Democracia em Jean-Jacques Rousseau



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Transcrição:

Democracia em Jean-Jacques Rousseau Orlando Venâncio dos Santos Filho Sumário 1. Introdução. 2. Contextualização histórico-política. 3. Liberdade e igualdade: valores indissociáveis e fundamentais. 4. Vontade geral: essência da soberania popular e da democracia em Rousseau. 5. Conclusão. Orlando Venâncio dos Santos Filho é Advogado, Professor de Processo Civil da Unisinos, Pós-graduado em Processo Civil e Mestrando em Direito. 1. Introdução Este trabalho objetiva estudar os elementos fundamentais do sistema político idealizado por Rousseau, a Democracia Rousseauniana Do contrato social, sem, entretanto, ter pretensões de esgotar o tema. Para tanto, no item 2 se contextualiza a Europa do século XVIII, nas suas diversas formas de governo, todos com traços comuns, caracterizados por governos oligárquicos ou absolutistas, com concentração de poderes nas mãos de poucos da aristocracia ou, na maioria dos casos, do rei absolutista, senhor de todos e de tudo. Em seguida, no item 3, abordam-se os valores fundamentais do pensamento político de Rousseau, igualdade e liberdade transformadas e qualificadas, pelo pacto social, como única saída para preservação troca desses bens supremos do estado de natureza, no estado social. No item 4, a essência do pensamento político de Rousseau desnuda-se em suas entranhas. Um sistema político, submetido ao soberano povo pela vontade geral, à qual todos os poderes do estado devem obediência. Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 285

Na conclusão, um pouco da influência de Rousseau no pensamento e valores das sociedades moderna e contemporânea, que não é pouca, como se verá em brevíssimas considerações. Segue, portanto, Rousseau, o filósofo e, acima de tudo, pensador político rebelde, infeliz, resumo da contradição do gênio com a sociedade, como sabiamente anota Bonavides, o mais estranho e renovador que o ocidente já produziu. 2. Contextualização histórico-política Para compreensão do pensamento de Rousseau, impõe-se viajarmos à Europa, especialmente àquela do século XVIII, sem olvidar que, como em qualquer viagem, para se chegar ao meio do caminho é preciso têlo iniciado. Politicamente, a Europa se apresentava com bastante heterogeneidade, porquanto os cinco regimes políticos estabelecidos naquele momento o feudalismo aristocrático, repúblicas patrícias, monarquia absoluta, despotismo esclarecido e a monarquia inglesa decorriam de condições históricas diferenciadas. O feudalismo aristocrático e as repúblicas patrícias 1º grupo eram, a rigor, duas vertentes do regime oligárquico, no qual o poder é exercido por um grupo restrito, por vezes, a título hereditário. Já a monarquia absoluta, tal como existia na França ou Espanha do século XVII, e o despotismo esclarecido, que só aparece no século XVIII, tinham algo em comum, inerente às suas naturezas, qual seja, a concentração absoluta dos poderes na mão de um soberano autoritário (2º grupo). Quanto à monarquia inglesa, observa René RÉMOND, não é possível reduzi-la a apenas um tipo de regime político, porque, embora possuindo traços do 2º grupo é uma monarquia, possui parlamento, administração local, sugerindo tratar-se de um regime aristocrático, o que a levaria para o 1º grupo. Entretanto, exatamente por essas 286 particularidades, recebe um tratamento diferenciado, sendo de todos os regimes o que tem o futuro mais longo, tornando-se um modelo universal ([19 - -?], p. 61). Entretanto, era o absolutismo monárquico, que conseguiu libertar-se dos entraves do feudalismo, a principal forma de organização política da Europa no século XVIII, consistindo num poder não partilhado, profundamente personalizado, concentrado na pessoa do rei, senhor de tudo e de todas as coisas, a quem todos devem obediência, conforme pugna Hobbes. O poder do soberano não era, ainda, fixado e limitado por constituições políticas. Ainda no século XVIII, é de importância crucial a existência dos impérios coloniais; os decadentes Portugal e Espanha e os emergentes França e Inglaterra, que disputavam, no dizer do adágio popular, a tapa, o espólio dos decadentes e a supremacia colonial. Infelizmente, das relações entre estados, do comércio, da guerra, conquistas e dos tratados Rousseau não tratou, pondo fogo em parte do seu projeto primitivo que seria suas Instituições Políticas, conforme melancolicamente lamenta no Capítulo IX, Livro Quarto, que trata da conclusão Do contrato social. É nesse contexto, portanto, em que os sem nada têm a perder, que deve ser compreendida e estudada a Obra do filho de relojoeiro, Jean-Jacques Rousseau, a submissão de todos à vontade geral, expressão do povo, agora sim, soberano, corpo político, senhor do seu próprio destino. 3. Liberdade e igualdade : valores indissociáveis e fundamentais O grande desafio encarado por ROUS- SEAU, a sua grande invenção (apud CHEVALLIER, 2001, p. 164), foi formular e conceber toda uma organização política na qual a liberdade e igualdade presentes no estado de natureza, pelo do pacto social, fossem reencontradas no estado social, no qual o homem substitui o instinto pela justi- Revista de Informação Legislativa

ça, e dar às suas ações uma moralidade até então inexistente. A compreensão de ROUSSEAU de que todos os homens, no estado de natureza, são iguais e livres já se mostra presente no seu Discurso sobre a desigualdade, obra prenunciadora do Contrato social, ao diagnosticar, na espécie humana, a existência de dois tipos de desigualdade, quais sejam, uma natural ou física, consistindo nas diferenças de idade, saúde, força, espírito e alma; a outra, moral ou política, porque dependente de convenção pelo menos autorizada pelos homens, consistindo em privilégios gozados por alguns em detrimento dos outros (1988, p. 39). Analisando a liberdade e igualdade no estado de natureza, no Discurso..., critica os filósofos que, embora sentindo indispensável à análise da sociedade o retorno ao estado de natureza, não lograram êxito, porquanto uns não hesitaram em supor, no homem, nesse estado, a noção do justo e do injusto...outros falaram do direito natural, que cada um tem, de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando inicialmente ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, logo fizeram nascer o Governo... Todos, conclui ROUSSEAU, transportaram para o estado de natureza idéias adquiridas em sociedade; falavam do homem do estado de natureza selvagem, primitivo e descreviam o homem civil (1988, p. 40). Esses filósofos, conforme Rousseau, ao não compreenderem que o homem no estado de natureza é bom e justo, e que a sociedade o corrompe, acabavam transpondo todos aqueles defeitos do homem orgulho, avidez, opressão, desejo, etc. para o estado de natureza. Olhavam, portanto, o estado de natureza com os olhos cegos pelos vícios da sociedade que conheciam. A crítica aos filósofos que professavam ser inerente ao estado de natureza a supremácia do mais forte sobre o mais fraco destinava-se a Maquiavel, Hobbes e Aristóteles, conforme, resta claro, mais tarde, no Contrato Social, Livro Primeiro, Capítulo II, ao rebater a idéia segundo a qual os homens, no estado de natureza, em absoluto seriam iguais, uns nascendo para escravidão, outros para dominação (ROUSSEAU, 1987, p. 24). Diz Rousseau, não sem razão, que Aristóteles e, porque não dizer, os demais filósofos que professavam essa equivocada premissa não discerniam o efeito da causa, qual seja, a sociedade imperfeita que pela força forjou a desigualdade e escravidão. Ao criticar Aristóteles, ressalta que, se há, pois, escravos pela natureza, é porque houve escravos contra a natureza, tendo a força feito os primeiros escravos, e a covardia os perpetuado (1987, p. 25). Vê-se, pois, que Rousseau enxerga o homem ainda que escravo! como sujeito capaz de se insurgir e transformar a sua realidade. Até então, nunca alguém foi tão longe no questionamento das estruturas de poder, que durante séculos conceberam a escravidão como algo natural, inerente à própria condição humana. Tendo como bem supremo a liberdade direito e dever, ROUSSEAU, arguto observador da realidade que o cercava numa Europa impregnada de monarquias absolutistas decadentes e voltadas, quase que exclusivamente, para os interesses da aristocracia, explicita no Contrato social toda a sua repugnância ao pretenso direito do mais forte de impor-se pela força, deixando claro que a força não gera direito, tampouco o mais forte será sempre senhor se não transformar sua força em direito e obediência em dever (p. 25). Eis a genialidade de Rousseau: o mais forte, ao transformar força em direito e obediência em dever, necessariamente, terá que se submeter à vontade geral, expressão política do soberano, a quem cabe aprovar as leis o direito, e a essa deverá obedecer! A força em si não produz qualquer direito, não se justificando a autoridade pela força, tampouco a escravidão, pois renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres, sendo nulo, portanto, o direito de escravidão, pois nada significa; direito e escravi- Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 287

dão encerram uma contradição lógica inconciliável (ROUSSEAU, 1987, p. 27, 29). Mesmo por convenção, não seria possível a escravidão, porquanto tal convenção implicaria o soberano abrir mão da sua liberdade, do seu poder, e a vontade geral, ver-se-á adiante, também assentada na moral, não se prestaria a tal fim. A rigor, a desigualdade não é da essência do estado de natureza, quando muito sendo este apenas sensível àquela (ROLLAND, 1960, p. 59). Era preciso, portanto, cunhar instituições políticas para uma nova sociedade; enuncia-se o alicerce fundamental dessa nova ordem política e social: só um pacto social nascido da força e liberdade de todos, em que cada indivíduo, obedecendo ao todo, só obedece a si mesmo, seria capaz de preservar a liberdade e igualdade presentes no estado de natureza! A rigor, substituí-las; a igualdade natural, por uma igualdade moral e legítima, que tornaria todos os homens iguais por convenção e direito, superando eventual desigualdade decorrente da força, gênio e outras diferenças entre os homens, próprias do estado de natureza. Entretanto, para que essa igualdade convencional fosse possível, o governo teria que ser voltado à construção de um estado social justo, pois nos maus governos essa igualdade é, apenas, aparente e ilusória, servindo para manter o pobre na miséria e o rico na usurpação (ROUSSEAU, 1987, p. 39). Igualdade, portanto, não só formal, mas, moral e política, que não se coaduna com a miséria de uns e a opulência de outros. Tanto mais desigual o Estado, mais está sujeito ao tráfico da liberdade pública. Quereis então dar consistência ao Estado? Aproximai os graus extremos tanto quanto possível; não suporteis nem opulentos nem indigentes (ROUS- SEAU, 1987, p. 85). Rousseau como que prenuncia a realidade que hoje se constata, qual seja, não há países que socialmente sejam profundamente desiguais, com instituições democráticas sólidas. Quando muito, essas nações sofrem 288 das mais diversas formas de autoritarismo, intercaladas por pequenos lapsos de democracia política. Quanto à liberdade, para ROUSSEAU, no pacto social, o homem faz uma troca: priva-se de algumas poucas vantagens do estado de natureza, recebendo em troca várias outras, que desenvolvem suas faculdades, alargam suas idéias, enobrecem seus sentimentos e elevam a sua alma, galgando uma condição superior, qual seja, a liberdade civil (1987, p. 36). Enfim, o homem troca a liberdade do estado de natureza, limitada, apenas, pelas forças do indivíduo, pela liberdade civil, produto do pacto social, submetido à vontade geral. 4. Vontade geral: essência da soberania popular e da democracia em Rousseau Se por meio do pacto social os homens alienariam as suas liberdade e igualdade individuais, do estado de natureza, em troca das liberdade e igualdade civis, do estado social, era preciso pensar um poder político legítimo, efetivamente comprometido com o bem comum. ROUSSEAU, profundo estudioso do Poder Político, observador arguto da forma como as monarquias absolutistas européias governavam e os parlamentos elaboravam as leis, ao conceber o Contrato social, haveria que se cercar, como de fato o fez, de garantias que impedissem a apropriação desse novo poder por maus governos, que se prestam, apenas, para manter os pobres na miséria e os ricos na usurpação, cuidando dos interesses particulares, em detrimento do bem comum. Assim o fez, submetendo as bases do pacto social à vontade geral, que não é a simples soma das vontades particulares, da vontade de todos ou da maioria, guiada pelos interesses privados, e, sim, uma vontade voltada para o bem comum (p. 46-47). Vontade, sem dúvida, qualificada pela sua dimensão política e moral, só podendo Revista de Informação Legislativa

ser alcançada se cada cidadão opinar de acordo com a sua consciência. Vontade geral essa a expressão política da vontade do soberano o povo. Responde ROUSSEAU uma indagação essencial da filosofia política, como a busca do fundamento último do poder (apud BOBBIO, 2000, p. 68). A quem o povo deve obedecer? Ora, a si mesmo, responde Rousseau! O soberano o povo é pois, pela primeira vez na história da filosofia política, alçado à condição de senhor de si mesmo não esqueçamos que Atenas era a democracia da parcela de homens livres!; precisamente por isso, deve exercer o seu poder com firmeza e responsabilidade, sempre tendo em conta o bem comum. Não poderia ser diferente porque o soberano é um corpo político, e não é possível ofender um de seus membros sem atacar o corpo, tampouco atacar o corpo sem ferir os seus membros. O Povo, portanto, é detentor de uma soberania que, além de absoluta, é infalível, inalienável e indivisível. Absoluta, porque o poder do soberano prescinde de garantias em relação aos seus súditos, porquanto seria ilógico o corpo político desejar prejudicar um de seus membros, como visto. Diferentemente de Hobbes, embora absoluta a soberania, não se apresenta, em essência, como uma contraposição, uma potência adversa à liberdade individual, devendo ser entendida como resultado qualitativo da associação de todos os particulares, voltada para o bem comum, e, portanto, uma força incapaz de ferir seus elementos formadores sem a si mesmo ferir-se. A soberania é infalível, não podendo a vontade geral errar, pelo simples fato de que o soberano, somente por sê-lo, é sempre aquilo que deve ser (ROUSSEAU, 1987, p. 35). Eis a razão pela qual aquele que desobedecer à vontade geral será constrangido por todo o corpo político a obedecê-la, que o forcará a ser livre, constituindo essa condição artifício e jogo da máquina política, legitimando os compromissos civis, que de outro modo tornar-se-iam absurdos tirânicos e sujeitos a abusos de toda ordem. A soberania é inalienável, devendo o povo exercê-la diretamente, não podendo ser suscetível de cessão ou de transmissão, pena de, em cedendo a sua vontade, deixar de ser povo, agente político, senhor de si mesmo. É partidário Rousseau da democracia direta, entendendo tratar-se a representação de forma de alienação da soberania. Os deputados do povo, destarte, não são seus representantes mas, apenas, seus comissários. O exercício do poder político é tratado como um serviço público, uma tarefa de Estado, da qual o povo não pode jamais abrir mão. Igualmente, o combate, a luta para defender o novo Estado, que se encaminha para ruína quando o cidadão prefere servilo com sua bolsa e não com sua pessoa. Dai ouro logo terei ferros. A palavra finança é uma palavra de escravos, não é conhecida na pólis (ROUSSEAU, 1987, p. 106-107). Para Rousseau, a representação política traz consigo outro problema grave, que deve ser combatido nos seios do Estado, qual seja, o tráfico dos interesses privados nos negócios públicos. Essa concepção de organização política vai de encontro ao preconizado por Montesquieu, segundo Rousseau, um feudal mal disfarçado, que, a partir do estudo da Inglaterra e, especialmente, do parlamento britânico, optou pela defesa da democracia representativa. A soberania é indivisível, afirma Rousseau, mais uma vez se contrapondo a Montesquieu, para quem a divisão do poder político entre legislativo, executivo e judiciário, independentes e igualmente poderosos embora o judiciário fosse concebido como um poder temporário e nulo!, era imprescindível à manutenção do estado de direito. Para Rousseau, ou a vontade é geral ou não é; é a do corpo do povo ou somente de uma parte; sendo de uma parte, não passa de uma vontade particular; portanto, dividi-la em seu princípio é matá-la. Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 289

290 Tratando da liberdade, Hannah ARENDT afirma ser Rousseau o mais coerente representante da teoria da soberania, derivada por ele da vontade, de modo a poder conceber o poder político à imagem estrita da força de vontade individual (2000, p. 211-212). Como então a vontade geral se expressa? Por meio da lei, é claro, cuja elaboração deve ficar a cargo do legislador, um ser superior, inteligente, quase divino, mas, por via das dúvidas(!), submetida à vontade geral, pelo sufrágio popular. Por isso que, para fazer a lei, só alguém capaz de uma empresa acima das forças humanas e, para executá-la, uma autoridade que nada é. Mesmo sendo alguém quase divino, quem redige as leis não pode ter qualquer direito legislativo; este é inalienável, pertence ao povo soberano. Para Rousseau, preocupado em pôr limites aos abusos, desejos e vontades privadas, só a lei, a mais sublime de todas as instituições humanas, seria capaz de assegurar ao estado social a justiça e a liberdade. O objeto da lei, entretanto, deve ser necessariamente geral, considerando os súditos no seu conjunto e as ações como abstratas, jamais um homem individualmente, nem uma ação particular. O legislador, na elaboração das leis, não pode esquecer dos hábitos, costumes e sobretudo da opinião; ou seja, o legislador, na sua tarefa quase divina de elaborar as leis, haverá que examinar a que povo se destina, se está apto a suportá-las, antes de empreender o seu hercúleo empreendimento. Quanto à execução das leis, é tarefa do governo formado por magistrados ou reis, governadores, que age como ministro do soberano. É, portanto, um corpo intermediário (Príncipe) entre súditos e soberano, encarregado da manutenção da liberdade civil e política. Esse corpo executa as leis, não as interpreta; tarefa essa reservada ao legislativo (vontade geral). Eis a democracia de Rousseau: o poder político integralmente na mão do povo soberano, a quem, diretamente, cabe a aprovação das leis; e um governo que, na execução das leis, se limita a ser ministro da vontade geral. 5. Conclusão O primeiro grande legado de Rousseau foi a necessidade de legitimidade do poder político, concebendo o povo como titular dessa legitimidade, como agente político de transformação. Nunca, em tempo algum, repita-se, filósofo ou pensador político atribuiu tanto poder ao povo, que deixa de ser mero coadjuvante para ganhar uma dimensão política que jamais lhe fora atribuída. Ao estabelecer que a renúncia à liberdade e à igualdade, indissociavelmente àquela ligada seria renunciar aos direitos de humanidade, acabou por inspirar aquilo que veio a ser A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional, em 26 de agosto de 1789, como ato de constituição de um povo, segundo palavras de membro da assembléia, conforme BOBBIO (1992, p. 85). O grande historiador Georges Lefebvre, em breve trecho referido por Bobbio, anota: proclamando a liberdade, a igualdade e a soberania popular, Declaração foi o atestado de óbito do Antigo Regime, destruído pela Revolução. Ora, indubitável tratar-se de inspiração no Contrato social. A separação entre os interesses público e privado, e, porque não dizer, a própria noção daquilo que veio a se chamar, posteriormente, Direito Público, como ramo do direito voltado para regular os interesses e atividades do Estado e, conseqüentemente, para o bem comum, deve-se a Rousseau. Os costumes, senão como fonte de direito, como um elemento indispensável a ser observado pelo legislador, sábio instituidor, eis que a lei, então, deve ser produto também do meio social, da sociedade, na qual deverá ser aplicada. Em contra-ponto, papel importante na afirmação do positivismo jurídico, à época, Revista de Informação Legislativa

fundamental para assegurar o respeito dos particulares, especialmente dos despossuídos de poder e bens no Estado imaginado à vontade geral do povo soberano. O instituto do sufrágio universal, até hoje, elemento fundamental da prática política nas mais diversas instâncias do poder político e na sociedade em geral. As influências de Rousseau são majestosas. Não sem razão BONAVIDES afirma que o Contrato Social sacode o homem do século XVIII com a mesma intensidade com que o Manifesto Comunista abala o século XX (1961, p. 187). Eis o pensador político rebelde, revolucionário, cuja obra, quase cem anos antes do Manifesto Comunista de Marx, fez tremer toda Europa. Eis Rousseau, um homem cuja influência no pensamento político contemporâneo é imedida e, longe de ter-se esgotado, reclama que continuemos a discuti-lo, como diria Bonavides, seja para refutá-lo, seja para consagrá-lo. Acima de tudo, entretanto, para buscarmos inspiração à resolução de um problema crucial da democracia burguesa atual: a legitimidade política. Bibliografia ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Os clássicos da política. Organização de Francisco C. Weffort. São Paulo: Ática, 2001. v. 1. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.. O Futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986.. Teoria geral da política. Organizado por Michelangelo Bovero. Rio de Janeiro: Campus, 2000. BONAVIDES, Paulo. Democracia e liberdade no contrato social de Rousseau. In: CAVALCANTI, Themistocles et al. Estudos em homenagem a J. J Rousseau. Rio de Janeiro: FGV, 1962.. Do Estado liberal ao Estado social. São Paulo: Saraiva, 1961. CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas. 8. ed. São Paulo: Agir. 2001. FUNDAÇÃO Getúlio Vargas. Estudos em homenagem a J. J Rousseau: 200 anos do Contrato social 1762-1962. Rio de Janeiro: FGV, 1962. MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História contemporânea: Através dos textos. São Paulo: Contexto, 1997. NASCIMENTO, Milton Meira do. Os clássicos da política. Organização de Francisco C. Weffort. São Paulo: Ática, [19- -?]. v. 1. RÉMOND, René. O antigo regime e a revolução 1750-1815. São Paulo: Cultrix, [19- -?]. ROLLAND, Romain. O pensamento vivo de Rousseau. São Paulo: Livraria Martins, 1960. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os pensadores).. Do contrato social. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores). Brasília a. 39 n. 155 jul./set. 2002 291