Zuleika Araújo, leiga: um testemunho da renovação das práticas eclesiais do catolicismo em Minas Gerais no Pós-Vaticano II. Fábio Vieira de Souza 1



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Transcrição:

Zuleika Araújo, leiga: um testemunho da renovação das práticas eclesiais do catolicismo em Minas Gerais no Pós-Vaticano II Fábio Vieira de Souza 1 Introdução A presente reflexão é parte de uma pesquisa mais ampla por nós realizada e que tem como objeto as mudanças ocorridas no catolicismo no Norte de Minas, mais especificamente na Arquidiocese de Montes Claros, a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). Em nossa investigação acerca dos desdobramentos sociais, políticos, culturais e eclesiais do movimento renovador engendrado pelo Concílio, encontramos Zuleika Antunes de Araujo, uma nortemineira cuja trajetória de vida ilustra bem as transformações ocorridas na Igreja Católica a partir da década de 60. Um expediente que justifica esta nossa pesquisa, mas que dele não tem deliberada dependência, é o fato de este ano de 2012 marcar os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II, o que, sem dúvida, confere maior relevância à temática aqui discutida. No site oficial da CNBB, o atual arcebispo de Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido, ao se referir ao cinquentenário do Concílio Vaticano II, na ocasião da 49ª Assembleia Geral da CNBB, afirmou que O Concílio Vaticano II é o acontecimento mais importante da Igreja no século XX. Acrescentou, ainda, que a Igreja terá, com tal comemoração, a oportunidade de rever os documentos conciliares que marcaram a sua vida eclesial. Afirmou, ademais, que embora a Igreja já tenha explorado bastante os documentos desse evento histórico, muito ainda se tem a conhecer. Acrescentamos ainda, que principalmente no que diz respeito aos impactos e aos desdobramentos deste acontecimento na vida da Igreja Católica. O Vaticano II e sua recepção Quando falamos dos anos de 1960, das mudanças culturais desse período no aspecto religioso, salta aos olhos a influência do Concílio Vaticano II. Ocorrido em Roma de 1962 a 1965, com a presença de mais de 2000 bispos de todo mundo, convocados pelo papa João XXIII, este foi um momento privilegiado de discussão acerca de temas de grande relevância para a Igreja Católica. O Vaticano II foi, sem dúvida, o maior acontecimento para a Igreja no século XX. Ele buscou, na verdade, promover um processo de aggiornamento, ou seja, de atualização renovadora capaz de dar à Igreja uma nova configuração que respondesse melhor 1 Mestrando em Teologia, Puc-SP, Bolsista CAPES.

2 aos anseios e esperanças dos homens e mulheres de seu tempo, abrindo o caminho para o diálogo com os grandes problemas enfrentados pela sociedade. Ao analisar um evento da envergadura de um concílio, Beozzo dá especial destaque a recepção do mesmo pelas Igrejas locais, visto que este é o elemento de verificação mais importante, pois revela quais dimensões foram capazes de passar para o quotidiano da Igreja, que outras deixaram de ser assimiladas e até mesmo as que foram seletivamente abandonadas (BEOZZO, 2003, p. 425). Ives Congar, importante téologo do Concílio Vaticano II, ressalta também a importância da recepção, para ele este é o processo pelo qual um corpo eclesial faz sua de verdade, uma determinação que ele não se deu a si mesmo, reconhecendo, na medida promulgada, uma regra que convém a sua vida (CONGAR apud LIBÂNIO, 2005, p. 206). Este aspecto da recepção de um concílio comporta certa complexidade, pois cada contexto sócio-eclesial apresenta peculiaridades que o fazem mais aberto ou não a determinadas novidades. Coutinho corrobora este pensamento ao afirmar que a recepção, como qualquer processo histórico, é complexa porque, além de implicar o tempo e o lugar, coloca em ação na Igreja local diversos atores (COUTINHO, 2006). No Brasil, logo após o término do Concílio Vaticano II em Roma, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil lançou o Plano de Pastoral de Conjunto PPC cujo objetivo era o de criar meios e condições para que a Igreja do Brasil se ajuste, o mais rápida e plenamente possível à imagem do Vaticano II (PPC, 1966, p. 25). Procurava-se atingir esse objetivo partindo de uma tomada de consciência da realidade, levando em consideração o caráter processual e dinâmico da renovação da Igreja. O Plano de Pastoral de Conjunto apresentou uma programação que articulava os principais documentos conciliares com seis dimensões da ação pastoral: 1. Comunitário-Participativa (Lumen Gentium), 2. Missionária (Ad Gentes), 3. Bíblico-Catequética (Dei Verbum), 4. Litúrgica (Sacrosanctum Concilium), 5. Ecumênica e de Diálogo Inter-religioso (Unitatis Redintegratio / Nostra Aetate), 6. Sóciotransformadora (Gaudium et Spes). Para a América Latina como um todo, o marco referencial da recepção do Vaticano II foi a II Conferência Geral do Episcopado Latino Americano em Medellím, no ano de 1968. Lá se optou pelos pobres, pelas comunidades eclesiais de base, pela vida consagrada inserida, por um exterior simples e pobre da Igreja, pela educação libertadora, pelo laicato engajado na vida eclesial interna e sociopolítica (LIBÂNIO, 2011, p.960). Aqui se viu uma recepção criativa da doutrina conciliar com enorme abertura que influenciou, sobremaneira, a forma de ação de setores da Igreja Católica neste continente marcado por condições sociais tão adversas, sob fortes marcas das ditaduras militares.

3 O Concílio no Norte de Minas Gerais Em 1966, Montes Claros, no longínquo Norte de Minas Gerais, se movimentava para receber os ensinamentos emanados do Concílio. E uma questão naturalmente se levanta: como um evento dominado por bispos europeus foi recebido numa realidade tão distinta e particular? Para Beozzo, O tema é tanto mais interessante, quanto foram justamente essas áreas relativamente marginais durante a gesta conciliar, que tornaram das mais relevantes para sua recepção, durante o período pós-conciliar (BEOZZO, 2003, p.426). Esta região do estado de Minas Gerais é a fronteira entre Nordeste e o Sudeste de nosso país. O clima e a cultura em muitos aspectos se identificam com o Nordeste brasileiro. Pereira, ao pesquisar sobre a Montes Claros dos anos 60, descreve o Norte de Minas como uma região com graves problemas de natureza socioeconômica, que, mesmo sendo foco de políticas de incentivo ao desenvolvimento, não conseguiu superar sua condição de periferia no contexto estadual (PEREIRA, 2007, 129). Neste contexto social tão adverso, os ensinamentos conciliares despontaram como uma luz para orientar a ação desta Igreja Norte Mineira. No ano seguinte ao término do Concílio, a então Diocese de Montes Claros criou um grupo para dinamizar a recepção do Concílio Vaticano II, quando se dá inicio aos trabalhos do secretariado diocesano de pastoral. O trabalho inicial dessa equipe foi a realização de uma grande pesquisa sobre a realidade social desta cidade do Norte de Minas. Segundo o Jornal Diário de Montes Claros, de 14 de agosto de 1966, este levantamento visava a posterior elaboração de um planejamento para os trabalhos da Igreja de Montes Claros. O mesmo jornal afirma ainda que um questionário com 120 perguntas foi distribuído para diversos grupos da cidade. De acordo com o Boletim Diocesano de Pastoral de dezembro de 1966, foram realizados 13 cursos de conscientização e atualização do laicato. O que culminou na realização da Primeira Assembleia Diocesana de Pastoral, cujo objetivo era renovar a Igreja, conforme a imagem do Vaticano II (DPMC 2, 1966, p. 09). Temos aqui a primeira tentativa de aplicar a doutrina conciliar na Igreja Particular de Montes Claros, com destaque para a abertura aos leigos, pois no dizer de Dom Geraldo Magela de Castro, arcebispo emérito de Montes Claros, o Concílio dizia que a Igreja era Povo de Deus, mas não havia povo de Deus para a recepção desta Igreja (CASTRO, 2005). As próprias reuniões preparatórias para esta assembleia se constituíram num momento 2 Diretrizes Pastorais de Montes Claros 1967-1970.

4 privilegiado de exercício de participação, visando despertar os leigos para viver a Igreja renovada. Se em 1966, na sua Primeira Assembleia Pastoral, a Igreja de Montes Claros buscava abrir-se à renovação proposta pelo Vaticano II com o intuito de ser uma Igreja Povo de Deus, dando aos leigos espaço para se tornarem sujeitos da ação pastoral, aos poucos, pôdese ver claramente que os leigos encontraram e assumiram seu espaço na Arquidiocese de Montes Claros. Os impulsos e motivações originados no Concílio Vaticano II e os apelos do contexto histórico fizeram emergir as mais diversas iniciativas pastorais protagonizadas por leigos na Igreja Norte-Mineira. Nesse sentido, podemos destacar alguns eventos marcantes: em 1970, leigos de Montes Claros vão a São Paulo participar do Cursilho de Cristandade para implantá-lo nas terras norte-mineiras no ano seguinte, movimento este que mais impulsionou a participação dos leigos no pós Vaticano II em nossa região (CASTRO, 2011); em 1974, casais participam do ECC em São Bernardo do Campo com o Pe. Afonso Pastore e também trazem este movimento para Montes Claros (MAMELUQUE, 2011) ; em 1979, o Pe. Tadeu já indicava a existência de 07 grupos de espiritualidade carismática (BDK 3, 1979); em 1980, lavradores do Norte de Minas participam da Assembléia Estadual da Comissão Pastoral da Terra em João Monlevade com a presença do coordenador estadual da Pastoral da Terra, Pe. Jerônimo. Em Montes Claros, este trabalho foi iniciado com um grupo de 30 trabalhadores rurais sob a orientação do Irmão Afonso Murad (BDK, 1980). Além das atividades pastorais acima elencadas, a Segunda Assembleia Diocesana de Pastoral, realizada em 1980, registrou a participação das seguintes pastorais e movimentos: Comissão das CEBs, Pastoral da Saúde, Pastoral Carcerária, Pastoral Familiar, Pastoral da Juventude, Pastoral Vocacional, Pastoral Operária, Pastoral da Terra, Comissão de Liturgia, Comissão de Justiça e Paz e de associações e movimentos como o Círculo de Trabalhadores Cristãos, Legião de Maria e Vicentinos. Os dados, acima apresentados, deixam claro que na década de 1970, a Igreja de Montes Claros foi marcada por uma efervescência de iniciativas eclesiais cujo núcleo fundamental foi composto predominantemente por leigos. Neste período segundo Castro, para se iniciar um trabalho pastoral, um grupo de leigos interessados procurava o bispo, ele consentia, e a nova ação pastoral começava suas atividades, sem uma organicidade que permitisse uma pastoral diocesana de conjunto (CASTRO, 2011). Embora tal prática favorecesse a participação, tornou-se perceptível alguma insuficiência no que tange aos 3 Boletim Diocesano Koinonia

5 elementos fomentadores de uma caminhada comum. Desse modo, chegou-se à conclusão de que seria necessária uma nova assembleia para dar esta unidade diocesana aos diversos trabalhos pastorais iniciados, pois as forças estão dispersas, necessitando de uma definição mais nítida, de uma linha comum que dê mais organicidade para uma pastoral de conjunto (ACD 4, 1987). No entanto, o coordenador de pastoral e o conselho presbiteral, à época, chegaram a conclusão que poderia ser contraproducente reunir a cúpula das pastorais e movimentos...não tinham preparo nem estrutura para participar (CASTRO, 1988); e,assim, sugerem que aconteçam assembleias de cada pastoral (ACD, 1987). Com esta decisão, a preparação para a Terceira Assembleia se deu a longo prazo. Realizaram-se assembleias por pastorais: em 1985, Pastoral da Juventude; em 1986, CEBs; em 1987, Pastoral Familiar; em 1988, Pastoral Catequética (CASTRO, 1988). Todo esse intenso trabalho, ao longo cinco anos, culminou, em 1990, com a Terceira Assembleia Diocesana de Pastoral, cujo objetivo era buscar uma caminhada em conjunto para sermos Igreja Povo de Deus em comunidade, sinal e instrumento do Reino de Deus (CEDP 5, 1990). Esse evento considerado divisor de águas no processo de organização pastoral da Arquidiocese de Montes Claros será o ponto de chegada do recorte histórico de nossa pesquisa, pois a partir desta Terceira Assembleia Diocesana de Pastoral, a Igreja Particular de Montes Claros foi, progressivamente, consolidando ainda mais a sua renovação pastoral, à luz do Concílio Vaticano II, pois esta porção do povo de Deus no Norte de Minas Gerais começa a delinear uma identidade diocesana própria, dando mais vigor a inspiração conciliar de Igreja Povo de Deus. Este breve percurso histórico nos revela como pouco a pouco uma nova mentalidade em consonância com as ideias conciliares se tornou realidade nesta Diocese Norte Mineria. Um exemplo ilustrativo destes desdobramentos sócio-políticos da fé vemos no Relatório do I Encontro Regional de CEBs, realizado em Montes Claros em março de 1983. Quando perguntados sobre o papel desempenhado pelas CEBs, os participantes responderam: Resolução de problemas existentes, auxílio aos necessitados, luta pelos direitos dos menos privilegiados (água, escola, asfalto, mutirão para construção do salão paroquial e da creche), novena de natal em família, campanha da fraternidade, mês da Bíblia; reflexão baseada no método Ver, Julgar e Agir, terços meditados, cultos dominicais, processo de conscientização; Pastoral Operária; Associação de Moradores de Bairro; extensão de séries, campanha mutirão para construção de barracos (RERCEBS 6, 1983) 4 A Caminhada da Diocese 5 Compromissos Eclesiais e Diretrizes Pastorais 6 Relatório do I Encontro Regional de CEBs

6 Esta nova postura encontrada na Arquidiocese de Montes Claros, a partir dos anos de 1970 se tornou objeto de estudo de outros pesquisadores. Aprofundam esta temática da atuação social da Igreja Católica no Norte de Minas: Evelina A. F. Oliveira com sua obra Nova cidade, Velha Política: poder local e desenvolvimento regional na área mineira do Nordeste. Maceió: EDUFAL, 2000; Leandro A Mendes com seu trabalho O Povo de Deus na Política: Partido dos Trabalhadores e Igreja Católica em Montes Claros na década de 1980, Dissertação (Mestrado), UFU; e Antonio A. Souza, em A Igreja entrou renovadamente na festa: Igreja e carisma no sertão de Minas Gerais, Tese (doutorado), USP, 2006. Zuleika Antunes de Araujo: um testemunho desta história Nas últimas décadas, a História Oral tem se tornado fonte e ferramenta importante para os historiadores que se dedicam a analisar processos históricos recentes ou buscam, conforme Lucília Delgado (DELGADO, 2006, p. 15), recuperar informações sobre acontecimentos e processos que não se encontram registrados em outros tipos de documentos e isto permite aos historiadores o acesso a diferentes testemunhos, tornando possível novas interpretações do passado. Para Thompson, a Historia Oral lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de dentro da comunidade (THOMPSON, 1998, p.44). Estas fontes orais traduzem visões particulares de processos coletivos. São histórias comuns, mas que permitem compreender aspectos do passado a partir de trajetórias de vida. Zuleika Antunes Araujo é um desses personagens bastante representativos, cuja história de vida revela as mudanças ocorridas no catolicismo no contexto de Minas Gerais. Trata-se de uma representação individual, de um sujeito histórico que entrou em consonância com o Concílio Vaticano II. E isto se torna importante, principalmente porque a doutrina contida nos decretos conciliares habilita os leigos a exercerem suas atividades como protagonistas, como verdadeiros atores sócio eclesiais, e Zuleika Antunes Araujo, de fato, o foi. O nosso encontro com ela se deu quando procurávamos pessoas do grupo que coordenou a Primeira Assembleia Diocesana de Montes Claros, em 1966. Dos nomes que constavam no livro das diretrizes desta assembleia, Zuleika Antunes Araujo foi a única que encontramos, visto que todos os outros já eram falecidos. Além disso, nos chamou a atenção o fato de ela ser a única pessoa leiga - não clérigo e não religioso - da equipe de coordenação, o que é bastante significativo para a época. Em maio de 2011, Zuleika Antunes de Araujo, hoje aposentada como inspetora escolar da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, nos concedeu uma entrevista semi-

7 estruturada, na qual tivemos a preocupação de fazer com que as questões apresentadas expressassem seu pensamento sobre o momento histórico por nós pesquisado. Mas aos poucos, percebemos que sua própria trajetória de vida deixava evidências de como alguns setores da Igreja Católica em Minas Gerais sofreu o influxo renovador das ideias conciliares e de todo movimento em torno da Conferência de Medellim e das mudanças que se colocavam em curso no Brasil e na América Latina. A história da relação de Zuleika Antunes com a Igreja Católica é de longa data. Criada num ambiente de muita fé, a jovem professora dos anos 60 dizia que, naquela época, o leigo era o fazedor de atividades que não tinha ninguém que fizesse, que o padre não fazia, não tinha palavra, não tinha expressão nenhuma. As vezes, participava de algum movimento, mas era um subordinado. O aspecto da inferioridade entre leigos e padres era muito acentuado. Sobre a realidade social daquele período, Zuleika Antunes afirma que Montes Claros sempre foi uma cidade coronelista, perigosa, uma injustiça muito flagrante. Uma roubalheira terrível dos políticos, o povo não era conscientizado, uma massa muito submissa. Neste contexto, Zuleika Antunes foi convidada pelo então bispo Dom José Alves Trindade para coordenar o Movimento de Educação de Base no Norte de Minas, sendo cedida pelo governo do estado para este trabalho na Diocese. Momento muito importante, pois ela recebeu treinamento de técnicos da USP sobre o método de Paulo Freire. Para Zuleika Antunes, esta sua experiência fez com o Padre Paulo Pimenta, primeiro coordenador de pastoral da Diocese de Montes Claros, a convidasse no início de 1965 para compor a equipe do Secretariado Diocesano de Pastoral, órgão que viria a coordenar a primeira assembleia desta diocese Norte Mineira. Ela fala desse período com entusiasmo: Eu dava trabalho diário nesse secretariado, sem remuneração, eu o Padre Paulo Pimenta e a Irmã Angelina. Ficávamos tão empolgados que íamos noite a dentro estudando. O Padre Paulo tinha uma abertura para coisas novas, refletíamos o evangelho, estudávamos documentos da CNBB. Este foi o primeiro grupo a disseminar as ideias do concílio por aqui. A primeira assembleia foi uma consequência do trabalho do secretariado, uma consequência natural, achávamos que era o momento de fazer a assembleia. Na preparação, nos colhíamos depoimentos das pessoas, os desejos, o que elas pensavam, para a partir daí traçarmos as diretrizes. Paulo Pimenta foi o eixo deste trabalho, foi o primeiro coordenador de pastoral, dedicava mesmo. Trabalhávamos muito com o método da ação católica, ver, julgar e agir. Também o Plano de Pastoral de Conjunto [da CNBB] era nossa referência. (ARAUJO, 2011) Para Zuleika Antunes, a assembléia de 1966 foi a primeira vez em que os leigos puderam falar algo na Igreja. Com entusiasmo, ela destaca, queríamos transformação. O movimento de transformação vinha do Nordeste com Dom Helder e aqui era continuação do

8 Nordeste. Também merece destaque a conscientização do grupo: Falamos das questões sociais. O que seria imprescindível em se tratando do Norte de Minas, e continua Zuleika Antunes, com certa carga afetiva: Montes Claros, uma cidade de entroncamento, divisa com a Bahia, ponte para o Nordeste, era terrível o que acontecia aqui naquela época. Éramos revoltados, eu e o Padre Paulo. O povo vinha para cá, para seguir para São Paulo, mas quando chegava aqui o dinheiro acabava e eles ficavam jogados na rua perto da estação, não tinham assistência de nada, nem de ninguém. Nos estávamos querendo tirar o povo da rua. As pessoas não eram mendigos não, eram pessoas do Nordeste que queriam seguir para São Paulo e que quando chegavam aqui acabava o dinheiro. Tinha muito crime, muita violência, então nos lutamos muito para acabar com esta miséria aqui. (ARAUJO, 2011) Esta transformação no pensamento católico em Montes Claros influenciou a ação de muitos leigos. Mendes, em sua dissertação, O Povo de Deus na Política: Partido dos Trabalhadores e Igreja Católica em Montes Claros na década de 1980, nos apresenta dois depoimentos que corroboram esta mudança de postura de setores da Igreja no Norte de Minas Gerais, enfatizando maior preocupação sobre o aspecto social. São eles os de Maria Helena Mendes e Alvimar Ribeiro. Vale a pena destacar a transformação destes atores sócio-eclesiais no que diz respeito às suas práticas. A primeira, Maria Helena Mendes, foi catequista nos anos 70 que veio se tornar presidente da associação dos moradores, a frequentar as reuniões da Pastoral Operária e a se filiar ao Partido dos Trabalhadores (MENDES, 2010, p.56). Já Alvimar Ribeiro, em meados de 70 iniciou sua atuação na Igreja por meio do grupo dos Vicentinos, logo depois se tornou ministro da eucaristia, em 1979 participou de um Encontro das CEBs em João Monlevade, e logo depois passa a fazer parte da Pastoral Operária e se torna membro do diretório do PT local (MENDES, 2010, p.57). Mesmo destacando as transformações ocorridas no catolicismo no Norte de Minas, a nossa pesquisa se deparou com uma personagem cuja história de vida extrapolou este nosso recorte geográfico. Pois a trajetória de Zuleika Antunes Araujo não se limitou à Arquidiocese de Montes Claros. No final dos anos de 1960 ela se muda para Belo Horizonte, pois sentia que tinha que estudar e crescer um pouco e naquele tempo Montes Claros não tinha curso superior. Já na capital mineira, foi convidada pelo Padre Willian para trabalhar no Regional da CNBB em Belo Horizonte. E ela enfatiza: fui a primeira funcionária registrada do Regional Leste II. Dom João Rezende Costa foi quem me registrou. Na capital das Minas Gerais junto à CNBB, Zuleika Antunes pôde ver de perto muitos capítulos das mudanças ocorridas no catolicismo brasileiro a partir da década de 60. Participei de muitas assembleias da CNBB. Leonardo Boff, João Batista Libânio, Dom Helder, falavam muito para o Regional e disto tirávamos os subsídios para as dioceses, Antoniazzi fazia as apostila e eu as datilografava, íamos noite a dentro com este trabalho, afirma ela. Outro fato desta época relembrado

9 por Zuleika Antunes, foi o período em que ficou detida por dois dias na sede do Regional pelos Militares que queriam os documentos da Juventude Operária Católica. Ela destaca também quando foi convidada para participar da Polop - Organização Revolucionária Marxista Política Operária - o que recusou por ser um movimento de clandestinidade e da sua participação na reunião de fundação do Partido dos Trabalhadores em Belo Horizonte. Considerações finais O discurso e a prática de setores do catolicismo sofreu grandes transformações a partir dos anos de 1960. O Concílio Vaticano II e os movimentos dele depreendidos indicaram, de fato, uma maior preocupação com a realidade social, e isto possibilitou um fecundo diálogo entre fé e práxis política. Neste sentido, a trajetória de vida de Zuleika Antunes Araújo - leiga, ex-coordenadora do MEB no Norte de Minas Gerais, membro da comissão organizadora da 1ª Assembleia Diocesana de Pastoral de Montes Claros (1966), primeira funcionária do Regional da CNBB em Belo Horizonte e participante da reunião de fundação do Partido dos Trabalhadores na capital mineira, faz dela um personagem bastante representativo desta redefinição do papel social da Igreja. Seu depoimento contribui, sobremaneira, para nortear nossa pesquisa sobre o tema, uma vez que trouxe informações extremamente preciosas, do ponto de vista da investigação histórica. Expressando de maneira peculiar suas vivências, suas percepções sobre um determinado modelo de Igreja bastante evidenciado no Brasil depois da década de 1960. O nosso olhar percebeu alguém com um discurso bem elaborado, que revela uma teologia do engajamento bem própria deste período. Suas próprias experiências revelam uma Igreja atenta às reivindicações sociais do momento. Referências bibliográficas AUGUSTO, Rosely C. Aprender na Prática: Narrativas e histórias de lideranças camponesas, no sertão, Norte de Minas, nas últimas três décadas. Tese (doutorado), UFMG, 2011. BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II 1959-1965. São Paulo: Paulinas; Rio de Janeiro: EDUCAM, 2005.. A recepção do Vaticano II na Igreja do Brasil. In: INP (Org.) Presença pública da Igreja no Brasil: Jubileu de ouro da CNBB (1952-2002). São Paulo: Paulinas, 2003. COUTINHO, Sergio R. O Episcopado e a Recepção do Concílio Vaticano II em Goiás. In: Revista Fragmentos de Cultura, v.16, n.7/8. Goiânia: 2006.

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