Memória. Carlos Drummond de Andrade. Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não.

Transcrição

1 O Próximo Encontro

2 Memória Carlos Drummond de Andrade Amar o perdido deixa confundido este coração. Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não. As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. 1. O Pai

3 é ã í çã é Meu nome é Rodrigo Guimarães e não vou contar aqui minha história de amor ou algo mais pertinente, como a vida de um companheiro meu Brás Cubas. Porei de lado grande parte de uma vida vivida de modo desesperado e lançarei as cartas ao vento para serem tragadas por aqueles que as querem ler. Após completar 46 anos, divorciei-me da única mulher que jurara amar para sempre. Elizabeth era dois anos mais velha do que eu, mas mantinha uma alegria de uma adolescente de dezessete anos. E, ah! Aqueles olhos! Castanhos, profundos e sinceros... quantas vezes me perdi neles! Tínhamos uma vida maravilhosa junto de nossos filhos, Guilherme e Verônica, mas algo se rompeu entre nós. O amor é frágil e, se não o mantemos em boas condições, ele se rompe e fere quem estiver a seu alcance. Veio de uma hora para outra a tempestade que congelou meu coração e o partiu em mil pedaços de cristais de dor: não havia mais nada. Quando cheguei aos 54 anos vi meus filhos começarem a viver. Uma nova chama de felicidade acendera em mim, sentia que finalmente, eles haviam superado a perda da mãe. Sei hoje, quatro anos depois, que o destino conspira contra nós com a força dos oceanos, nos empurrando e puxando de acordo com seu humor. Conheci Leonardo, namorado de Verônica, minha eterna caçula, há cerca de um ano. Ela era, sem sombra de dúvidas, a garota mais meiga e gentil que um pai divorciado poderia criar. Tinha os olhos da mãe, os cabelos loiros e sedosos e o perfil de uma aristocrata que decidiu se divertir com as trivialidades da vida. Leonardo trouxe vida aos olhos de Verônica. Luz. Ela sentia as borboletas no estômago e eu sabia que eles ficariam juntos para sempre... Meu ciúme de pai foi-se quando olhei no fundo dos olhos daquele rapaz que, para ser bem sincero, sei que realmente a amou. Ele não pensaria duas vezes em trocar sua vida pela dela. Nem eu. O acidente de carro foi como tantos outros que passam na televisão às seis da tarde: estava dirigindo pela Rodovia dos Bandeirantes em uma quinta-feira, voltando do trabalho, após ter pego Verônica na escola técnica. Aquele motorista

4 acelerou o carro, tentou uma ultrapassagem proibida e acabou batendo de frente em meu carro. Tudo girou naquele momento, mas só perdi a consciência quando o carro que vinha na mão contrária acertou-nos de lado, onde minha filha se encontrava. Acordei três dias depois no hospital com alguns pontos e costelas quebradas, mas ela ainda não havia acordado. Guilherme, já com seus 25 anos, veio até mim e explicou a situação: Verônica sofrera um traumatismo craniano, mas se recuperaria com algumas sequelas. O arco-íris se abriu quando saímos todos juntos do hospital um mês depois. 2. A Filha Mesmo que o doutor não ousasse contar, estava nos meus últimos momentos. As sequelas daquele acidente de carro estavam me atacando e diluindo meu cérebro em algo que não me importo em saber o nome. Já faz dias que estou no hospital, meu pai vêm todos os dias e faz um esforço sobre humano para não chorar enlouquecidamente. Papai, como já lhe disse mil e uma vez, será sempre um herói para a filha que tanto o ama. Nós não íamos nos despedir, essa é nossa promessa. Porém, depois do divórcio, ele não é o mesmo. Nós não somos os mesmos. Esforçávamos para cobrir o abismo que a mamãe deixara. Nada o deixou melhor, mas sua ferida cicatrizou durante os anos. A minha não, sentia como se estivesse morta todo esse tempo. Foi ai que conheci Leonardo. Ele era a luz que deixava meu dia sorrir e desabrochar como uma rosa em plena primavera. Leonardo está confiante de que vou voltar para ele, mas ambos sabemos que nossos planos juntos nunca vão se realizar... Meu coração pertence a ele e sempre pertencerá e, vê-lo todo esperançoso e preocupado, deixa meu peito em ruínas. Leonardo é parte de mim como eu sou dele. Tínhamos planos de casamento, faculdade: uma vida a dois.

5 Minha cabeça latejava e deixava tudo ao alcance de minha visão coberto por uma névoa pesada que empurrava tudo em mim para os braços da morte. Pedi uma última vez para ver Leonardo e, quando ele e meu pai entraram no quarto, só tinha olhos para ele. Seus olhos estavam marejados de lágrimas, mas ele insistia em exibir o sorriso que tanto amava para que me lembrasse dele eternamente. E, assim que pegou minha mão, pude sentir o calor de seu corpo e relembrar cada toque entre nós. Senti o amor que sabia, com toda a certeza do universo, que ele sentia por mim. E, então, eu sorri: - Não me deixe. foi a súplica que veio tarde demais. - Não vou deixar: nunca. minha voz estava fraca, mas convicta. Quando mergulhei naqueles olhos recheados de tristeza, tive certeza do que precisava dizer: - Prometa-me que vai me esquecer e que vai continuar sua vida. Seguir em frente. Vai fazer uma faculdade. Casar, ter filhos, família. Ser feliz? Por que eu sei, eu sinto, que se você estiver feliz, também estarei. Só por saber que fiz parte de sua vida, que tive a honra de ter você comigo, de te fazer feliz, já me sinto satisfeita. Completa. E, claro, tenho que agradecê-lo por ter me salvado, por ter me trazido luz. Estive de volta à vida para ter você. Só você. Muito obrigada, meu Amor! Obrigada! Agora, prometa-me: vai ser feliz. Sempre. As lágrimas dele jorravam em bicas que caiam sem parar em cascatas de dor. Não consegui continuar. A névoa insistia em me tragar. Comecei a ceder... - Prometo. ele respondeu, com a voz embargada. Eu te amo, sempre vou amar. - Obrigada. disse, esticando, uma última vez, os lábios em um sorriso torto. Também te amo. Sempre e para sempre. Eternamente. Jamais se esqueça disso. E meus olhos foram se fechando. Minha vida foi se esvaindo. Tive a oportunidade de ver o futuro e soube que, onde quer que estivesse sempre estaria com ele: até nosso próximo encontro.