Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados : Resenha do livro Ética (2011) de Wilfried Härle
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1 Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados : Resenha do livro Ética (2011) de Wilfried Härle Orientations towards a well-founded personal ethical judgment : Book reviw of Wilfried Härle s Ethics from 2011 Orientaciones para discernimientos éticos propios y bien fundamentadas : Reseña del libro Ética (2011) de Wilfried Härle Helmut Renders Resumo Resenha do livro HÄRLE, Wilfried. Ethik. Göttingen: Walter de Gruyter, p. Com três índices remissivos, 52 p. ISBN Abstract Book review of HÄRLE, Wilfried. Ethik. Göttingen: Walter de Gruyter, p. With three registers; 52 p. ISBN Resumen Reseña del libro HÄRLE, Wilfried. Ethik. Göttingen: Walter de Gruyter, p. Con tres índices remisivos, 52 p. ISBN Introdução Será apresentada uma ética teológica lançada em 2011 por Wilfried Härle em alemão. Härle, teólogo luterano, nascido em 1941, filho de um pastor metodista 1, cuja carreira ele seguia até mudar a confissão para poder ser professor universitário. É professor emérito da Universidade de Heidelberg, vindo da Universidade de Marburgo ( ), com passagem pelas universidades de Erlangen, Bochum, Kiel e Groningen (Holanda). Junto à sua Dogmática, lançada em 1995 e em terceira edição revisada e ampliada (HÄRLE, 2007), a Ética compõe uma unidade tanto de conteúdo como de estilo. 1 Éticas metodistas têm uma surpreendente dizimação na América Latina. Vejo José Miguez-Bonino (1982) e Roy May ( 3. ed., 2008). Ambas são traduções do espanhol de 1976 e Revista Caminhando v. 18, n. 1, p , jan./jun DOI: 217
2 Organização A obra divide-se em três partes maiores: Fundamentação da ética (p ); Concretizações da ética (p ) e Panorama da ética social evangélica (p ) acompanhadas por três índices (referências bíblicas, nomes, assuntos (p ). Nossa resenha lida com a parte epistemológica que se divide em 1. A respeito da concepção dessa ética, 2. Pressupostos sociológicos e antropológicos da ética, 3. Elementos constitutivos da ética, 4. Pré-requisitos específicos da ética cristã, 5. Bases normativas da ética e 6. Passos do discernimento ético. A segunda parte que cuida da ética aplicada desenvolve os temas 1. Dignidade humana, 2. Saúde e doença, 3. Sexualidade, amor e formas de convivência, 4. Justiça, 5. Paz e 6. A palavra adequada no tempo oportuno. A terceira parte é composta pelos capítulos 1. Fontes, 2. Conceitos e 3. Ênfases de conteúdo. Objetivo e estilo No seu prefácio (p.viii) o autor descreve: O objetivo dessa ética não consiste em apresentar normas vinculativas e obrigatórias, mas orientar para chegar a juízos éticos próprios bem fundamentados. Trata-se de uma típica ética protestante, com ênfase luterana, cuja vigência abrange em princípio todos os seres humanos capazes de agir de forma responsável e cuja razão de aceitar sua validade não seja outra se não a perspicácia pessoal do ser humano agente na vigência dessa norma (p. 18). Consequentemente, sejam no seu discurso sobre as normas éticas [...] nenhum outro meio permitido senão argumentativo (p. 19). 2 De fato é a primeira característica do texto de Härle de responder a este propósito com uma linguagem altamente exata, diferenciada e no mesmo momento, compreensível. O texto é concentrado, mas nunca enigmático e avança com a disciplina lógica rara de um diagrama de fluxo, um esquema que o autor eventualmente também usa de forma gráfica para visualizar passos da formação do juízo ético (p. 218), apresentando e discutindo alternativas avaliando as suas contribuições e limitações. 3 Esta valorização da fala leva Härle na segunda parte a reflexões sobre a linguagem como tema da 2 Mais para frente o autor irá ainda distinguir esta elemento chave de convencer por argumentos da persuasão pela arte da retórica (ou seja, pela estética), do adestramento (!) por recompensações ou punições e do direcionamento de pessoas por hipnose e a aplicação de drogas com o objetivo de modificar comportamentos (p. 38). 3 Quanto aos cuidados para com o texto temos duas perguntas: Na introdução (p. 4) refere-se a Grundlinien (Linhas gerais) apesar de que no sumário (p. xiii) encontramos Überblick (panorama). Mas significativo e que no texto o terceiro capítulo inicia com o subtítulo 3.0 Acesso pela análise linguística (p. 65), o que além de representar uma numeração estranha, não aparece no sumário (p. xi). Apesar de que nos dois casos faltou a última sincronização com a versão final é texto em geral impecável como é de costume com obras acompanhadas pela editora Walter e Gruyter. 218 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha]
3 ética 6. A palavra adequada no tempo oportuno (p ), além da fixação [...] tradicional [...] dual `mentira, verdade ou ser verdadeiro (p. 431) na esperança que surgisse uma cultura da linguagem capaz de irradiar-se profundamente em nossa sociedade, porque `falar bem do outro e falar sobre terceiros somente se eles estivessem presentes, faria amigos (p. 434). E amigo é um conceito central para discutir relações públicas. Assim servem os amplos cuidados linguísticos do autor como exemplo para encontrar A palavra adequada no tempo oportuno porque quando as coisas não são bem designadas a linguagem não será coerente à verdade sobre as coisas (Confúcio apud HÄRLE, 2011, p. 433). Conteúdos e características O autor trata dos Pressupostos sociológicos e antropológicos da ética (I.2, p ) em conjunto, mas inicia com o macrocosmo da Dependência da sociedade do etos e da ética (I.2.1, p ), a qual também de certo modo corresponde a terça parte e parte final, a sua discussão da ética social. Segundo o autor a sociedade necessita da ética para omitir, criticar e superar estruturas sociais opressoras, criar sistemas de direito responsável e acompanhar a sua operação e conduzir a vida de forma livre, autônoma e responsável nas questões não regulamentadas pela lei (p. 34). Segue em Necessidade de orientação e capacidade de formação do ser humano (I.2.1, p ) uma discussão sobre os modelos do egoísmos psicológico, egoísmo biológico-evolucionista e Interpretações deterministas da função cerebral humana concluindo (p ) que nenhum desses modelos traz argumentos suficientes para abandonar o projeto da formação ética do ser humano. Muito instrutivo é em Necessidade individual e social de orientação ética (I.2.3, p ) sua comparação dos modelos de Platão na sua Politeia e nos Nomoi (p ), de Schleiermacher (p ) e, como releitura de Schleiermacher, o modelo de Eilert Herms (p ), um colega e colaborador de Härle desde o seu tempo de Marburgo. As quatro funções fundamentais da convivência em sociedade segundo o modelo de Herms (apud HÄRLE, 2011, p. 61) são: A função de inibir a agressão e manter a paz (política). A função de produzir e distribuir bens para manter a vida (economia). A função de criar e mediar conhecimento (ciência). Função de orientar em questões éticas (cosmovisões e religiões). Härle entende que o bem comum é promovido da melhor forma quando os quatro setores encarregados pelas funções anteriormente mencionadas colaboram o máximo possível (p. 62), inclusive dentro de si. Härle compreende também o importante papel da família, em continui- Revista Caminhando v. 18, n. 1, p , jan./jun DOI: 219
4 dade a Schleiermacher: Na família são os aspectos político, científico, econômico e eclesiástico-religioso de uma forma original presentes e conectados entre si (p. 60). Figura 1: Quatro funções fundamentais constitutivas para garantir a vida se-gundo Eilert Herms. Seguem os Elementos constitutivos da ética (I.3, p ) 4. Assunto da reflexão ética (I.3.1, p ) são ações ou atividades que requerem escolhas pessoais de um respectivo sujeito. O conteúdo do ético (I.3.2, p. 73) como a busca do bom, Härle problematiza discutindo as vertentes da busca da felicidade (prazer, sabedoria ou conhecimento da verdade, virtude como vivência em sintonia com a natureza) e do bem maior (Kant: justiça repartida e comunicativa, Schleiermacher: unidade entre razão e natureza, Bloch: reino da liberdade). Importante seu alerta final: a nossa compreensão ou idealização do bom e do bem maior é tão relacionada com a experiência de vida pessoal e social de um coletivo maior de um povo como todo que ele nem sempre se abre para o estranho e o desconhecido apresentado a nós pelo outro diferente (p. 81). Na próxima secção As formas do ético (I.3.3, p ) é encontrada uma apresentação e avaliação de modelos deontológicos, teleológicos e da virtude. Como hoje é comum, Härle favorece um mix de modelos, uma proposta, aliás que segundo ele parte de Schleiermacher (p. 89). 4 O capitulo começa com 3.0 Acesso pela análise linguística, o que além de ser uma numeração estranha, não aparece no sumário (p. xi). 220 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha]
5 Há concordância com ele que as opções para um dos modelos parte da compreensão do ser humano: à ética teleológica corresponde a visão de um ser humano que se realiza na construção do seu futuro na esperança do cumprimento do ainda não realizado; a ética deontológica enxerga o ser humano como capaz de compreender deveres como justos e disposto a cumpri-los por convicção, a ética da virtude foca no ser humano como ser que precisa da educação e que pode ser educado indo além dos seus talentos comuns, suas pretensões e seus instintos. Acrescenta-se aqui a importância da cosmovisão, especialmente para o primeiro tipo (modernidade), parcialmente para o terceiro (antiguidade e época medieval). Isso é um assunto que o autor ainda discute mais adiante Discernimento ético e compreensão da realidade (I.6.1, p ) porém tendo em vista as mais diferentes religiões. Vale aqui o que o autor resume lá: Uma ética esclarecida não é uma ética livre de cosmovisão, mas uma que procura prestar as contas de forma mais detalhada e clara possível sobre os pré-requisitos ideológicos de si mesmo e do outro (I.6.1, p. 213). Nesta seção chama a atenção a clara rejeição do modelo da ética da situação como liquidação da reflexão ética por aplicar regras tão amplas que devem ser consideradas irrelevantes, mas conclui: Esta crítica não se dirige contra a necessidade de considerar as circunstâncias concretas de uma ação, mas contra a sua instrumentalização para a desconstrução de normas vinculativas (p. 72). 5 Como o autor não contextualiza suficientemente a sua própria crítica quem se articulou dessa forma, onde e quando? ela não está neste ponto na altura do seu propósito de uma reflexão ética dos diferentes discursos. A próxima seção dedica-se ao... sujeito do ético (I.3.4, p ), caracterizado pela capacidade de fazer escolhas, partir de uma intencionalidade, ter capacidade para o discernimento e (!) da contínua possibilidade de cometer erros. Nesta base discute se podem ser considerados Deus, anjos, demônios, animais altamente desenvolvidos, formas de inteligência artificial, extraterrestres ou coletivos (uma família, uma imprensa, um povo) sujeitos éticos alternativos. O autor conclui que não, mas faz distinções muito apropriadas para cada caso apresentado 6. A distinção entre as Instâncias éticas normativas (I.3.5, p ) é organizada segundo modelos heterônomos, 5 Ao contexto do ético reserva ainda uma seção mais adiante (I.3.6, p ). Fica claro que se trata de um elemento constitutivo da ética, mas não de um modelo ético próprio em si. 6 Quanto aos coletivos (p ) ele afirma que devem ser distinguidos entre a possibilidade de serem responsabilizados jurídica, histórica e politicamente, a afirmação da existência de uma culpa coletiva (o que o autor nega) e capacidade de um coletivo de sentir vergonha para que foi feito em seu nome e em seu meio (o que o autor considera importante). Revista Caminhando v. 18, n. 1, p , jan./jun DOI: 221
6 autônomos e teônomos (a qual ele também acrescenta o direito natural). 7 O autor segue Kant: a) instâncias heterônomas não podem fundamentar a ética satisfatoriamente por desconsiderar o elemento necessário da perspicácia pessoal do ser humano (p. 106) mas sugere não perder de vista a diferença entre sujeito ético e instância normativa (p. 107) e b) não compete à consciência humana decidir se uma ação ou uma regra de ação seja eticamente correta mas alega que os conceitos συν-είδησι, con-scientia e Ge-wissen descreveriam um co-saber consigo mesmo (p. 115), ou seja: A consciência não avalia a qualidade ética em si de ações, mas julga a qualidade ética de atividades segundo o critério de ser de acordo ou não com a as normas éticas defendidas pela respectiva pessoa. Senso moral, intuição e razão prática (Kant) são em seguida também eliminadas como instâncias normativas autônomas, mesmo que a última seja uma instância crítica para a avaliação de todas as reivindicações e demandas éticas (p. 123). Quanto às Instâncias normativas teônomas (p ), refere-se ao direito natural e à Autorrevelação de Deus. Novamente, aparece a posição protestante: Olhando para o que, por exemplo, pela doutrina das igrejas cristãs com referência ao direito natural foi justificada e legitimada, como a política colonial, a escravidão, a subjugação dos índios, a proibição da contracepção artificial, ou a exclusão das mulheres do ministério pastoral, o ceticismo agostiniano- -reformador ganha de plausibilidade (p. 126). Apesar do autor aqui ignorar que o recurso do direito natural também foi usado no discurso abolicionista, ele tem razão que o direito natural [...] aponta para a necessidade da avaliação ética crítica de todos os pontos de vista morais e de todas as jurisdições legais e, portanto, para uma instância ética normativa que transcende essas perspectivas e este sistema, que em última instância, aponta a Deus como a origem do direito natural (p. 127). O direito natural não pode responder como se criar acesso a esta última instância (p.127). Essa dependência do direito natural da Autorrevelação de Deus (I.3.5.3b) o autor vê justificada por três razões (p. 128): Em relação ao seu fundamento: somente pela identidade da instância normativa com a base criadora da existência humana a norma ética será nem um direito estranho (ou seja, heteronímico), nem deduzido do simples fato da existência humana (e neste sentido, autônomo), mas uma consignação divina. 7 Tillich relacionava a religião com a heteronomia, a cultura com a autonomia e experiência do kairos com a teonomia. Em Härle, kairos aparece somente em relação ao uso da palavra pelo ser humano (p. 444, 446). 222 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha]
7 Como a instância se revela de uma forma externa e simbólica, ele pode rever a sua vocação que ele não encontra dentro de si (Härle deve pensar aqui em Jesus, o Cristo). Somente pelo processo de uma aceitação interna de uma instância externa mediante da perspicácia pessoal a alienação causada pela subordinação a uma instância heteronímica pode ser superada. Apesar disso alerta o autor que esta fundamentação não pode ser comprovada, mas pode ter uma certeza subjetiva. Em O contexto do ético (I.3.6) mostra-se que uma distinção radical entre texto e contexto levaria também a um distanciamento indevido entre igreja e sociedade e teologia e ciência. Depois da sua avaliação da impossibilidade que modelos heterônimos, autônomos e teónomos da ética sejam capazes para servir como instâncias normativas últimas, Härle apresenta os Pré-requisitos específicos da ética cristã (I.4, p ) e os Fundamentos normativos da ética cristã (I.5, p ). Em I.4 discute O evangelho de Jesus Cristo como essência da mensagem cristã (I.4.1, p ), A visão cristã do ser humano (I.4.2, p ) e A compreensão cristã de Deus (I.4.3, p ). Em II.5 seguem Fundamentos bíblicos da ética cristã (I.5.1, p ), O significado dos fundamentos bíblicos segundo a compreensão da reforma (I.5.2, p ), O mandamento do amor... (I.5.3, p ) e No caminho para uma ética modelo (Leitbild) (I.5.4, p ). Termina esta primeira parte com o processo do Discernimento ético (I.6, p ) que contempla a já mencionada relação entre Discernimento ético e compreensão da realidade (I.6.1, p ), Causa e objetivo do discernimento ético (I.6.2, p ) e Passos do discernimento ético (I.6.3, p ). Praticabilidade Como objetivo do texto é orientar para chegar a juízos éticos próprios bem fundamentados gostaríamos de discutir o aspecto pragmático do texto. É um texto acadêmico, como o autor recomenda, para uso em sala de aula ou para preparação de exames universitários. Mas como fica a questão do discernimento ético cotidiano? Críticas O livro é resultado de um longo processo de criação. Nestes casos, o perigo é que o texto contém rupturas ou descontinuidades. A terceira parte não parece muito bem integrada e o tão promissor modelo integrado de Herms, com sua compreensão complementar dos diversos setores vitais da sociedade em busca da promoção do bem comum não é mais Revista Caminhando v. 18, n. 1, p , jan./jun DOI: 223
8 retomado, tampouco com o papel preparador da família na educação dos seus membros. De fato, a função da apresentação do modelo era em primeiro lugar, mostrar um pressuposto sociológico da ética. Mesmo assim, teria sido interessante e importante aprofundar o papel educacional da família na conscientização e educação contínua para preparar seus membros a serem colaboradores/as dos diferentes setores da sociedade e acompanhá-los de forma crítica e responsável. Não seria isso a relação entre a família e a formação ético-cidadã. Valorização Härle apresenta uma ética na tradição de Emanuel Kant, Friedrich Schleiermacher e porém pouco comentada por ele e mais visível na forma e qualidade do seu discurso de Paul Tillich. Ele valoriza o etos protestante com seu foco na liberdade e responsabilidade do sujeito. Na América Latina, onde o ideal protestante é pouco valorizado, por ser também pouco conhecido. Referências bibliográficas HÄRLE, W. Dogmatik. 3. ed. revisada e ampliada. Göttingen: Walter de Gruyter, p. MAY, R. H. Discernimento moral: uma introdução à ética cristã. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal: EST, p. MIGUEZ BONINO, J. Ama e faze o que quiseres: uma ética para o novo homem. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, p. 224 Helmut Renders: Orientações para discernimentos éticos próprios bem fundamentados [Resenha]
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