VISUALIDADES AMAZÔNICAS: O MANEJO DE PESCA DA COLÔNIA Z-32 (MARAÃ AM) Rafael Castanheira P. de Moraes 1 rafaelcastanheira@hotmail.com Resumo: Este artigo propõe-se a apresentar a pesquisa sobre o manejo de pesca realizado pela Colônia Z-32 no município de Maraã, Amazonas, que venho desenvolvendo desde 2006. Inicialmente, o objetivo era analisar os processos de produção e comercialização do pescado oriundo do manejo para a produção de um ensaio fotográfico documental. Após entrar em contato com a bibliografia sobre a antropologia visual, com destaque para o livro Argonautas do Mangue de André Alves, percebi que, mesmo utilizando em meu trabalho métodos de pesquisa similares ao de Alves, este apresenta textos e imagens que descrevem de forma detalhada os fenômenos pesquisados. Dessa forma, busco, atualmente, entender e descrever, por meio de textos e fotos, não apenas a cadeia produtiva da pesca, mas também a relações sociais entre os pescadores e as relações destes com o meio ambiente. Palavras-chave: Antropologia Visual, Fotografia Documental e Manejo de Pesca Abstract: This article aims to present a research about a fisheries management developed by Fisher Colony Z-32 in the district of Maraã, Amazonas, which I have been working on since 2006. At the Beginning, the aim was to analize the fisheries production and the trade of this management for a documentary photography work. After studing some visual anthropological bibliography, highlighting the book Argonautas do Mangue written by André Alves, I realized that, by using in my work similar research methods to what Alves does, who presents texts and images that describe in details the phenomenon researched in his subject. Currently by this manner I seek out by the usage of texts and photographs to work with insightful understandings and descriptions, not only of the fishing chain process itself, but also the social relations among fishermen and between them and the environment. Keywords: Visual Anthropology, Documentary Photography, Fisheries Management Argonautas do Mangue e antropologia visual O crescimento desordenado da cidade de Vitória (ES) estimulou uma relação predatória do homem com a natureza provocando impactos ambientais e socioeconômicos nas comunidades que vivem por meio da pesca artesanal. Os recursos pesqueiros estão esgotando-se em todo o planeta e a diminuição dos caranguejos nos manguezais que circundam a capital do Espírito Santo é também uma realidade na região. A partir desta constatação, o biólogo e fotógrafo André Alves 2 começou, em 1 Rafael Castanheira é mestrando em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Formado em Comunicação Social, tem especialização em Fotografia Como Instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais pela Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Atualmente, leciona fotografia na Universidade Católica de Goiás e na Faculdade Cambury (GO). 2 André Alves é biólogo formado pela Universidade Federal do Espírito Santo. Começou a fotografar o ecossistema manguezal em 1993 quando se interessou pela relação entre o ser humano e o manguezal. Em 620
1993, a pesquisar os arquivos públicos e particulares da cidade com o intuito de compreender melhor o processo de degradação destes manguezais que já não estão mais oferecendo condições de sobrevivência às pessoas que trabalham com a pesca artesanal. Inicialmente, o objetivo era registrar as técnicas de captura do caranguejo, seu transporte e sua comercialização na cidade de Vitória. Devido à complexidade da atividade, Alves afirma que foi percebendo, no entanto, que, por trás de cada técnica, de cada atitude, existia um significado. Para o autor de Argonautas do Mangue, livro que resultou da pesquisa de mestrado em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp, seu objeto de estudo (o universo da cata de caranguejo no município de Vitória) exigia um entendimento sobre o que representa, para os caranguejeiros, ser caranguejeiro e viver desta atividade. Argonautas do Mangue, portanto, aborda a questão da cata do caranguejo nos mangues de Vitória e as relações sociais, ambientais e econômicas inerentes à atividade. Ao basear-se no método adotado em 1942 pelos antropólogos americanos, Gregory Bateson e Margaret Mead, que em seu Balinese character. A photographic analysis. (BATESON e MEAD. New York.1942) usam recursos audiovisuais (Fig. 1) para pesquisar a cultura de certas tribos em Bali, Alves se interessa em fundamentalmente entender e descrever as relações entre o homem e o manguezal, com enfoque especial nas pessoas que vivem da cata do caranguejo na cidade de Vitória (ES). (ALVES. São Paulo, 2004. p.78) 1996, ingressou no mestrado em Multimeios, no Instituto de Artes da Unicamp, para desenvolver pesquisa sobre os argonautas do mangue, na qual utilizou como ferramenta metodológica a antropologia visual, em especial a fotografia. 621
Figura1: BATESON, Gregory. Prancha 16 (Balinese Character, p.86) O livro Argonautas do Mangue é precedido por Balinese Character (Re) Visitado, uma análise do trabalho pioneiro de Bateson e Mead em Bali (1936-1939) na qual Etienne Samain 3 relata como o estudo do casal de antropólogos americanos serve de apoio teórico à pesquisa de André Alves ao procurar no duplo registro do verbal e do visual, entender e retratar a maneira como uma criança, nascida na pequena ilha vulcânica, ao incorporar condutas e comportamentos socialmente transmitidos, tornava-se para sempre um inconfundível ser balinês. (ALVES. São Paulo, 2004. p.xii) Utilizam-se fotografias e vídeos em pesquisas antropológicas desde a invenção destes equipamentos, no entanto, foi principalmente com a pesquisa de Bateson e Mead em Bali que a sistematização do uso deste recurso e das novas formas de apresentação dos dados possibilitou um mergulho mais profundo na cultura de um povo. Em 1968, a já experiente antropóloga Margaret Mead comentou sobre a pesquisa com o uso tais recursos:...comecei a considerar que apresentações visuais seriam capazes de ultrapassar barreiras intransponíveis para a comunicação verbal. Também estava impressionada pela 3 Etienne Samain é teólogo e antropólogo. Nasceu na Bélgica, em 1973, e está no Brasil desde março de 1973. Conviveu com os índios Kamayurá (Alto Xingu) e com os Urubu-Kaapor (Maranhão). Desde 1984, pertence ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em Multimeios, onde desenvolve pesquisa sobre o uso das imagens no campo das ciências humanas. 622
possibilidade de o registro visual fornecer dados de pesquisa bem mais precisos. Durante o trabalho de campo em Bali, o meu interesse em utilizar o registro fotográfico como instrumento de controle dos diferentes graus de sofisticação do pesquisador em campo [...] convergiu com o plano de Gregory Bateson de utilizar extensivamente a fotografia e filme para muitos outros fins... (MEAD, 1968, apud Alves, 2004, p 47) Valendo-se da proposta metodológica de Bateson e Mead utilizada em Bali, que emerge de forma significativa no campo da antropologia nos anos 40, André Alves apresenta uma reflexão sobre a realidade de trabalho de caranguejeiros de Vitória abordando questões de identidade e das relações sociais entre eles. Alves dividiu seu livro em três capítulos nos quais analisa as questões que vão desde a ocupação dos manguezais no município de Vitória, passando pelas reflexões sobre etnografia visual que discorrem sobre a escolha da metodologia ao trabalho de campo e a apresentação descritiva geral dos processos da cata de caranguejo incluindo a análise da pranchas fotográficas (Fig. 2) e conclui com considerações finais que abordam a utilização da fotografia para construção da narrativa visual. Figura 2: ALVES, André. Prancha 10- Captura No Braço (Argonautas do Mangue, pg.169) Visualidades Amazônicas: O Manejo de Pesca da Colônia Z-32 (Maraã AM) No início de 2006 estive em Maraã, no Amazonas, para escrever uma reportagem sobre o curso de Formação de Agente Ambiental Voluntário que o Instituto Brasileiro do 623
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) oferecera aos moradores da cidade. Sou jornalista e, na ocasião, trabalhava como assessor de imprensa para o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) 4. Naquele momento, pude conhecer os membros da Colônia Z-32 5 e, para a minha surpresa, assistir a um vídeo amador sobre os trabalhos de manejo de pesca que fora gravado em 2004. Aquelas imagens nunca me saíram da cabeça: filas extensas de canoas no igarapé de acesso aos lagos; uma enorme quantidade de pirarucus vindo à superfície a todo o momento para respirar; o frenesi de pescadores conversando animados entre si e comemorando a cada pirarucu capturado; e, é claro, a natureza exuberante da selva amazônica compondo um cenário bucólico de homens em meio à mata verde. Poucos meses depois me encontrei com Luiz Gonzaga, Presidente da Colônia Z- 32 na época, e, ao saber da inexistência de uma documentação sistemática sobre o manejo de pirarucu e sobre a história da instituição, propus-lhe uma parceria de trabalho que foi aceita, posteriormente, por toda a sua diretoria. A intenção, no início, era a de registrar as etapas do manejo: as técnicas de captura do pirarucu (Arapaima gigas) e tambaqui (Colossoma macropomum), seu transporte e comercialização, ou seja, documentar a cadeia produtiva do pescado proveniente do manejo de Maraã, tendo em vista à publicação de uma grande reportagem e, obviamente, à devolução das fotografias e textos à direção da Colônia, parceira do projeto. Durante minha primeira estadia em Maraã, entre os meses de julho e dezembro de 2006, dividia meu tempo entre as entrevistas na cidade e as viagens a campo para acompanhar os trabalhos de manejo nos lagos. Pude acompanhar a rotina de vida dos pescadores, quer no dia-a-dia com suas famílias e amigos, quer em seus trabalhos de pesca e proteção dos lagos da região. Nos anos de 2007 e 2008, não podendo viver em Maraã, concentrei minhas pesquisas à distância, retornando aos lagos somente durante o mês de outubro, época da despesca. Ao longo destes anos, vivenciei todo o processo de organização, produção e comercialização do pescado do município de Maraã, desde as reuniões de pescadores para a definição do calendário das atividades e das regras de manejo até a contagem 4 O Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá é uma Organização Social com Contrato de Gestão assinado com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Juntamente com o Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC/SDS), o IDSM é responsável pela co-gestão das Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã e atua no desenvolvimento de pesquisa, monitoramento e extensão visando a conservação da biodiversidade da Amazônia pelo uso sustentado dos recursos naturais e participativo das comunidades. 5 A Colônia de Pescadores Z-32 de Maraã (COLPEMA), no Amazonas, reúne cerca de 500 pescadores associados e desenvolve, com o apoio do IDSM, o manejo de pesca desde 2002 no Complexo do Lago Preto, área de 18,5 quilômetros quadrados, inserida na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM). 624
dos pirarucus nos lagos, a pesca e o escoamento do pescado para os mercados de Manaus. O resultado deste trabalho é um acervo com mais de 4000 fotografias em preto-ebranco, textos, cópias de documentos oficiais e cerca de 50 entrevistas gravadas com pescadores, membros da diretoria da Colônia Z-32, técnicos em pesca e pesquisadores de diversas instituições privadas e governamentais ligadas à gestão da Reserva Mamirauá em Maraã, Tefé, Manaus e Brasília, além de donos de barcos, despachantes, comerciantes, empresários e consumidores. Com uma grande quantidade de dados produzidos, decidi abandonar a idéia inicial de escrever apenas uma reportagem. Surgiu, então, uma nova questão: como organizar tais dados no sentido de elaborar uma narrativa visual a partir das imagens produzidas tendo em vista à publicação de um livro. Mas não um livro-reportagem ou um livro comercial de fotografias sobre o manejo de duas das mais importantes espécies de peixes do Brasil. Ao entrar em contato com bibliografia especializada e outros trabalhos em antropologia visual, decidi dar embasamento científico às experiências que tive ao longo desta pesquisa. E, assim como André Alves buscou o curso de pós-graduação em Multimeios pelo Instituto de Artes da Unicamp e utilizou o modelo metodológico proposto por Margareth Mead e Gregory Bateson para viabilizar a sua pesquisa científica sobre a cata do caranguejo em Vitória, eu, por estar vivendo e lecionando fotografia em Goiânia (GO), busquei, na Universidade Federal de Goiás (UFG) um curso que tivesse uma linha de pesquisa que melhor abrigasse o meu projeto. No primeiro semestre de 2008, ingressei-me como aluno-ouvinte em uma das disciplinas do Programa de Pós-graduação em Cultural Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG e, posteriormente, fui aprovado no processo de seleção deste programa para o ano de 2009. Considerando a fotografia como um instrumento capaz de transmitir o que não é imediatamente transmissível no plano lingüístico e o objeto de minha pesquisa como uma proposta de analisar através de textos e, sobretudo, imagens uma atividade socioeconômica com fortes raízes tradicionais como é a pesca no norte do País, optei pela área de Processos e Sistemas Visuais, dentro da linha de pesquisa em História, Teoria e Crítica da Imagem. Ao utilizar a fotografia como meio principal para a produção de sentidos e apresentação de uma realidade presumível, pesquisarei temas que englobam conceitos de cultura e visualidade, realismo, representação e identidade. A partir deste contexto, comecei a refletir sobre a importância da fotografia dentro do cenário da cultura visual na Amazônia para os estudos de identidade, 625
representação e história cultural. De que forma a interação das minhas fotografias com as entrevistas e anotações de campo feitas durante a observação participativa em minha pesquisa pode reconstituir a história cultural deste grupo social de pescadores quando produzida e apresentada com base num conjunto de categorias, de conceitos e de referências teóricas e metodológicas? Figura 3: Reunião no acampamento montado na entrada do complexo de lagos. Pescadores e funcionários da Colônia Z-32 definem os lagos e os apetrechos para o primeiro dia de pesca do manejo. Complexo do Lago Preto, Maraã Amazonas (2006). Foto: Castanheira, Rafael. 626
Figura 4: Pescadores fazem a limpeza do igarapé de acesso aos lagos, retirando troncos de árvores caídas durante as chuvas para desobstruir o caminho para o tráfego de canoas durante as atividades de pesca do manejo. Complexo do Lago Preto, Maraã Amazonas (2006). Foto: Castanheira, Rafael. Figura 5: Marcelino Urquizes, pescador. Complexo do Lago Preto, Maraã Amazonas (2006). Foto: Castanheira, Rafael. 627
Foto 6: Hastes com arpão são lançadas no lago pelos pescadores após pirarucu boiar próximo às canoas. Complexo do Lago Preto, Maraã Amazonas (2006). Foto: Castanheira, Rafael. Foto 7: Após arpoar pirarucu em lago, caboclo sacrifica-o com uma paulada em sua cabeça antes de colocá-lo dentro da canoa. Complexo do Lago Preto, Maraã Amazonas (2006). Foto: Castanheira, Rafael. 628
Foto 8: Pirarucu é arpoado na cabeça e puxado por pescador para dentro da canoa.complexo do Lago Preto, Maraã Amazonas (2006). Foto: Castanheira, Rafael. Foto 9: Assim que chegam ao flutuante, os pirarucus são eviscerados por tratadores profissionais contratados pela Colônia. Depois de tratados, os peixes são medidos, pesados e lacrados para, então, seguirem para os porões frigoríficos dos barcos. Complexo do Lago Preto, Maraã Amazonas (2006). Foto: Castanheira, Rafael. 629
Foto 9: Pirarucu é vendido na Feita da Manaus Moderna Manaus (AM - 2006). Foto: Castanheira, Rafael. REFERÊNCIAS ALVES, André. Os Argonautas do Mangue. Precedido de Balinese character (re) visitado / Etienne Smain. Ed. Unicamp; São Paulo, SP 2004. BATESON, Gregory e MEAD, Margaret. Balinese character: a photograph analysis. New York Academy of Sciences,1942. 630