O PRAZER DA MILITÂNCIA: A ÉTICA ESTÉTICA DA NEGRITUDE ILÊ
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- Gustavo Alvarenga Figueiroa
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1 1 O PRAZER DA MILITÂNCIA: A ÉTICA ESTÉTICA DA NEGRITUDE ILÊ Rita Maia1 RESUMO: Trata-se de uma análise das múltiplas interpretações em torno das produções culturais do Bloco Afro Ilê Aiyê, na modificação e valoração positiva da imagem dos negros na cidade do Salvador. Os desfiles de carnaval e os espetáculos promovidos pelo bloco emitem uma imagem de negro diversa da habitual, fornecem novos modelos e formas para identificação da população afro-descendente, bem como, influem nas estruturas de percepção da população local, interferindo e transformando, em vários graus, as hierarquias estéticas, culturais, políticas e econômicas na cidade do Salvador. Palavras-chave: Beleza; Negritude; Bloco; Carnaval; Estética. ABSTRACT: An analysis of about various interpretations and cultural productions of the Block Afro Ilê Aiyê, changing to a positively valuate the blacks people image in the city of Salvador. The spectacles and the carnival promoted for the block emit a diverse image of black of the habitual and supply new models and forms of identification to the afro-descendant population, as well as, influence our structures of perception, intervening and transforming, in some degrees, the aesthetic, cultural hierarchies, economic politics in the city of Salvador Key-words: Black beauty; Block afro; Aesthetic; Carnival. 1 Os Fundamentos de uma Beleza Negra Em 1974, surgiu na cidade de Salvador um bloco carnavalesco composto apenas por negros de pele marcadamente escura e que, posteriormente, por fazer em seus desfiles uma alusão direta à ascendência africana, aos valores negros locais e mundiais, acabou por ser denominado pelos veículos de mídia e pela população local como um bloco afro. 1 Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia UFBA. Professora da Faculdade da Cidade do Salvador e da Universidade Católica do Salvador. ritamaia@terra.com.br
2 2 Deste modo nasce o Ilê Aiyê (cuja tradução do nome em iorubá para o português quer dizer casa de todos ), um território festivo, onde se privilegia, de modo radical e irrestrito, a ascendência negra, valorizada e reiterada mediante estratégias cosméticas. De referências retiradas da vivência e experiência local e comunitária da tradição afrobaiana, mescladas as marcas inaugurais do movimento global da contracultura e da negritude, o bloco sai às ruas em 1975, ostentando uma fantasia que consistia basicamente de um tecido transado no corpo em estilo afro, harmonizado com cabelos estilo Black Power. Seus componentes empunham cartazes com palavras de ordem dos movimentos negros no mundo, em prol da negritude, como se fossem alegorias carnavalescas. Tudo isso inaugurou um estilo peculiar, uma curiosa mistura de bloco carnavalesco, experimentalismo, performance artística e manifestação política. D. Maria Luíza i, foliã pioneira do bloco, complementa: A gente comprava o pano estampado e fazia a fantasia. Não era fantasia, costura, nem nada. Era amarração. Tinha tudo: palha, búzio, fitas. A gente usava peneiras, abanos, cabaças e a alegoria da gente era isso... (MARIA LUÍZA CORREA, 2003). Assim inicia-se o percurso do Bloco na criação de uma estética única, contrária aos cânones de beleza hegemônicos (tradicionalmente eurocêntricos), e aliado aos recursos plásticos se estabelecem princípios normativos, com valores, jeitos de ser e fazer expressivos, emocionais e convenientes aos integrantes da comunidade do bloco; configura-se aos poucos um estilo de vida característico da negritude Ilê. Tecido estampado utilizado na primeira fantasia do Bloco, em 1975 Fonte: Arquivo pessoal
3 3 Para a criação dos seus emblemas, os idealizadores do Bloco misturaram a história de reis e rainhas de várias nações africanas, heróis da negritude brasileira e mundial, revestindo-os de uma aura mítica, reunindo uma coleção de temas e tipos através de um panteão sincrético, que absorve imagens e referências de uma África histórico-mítica, de um panteão de personalidades das lutas políticas de libertação de países africanos e dos contemporâneos grupos e lutas dos negros norte-americanos pelos direitos civis. Reunindo um eclético conjunto de ídolos e modelos de negritude, que engloba desde Zumbi dos Palmares a Marcus Garvey, e no qual também figuram os diretores fundadores do bloco, a iconografia e cosmética daí resultantes oferecem não só identidade ao grupo específico de foliões e admiradores do Ilê Aiyê, mas, acaba por tornar-se, aos poucos, um elemento identitário forte da afro-baianidade. A roupa criada a partir da técnica de amarração de tecidos coloridos, um método absolutamente intuitivo desenvolvido por Dete Lima (fundadora do bloco e irmã do atual presidente), tornou- se uma marca forte da indumentária do bloco que é utilizada para shows e espetáculos. Amarração do turbante e roupa já com as inovações plásticas da estampa Fonte: Arquivo pessoal Foi em meados de 1978 que aconteceu a criação da padronagem, com as cores definitivas que representam o bloco. Elas possuem um significado simbólico assim traduzido pelos
4 4 componentes: branco=paz, vermelho=sangue do negro derramado na luta pela liberdade, amarelo=riqueza e beleza e o negro= a cor da pele. Foi o artista plástico Jota Cunha o responsável pelo estilo gráfico das imagens do bloco que decoram as fantasias, as publicações e o site na Internet. É ele o criador do perfil azeviche, uma imagem inspirada em uma máscara africana, que acabou se tornando a marca do bloco. Perfil Azeviche Fonte: Jota Cunha, Ilê Aiyê O estilo afro do Ilê Aiyê expressa várias tendências do trajar com matriz africana ou baiana. Estas se alternam ou se mesclam com usos do movimento hippie e outros inventivos adereços contemporâneos. Ele transita entre o afro-pop, hip-hop e até no tradicional traje romântico das baianas, que foi preservado pela tradição inerente aos rituais e às cerimônias do candomblé. Todos os tipos de adaptações são feitos pelos associados nas suas fantasias do bloco, no entanto, tanto no carnaval quanto no cotidiano, a sua estética se caracteriza pela permanência por um estilo mais ou menos rígido e tradicionalizante do ser/parecer negro, expresso, por exemplo, no uso de cabelos naturais (sem processo de alisamento), arrumado em complexos trançados ou então ao estilo Black Power, significando uma atitude de valoração positiva e preservação dos traços fenotípicos negros. Nos usos cosméticos do vestuário sempre aparecem palavras de ordem ou imagens de líderes negros. Trechos de músicas repetem sistematicamente o nome do bloco e do Curuzu ii, associando-os aos valores da negritude, da vida cotidiana e da história do negro, que, por sua vez, são sempre investidos de valoração positiva pela associação do negro com valores como: beleza, coragem, luta, orgulho, respeito, vitória, união, amor, liberdade e igualdade
5 5 Tecido do Ilê Aiyê que expressa os valores e a história do bloco. Fonte: Jota Cunha, tecido para fantasia do Bloco. As roupas do bloco traduzem seus princípios éticos; vesti-las é parte da incorporação de um estado extraordinário de conduta e expressão: [...] a nossa roupa é o nosso design, é uma outra situação. Nossas palhas dizem muita coisa, nossas contas, nossa maquiagem, nossa dança, nosso torso, nossos tecidos têm uma outra magia. A gente passa uma imagem pra o público de que essa é a personalidade e a auto-estima da mulher negra. (MENEZES, 2003). Essa estética, que não se encerra nos usos corporais, acaba funcionando como um discurso militante, como um método suave para a conscientização do valor da tradição e da cultura afro-descendente, da necessidade de luta e ações afirmativas para negros e não-negros. As canções do bloco para o carnaval contam a história das várias nações africanas e do negro no Brasil, complementando as informações sobre a cultura negra que o conteúdo da educação formal escolar até o momento não supre satisfatoriamente. Esse foi o diferencial que determinou o surgimento de estilo de um bloco que acabou por ser denominado de afro. Seu traço distintivo diante dos outros foi a atitude reativa à discriminação racial e à utilização de recursos plásticos e espetaculares como instrumento de um discurso em que advoga um projeto igualitário para os afro-descendentes. Recriando uma África imaginada e celebrando as raízes e a pureza da tradição, o Ilê Aiyê (e, mais tarde, os outros blocos afros) segue, criando narrativas que acabam exercendo o papel de mito fundador para esta nova realidade social e midiática. Nos seus recursos expressivos
6 6 foi criada a fonte imagética para a modelização de um mundo alternativo àquele hegemônico, instituído sobre bases segregacionistas. Do espetáculo do carnaval e de suas festas para o cotidiano, a imagem do bloco toma forma e se enriquece nas ações promovidas na passagem da sua razão social, de Associação Cultural para a de Entidade de Utilidade Pública. Assim, um capital simbólico gerado no âmbito da festa e do lazer se transforma em outro, mais reconhecido como o resultado válido de uma ação política efetiva. 2 Forma/Ativismo, Identidades e Identificações Os espetáculos e o trabalho assistencialista criados pelo bloco afro Ilê Aiyê constituíram para os afro-descendentes da Bahia a possibilidade da existência de um negro valorado, favorecendo a identificação com a herança negra para a população local e oferecendo aos olhos e à sensibilidade dos negros uma forma-de ser possível e desejável. Nisto a forma se aproxima do que os místicos denominam essencificação. A essência é plena daquilo que é, e daquilo que poderia ser. Para retomar uma observação de Ernst Benz [...] a essência não contém unicamente a forma, como também todas as potências e possibilidades de realização, de desdobramento e de evolução de uma coisa [...] (MAFFESOLI, 1998, p. 87). A forma que a imagem do negro produzida pelo bloco configurou, em seu caráter espetacular e bastante peculiar, exerce um profundo poder de atração. Sua força se explica justamente pelo fato de satisfazer as expectativas de vários segmentos sociais locais e externos. Essa imagem de negro toma uma forma que [...] acentua, caricaturiza, carrega no traço e, assim, faz sobressair o invisível, o subterrâneo, quase se poderia dizer, o subliminal... (MAFFESOLI, 1998, p. 89) e a ação formativa do bloco consiste justamente em dar reconhecimento a um conjunto de valores, estilos e modos que já existiam concretamente, mas que ainda não tinham alçado visibilidade e expressividade. O fato é que assumir a identidade negra a partir dos ideais veiculados pelo Ilê Aiyê corresponde a uma transformação profunda. É uma passagem entre dois mundos, de um campo de fenômenos a outro, habitando um campo em que a identidade é levada a assumir uma nova forma. Poder-se-ia dizer que é um (re)nascimento para uma nova vida, como bem demonstra este
7 7 depoimento da cantora do bloco, onde aparecem os sinais de uma trasformação individual assim expressa: Porque eu quando comecei no Ilê Aiyê, fazia parte de um coral no mosteiro de São Bento e cantava em barzinho. E não tinha uma consciência do que era ser negro do que era ter raça, uma identidade. Quando eu cheguei no Ilê Aiyê em oitenta e oito, eu vim ter essa nova vida. Eu fui gerada, eu fui recebendo os primeiros passos, fui aprendendo e tendo respeito, foram me valorizando. (GRAÇA OMAXILÊ, cantora do Bloco, 2002). Aprender a ser gente para muitos afro-descendentes baianos foi e é inevitavelmente, desligar-se de um universo imagético e valorativo hegemônico eurocêntrico, é aprender a ser negro, buscando, com isso, construir as suas próprias categorias de valor de grupo e indivíduo. O fato é que a escassez cotidiana de imagens com referências positivas para o corpo negro aponta a pertinência e o alcance da demanda latente pelas imagens que constituem o discurso plástico-imagético produzido pelo bloco. Hanz Belting (2005) aponta o fato de que as imagens (formas-mediuns) que são criadas e veiculadas são os elementos primários de todo aprendizado social. Para ele, o corpo, mídia primordial do ser-no-mundo, possui e veicula um vocabulário imagético repleto de códigos identitários, de sinais de solidariedade e distinção incorporados durante o processo de individuação. Quando se trata de imagem, observa-se um fenômeno que não estaria apenas atrelado a um suporte ou a uma coisa apreendida, captada pela capacidade visual. À idéia de imagem podem ser aplicadas as noções de instituição, convenção e consenso. As imagens estão na base de toda realidade social. A fabricação das imagens é em si um ato simbólico (BELTING, 2001), ela influencia e formata o nosso olhar. Os nossos modos de viver estão profundamente atrelados aos nossos modos de ver. Pierre Francastel (1982;1983) advoga pela autonomia das imagens em relação às palavras. Para ele, a atividade figurativa do homem resulta em imagens-formas que se tornam cânones, os esquemas por meio dos quais compreende-se e representa-se o mundo. Mesmo minimizando a importância de fatores culturais, as Teorias da Gestalt apontam para uma busca intrínseca de adequação entre aquilo que se vê e a expectativa do que se iria ou se experava ver. Em todo ato perceptivo existe uma expectativa (GOMES FILHO, 2000), sempre existe algo de disposição no estar-no-mundo que, inevitavelmente, será determinado pelo horizonte simbólico e imagético do indivíduo. É esta visão da atividade figurativa e formadora que aponta para o ato de plasmação do mundo negro produzido nos espetáculos do bloco. Nos desfiles do carnaval, nas suas festas
8 8 sanzonais, nos shows da banda e, mais notadamente, na Noite da Beleza Negra iii do Ilê Aiyê, são abertas as possibilidades de instituição de novas formas positivas do ser negro. Os territórios de negritude constituídos pelo bloco estimulam um processo contínuo de experiência valorativa e validação dos atributos negros. Neles, a partilha e o reconhecimento público tornam esses atributos reconhecíveis e assimiláveis. As formas habitam todas as instâncias da vida: são os habitus iv descritos por Pierre Bourdieu, as tipificações reconhecidas por Alfred Schultz, as schematas de Gombrich v e uma infinidade possível de outros termos utilizados para denominar e explicar os moldes (ou modelos) pelos dos quais se compreende, se interpreta e se expressa o mundo. A forma consiste na descoberta de um esquema de pensamento imaginário, a partir do qual os artistas organizam diferentes matérias (FRANCASTEL, 1982, p. 10). E a partir do qual se plasma a vida em sociedade, pode-se acrescentar. Nesse sentido, a atuação do Ilê Aiyê seria a de constituição de formas positivas que concorreram para atenuar a força de formas negativas com as quais eram constituídas e compreendidas as imagens e os atributos negros. Da festa para o cotidiano, foram migrando formas simbólicas que transformaram os esquemas de tipificação e autotipificação para os afrodescendentes na Bahia. Em conseqüência, pode-se dizer que essas mudanças vêm acarretando um contínuo reposicionamento dos afro-descendentes nos esquemas classificatórios e hierárquicos vigentes na cidade. Ao favorecer modelos positivos de auto-expressão para essa população, o bloco modificou um esquema de valoração simbólico, no qual qualquer traço corporal da ascendência negra seria assimilado como um estigma, um motivo de vergonha e um objeto de ocultação. Essa perspectiva se torna forte e evidente ao partir-se do pressuposto de que o homem é, ao mesmo tempo, produtor de imagens e imagem de si próprio. Antes do Ilê Aiyê, o corpo negro e, em conseqüência, a identidade negra não encontravam modelos locais ou externos que lhe conferissem possibilidade de uma existência positiva. Pode-se-ia até encontrá-los em veículos midiáticos, mas de modo desrealizado, sem um espaço-território onde esses atributos pudessem ser partilhados, vividos e experimentados. Além do mais, o processo formativo na criação-interpretação de imagens sempre é submetido às limitações impostas pelo universo de significados que são partilhados por meio de um conjunto de imagens preexistentes. Sempre há uma espécie de inércia ou resistência a um conjunto de imagens-interpretações originais. Há sempre a necessidade de uma adaptação para que as novas formas sejam assimiladas.
9 9 O fato é que se trarça-se meticulosamente uma história de regulação da imagem do negro, ver-se-á que ela obedece a padrões sociais bastante rigorosos. No Brasil do séc. XIX, o uso de insígnias de poder, como chapéu alto, bengala, luva, sobrecasaca por negros, era alvo de ruidosa sanção social (FREYRE, 2000, p.430). No Brasil da década de 70, quando um novo estilo de bloco é inaugurado com a saída do Ilê Aiyê às ruas, a vaia e rejeição pública também foram o resultado da recepção às novas formas. O fato é que, criando novos modelos, o Ilê Aiyê foi o detonador de um movimento local para a reafricanização e valoração do cotidiano, da cultura e da aparência negra na cidade. No entanto, foram necessárias três décadas de existência para que as conseqüências positivas das suas imagens se consolidassem de modo irreversível, transformando o bloco em um dos grandes referenciais identitários, não só para negros, como para toda a sociedade baiana. O discurso de beleza negra produzido pelo bloco parece ser o grande vetor do seu sucesso e da assimilação de suas imagens. Todo mundo quer ser belo. Além disso, tomando como pressuposto o fato de que se percebe o mundo mediante uma economia de esforço cognitivo, o discurso de beleza tem o poder de associar aos negros e aos blocos afros um conjunto infinito de outros atributos positivos. Não se pode negar que os símbolos, enquanto formas, são imagens arquetípicas dos modelos de organização de mundo. Sua eficiência comunicativa se dá pela sua adequação ao contexto, pela sua conveniência a uma situação. As imagens emitidas e aceitas publicamente sempre serão aquelas que estão carregadas de sentido e pertinência em relação ao seu contexto e aos interesses, tanto dos grupos que as emitem, quanto daqueles que as absorvem ou consomem. O fato é que as imagens de beleza produzidas pelo bloco agregam valor àqueles que as detêm, àqueles que delas se aproximam e àqueles que para elas contribuem. Pela circularidade e conveniência que os discursos estéticos acabam por adquirir, principalmente por e para aqueles que possuem o poder de veicular e controlar as imagens na sociedade, as imagens produzidas pelo bloco tornaram-se um traço distintivo para garantir a ocupação de espaços e territórios nos novos cenários da configuração de poder em seus diversos níveis e tipos.
10 10 Governador, Prefeito e Presidente do Bloco Afro Ilê Aiyê na saída do sábado de carnaval, no bairro do Curuzu, em Fonte: Arquivo Pessoal Desse modo, pode-se dizer que os múltiplos desdobramentos advindos dessas trocas simbólicas para a população negra ainda não podem ser seguramente previstos ou avaliados em toda sua extensão, mas decerto possuem um caráter absolutamente transformador das bem conhecidas condições preexistentes de percepção/construção da imagem de negro no cotidiano local e global. 3 Alinhavando uma Bela Forma: Acabamentos e Aberturas Pela atuação do Ilê Aiyê, é facil verificar como as imagens são elementos constituintes e constituídos pela realidade. Mais do que meros objetos, elas são um componente autônomo da vida social. O Ilê Aiyê desenvolveu, manipulou e transformou um universo de imagens em discursos eloqüentes, que difundiram, por uma idéia-estilo de beleza negra, a possibilidade de valoração positiva para afro-descendentes, transformando objetivamente a identidade negra local. Suas estratégias artísticas e espetaculares, de modo consciente ou não, tornaram-se eficientes instrumentos para a redefinição das estruturas cognitivas vigentes em torno da aparência negra na cidade.
11 11 Vale salientar que os espetáculos do bloco tornaram-se rituais que são referências e atendem aos interesses de diversos grupos locais negros e não-negros. Isto porque, além de produzir um manancial de imagens-modelos para afro-descendentes, também são tomados como fonte de imagens atraentes da população local, receptores externos e internos, utilizadas pela indústria do lazer e a cultura afro-axé, estabelecida na Bahia e que, em grande escala, determina o estilo dos produtos e souvenirs regionais pitorescos. Por outro lado, essas imagens e espetáculos também abriram possibilidades para uma melhor inserção sócio-econômica para os negros e, ainda que de modo tênue, quebraram a hegemonia, no senso comum, da idéia de negro como um indivíduo aprioristicamente inferior. Disto, observa-se que do surgimento do bloco, a criação das suas imagens, a rejeição inicial até a sua atual aceitação pública, houve um processo que correspondeu às expectativas expressivas de quase toda a população local entre negros e não-negros. Sem dúvida, as novas formas criadas pelo Ilê Aiyê acentuaram a imagem do negro enquanto um sujeito ativo nas relações e nas hierarquias cotidianas na cidade. Elas deram e ainda dão visibilidade à beleza do mundo negro, antes diluído em interpretações e imagens de pobreza, mau gosto e ignorância. Mesmo ainda sujeitos a condições sócio-econômicas que os colocam em desvantagem em relação aos outros, não-negros, os indivíduos de pele escura, hoje, possuem algum referencial imagético positivo para o seu corpo e sua existência, uma referência de si em uma imagem que não se coaduna com a posição de inferioridade e cujos atributos são objeto de orgulho, não só para várias camadas da população afro-baiana, mas para o arsenal de referências positivas e marcos de resistência da herança africana na diáspora. Na Bahia, como no mundo inteiro, os discursos e as imagens de negritude vêm exercendo um papel fundamental, indicando, inspirando e constituindo uma nova forma de articulação de grupos negros na diáspora, em busca de um melhor posicionamento social. Por tudo que se viu, pela sua originalidade criativa e pelo alcance das imagens por ele produzida, o Ilê Aiyê, além de ser a expressão local desse movimento de caráter mundial, constituiu um modelo de discurso e atuação política de forte apelo agregador, gerando identificações com o clamor à justiça social e à reparação condizentes ao movimento de ação afirmativa e ao apelo estético que gera o desejo de assimilação, identificação e incorporação das imagens de sua (nossa) Beleza Negra.
12 12 Referências BELTING, Hans. Pour une anthropologie des images. Paris: Gallimard, FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, FRANCASTEL, Pierre. Imagem, visão e imaginação. Lisboa: Edições 70, FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos.12 ed. Rio de Janeiro: Record, GOMES FILHO, João. Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma. São Paulo: Escrituras, MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998 OSTROWER, Fayga. Universos da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. 2. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, Notas i Este e outros depoimentos fazem parte de um conjunto de entrevistas desenvolvidas para tese da autora durante os anos de 2002 e ii Bairro onde fica a sede do bloco. iii Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, uma festa onde ocorre a escolha da Deusa do Ébano, Rainha do Bloco para o carnaval, onde todos os atributos da estética negra são experimentados, comemorados e valorizados. iv O habitus tende a reproduzir o sistema social do qual é produto e tem a característica de fazer essa reprodução passar despercebida. O habitus está na origem dos preconceitos, é por meio dele que se operam as classificações sociais. Enfim, para Bourdieu (1977), o habitus é um conjunto de esquemas geradores de classificações e práticas suscetíveis de ser classificadas que funcionam na prática sem ter acesso à representação explícita e são o produto, na forma de disposições, de uma posição diferencial no espaço social. v E. H. Gombrich, em seu trabalho intitulado Arte e ilusão (1995), desenvolve uma curiosa observação de como os conceitos adquiridos fornecem um esquema psicológico (schemata) que influenciam as formas de expressão e compreensão do mundo. Ele observa que, no processo da criação artística, a estilização da natureza sempre corresponde a um processo interpretativo. Mesmo nas obras mais realistas é sempre evocado um sem-número de recursos de interpretação pessoal que produziriam a estilização. Toda percepção seria, então, restritiva, seletiva e desenvolveria um trabalho de enquadramento e classificação do objeto representado dentro de um universo de informações e habilidades dadas anteriormente.
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