GOVERNO DAS SOCIEDADES ANÓNIMAS PROPOSTA DE ALTERAÇÃO AO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS Resposta à Consulta Pública n.º 1/2006 da CMVM
GOVERNO DAS SOCIEDADES ANÓNIMAS PROPOSTA DE ALTERAÇÃO AO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS Consulta Pública n.º 1/2006 I. NOTA PRÉVIA A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ( CMVM ) lançou recentemente um processo de consulta (consulta pública n.º 1/2006 da CMVM) relativo à alteração do Código das Sociedades Comerciais no que respeita à matéria do governo das sociedades anónimas. Na óptica do IberGovernance - Instituto Ibérico de Corporate Governance (doravante IberGovernance), a discussão e o debate das questões relativas ao governo das sociedades, incluídas na revisão do Código das Sociedades Comerciais, são de grande pertinência, sendo sem dúvida ambiciosos os objectivos que se pretende atingir: a promoção das melhores práticas de organização societária em Portugal, alinhadas por modelos de reconhecido sucesso na Europa e no Mundo; a homogeneização da legislação portuguesa com os textos comunitários entretanto aprovados; o alargamento do leque de escolhas entre modelos (eliminando as incongruências existentes); e o incentivo ao aproveitamento das potencialidades que as actuais tecnologias de informação conferem actualmente à comunicação societária e à transparência dos seus processos. 2
O IberGovernance vem apresentar o seu contributo para esta consulta, indicando infra as suas posições quanto às matérias colocadas em discussão pública, as quais espera constituam um conjunto de ideias e sugestões úteis no processo de elaboração dos textos normativos relacionados com a temática da corporate governance. A elaboração do presente documento, da autoria e responsabilidade do IberGovernance, contou com a colaboração do ISEG Instituto Superior de Economia e Gestão, da Vieira de Almeida & Associados Sociedade de Advogados, RL, e da Bi4all Consultores de Gestão, Lda. II. O objecto da consulta pública O processo de consulta pública n.º 1/2006, recentemente iniciado pela CMVM e relativo às propostas de alteração ao Código das Sociedades Comerciais em matéria de governo das sociedades anónimas, propõe um conjunto de medidas que, a ser adoptado, concretiza uma revisão profunda das disposições legais em vigor. Não se trata portanto de um mero ajustamento pontual do texto legislativo, mas antes de uma reforma dos actuais modelos de governação societária, que aproveita a experiência de outros ordenamentos jurídicos e reflecte uma visão pragmática quanto à necessidade de evoluir a partir das soluções consagradas quando da aprovação do Código das Sociedades Comerciais, dando especial atenção às orientações comunitárias mais recentes e tendo em vista o objectivo de promover a competitividade das empresas portuguesas. As propostas de alteração apresentadas visam, nomeadamente, ampliar a autonomia dos sócios no que respeita à selecção do modelo de organização da administração e fiscalização societária, através da introdução do modelo anglo-saxónico (composto por conselho de administração, comissão de auditoria e revisor oficial de contas), enquanto alternativa aos modelos actualmente consagrados (o modelo latino, 3
composto por conselho de administração e conselho fiscal e o modelo germânico, composto por conselho executivo, conselho geral e revisor oficial de contas). Na perspectiva do IberGovernance, a liberdade dos sócios na conformação da organização da sociedade deverá, em homenagem ao princípio da autonomia privada e dentro dos limites legalmente admitidos, ser tão ampla quanto possível. As soluções adequadas aos interesses de uns sócios poderão ser desinteressantes para outros, pelo que a introdução de um terceiro modelo organizativo, para mais tratando-se de um modelo testado (com o sucesso conhecido) em ordenamentos jurídicos sofisticados como os americano e inglês, é de aplaudir. Ainda sob este pano de fundo, deve igualmente salientar-se como positiva a preocupação de conciliar o grau de exigência das regras com a dimensão das sociedades às quais as mesmas são aplicadas, uma vez que a pequena dimensão de certas sociedades anónimas, medida com base no respectivo capital social, pode nem sempre justificar um regime de fiscalização tão exaustivo como aquele que é exigível a sociedades anónimas de manifesto interesse público, nomeadamente, sociedades abertas. Considerando que a definição da organização administrativa e fiscalizadora de cada sociedade se encontra limitada aos modelos previstos na lei (regra de numerus clausus), e que a combinação de elementos pertencentes a diversos modelos não é possível (não obstante ser admitida a criação de comissões e órgãos colegiais adicionais), a introdução do modelo anglo-saxónico e a revisão das regras actualmente modeladoras dos modelos latino e germânico são importantes passos, em especial num contexto em que se pretende uma cada vez mais vincada distinção e absoluta segregação não apenas entre as funções de administração e fiscalização, mas sobretudo entre as actividades de fiscalização e de revisão de contas. Sobre este tema é importante notar que o sentido que o legislador português parece querer seguir vai ao encontro das recomendações que nesta matéria forma já emitidas 4
pela OCDE, organização que defende, no que respeita a divulgação de informação e transparência, que a auditoria anual das contas da sociedade deverá ser desenvolvida por um auditor independente, competente e qualificado, de forma a assegurar uma análise externa e objectiva perante o órgão de administração e os accionistas quanto à capacidade das contas para evidenciar a posição financeira e a performance da sociedade. III. As alterações propostas para as disposições comuns São bastantes, e bastante significativas, as alterações propostas no que respeita às deliberações dos accionistas. O IberGovernance considera particularmente relevantes todas as modificações legislativas que procuram proceder a uma actualização das regras aplicáveis, quer no contexto da distribuição de poderes e competências entre os diversos órgãos sociais, quer no que respeita ao acolhimento de novas tecnologias enquanto ferramentas disponíveis no âmbito do processo de tomada de deliberações societárias. Assim, o IberGovernance concorda com as faculdades atribuídas à comissão de auditoria no que respeita à presidência da mesa da assembleia geral, bem como à possibilidade que assiste àquela comissão para convocar aquelas assembleias e de nas mesmas estar presente. O papel da comissão de auditoria, assim como o dos órgãos congéneres nos modelos latino e germânico, será tão mais eficaz quanto mais amplos forem os seus poderes para, em tempo útil, trazer ao conhecimento dos accionistas assuntos de interesse relevante para os mesmos, no espaço próprio a tanto destinado a assembleia geral. No que respeita ao reflexo de novos meios tecnológicos, o IberGovernance entende que a tecnologia é algo instrumental relativamente aos objectivos prioritários: contribuir para aumentar os níveis de eficiência e eficácia da comunicação entre accionistas e gestores e da participação informada de todos os stakeholders na vida da sociedade. As elevadas alterações verificadas no universo das tecnologias de informação na 5
última década, justificam que, numa abordagem autonomizadora e pedagógica, se aproveitem as oportunidades para os desideratos atrás descritos. Como ponto de partida, o entendimento actualizado do conceito de forma escrita, tal como é proposto do documento da CMVM, merece a nossa total concordância, assim estejam assegurados os níveis mínimos de segurança e fiabilidade. Como tal, tanto para questões de representação, pedidos de informação ou solicitação de inclusão de assuntos nas ordens de trabalhos das assembleias gerais, o simples uso do correio electrónico parece-nos perfeitamente apropriado. Em conformidade, e de forma a tornar mais céleres a menos onerosos os processos de convocatória de assembleias gerais, o recurso ao correio electrónico parece-nos conveniente, assim seja salvaguardada a vontade de cada accionista, com vista a evitar situações de infoexclusão. No entanto, o IberGovernance pensa que as medidas propostas deveriam ser ajustadas de forma a assegurar que o correio electrónico efectivamente corresponde, no que respeita à garantia de recepção da comunicação pelo seu destinatário, a uma carta registada com aviso de recepção. Assim, a possibilidade de convocação de assembleias gerais por correio electrónico deveria ser admitida apenas quando o mesmo se encontrasse devidamente certificado (garantindo-se desta forma a sua autenticidade), devendo igualmente estabelecer-se regras quanto à alteração de endereço (e.g. seria tido como endereço electrónico dos accionistas aquele que houvesse sido comunicado à sociedade e não modificado até à data em que, legalmente, a convocatória deve ser efectuada). Relativamente à participação de accionistas em assembleias gerais, entende o IberGovernance que as regras a introduzir deverão caminhar sempre no sentido da criação de meios que permitam a participação nas reuniões do maior número possível de accionistas, com vista a assegurar maiores níveis de envolvimento e participação de todos os interessados. Em conformidade, e sempre que tal seja possível nos 6
termos que se propõem aprovar (nomeadamente no que se refere a níveis adequados de segurança e confidencialidade nas comunicações), os accionistas deverão ter a possibilidade de participar através de meios telemáticos, sem qualquer outra limitação, nomeadamente estatutária ou obtenção de consentimento. A existência de limitações estatutárias, articulada com as regras vigentes em matéria de maiorias necessárias para a alteração dos estatutos, poderá, na prática, tornar o dispositivo que se pretende inserir inviável, ao conter em si mesmo entropias que dificilmente serão ultrapassáveis por certos accionistas, nomeadamente minoritários. Ainda no que respeita aos temas da potenciação da participação accionista nas assembleias gerais e das formas admitidas para o efeito, o IberGovernance julga que nenhuma razão existirá para não ser sempre admitido o voto por correspondência, seja por carta ou por meio electrónico. Sendo o voto por correspondência admitido quanto a assembleias gerais de sociedades abertas, não se compreende porque razão não deverá igualmente sê-lo com relação a sociedades que apresentam um número de accionistas mais reduzido. Assim, o IberGovernance entende que os direitos de participação em assembleias gerais deverão ser tão amplos quanto possível, e se os accionistas passam, em certos casos, a poder ser convocados e participar através de meios electrónicos, deverão igualmente poder expressar o seu voto, pelo menos, nesses mesmos casos, através desses meios. Uma última referência para a disponibilização da informação financeira aos accionistas. Esta é uma matéria que, em concreto, merece a particular atenção do IberGovernance, tendo em conta a sua importância para os princípios da transparência e da equidade, pilares da abordagem à corporate governance. Com efeito, a necessidade da deslocação física de accionistas à sede da sociedade para obtenção da informação financeira a que legitimamente têm direito é, na actualidade, um anacronismo. Os meios de comunicação actualmente ao dispor das 7
empresas permitem que esta seja acedida de local remoto ou enviada através de canais virtuais. De sublinhar, portanto, que deverá ser dada toda a autonomia para que as sociedades estipulem nos seus estatutos formas mais ágeis de acesso à informação. Tais formas poderão materializar-se no uso do correio electrónico, bem como no acesso ao website institucional ou mesmo a uma extranet, com informação mais rica (em termos de conteúdos e em termos de visualização de dados) e formatada para análise dos accionistas. IV. As alterações propostas ao modelo latino Em concretização dos objectivos acima enunciados, o documento objecto da consulta pública sugere profundas alterações à actual estruturação do modelo latino o mais comum nas sociedades anónimas portuguesas. Neste domínio, e em cumprimento da comummente designada Oitava Directiva de Direito das Sociedades, propõe-se agora uma clara segregação entre a função de fiscalização da sociedade, de um lado, e a tarefa de revisão oficial das contas societárias, de outro. Significa isto, portanto, que a entidade responsável pela revisão oficial de contas da sociedade deixará de poder integrar o conselho fiscal, órgão responsável pela tarefa de fiscalização não apenas do desempenho do órgão de administração, mas também da própria função de auditoria e revisão oficial de contas. O IberGovernance entende tratar-se esta de uma medida que deve ser acolhida com vigor. Na verdade, é comum nas sociedades anónimas portuguesas que a entidade responsável pela revisão oficial de contas acabe por estar também representada no órgão encarregue da fiscalização da sociedade, ou que actue mesmo como fiscal único. Como consequência, verifica-se com particular intensidade o chamado risco de 8
self-review, em que o órgão de fiscalização é colocado na posição de fiscalizar o seu próprio desempenho na função de auditoria e revisão oficial de contas. Desta forma, a segregação clara e absoluta entre estas duas funções só poderá contribuir para uma fiscalização mais efectiva e independente da sociedade. Medida que parece também vir a ser proposta e que merece o acordo do IberGovernance, consiste na limitação da possibilidade de as sociedades anónimas de interesse público, nomeadamente as sociedades abertas, optarem por configurar o seu órgão de fiscalização não enquanto órgão colegial, mas apenas como fiscal único. Com efeito, a colegialidade do órgão servirá certamente para fortalecer, no seio da sociedade, a importância e dignidade da função de fiscalização da gestão da sociedade. Por fim, e ainda no que diz respeito às propostas de evolução legislativa no domínio do modelo latino, o IberGovernance vê como positivas as alterações que visam introduzir flexibilidade na configuração e estruturação dos órgãos societários, nomeadamente no que respeita à eliminação do número máximo de membros do órgão de administração e de fiscalização. Nestes domínios, devem predominar os princípios da liberdade contratual e autonomia privada, para que cada sociedade possa desenhar os seus modelos de organização interna em conformidade com as necessidades do mercado e a vontade dos respectivos sócios. V. O modelo anglo-saxónico Pela sua relevância e dado que constitui a grande novidade das soluções propostas, o modelo anglo-saxónico deverá também ser objecto de algumas considerações mais aprofundadas. Este modelo de organização sustenta que o exercício da função fiscalizadora deve ser realizado no seio do próprio órgão de administração, por alguns dos seus membros que não exercem funções executivas. A vantagem é clara: a presença de 9
fiscalizadores no órgão de administração assegura uma grande proximidade entre decisão e fiscalização, permitindo ao fiscalizador ter uma visão constantemente actualizada da gestão da sociedade. Ao mesmo tempo, a adopção de um modelo que privilegia uma clara afectação de poderes e competências a administradores em geral, de um lado, e a administradores fiscalizadores, de outro, permitirá uma actuação mais funcional e transparente do órgão de administração, assim evitando conflitos de competências que podem entorpecer a gestão da sociedade. A solução proposta no documento sujeito a consulta pública defende que a designação de todos os administradores, incluindo os que integrem a comissão de auditoria, deve incluir-se no âmbito das competências da assembleia geral, em lugar de pertencer ao conselho de administração. O IberGovernance concorda com esta opção, na medida em que potencia a independência dos membros da comissão de auditoria, tornando-os instrumentos da prossecução dos interesses dos sócios e da sociedade, isentos face aos demais membros do órgão de administração. Por outro lado, desloca para o espaço de decisão dos sócios a análise de potenciais situações de conflitos de interesse dos membros da comissão de auditoria, juízo sempre sensível e cuja aferição deverá competir aos sócios agindo colegialmente. Aliás, e sem prejuízo da competência da assembleia geral para analisar potenciais situações de conflitos de interesse, pensa o IberGovernance que será necessário criar regras destinadas a avaliar possíveis situações de geradoras de incompatibilidades, à imagem do que sucede com os membros dos órgãos de fiscalização dos outros dois modelos. Atenta a natureza específica e mais detalhada deste tipo regras, entende contudo o IberGovernance que as mesmas devem ser deixadas para códigos de conduta ou recomendações, tal como acontece no que respeita à qualificação dos administradores como executivos, não executivos ou independentes. 10
Esta mesma regra de designação assume igualmente especial relevância se pensarmos em matérias como a fixação de remuneração e a destituição, cuja integração na esfera de competência da assembleia geral igualmente se sugere. Quanto à remuneração, o documento sujeito a consulta pública sustenta ainda que deverá ser eliminada a possibilidade de fixação de uma componente remuneratória variável, regra com a qual o IberGovernance concorda, uma vez que a remuneração dos membros da comissão de auditoria não deverá estar ligada à respectiva performance nem aos resultados obtidos. Introduzir uma componente variável na remuneração dos membros da comissão de auditoria poderia equivaler a premiar o excesso de fiscalização, gerador nos membros do órgão de administração de uma sensação de estarem sujeitos a um constante juízo de suspeição, fenómeno que poderia causar entropias de gestão como resultado do receio de tomar decisões. Quanto à destituição, e como forma de assegurar a tomada de decisões, desta vez por parte dos membros da comissão de auditoria, propõe-se que a mesma deva ocorrer apenas se existir justa causa para o efeito. De outro modo a independência e imparcialidade da função fiscalizadora poderia estar comprometida. Adicionalmente, o IberGovernance concorda com as regras de rotação dos membros da comissão de auditoria de sociedades emitentes de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado, uma vez que as mesmas asseguram que a fiscalização da gestão não se converta num fenómenos de comodismo e conivência. Não obstante não ter sido uma matéria abordada pelo documento objecto de consulta pública, o IberGovernance entende que a regra da destituição com justa causa deverá ser complementada com a da renúncia com justa causa, devendo qualquer membro da comissão de auditoria em cessação de funções indicar as razões que o levam a renunciar ao cargo, a exemplo do que acontece, por exemplo, no sistema inglês. Pensamos que assim se evitará que na origem da cessação de funções esteja a não colaboração com a prática de actos menos correctos por parte do órgão de administração que cairiam no esquecimento caso não fossem denunciados. 11
VI. Síntese conclusiva Em jeito de conclusão poderá dizer-se que o documento sujeito a consulta pública procura encontrar um justo equilíbrio entre, por um lado, a defesa dos interesses da sociedade e do mercado em geral e, por outro, a necessidade de implementar um esquema de fiscalização eficaz e credível. Com a manifestação destas orientações gerais pretende potenciar-se uma fiscalização mais eficiente sem transformar a fiscalização no maior inimigo da gestão da sociedade. Resta-nos agora esperar as propostas legislativas concretas e a forma como as orientações gerais agora divulgadas serão materializadas enquanto alterações ao Código das Sociedades Comerciais. Apenas então será possível medir, embora ainda de forma geral e em abstracto, dado serem essas duas características próprias de qualquer lei, o verdadeiro impacto destas alterações no actual quadro normativo. Lisboa, 13 de Outubro de 2006 Pelo IberGovernance, Prof. Doutor João Carvalho das Neves ISEG jcneves@iseg.utl.pt Dr. Fernando Resina da Silva Vieira de Almeida & Associados frs@vieiradealmeida.pt Dr. José Oliveira Bi4all joliveira@bi4all.net 12