O trabalho das Comissões da Verdade no Brasil. Lutz Taufer

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1 O trabalho das Comissões da Verdade no Brasil Lutz Taufer Em 2010, o Brasil foi condenado pelo Tribunal Interamericano de Direitos Humanos da Organização dos Estados das Américas por conta das suas reparações insuficientes para as vítimas da ditadura militar na fase da justiça transicional. O julgamento constata um direito à memória e à justiça e reclama contra a Lei da Anistia de Em Novembro de 2011, a presidente Dilma Rousseff assinou a lei N , aprovada pelo Congresso Nacional sobre a Comissão Nacional da Verdade - a CNV. Em 16 de maio de 2012, a Comissão começou a trabalhar. Concede-se um prazo de dois anos para terminar o seu trabalho, que mais tarde é prorrogado por mais seis meses, para resgatar 21 anos de ditadura! Apenas a busca de 150 desaparecidos (número oficial), sem rastro nenhum, é um desafio sem fim. O fim oficial da ditadura aconteceu no ano de Já alguns anos antes houveram corajosas iniciativas de se falar publicamente sobre as graves violações aos direitos humanos entre 1964 e Um trabalho marcante é o livro Tortura Nunca Mais, da Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo, publicado em Primeiras tentativas A instalação da Comissão Nacional da Verdade foi resultado de anos de luta da sociedade civil organizada, das famílias das vítimas assassinadas ou desaparecidas por motivos políticos e dos antigos presos políticos a favor da memória e da justiça. No centro destes esforços estava a lei pela anistia, decretada pelas Forças Armadas em 1979, que garantiu impunidade tanto aos perseguidos e opositores como também aos agressores representantes da ditadura e possibilitou assim a volta dos exilados ao Brasil. Foi introduzida uma indenização do Estado aos antigos perseguidos políticos, independente do fato de terem lutado armados, lutado sem violência, ou não terem lutado. Mas, todas as tentativas de questionar a Lei da Anistia, mesmo parcialmente, enfrentaram uma resistência maciça, não apenas do lado das Forças Armadas. As partes envolvidas nas brigas foram Lula, o Tribunal Superior de Justiça (que confirmou a Lei da Anistia); a Organização dos Advogados do Brasil - OAB (por sua vez vítima de perseguição e contra a anistia); os comandantes supremos das três Forças Armadas, que ameaçaram pedir a sua demissão, apoiados por seu Ministro de Defesa; o Ministro de Justiça, que se pronuncia a favor de uma revisão da Lei da Anistia, ou seja, ministérios chaves em um governo com tendências contrárias. Com todo cuidado, Lula insinuou, no seu segundo mandato, a possibilidade de uma revisão da Lei da Anistia. Como reação, se fez discursos estridentes no clube das Forças Armadas de Rio de Janeiro, na presença do chefe do Estado-Maior, alegando, entre outros, uma aliança do Presidente com a IRA e a ETA. Em determinada ocasião, quando um grupo de estudantes se encontrou na frente do prédio para projetar na fachada a foto famosa do jornalista Vladimir Herzog, estrangulado na sua cela de prisão em outubro de 1975, o deputado federal Jair Bolsonaro se aproximou ao grupo e diz: É verdade, reconheço que a tortura foi um erro. Era pra ter matado todos vocês. Primado da política ainda não é evidente O Brasil é o único país da América Latina onde os torturadores ainda não foram punidos. Até há

2 poucos anos atrás, as Forças Armadas comemoraram a cada ano o aniversário da Revolução do dia 31 de março de 1964, o dia em que aconteceu o golpe militar. Dilma, vítima de tortura quando presa política, finalmente proibiu tais comemorações, pelo menos para as Forças Armadas na ativa. Os militares da reserva podem continuar a comemorar o golpe. Será que falta à liderança política o poder de imposição ou será que se reflete nisso uma relação de forças, na qual o primado da política não é alcançado ainda, nem de longe? Os clubes militares têm direito de convocar em suas páginas na internet, sem punição nenhuma, para uma nova ação militar, uma intervenção das Forças Armadas. Em outros países, isso se chama preparação de alta traição. Ainda no dia da posse solene da CNV, a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, exigiu a revogação da Lei da Anistia, por bloquear a investigação e o fim da impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos. No entanto, as Forças Armadas conseguiram impor, após meses de brigas nos bastidores, o que está estabelecida explicitamente na lei da CNV: a comissão não pode proferir sentenças nem impor sanções. Será que a CNV exigirá, pelo menos, a revisão da Lei da Anistia no seu relatório final, previsto para dezembro deste ano? Até isso não se tem certeza, parece que os membros da comissão não têm consenso neste aspecto. A favor ou contra a Lei da Anistia, a questão abrange muito mais do que a punição dos antigos torturadores. Ela tange o presente e o futuro do país. Passado, presente, futuro A única universidade brasileira que enfrentou o regime militar, a PUC de São Paulo, também instalou uma Comissão da Verdade. A reitora, Sra. Nadir Gouvêia Kfouri, explica numa entrevista de rádio o seguinte objetivo: A experiência histórica demonstra que uma sociedade somente supera períodos de grande violência institucional em seu passado quando percorre aquilo que vem sendo chamado de justiça de transição, ou transicional, resgatando a verdade dos fatos, reparando os danos na medida do possível, apurando as responsabilidades e culpas e realizando as reformas institucionais necessárias para evitar que tais violências se repitam. Toda a tentativa de eliminar sistematicamente um passado, sem antes passá-lo a limpo, falando-se de esquecimento e perdão sem antes recuperar a memória dos fatos ocorridos e apurar a responsabilidade pelos crimes cometidos está fadada ao fracasso, impedindo, além disso, a formação de uma cultura democrática e anti-violenta. A memória dos crimes cometidos permanece entre as vítimas e entre seus perpetradores e o fato de que eles não tenham sido revelados e condenados, ou seja, a sua impunidade, funciona como estímulo para a sua banalização e repetição rotineira nas instituições públicas e privadas, no ambiente doméstico e nas ruas das nossas cidades. Comissão da Verdade em ação A Comissão Nacional da Verdade (CNV) é composta por sete membros, predominantemente juristas, entre esses um ex-ministro da justiça. A CNV estabelece nove grupos de trabalho: o Golpe de 1964; Estrutura de repressão; Violações de direitos humanos; Camponeses e indígenas; Araguaia; Operação Condor; Exilados e estrangeiros; Ditadura e sistema de justicia; Ditadura e gênero. Nesse período a CNV apresentou sete relatórios preliminares de investigação que tratam dos

3 seguintes temas: 1) Quadro parcial das instalações administrativamente afetadas ou que estiveram administrativamente afetadas às forças armadas e que foram utilizadas para perpetração de graves violações de direitos humanos; 2) o caso Rubens Paiva; 3) a casa da morte de Petrópolis; 4)centros clandestinos de violações de direitos humanos; 5) o caso Juscelino Kubitschek; 6) o caso Riocentro: terrorismo de Estado contra a população brasileira; 7) o caso Stuart Angel. Naquele contexto, documentos secretos da CIA e dos departamentos de estado dos Estados Unidos foram disponibilizados na rede, a exemplo da Operação Condor. Várias audiências foram realizadas. Eu me pergunto quantas violações dos direitos humanos em 21 anos de ditadura civil-militar, de acordo com termo oficial da CNV, foram encobertas? Sobre o maciço apoio à ditadura civil-militar por empresas brasileiras e estrangeiras (ou governos estrangeiros) não há nada - a exemplo do acordo nuclear Brasil-Alemanha, de Mais eficientes, no entanto, parecem ser o trabalho das mais de 250 comissões da verdade que se formaram, desde 2012 em diversos países, comunidades e universidades. Eles têm apenas o direito de convidar - e não convocar - as testemunhas. Apesar disso, eles ampliam o trabalho no âmbito da sociedade brasileira sobre esse tema. Esse aspecto me parece decisivo. Eles vão às escolas e instituições. Testemunhas trazem relatos e podem ser questionadas. 1. As investigações que, no passado, foram realizadas em universidades sob aspectos individuais da ditadura, agora se estendem a projetos sistemáticos de pesquisa. Neste caso, o material resultante parece inesgotável. A comissão da verdade no estado de São Paulo, por exemplo, investiga 157 casos, incluindo nomes famosos como o de Carlos Marighella, de Joaquim Câmara Ferreira e o de Ana Rosa Kucinski. 45 dos casos de mortos ou desaparecidos eram de pessoas membros do grupo de Marighella e Câmara - a organização de resistência armada ALN (Ação Libertadora Nacional). Confissões chocantes Quando se assiste aos vídeos em que se mostra a aparência de conhecidos torturadores durante as audiências públicas, se tem a impressão de que, mesmo após todos esses anos de impunidade, essas pessoas se sentem absolutamente seguras. Um exemplo é a audiência do ex-tenente-coronel Paulo Malhães, em março deste ano, perante a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro. Ele foi um dos torturadores e assassinos no infame centro de tortura Casa da Morte em Petrópolis. A frieza com a qual ele respondia às perguntas chocou os membros da Comissão da Verdade: Quantas pessoas o senhor assassinou? a resposta: tantas quanto foram necessárias ; Sente remorso? Não ; Quantas pessoas o senhor torturou? Difícil dizer, mas foram muitas. Questionado sobre a mutilação de cadáveres, ele explicou prontamente: Nós não os podíamos enterrar, para não deixar rastros. Naquela época não havia o método do reconhecimento do corpo pelo DNA, nós separávamos cada parte do corpo pelas quais os mortos poderiam ser identificados. Eu quebrava a arcada dentária e cortava as mãos 'daqui até aqui'. Ele mostra, então, o método com os próprios braços. 2 Inês Etienne Romeu foi uma das pessoas levadas para prisão na Casa da Morte, a única que sobreviveu. Nas fotos que lhe foram submetidas ela reconhece seis torturadores. A aparência é um exemplo notável da possibilidade de se banalizar o crime e o criminoso, a menos que não sejam punidos judicialmente - explica a reitora da PUC-SP, Sra. Nadir Gouvêia Kfouri. 1 Confira o relatório sobre o trabalho da Commisão Estadual da Memoria e Verdade Dom Helder Câmara, Pernambuco, nesta edição 2 UOL Notícias,

4 No final de abril, no entanto, o ex-tenente-coronel Paulo Malhães foi encontrado baleado em sua casa. Com base nas inconsistências na rede dos antigos companheiros dos torturadores em torno do coronel Ustra, a Polícia Federal não procura apenas vitimários de vingança. É proposto que tenha ocorrido roubo seguido de assassinato. Três membros da Comissão dos Direitos Humanos do Senado viajaram para o Rio de Janeiro para acompanhar os processo de investigação criminal. Por muitos motivos, a Comissão da Verdade tem uma difícil batalha. Documentos e atas permanecem desaparecidos ou são escondidos pelo exército. O acesso às instalações militares onde houve tortura são negados. No fim de junho 2014, a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro foi obrigada a apresentar documentos, demonstrando os locais militares que foram usados como centros de tortura. O ministro da defesa, Celso Amorim, que não é necessariamente considerado de linha dura, e que nos últimos anos da ditadura inclusive participou de uma publicação crítica no contexto, deixou claro em seu discurso que não teria ocorrido uso abusivo de instalações militares, em nenhum lugar. Sustentável? Uma lei de revisão da anistia? No que diz respeito ao tratamento da ditadura civil-militar, o ano de 2012 é certamente um ponto de ruptura para sociedade brasileira. A pergunta é, no entanto, quão profundos e sustentáveis serão os seus efeitos para a cultura política dessa sociedade. Nos últimos anos, se viu repetidos esforços e tentativas de se processar os torturadores. Estudantes têm realizado manifestações em frente ao domicílio dos torturadores, têm distribuído panfletos e grafitado. A família Telles, de São Paulo, ela mesma vítima, reafirma esforços na justiça para que o Coronel Ustra seja publicamente designado como torturador. Em casos de desaparecimento sem rastros, alguns promotores tentam, a exemplo o caso argentino, levantar acusações com o argumento de que, uma vez que os deportados até hoje não reapareceram, o sequestro continua e não pode ser considerado como crime impune devido a existência da Lei de Anistia. A Comissão dos Direitos Humanos do Senado adotou no início de abril um projeto de lei para revisão da Lei da Anistia. Militares e civis devem, no futuro, ser punidos pelas sérias violações aos direitos humanos cometidas. O projeto foi apresentado por um senador do PSOL - Partido Socialismo e Liberdada, somado a uma fração da esquerda do Partido dos Trabalhadores PT, e precisa passar por outras três comissões do senado. Segundo a última pesquisa realizada pelo instituto de pesquisas Datafolha, uma clara maioria dos entrevistados, 46%, deseja que a Lei da Anistia seja anulada. Eu não conheço muito bem a "selva" da política brasileira para arriscar uma previsão. Por um longo tempo, Lindbergh Farias, do PT, tem preparado um projeto de lei, a PEC 51, para reforma da constituição com o objetivo de desmilitarizar a Polícia Militar - herança da ditadura - e que repercute esse estilo antigo na sociedade democrática de hoje. Que fim levou tudo isso? Por parte da mídia, pode-se observar um acompanhamento bastante ativo. Muito do que é divulgado vem das fileiras das 250 não oficiais Comissões da Verdade. Cinematograficamente há uma abundância de trabalhos sobre esta época da ditadura militar. O Grupo de Cinema da iniciativa Nunca Mais Brasilientag , teve certa dificuldade para selecionar, a partir de pelo menos duas dezenas de bons filmes, apenas cerca de 10 ou 12. Esses foram exibidos em Berlim,

5 Colônia, Frankfurt e Bonn. Com Lúcia Murat tivemos uma destacada representante de filmes políticos como convidada - e alguém que fez a sua declaração sobre a sua própria tortura perante a Comissão do Rio de Janeiro de Verdade em 28/05/2013 (entrevista com Lúcia Murta nesta edição). Em novembro do ano passado, a biografia de Carlos Marighella chegou às livrarias. Deveria ter sido um boom de vendas. À minha pergunta para o gerente de uma livraria com o nome sofisticado argumento, onde a esquerda na cidade do Rio de Janeiro compra seus livros, além do livro de Bernardo Kucinski, o mesmo vendedor não pôde me responder. Após a pesquisa em seu computador, ele se lembrava vagamente do nome. O romance de Kucinski, em português K, conta a história da irmã desse autor, Anna Rosa Kucinski, que é uma das 153 pessoas investigadas pela Comissão da Verdade de casos de mortes durante a ditadura ocorridos no Rio de Janeiro. O romance, publicado recentemente na Alemanha, foi indicado pela Haus der Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo, em Berlim) para a seleta lista de autores indicados ao 6 º Prêmio Internacional de Literatura. A cultura de memória sobre a ditadura no Brasil é pouco desenvolvida. O setor público é desinteressado ou paralisado. As iniciativas civis precisam promover campanhas públicas para, por exemplo, obter financiamento. Ruas, praças, e edifícios públicos ainda carregam os nomes de ditadores, e, até hoje, devem ser apenas em parte renomeados. O que acontecerá com a riqueza do material que as comissões da verdade desenterrarão? Será que a mídia continuará a informar sobre assunto? Os resultados serão sistematizadas e incorporadas ao currículo escolar? Será necessário se desenvolver currículos e programas de ensino apropriados, face a latente ameaça por alguns setores das Forças Armadas? Será que as universidades desenvolverão pesquisas a fim de preencher as lacunas - ou são dois anos e meio para vinte e um anos de ditadura suficientes?