacional de que todas as crianças são iguais, quando o tempo todos são tratadas de forma diferenciada. Os desafios continuam latentes especialmente para as crianças, os indicadores apresentados pela UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no lançamento da Campanha Infância sem racismo demonstram que embora as políticas públicas no país tenham sido construídas para todas as crianças, ainda não foram universalizadas em seus efeitos. Estudos socioeconômicos e análises do UNICEF mostram que os avanços alcançados não conseguiram ainda gerar impactos suficientes nas situações de desigualdades da população - sobretudo de crianças, adolescentes e mulheres negras e indígenas. A falta de acesso a serviços impõe obstáculos a negros e indígenas mesmo antes do nascimento.
6 Apenas 43,8% das grávidas negras, segundo dados da campanha, têm acesso ao mínimo de sete consultas pré-natais, indicador que entre as brancas é de 72,4%. Tal fato produz um efeito imediato e devastador na vida da criança. Um bebê negro tem 25% mais chance de morrer antes do primeiro aniversário do que uma criança branca. Essa desigualdade é mais assustadora entre crianças indígenas, que têm duas vezes mais chances de não sobreviver aos primeiros 12 meses de vida em relação às crianças brancas (Poirer, 2010). O racismo ainda compromete o direito de aprender. Uma criança indígena tem quase três vezes mais chance de estar fora da escola do que uma criança branca. Da mesma forma, do total de 530 mil crianças de sete a 14 anos que não estudam, 62% são negras (Pnad, 2009). Na adolescência, encontramos uma das faces mais cruéis do impacto do racismo. O Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) mostrou que um adolescente negro que vive nas cidades com mais de 100 mil habitantes tem 2,6 vezes mais risco de morrer vítima de homicídio do que um branco. Quando se fala em pobreza, a iniquidade segue o mesmo perfil. No país, 45,6% das crianças vivem em famílias pobres (renda per capita de até meio salário mínimo). São 26 milhões de crianças nessa situação. Dessas, 17 milhões são negras. A análise segundo a cor de pele confirma a desigualdade socioeconômica e revela uma profunda desigualdade racial. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; entre as crianças negras, 56% (Poirer, 2010). Podemos concluir que a desigualdade social tem cor, significa dizer que a cor tem capacidade explicativa das diversas hierarquias sociais, econômicas e culturais que por esta via tem subalternizado a população negra. A educação infantil é o momento mais importante da escolaridade, pois é ela que inicia muitas experiências e percepções, entre elas a iniciação racial. Deste modo, se não começarmos a mudar as relações raciais desde este nível de ensino não haverá possibilidade de produzir uma sociedade exuberante e igualitária em suas diferenças. Referências Bibliográficas
7 CAVALLEIRO, Eliane. Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: Racismo, Preconceito e Discriminação na Educação Infantil Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo. São Paulo-SP, GODOY, Eliete Ap. de. A representação étnica por crianças pré-escolares: um estudo de caso à luz da teoria piagetiana. Dissertação de mestrado, Unicamp, GOMES, Nilma L. A contribuição dos negros para o pensamento educacional brasileiro. In: SILVA, P.B.G., BARBOSA, L. M. G. A. de. (org). O pensamento negro em educação no Brasil: expressões do movimento negro. São Carlos: EDUFSCar, GONÇALVES, Luiz A. O silêncio: um ritual pedagógico a favor da discriminação racial. Um estudo acerca da discriminação social como fator da seletividade da escola pública de primeiro grau. Dissertação de Mestrado, OLIVEIRA, Fabiana de. Um estudo sobre a creche: o que as práticas educativas produzem e revelam sobre a questão racial? Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação,Universidade Federal de São Carlos, PINTO, Regina P. Movimento negro e educação do negro: a ênfase na identidade. Caderno de Pesquisa, nº 86, p.25-38, POIRIER, Marrie-Pierre. Por uma infância sem racismo. Acesso em: SILVA, Ana C. Preconceito no livro didático. Salvador: Edufba, l988. SILVA, Petronilha B.G., BARBOSA, Lucia. M. G. A de. O Pensamento negro em educação no Brasil: expressões do movimento negro. São Carlos: EDUFSCar, 1997.
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