Sobre a criminalização das ocupações urbanas Mauri J.V Cruz 1 Que as lutas e conflitos sociais são tratados no Brasil como caso de polícia nós já sabemos há muitos anos. Esta prática, infelizmente, não é invenção da ditadura militar. O saudoso Getúlio Vargas utilizava a força policial para combater e controlar os movimentos sociais considerados como adversários políticos. Mas estamos falando de épocas de ditaduras. Não seria admissível esta prática, de criminalizar movimentos sociais, num estado democrático de direito em plena democracia moderna. Infelizmente não é o que se vê. Para os defensores dos direitos sociais o mais comum é nos depararmos com o direito sendo utilizado para dirimir conflitos sociais numa perniciosa inversão de papeis onde, o agente público que deveria promover o acesso dos cidadãos aos direitos sociais usa o aparelho do estado para reprimir as justas reivindicações da cidadania. Aliás, há muito se desmente a falsa neutralidade política e a propalada pureza científica do direito sustentada pelo positivismo, denunciando sua função ideológica de manutenção das relações de poder. Serve assim para legitimar a omissão do estado e perpetuar as injustiças. 1 Texto adaptado. Ver www.lfg.com.br/artigos/ocupacoes_urbanas_prof_silvio.pdf
Apesar deste combate desigual onde de um lado estão cidadãos indefesos em busca de seus direitos e do outro o aparelho repressivo do estado, as lutas sociais continuam. Com o advento da Copa 2014 o tema da moradia tem retomado espaço na agenda política em função das remoções forçadas de milhares de famílias para garantir as obras que viabilizam este evento esportivo. Fica claro que embora programas como Minha Casa Minha Vida e o Programa Bolsa Aluguel, há milhares de pessoas que não tem acesso a uma moradia digna. Estas políticas embora existentes estão longe de resolver o déficit habitacional no curto prazo. E os governos ao promover um evento internacional ao invés de proporcionar acesso a mais direitos usurpa o precário direito de moradia existente. Daí que, criminalizar as ocupações urbanas de prédios e terrenos desocupados é não reconhecer a legitimidade da luta de cidadãos e cidadãs brasileiros pelo direito a um teto. Ainda mais quando o estado que tem a obrigação constitucional não o faz. Aliás, é preciso que se reconheça que criminalizar as ocupações urbanas de prédios e terrenos desocupados em nome do direito de propriedade é desrespeitar a Constituição. A Constituição Federal garante o direito de propriedade como cláusula pétrea quando diz em seu artigo 5º, inciso XXII que é garantido o direito de propriedade. Ocorre que o mesmo artigo 5º, em seu inciso XXIII ressalta de forma cristalina e objetiva que a propriedade atenderá a sua função social. Ora, não há como concluir diversamente do que nos ensina o ilustre José Afonso Silva quando afirma que não há como escapar ao sentido de que
só garante o direito de propriedade que atenda sua função social. 2 Não contentes com a reintegração de posse os defensores da propriedade há qualquer custo intentam a criminalização das lideranças através da imputação do crime de esbulho possessório com base no artigo 161, inciso II do Código Penal Brasileiro. Para os leigos é preciso que se esclareça que o tipo penal do artigo 161, inciso II, do CP pune a conduta de quem invade, com violência ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório. Igualmente se faz necessário ressaltar que embora não mencionado no texto do artigo o verbo que denomina o crime é esbulhar que significa v.t. privar alguém de alguma coisa a que tinha direito; espoliar; usurpar; Roubar, ou seja, expulsar da posse quem a detém licitamente. Aqui fica cristalino o comportamento tendencioso do operador do direito penal. Como imputar a conduta de esbulho possessório a uma ocupação de terreno vazio se para expulsar com violência, grave ameaça ou concurso de mais de duas pessoas, necessariamente, pressupõe uma pessoa física contra a qual possa ser exercida tal conduta. É impossível praticar a conduta se não houver ninguém no imóvel para sofrer essa ação. Ora, o tipo penal se demonstra bastante claro. Para haver violência ou grave ameaça é necessário que o referido 2 Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 262.
imóvel esteja habitado por pessoas que detenham legitimamente a sua posse. Não se admite violência ou grave ameaça ao imóvel em si. Esta afirmativa, data vênia as opiniões contrárias, se aplica para a última forma de prática da conduta delitiva que é a invasão mediante o concurso de mais de duas pessoas. Como afirma excelente artigo sobre ocupações urbanas do LFG Consultoria quando diz que no plano físico, a entrada em um imóvel por mais de duas pessoas, conjuntamente, pode ocorrer estando ele ocupado ou desocupado. Mas a análise do tipo penal deve ser feita sob o aspecto jurídico, mediante critérios de boa hermenêutica. É preciso compatibilizar o texto da lei com o espírito da lei. A presença de mais de duas pessoas que praticam a invasão do imóvel reduz a capacidade de resistência de seus ocupantes, equiparando-se, na verdade, a uma violência ou grave ameaça. Assim, ao exigir o número mínimo de três invasores, a lei já protege o imóvel que tenha ao menos um ocupante, que estará em situação de inferioridade em relação aos autores do esbulho 3. Aliás, nesse sentido já decidiu o extinto Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo que o esbulho possessório não se concretiza apenas pela invasão do imóvel alheio, senão por essa invasão executada com violência, ameaça ou concurso de pessoas, subtendendo-se, neste último caso concurso de pessoas haver violência contra a pessoa. (HC - Rel. Cid Vieira RT 550/306). 3 Idem. Ver www.lfg.com.br/artigos/ocupacoes_urbanas_prof_silvio.pdf
Ora, todos sabem que no cotidiano as ocupações dos movimentos sociais são feitas em prédios ou terrenos vazios e desabitados. A intenção da ocupação é a denuncia da falta de uma política pública ou a crítica à morosidade com que os governos encaminham as suas políticas. Não havendo, portanto, qualquer intenção de esbulhar a posse ou a propriedade do imóvel. Portanto, nas lutas sociais e ocupações urbanas não existe o fim de esbulho possessório - elemento subjetivo do tipo - na conduta das pessoas que ingressam em prédios ou terrenos desabitados. O que pretende o movimento social é conseguir chamar a atenção dos governos e da opinião pública para a falta de investimentos na solução de seus problemas que são urgentes. Aliás, todo penalista sabe que para haver crime é preciso que haja dolo, ou seja, o autor tem que querer praticar o tipo penal, saber de sua ilicitude e, mesmo assim, praticá-la. Ora, se o dolo não for o de esbulhar, não haverá adequação da conduta dos agentes ao tipo penal. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que se o Movimento Popular (no caso, Movimento dos Sem-Terra ) visa pressionar o governo para acelerar a implementação da reforma agrária, programa constante da CR, não se está diante de movimento para tomar a propriedade alheia, não havendo que se falar, portanto, no crime contra o patrimônio deste artigo 162, 1º, II (STJ, mv RT747/608 ; TJSP, RT 787/594) 4. 4 Delmanto, Celso, et al. Código Penal Comentado. São Paulo: Renovar, 2002, p. 371.
É de se constatar, portanto, que nos casos de ocupações de prédios e terrenos vazios urbanos por movimentos sociais os fatos não têm qualquer conotação penal, por mais graves que pareçam, como as ocupações ocorridas em prédios públicos desabitados no centro de cidades como Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Não se pode macular de criminosas pessoas que entram em imóveis alheios à procura de abrigo ou no intuito de lutar para conquistar uma vida melhor. Como conclui o já referido artigo, nos casos de ocupações de prédios e terrenos urbanos vazios, ao proprietário cabe exercer seu legítimo direito de exigir a desocupação do seu imóvel pela via judicial adequada e em seguida dar a ele a função social exigida pela Constituição Federal. E sendo o Estado o proprietário, deve reconhecer a posse dos ocupantes e promover medidas urgentes que visem atender aos direitos sociais reivindicados. Desta forma, contribuindo para a diminuição das desigualdades sociais fator fundamental para um desenvolvimento justo e igualitário. Este sim, o único remédio contra os conflitos urbanos. E ao direito penal cabe aos aplicadores públicos e aos advogados sociais humaniza-lo interpretando e aplicando suas normas em prol da promoção da justiça e não da manutenção de privilégios e da eterna perpetuação da divisão entre classes sociais.