DANIEL BLAUFUKS. hoje é sempre ontem. um rio de janeiro TINTA DA CHINA MMXIII

Transcrição

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3 DANIEL BLAUFUKS hoje é sempre ontem um rio de janeiro TINTA DA CHINA MMXIII

4 hoje é sempre ontem Tudo no Rio de Janeiro parece simples. A vida é uma longa sucessão de momentos agradáveis e de experiências maravilhosas. Um suco de açaí, um passeio pela floresta da Tijuca, uma picanha na Gávea, uma tarde de praia em Ipanema, um pôr-do-sol no Arpoador, e o dia ainda mal começou. A cidade tem uma leveza no ar que é rara de encontrar, como se a existência aqui fosse feita apenas de facilidades e a única tarefa difícil fosse voltar a casa, para longe de tanta beleza. A não ser, claro, que a nossa casa seja um desses apartamentos em frente ao mar de Copacabana ou uma dessas velhas vivendas entre as árvores de Santa Teresa. Lembro-me de pensar, ao visitar pela primeira vez um cemitério no Rio de Janeiro e ao ver todas aquelas campas debaixo do sol, como é injusta a morte aqui, como se o não fosse também em qualquer outro lado do mundo. Mas morrer no meio desta natureza, desaparecer a qualquer momento deste conjunto de praias, flores, botecos e sei lá quantas mais coisas agradáveis, pareceu-me naquele momento a maior injustiça de todas, apenas comparável talvez à expulsão de Adão e Eva dos jardins do Paraíso. Não sendo talvez a maior injustiça do mundo, é, no mínimo, chato. Não há dúvida de que os cariocas adoram a sua cidade. Em nenhuma outra, salvo Nova Iorque, se vê tantas vezes o seu nome impresso em t-shirts, bonés e toalhas de praia. Mas eles sabem igualmente que não é bem assim. Debaixo desta geografia prodigiosa existem várias camadas de bolor, de dificuldades, de amarguras, de

5 perigos constantes. Disseram-me que a natureza possui aqui esta loucura impressionante apenas para que os habitantes da cidade possam manter-se minimamente sãos no meio do caos. Porque coexistem também uma zona sul e uma zona norte, um trânsito insuportável, balas perdidas aqui e ali, alguma arquitectura desumana, inúmeras burocracias incómodas, etc., etc. Mas, como resumiu em tempos o músico Tom Jobim, se viver em Nova Iorque é bom, mas é uma merda, viver no Rio é uma merda, mas é bom. E é a pura verdade. Não seria difícil viver e, hélas, morrer aqui, embalado nesta aparente suavidade, nesta doçura dos trópicos. Decidi-me assim a fotografar. A cidade fascina-me o suficiente para tentar imaginar o que seriam as possíveis imagens dela. Porque não é propriamente uma cidade sem imagens, pelo contrário, é uma cidade-palavra que convoca inúmeras imagens na mente de qualquer pessoa que escuta o seu nome. Rio. Nem será preciso completar e imediatamente qualquer um imagina praia, sol, copacabana, ipanema, carnaval, pão de açúcar, favelas, tiros, e todos os outros clichês, que, não por acaso, é uma palavra que em tempos queria também dizer fotografia. O aparelho fotográfico ajuda-me a dominar o espaço da cidade. À minha maneira mapeio os vários bairros, penetro na zona norte, subo ao morro, descubro que Urca afinal quer dizer urbanização carioca e não é uma palavra nativa, como eu pensei, frequento os cafés do centro. Escolho o que me cativa e aquilo que vou deixar de fora. Nenhum projecto deste tipo pode ter a pretensão de apresentar uma cidade no seu todo, ou mesmo uma rua, ou mesmo uma pessoa. Serão sempre apenas fragmentos de uma geografia intensa e de um espaço de tempo em que se fez estas escolhas, em que se decidiu que é isto o que me interessa aqui e agora neste presente. Embora se sinta as camadas de pó de outros presentes anteriores e se pressinta os fantasmas que ainda por aqui vagueiam, por não se conseguirem conformar, imagino, com a sua expulsão do Éden. Talvez por isso o único livro que conheço escrito por um morto, Memórias Póstumas de Brás Cubas, seja de Machado de Assis, escritor carioca. Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crónica; eternamente jovens, jamais são saudáveis, porém. Assim escreveu Lévi-Strauss no seu Tristes Trópicos. Lembro-me amiúde desta frase, enquanto me perco pelas ruas decadentes do centro, perto da Rua do Ouvidor, ali onde este Rio (que já não existe) se parece mais com uma Lisboa que já não existe ou mesmo com a Europa de Stefan Zweig, que, sabemos bem, já não existe. Zweig, que por aqui passou e se entusiasmou de forma talvez um pouco exagerada, ao ponto de declarar o Brasil como o país do futuro. E, apesar disso, fugiu da grande cidade e foi-se refugiar em Petrópolis, acabando por lá se suicidar num pacto de morte com a sua mulher, negando-se assim, com esse último gesto, a possibilidade de futuro por ele próprio anunciada. Mas a ideia de um futuro por vir colou-se ao Brasil, e especialmente ao Rio, na memória futura dos europeus que ouviram o chamamento ou que com a cidade sonharam.

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